Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
29/16.7PTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: CONCURSO APARENTE;
CONSUNÇÃO;
CRIME/CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 06/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CASTELO BRANCO J-2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário:
Se a mesma conduta integra, em simultâneo, a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida - consunção impura - pela punição do ilícito penal.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

No Juízo Local Criminal de Castelo Branco, J-2, da Comarca de Castelo Branco, nos autos de processo comum (singular) que aí correram termos sob o nº 29/16.7PTCTB, o arguido AA foi submetido a julgamento, acusado pela prática, em concurso real, na forma consumada e em autoria material, de:
- Um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; e de
- Uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 103º, n.º 2 e 4 do Código da Estrada.
A viúva, filhos e netos do falecido FF formularam pedido de indeminização civil contra o arguido e a companhia de seguros Vitoria SA, o qual foi objecto de transacção e homologado por sentença conforme decorre da acta de audiência de julgamento.
A fls. 302 o Centro Nacional de Pensões deduziu pedido de indemnização civil contra a seguradora supra identificada peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 39.460.98€ (trinta e nove mil quatrocentos e sessenta euros e noventa e oito cêntimos), a titulo de sub-rogação da pensão por morte atribuída à viúva do falecido, acrescida das pensões de sobrevivência que se vencerem e forem pagas durante a pendência dos autos e juros de mora legais desde a citação e até integral pagamento.
Efectuado o julgamento, viria a ser proferida sentença, decidindo nos seguintes termos:
Em face do exposto, julgo improcedente, por não provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público e em consequência:
a) Absolvo o arguido AA da prática de:
- Um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
- Uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 103º, n.º 2 e 4 do Código da Estrada;
Sem custas (art.º 513º nº l ° do Código de Processo Penal)
Sem custas cíveis relativamente ao pedido formulado pelo CNP por não se proceder à sua apreciação.
Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
1. No presente recurso pretende-se impugnar a sentença proferida nos presentes autos, pela qual foi absolvido o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos art.º 137°, n.º 1 e 69°, n.º 1, al. a) do Código Penal, em concurso real com uma contra-ordenação p. e p. pelo art. 103°, n.º 2 e 4 do Código da Estrada, para além de se discordar que não se encontram preenchidos os elementos subjectivos do tipo legal de crime.
2. Além disso, existe uma manifesta omissão de pronúncia quanto à contra-ordenação estradal.
3. Assim, e salvo o devido respeito, não podemos concordar com os factos dados como não provados, bem como, parcialmente, com o facto n.º 8, na parte em que refere que o peão procedeu ao "atravessamento da referida passadeira de forma abrupta" dado como provado (sendo que este segmento foi acrescentado aos factos que já constavam da acusação), para além de se discordar que não se encontram preenchidos os elementos subjectivos do tipo de crime de homicídio por negligência.
4. Temos para nós que da prova testemunhal e das próprias declarações do arguido proferidas em audiência de julgamento, resulta precisamente o contrário.
5. Como bem se refere na sentença recorrida, o arguido prestou declarações e referiu que (e passa-se a citar): "não se apercebeu de todo que o peão tinha entrado na passadeira, tendo admitido uma ligeira distração, mas afirmando que de todo não o viu", conforme consta da Motivação da Matéria de Facto, primeiro parágrafo de fls. 359 verso.
6. Mais consta da matéria de facto provada, nomeadamente no ponto 8., (e passa-se a citar): "(…) o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu (…)".
7. Ora, esta formulação do ponto 8. da matéria de facto provada é exactamente igual ao que consta no artigo 7° da acusação pública (cfr. fls. 163 verso), tendo apenas sido acrescentado o segmento "e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira de forma abrupta", relativo ao comportamento do peão.
8. Relativamente a este facto, escreveu a Meritíssima Juiz na sentença recorrida, na motivação de facto, e para justificar este comportamento do peão (e passa-se a citar): "A testemunha T1, que afirmou ter visto o acidente da varanda da sua cozinha que fica a cerca de 50 metros do local afirmou que o peão só atravessou após ter visto se não havia autom6veis, porém este seu depoimento é contrariado pelo depoimento da testemunha T2 (que estava a fazer jogging e perto do local e por isso merece maior credibilidade) que afirmou que o peão "aproximou-se rapidamente e depois foi colhido" e "vinha com passo apressado".
9. Sem ser necessário "atacar" esta parte da fundamentação, e sem querer contrariar o que ficou escrito na fundamentação da matéria de facto, quanto ao depoimento da testemunha T2, a verdade é que, a argumentação da sentença recorrida, ao considerar que a forma alegadamente abrupta com que o peão/ofendido atravessou a passadeira é suficiente para afastar a negligência do arguido, nos parece, com o devido respeito, um raciocínio errado.
10. Salvo o devido respeito, que é muito, da prova produzida resulta precisamente o contrário. Senão vejamos.
11. O arguido admitiu, expressamente, que, nos instantes que antecederam o acidente, estava distraído, tendo ficado exarado na sentença, conforme supra referido que: "não se apercebeu de todo que o peão tinha entrado na passadeira, tendo admitido uma ligeira distração, mas afirmando que de todo não o viu."
12. Por outro lado, resulta da matéria de facto provada, ponto 8. O seguinte: "(…) o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu (…)".
13. Por fim, é necessário atentar na descrição da via que é feita na matéria de facto provada, e na circunstância de ser de dia, existir boa visibilidade, e o peão não ter efectuado o atravessamento da passadeira do lado onde se encontravam viaturas estacionadas em segunda fila (conforme ficou assente na matéria de facto provada), mas do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veiculo conduzido pelo arguido, sendo que nem existe a "desculpa" de o arguido não ter visto o peão porque este surgiu, de forma inopinada, da sua direita, do meio de viaturas que ali se encontravam estacionadas.
14. Nada disso aconteceu.
15. O peão apresenta-se no lado esquerdo do sentido de marcha do arguido, numa avenida que tem duas vias de trânsito, com separador central de vias, e com uma largura de sete metros cada via, sendo que o peão já havia atravessado, desde o inicio da passadeira até ao ponto de contacto, 10,90 metros, o que demonstra que o peão, na altura do embate, já se encontrava bem dentro da passadeira (cfr. croqui do acidente a fls. 79).
16. Aliás, isso mesmo resulta da matéria de facto provada, nomeadamente do ponto 8. onde se refere, expressamente: "Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento".
17. Portanto, em nosso entender, fazendo um juízo global de toda a matéria de facto dada como provada, das declarações do arguido e do local do acidente, deveria ter o Tribunal "a quo", obrigatoriamente, concluido que o arguido agiu de forma imprudente, temerária, sem o devido cuidado, e sem abrandar a marcha ao aproximar-se da passadeira, a qual estava devidamente sinalizada (conforme também consta do ponto 5. da matéria de facto provada (e passa-se a citar): "No sentido de marcha do veículo, existia sinalização vertical a informar a aproximação da passadeira (sinal vertical H7)".), e sabendo que naquele local existe a referida passadeira e que é provável que existam peões a atravessar, tendo actuado, por isso, de forma descuidada e com evidente imperícia.
18. Por outro lado, a sentença recorrida, estriba-se no facto de o peão/sinistrado ter atravessado de forma abrupta e com uma taxa de álcool no sangue de 0,50 g/l para afastar a negligência do arguido.
19. Ora, este raciocínio não nos parece correto e acertado, uma vez, o peão, quando foi "colhido" pela viatura conduzida pelo arguido já havia iniciado a travessia da passadeira há 10,90 metros atrás, sendo que já se encontrava na segunda marca da referida passadeira depois do separador central, peta que é de todo irrelevante se o peão ia em passo apressado ou se iniciou a travessia de forma abrupta ou não, porque isso não afasta o comportamento imprudente e descuidado do arguido.
20. O mesmo se diga em relação à circunstância apurada na autópsia de que o sinistrado ia com uma taxa de 0,50 g/l de álcool no sangue.
21. O resultado morte do peão não seria diferente pelo facto de ele ir sóbrio ou ir em passo lento.
22. O resultado morte é consequência directa e necessária da condução descuidada e imprudente do arguido.
23. Além disso, existe a contra-ordenação estradal, que reflecte isso mesmo, a falta de cuidado e o comportamento negligente que o arguido imprimia à viatura por si conduzida, sendo que, quanto a esta matéria, a sentença é completamente omissa.
24. Assim, afigura-se-nos que os factos em causa, que consubstanciam o elemento subjectivo do tipo legal de crime de que o arguido vinha acusado - homicídio negligente - não poderão deixar de se considerar como provados, pelo que deve a sentença recorrida ser substituída por outra que dê como provados os factos constantes das alíneas a), b), c) e d) da matéria de facto dada como não provada.
25. Por outro lado, de acordo com o teor da sentença recorrida, o arguido foi absolvido da prática deste crime porquanto não foi dada como provada a verificação dos elementos subjectivos do tipo legal em causa.
26. Ou seja, entende a Meritíssima Juiz "a quo" que resulta claro, da factualidade provada, a verificação dos elementos objectivos do crime, mas não os elementos subjectivos.
27. Não podemos discordar mais de tal posição, sendo certo que, se bem vemos, a Meritíssima Juiz "a quo" se contradiz na sentença recorrida.
28. Tal como se afirma na sentença recorrida, de acordo com o disposto no art.º 137º do Código Penal (e passa-se a citar): "Para que a conduta de um agente integre a prática de um crime e, este possa ser jurídico-penalmente responsabilizado é necessário que ele pratique um facto típico, ilícito e culposo. Nos termos do artigo 13° do Código Penal só é punível o facto praticado com dolo ou com negligência, sendo que, os factos praticados com negligência só são puníveis nos casos especialmente previstos na lei. Ora, in casu, a lei prevê e pune expressamente o homicídio negligente (artigo 137º do Código Penal). Dispõe o citado preceito legal que "quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". Estamos, portanto, no âmbito dos chamados crimes contra a vida, de entre os quais o homicídio assume sempre particular relevo, atendendo ao bem jurídico que nele está em causa. Hoje é doutrina dominante que a negligência contém um tipo de ilícito e um tipo de culpa. Isto é, como violação de um dever de cuidado objectivo, faz parte do tipo de ilícito, como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que o agente é capaz, é elemento de culpa."
29. Assim, uma das obrigações decorrentes do dever de cuidado consagrado nas normas jurídicas é a percepção de uma situação de perigo e, consequentemente, a sua correcta avaliação de modo a evitar a produção do resultado: a ofensa do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
30. Portanto, e quanto aos elementos subjectivos e objectivos, em termos teóricos, a fundamentação de direito da sentença recorrida é irrepreensível.
31. Quanto à aplicação da teoria ao caso concreto "sub judice", já não podemos concordar, sendo que, em nosso entender, e com o devido respeito, existe uma clara contradição entre a matéria de facto provada e a fundamentação, ou seja, existe uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do disposto no art. 410°, n.º 2, al. b) do C. P. Penal.
32. Isto porque, é a própria Meritíssima Juiz que escreve na matéria de facto dada como provada (e passa-se a citar): "8. Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira de forma abrupta, o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo (…)”, e, na fundamentação de direito escreve (e passa-se a citar): "Com efeito, não se apurou que tenha havido qualquer tipo de negligência do arguido nomeadamente por distracção ou excesso de velocidade, mas provou-se a negligência do ofendido ao não ter usado o cuidado necessário na aproximação à passadeira, sendo que circulava na via publica com uma taxa de álcool de 0.5 g/litro." (cfr. fls. 362).
33. E existe ainda contradição entre estas conclusões da fundamentação de direito e da fundamentação de facto, quando a páginas tantas se escreve (e passa-se a citar): "não se apercebeu de todo que o peão tinha entrado na passadeira, tendo admitido uma ligeira distração, mas afirmando que de todo não o viu."
34. Então, perguntamos nós, na fundamentação da matéria de facto existe "uma ligeira distracção" do arguido e na fundamentação da matéria de direito escreve-se que "não se apurou que tenha havido qualquer tipo de negligência do arguido nomeadamente por distracção", e, na decisão, dá-se como não provada a negligência, ou seja o comportamento descuidado, imprudente, distraído do arguido.
35. Ora, se se dá como provado que o arguido ia distraído (mesmo que ligeiramente), existe clara contradição ao referir-se na fundamentação e na decisão que não se apurou qualquer tipo de negligência do arguido nomeadamente por distração.
36. O mesmo é dizer que o arguido ia distraído, não se apercebeu que o peão/ofendido estava a atravessar uma passadeira na sua via de trânsito, mas, não obstante esta monumental falta de cuidado, a sua conduta não foi negligente.
37. Não se compreende como se pode conjugar a distracção do arguido com a manifesta ausência de falta de cuidado da sua parte, ou seja, com a falta de preenchimento dos elementos subjectivos do tipo legal de crime, nomeadamente ao se considerar que o arguido não foi descuidado nem imprudente.
38. De resto, as próprias expressões proferidas pelo arguido são demostrativas disso mesmo.
39. De facto, o arguido, referiu expressamente que ia distraído e não se apercebeu do peão, quando era o arguido quem ia a conduzir uma viatura automóvel na via pública, sendo que a condução estradal é uma actividade que envolve vários riscos, potencialmente perigosa, e que exige dos condutores deveres acrescidos de cuidado, sendo que, no interior de uma localidade, e ao aproximarem-se de passadeiras, devidamente sinalizadas no pavimento e com sinalização vertical, como é o caso dos presentes autos, mais cuidado devem os condutores ter.
40. Assim, dúvidas não podem existir de que o arguido agiu de forma imprudente, descuidada, conduzindo o veículo à mesma velocidade a que seguia, sem abrandar a marcha, podendo e devendo prever que poderia atingir um peão que atravessasse a passadeira, como efectivamente atingiu o ofendido, causando-lhe as lesões corporais supra descritas que lhe determinaram a morte e que, ao conduzir dessa forma fê-lo com manifesta imperícia, descuido e falta de cuidado, além de que sabia que o seu comportamento era punido por lei, não se abstendo, contudo, de o praticar.
41. Pelo que, salvo melhor opinião, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos art.º 137°, n.º 1 e 69°, n.º 1 al. a) do Código Penal.
42. Além disso, é manifesto que o arguido violou o artigo 103° do Código da Estrada, nomeadamente porque, ao se aproximar da passagem de peões, devia ter reduzido a velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via, o que, manifestamente, não fez.
43. Assim, devem os factos dados como não provados nas al. a), b), c) e d) da matéria de facto ser dados como provados, acrescentando-se os mesmos aos restantes factos provados da sentença.
44. O arguido, além do crime de crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos art.º 137º, n.º 1 e 69°, n.º 1 al. a) do Código Penal, vinha ainda acusado, pelo Ministério Público, e em concurso real com o referido crime, de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 103°, n.ºs 2 e 3 do C. Estrada.
45. Refere este preceito contraordenacional, que: "Artigo 103.° - Cuidados a observar pelos condutores
1 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodaqem. 2 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes, junto da qual a circulação de veiculos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. 3 - Ao mudar de direção, o condutor, mesmo não existindo passagem assinalada para a travessia de peões ou velocípedes, deve reduzir a sua velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões ou velocípedes que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via em que vai entrar. 4 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de € 120 a € 600."
46. Sucede, porém que, em toda a sentença recorrida, não existe uma única referência, nem na fundamentação de facto, nem na fundamentação de direito, à contra-ordenação imputada ao arguido.
47. A única referência vem na decisão final, em que o arguido é absolvido da contra-ordenação.
48. Portanto, e em nosso entender, existe uma completa omissão de pronúncia do Tribunal "a quo" quanto à contra-ordenação.
49. Pelo tanto, deve tal omissão ser sanada, determinando-se que a sentença se pronuncie sobre a contra-ordenação.
50. Além disso, é manifesto que o arguido violou o citado do Código da Estrada, nomeadamente porque, ao se aproximar da passagem de peões, devia ter reduzido a velocidade e, se necessário, parar a fim de deixar passar os peões que estejam a atravessar a faixa de rodagem da via.
51. Em relação à contra-ordenação, este Magistrado do Ministério Público tem um entendimento que não é unânime na Jurisprudência, segundo o qual, quando existe concurso real entre crime e contra-ordenação, e quando a contra-ordenação é instrumental em relação ao crime (o que sucede, invariavelmente, em acidentes estradais, em que a negligência das condutas se verifica, e o mesmo comportamento i1icito viola normas estradais e normais penais), entendemos que o crime "consome" a contra-ordenação, pelo que o arguido deverá ser apenas punido pelo crime, uma vez que, ao ser condenado pelo crime e pela contra-ordenação, em simultâneo, estaria a ser condenado duplamente, em pena penal e coima contraordenacional, duas vezes pelos mesmos factos.
52. É este o nosso entendimento quanto à contra-ordenação.
53. O que não invalida o que acima se disse sobre a total falta de pronúncia da sentença recorrida quanto à verificação, ou não, da mesma.
54. Por tudo o exposto, entende-se que o arguido deve ser condenado, na parte criminal e na parte cível,
55. E assim sendo mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em causa - crime de homicídio negligente, previsto e punível pelos art.º 137°, n.º 1 e 69°, n.º 1, al. a) todos do Código Penal - devendo o arguido ser também condenado pelo mesmo, em pena de multa, que consideramos suficiente e adequada, e na pena acessória de inibição de conduzir.
56. Deve igualmente o arguido ser condenado no pedido cível, depois de devidamente apreciado.
Termos em que deve a sentença ser alterada no sentido supra preconizado, condenando-se o arguido:
a) Pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punível pelos art.º 137º, n.º 1 e 69°, n.º 1, al. a) todos do Código Penal - em pena de multa, e na pena acessória de inibição de conduzir.
b) No pedido cível, depois de devidamente apreciado.
V. Exas., porém, e como sempre, farão JUSTIÇA.

Não houve resposta.
Nesta Relação, o Il.mo PGA emitiu douto parecer, no sentido de «que deverá ser alterada a decisão recorrida, dando-se como provados os factos que não o foram e condenando-se o recorrido pelo crime de homicídio involuntário que lhe vinha imputado p.p. pelo artº 137º, nº 1 do CP, tendo em conta os elementos mencionados na sentença, a gravidade do ilícito, a relativa gravidade da sua culpa, as necessidades de prevenção geral e as diminutas necessidades de prevenção especial, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução, atento o facto de ser primário e a suspensão satisfazer as finalidades da pena na situação, pelo mesmo período, e ainda na inibição de conduzir pelo período de 3 meses».
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:
1. No dia 8 de Julho de 2016, pelas 19h15, o arguido conduzia o veículo marca Seat, modelo Leon, com a matrícula ---, na Avenida ----------, no sentido sul-norte, ou seja, -- - ---.
2. No local, a faixa de rodagem tem piso em asfalto, em bom estado de conservação, traçado rectilíneo, com inclinação ascendente de 3,5% e trânsito nos dois sentidos, com separador central e ladeada por edifícios.
3. Em cada sentido de marcha existem duas vias de trânsito, separadas por uma linha longitudinal descontínua.
4. No dia e hora mencionados, o tempo encontrava-se bom e o piso seco e no local havia boa visibilidade.
5. No sentido de marcha do veículo, existia sinalização vertical a informar a aproximação da passadeira (sinal vertical H7).
6. Ao aproximar-se da referida passadeira que se situava em frente ao n.º 10 daquela Avenida, o arguido tomou a via da esquerda, atendo o seu sentido de marcha, porquanto se encontravam veículos estacionados na faixa da direita.
7. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o ofendido FF iniciou a travessia daquela Avenida, na passadeira (marca rodoviária transversal Mll) existente em frente ao referido n.º 10, no sentido esquerda-direita, atento o sentido de marcha do arguido, após ter atravessado a passadeira que existia no sentido de marcha contrário ao arguido e o separador central das vias.
8. Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira de forma abrupta, o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo no corpo do ofendido, projectando-o sobre o capô e sobre o vidro da frente do lado direito.
9. Com a violência do embate, o corpo do ofendido deu duas voltas completas no ar sobre si mesmo e caiu na faixa da rodagem da direita a cerca de 5 metros do local do embate.
10. Por não se ter apercebido do peão, o arguido não efectuou qualquer manobra de recurso para evitar o embate, tendo o veículo se imobilizado a cerca de 13 metros do local do embate.
11. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, o ofendido sofreu as seguintes lesões:
- Na cabeça, esfacelo na região parietal e temporal esquerda com 16x7cm, ferida linear na região parietal esquerda com 14 cm de comprimento e ferida na região temporal esquerda com 7 cm de comprimento;
- No pescoço, feridas puntiformes na face lateral esquerda em número de duas;
- No tórax, abrasão no flanco esquerdo com 18x15 cm e abrasão na face posterior direita com 8x13 cm;
- No abdómen, abrasão na região anterior esquerda com llx7cm;
- No membro superior direito, esfacelo na face anterior do antebraço com 14xll cm com perda de substância;
- No membro superior esquerdo, esfacelo de 14xll cm na região posterior do ombro e ferida com 2x2 cm na face posterior do braço;
- No membro inferior direito, esfacelo na face externa do joelho com 8x2 cm e ferida com fratura exposta da tíbia e do perónio com perda de substância localizada no tornozelo;
- No membro inferior esquerdo, um hematoma no terço médio da perna;
- Na cabeça, fratura multiesquirolosa do parieto-temporal à esquerda medindo 11 cm de comprimento com infiltração sanguínea, hemorragia do cérebro parieto occipital, tronco cerebral e cerebelo;
- No tórax, fratura do 1º e 2º arcos costais anteriores com infiltrado sanguíneo, rutura do saco pericárdico;
- No abdómen, fratura do lóbulo direito do fígado com cerca de 6 cm de comprimento, rutura do baço e fratura esquirolosa da bacia com infiltrado sanguíneo;
- Na coluna vertebral, fratura com luxação completa de Cl e C2 com infiltrado sanguíneo e fratura completa de D12 e Ll com infiltrado sanguíneo.
12. Tais lesões traumáticas crânio-encefálicas, vertebro-medulares e toraco-abdominais determinaram a morte do ofendido que ocorreu ainda no local do acidente.
13. O ofendido apresentava uma taxa de álcool de 0.5 g/litro.
Mais se provou que:
1. O arguido não tem antecedentes criminais.
2. O arguido encontra-se actualmente desempregado e sem auferir qualquer tipo de subsidio;
3. O arguido reside em casa própria e é responsável por ajudar a sua mãe nas tarefas diárias;
Não se provou que:
a) Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma descuidada e bem sabia que ao aproximar-se da passadeira, que se encontrava devidamente sinalizada, deveria abrandar especialmente a marcha para poder parar, se necessário, o veículo para permitir a travessia, o que não fez.
b) Assim, o arguido quis conduzir o veículo à mesma velocidade a que seguia, sem abrandar a marcha, podendo e devendo prever que poderia atingir um peão que atravessasse a passadeira, como efectivamente atingiu o ofendido, causando-lhe as lesões corporais supra descritas que lhe determinaram a morte.
c) O arguido ao conduzir dessa forma fê-lo com manifesta imperícia e descuido.
d) O arguido sabia que o seu comportamento era punido por lei, não se abstendo, contudo, de o praticar.

DECIDINDO:
Analisadas as conclusões que o MP retira da motivação do seu recurso, logo se constata que são as seguintes as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação censória:
- em primeiro lugar alega a ocorrência de erro de julgamento, pois que, na sua perspectiva, impunha-se que os factos tidos como não provados em a) a d) fossem considerados como provados;
- invoca também a ocorrência do vício de contradição entre a matéria de facto provada e a fundamentação;
- na sequência, afirma que se impõe a condenação do arguido, pois que se mostram reunidos os elementos objectivos e subjectivos que integral o crime de homicídio por negligência;
- finalmente invoca a ocorrência de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, relativamente ao conhecimento da contra-ordenação imputada ao arguido.
Na nossa perspectiva, devemos começar a análise do recurso pelo conhecimento das nulidades da sentença, seguindo-se o conhecimento de eventuais vícios da mesma, só após se passando ao conhecimento do seu mérito.
Entre o mais, o Digno recorrente invoca a ocorrência de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, relativamente ao conhecimento da contra-ordenação imputada ao arguido. Afirma que apesar de no dispositivo ser declarada a absolvição do arguido relativamente à mesma, a fundamentação da sentença é completamente omissa quanto a ela. Na sequência, na sua conclusão 49 afirma que «deve tal omissão ser sanada, determinando-se que a sentença se pronuncie sobre a contra-ordenação».
Em processo penal, o regime das nulidades obedece ao princípio da legalidade enunciado no nº 1 do art. 118º do CPP, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade quando esta for expressamente cominada na lei.
Um dos casos em que a lei comina expressamente com nulidade a violação de determinadas estatuições legais, é o do art. 379º, que enumera taxativamente, no seu nº 1, as causas de nulidade da sentença.
Aí se dispõe que, em processo comum, a sentença é nula:
a) Se não contiver as menções referidas no nº 2, e na alínea b) do nº 3, do art. 374º;
b) Se condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos art.s 358º e 359º;
c) Quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia conhecer.
Na perspectiva em que o recorrente enfoca a arguida nulidade, esta consistiria na omissão de pronúncia relativamente a questão que deveria ter sido conhecida pelo tribunal recorrido e que afirma não o ter sido.
A nulidade prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse conhecer.
Como uniformemente tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, «a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir».
«A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre questões e não sobre os motivos ou fundamentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão».
No nosso caso, o recorrente reporta tal nulidade à por si afirmada omissão de pronúncia relativamente à imputação da prática de uma contra-ordenação estradal.
Como é admitido no recurso, o dispositivo da sentença recorrida pronunciou-se sobre essa imputação, dela absolvendo o arguido; o problema, na sua perspectiva, põe-se a propósito da fundamentação, que entende não existir.
Se é certo que a sentença recorrida não é nenhum exemplo de perfeição, não é menos certo que apesar de não ter dado tratamento autónomo à questão contra-ordenacional, não pode deixar de se entender que, não obstante, e ainda que sem distinguir, como se impunha, deu tratamento conjunto à questão criminal e contra-ordenacional pois que, em parte, são os mesmos os pressupostos legais.
Essa conclusão retira-se da globalidade do texto da «fundamentação de direito», v.g. a propósito da imputação subjectiva dos ilícitos, aquando da análise da verificação de condutas negligentes por parte do arguido. Aliás, na sequência, a sentença foi expressa em afirmar que «no caso sub judice não podemos afirmar que existe o referido nexo de imputação objectiva, pelo que o arguido deverá ser absolvido».
Assim sendo, esta causa de invalidade da sentença deveria traduzir-se numa absoluta falta de fundamentação, sendo que no caso estamos apenas perante um défice de fundamentação, a qual, não obstante, não integra omissão de pronúncia, antes imperfeita pronúncia, a qual deverá ser conhecida em termos de mérito do recurso e não em sede de nulidade da decisão, por não a tornar absolutamente infundamentada.
Termos em que se concluir que não padece a sentença da nulidade invocada.

Embora ligada à questão probatória material, invoca o MP/recorrente a ocorrência do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos – que não aquelas regras da experiência - de onde esse vício se possa evidenciar.
O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão (artº 410º, 1, b), CPP), verifica-se quando há uma incompatibilidade, que do texto da própria decisão recorrida se revela, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, seja de concluir que a correcta interpretação daquela conduza a uma decisão contrária à adoptada ou quando, nos mesmos termos, seja de concluir que a decisão não é clara, por se excluírem mutuamente os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido na fundamentação de direito e decidido no dispositivo; e há contradição entre os factos quando os provados e/ou os não provados se contradizem entre si ou estão descritos de forma a constituírem negação uns dos outros.
O recorrente traduz esse vício na pretensa oposição entre a circunstância de se ter dado como provado o que consta em "8. Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira de forma abrupta, o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo (…)” e aquilo que na fundamentação de direito deixou dito: "Com efeito, não se apurou que tenha havido qualquer tipo de negligência do arguido nomeadamente por distracção ou excesso de velocidade, mas provou-se a negligência do ofendido ao não ter usado o cuidado necessário na aproximação à passadeira, sendo que circulava na via publica com uma taxa de álcool de 0.5 g/litro." (cfr. fls. 362)
Tal oposição efectivamente ocorre, verificando-se que a sentença incorre nesse vício, mas, a fim de o ultrapassar e assim obviar a um desnecessário reenvio do processo para novo julgamento, impõe-se entrar no conhecimento do mérito do recurso (v. o artº 426º, 1, CPP).
Está essencialmente em causa a circunstância de a sentença recorrida ter remetido para os factos não provados o que aí consta sob as al.as a) a d), o que essencialmente se prende com a (in)verificação do elemento subjectivo do tipo, no caso traduzido na negligência.
Em sede de «motivação da matéria de facto», a sentença teceu as seguintes considerações:
«O Tribunal alicerçou a sua convicção relativamente aos factos dados como provados na análise conjunta de toda a prova produzida em audiência de julgamento, sendo que, no que concerne a prática dos factos, optou o arguido por prestar declarações.
Assim, na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objectivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados.
Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas.
No que concerne ao arguido, o mesmo prestou declarações, explicitando todo o ocorrida da situação dos autos, bem como a sua situação pessoal e profissional, de forma crível.
O arguido nas declarações que prestou relativamente aos factos esclareceu que não se apercebeu de todo que o peão tinha entrado na passadeira, tendo admitido uma ligeira distracção, mas afirmando que de todo não o viu.
A testemunha T1, que afirmou ter visto o acidente da varanda da sua cozinha que fica a cerca de 50 metros do local afirmou que o peão só atravessou após ter visto se não havia automóveis, porém este seu depoimento é contrariado pelo depoimento da testemunha T2 (que estava a fazer jogging e perto do local e por isso merece maior credibilidade) que afirmou que o peão "aproximou-se rapidamente e depois foi colhido" e "vinha com passo apressado".
Por sua vez o agente da PSP que se dirigiu ao local afirmou que o que impressionou na força do embate foi o facto do vidro da frente do veículo conduzido pelo arguido ter ficado com o vidro todo estilhaçado, porém quanto a tal facto o arguido esclareceu que apenas ficou estilhaçado depois do embate e não com o embate.
Relativamente às lesões sofridas pelo ofendido falecido o tribunal fundou a convicção da sua prova no teor do relatório médico legal de fls. 63 e ss, sendo que a prova de taxa de álcool encontrada no ofendido decorre do teor de fls. 65.
No que concerne à dinâmica do acidente e porque da acusação e até do teor das declarações da referida testemunha Olga, se levantava a questão do excesso de velocidade o tribunal o tribunal procedeu a análise do teor de fls 79 e seguintes, fls 125, relatório de fls 126 a 152, sendo que em nenhum momento se conclui pela circulação do veiculo do arguido em excesso de velocidade, aliás a fls. 152 refere o relatório que "não se apercebe da presença do peão".
O tribunal insistiu com a entidade que subscreveu fls 125 dos autos, com vista á obtenção de mais elementos relativos à velocidade de circulação do veículo do arguido, contudo em nenhum momento é dada uma explicação satisfatória e cabal para essa questão, não podendo pois o tribunal concluir pela existência de excesso de velocidade.
Por outro lado se é referido que o arguido agiu com distracção, certo é que outra testemunha (já referida) refere que o peão fez uma aproximação apressada à passadeira, tendo até a testemunha referido que quando viu o ofendido a dirigir-se à passadeira, pensou para consigo que ele não estava a atravessar em condições.
É por estas razões que o tribunal não considera provados os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo legal imputado.
Ainda de referir que é com base nas declarações do arguido que o tribunal funda a prova das condições pessoais e económicas do arguido, bem como a sua ausência de antecedentes criminais.»
Ou seja, o tribunal recorrido afirma que firmou a sua convicção factual nos elementos de prova que destaca (pessoais, periciais e documentais), a que associou o seu poder de livre apreciação, afirmando que o juízo efectuado foi feito segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico.
A operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível, devendo ser levado à fundamentação fáctica da sentença.
Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, devemos todavia acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, só quando se mostre devidamente fundamentado, o exercício desse princípio se torna inalterável, desde que se mostre apoiado na prova produzida e não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum.
Por outro lado, é sabido que o processo de formação da convicção do tribunal é complexo e dinâmico, já que nele intervêm simultaneamente a consideração da globalidade das provas produzidas e validadas em audiência, num ambiente de imediação e de oralidade, as regras da experiência e do senso comum, da normalidade do acontecer… de modo a procurar retratar e plasmar um ‘retalho da realidade’.
O juízo crítico final – que a sentença deve descrever em termos de fundamentação – há-de resultar do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e com aquele poder de livre apreciação o tribunal entenda ser o que decorre de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum.
A matéria de facto dada como não provada, constante daquelas quatro identificadas alíneas, prende-se com o elemento subjectivo do tipo, no caso traduzido na negligência.
É de todos sabido que a prova de tal elemento só em raros casos é passível de apreensão directa. No entanto, isso não significa que, fora desses casos, a respectiva prova seja impossível.
Como refere Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptiveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica», o que é corroborado por N. F. Malatesta quando diz que «exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se há-de concluir pela sua existência … afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material … o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.» (A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss).
No mesmo sentido se pronunciam os Ac.s da RP, de 23-1-1985 e de 16-1-2005 (BMJ, 343-376 e 343-377) quando referem que a prova do dolo pode fazer-se através das próprias regras da experiência comum (os elementos usados, são extensivamente aplicáveis aos casos de negligência).
Tal como se refere no acórdão da R.P., de 23 de Fevereiro de 1993, publicado in BMJ, 324, pág. 620 “(…) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência. (…)”.

Posto isto, a extracção do elemento subjectivo do tipo, relativamente ao arguido, a partir dos dados materiais relativos à execução do respectivo elemento objectivo, aponta no sentido da ocorrência dessa negligência.
Vejamos porquê, concretizando com os elementos objectivos resultantes da sentença:
2. No local, a faixa de rodagem tem piso em asfalto, em bom estado de conservação, traçado rectilíneo, com inclinação ascendente de 3,5% e trânsito nos dois sentidos, com separador central e ladeada por edifícios.
3. Em cada sentido de marcha existem duas vias de trânsito, separadas por uma linha longitudinal descontínua.
4. No dia e hora mencionados, o tempo encontrava-se bom e o piso seco e no local havia boa visibilidade.
5. No sentido de marcha do veículo, existia sinalização vertical a informar a aproximação da passadeira (sinal vertical H7).
6. Ao aproximar-se da referida passadeira que se situava em frente ao n.º 10 daquela Avenida, o arguido tomou a via da esquerda, atendo o seu sentido de marcha, porquanto se encontravam veículos estacionados na faixa da direita.
7. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o ofendido FF iniciou a travessia daquela Avenida, na passadeira (marca rodoviária transversal Mll) existente em frente ao referido n.º 10, no sentido esquerda-direita, atento o sentido de marcha do arguido, após ter atravessado a passadeira que existia no sentido de marcha contrário ao arguido e o separador central das vias.
8. Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira de forma abrupta, o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo no corpo do ofendido, projectando-o sobre o capô e sobre o vidro da frente do lado direito.
Destaquemos as circunstâncias concretas que, na nossa perspectiva, devem ser consideradas a propósito do juízo factual, por se prenderem com as afirmadas regras da normalidade, da experiência:
- o local do atropelamento é uma recta em ligeira subida (atento o sentido levado pelo arguido), em ambiente urbano, com duas vias de trânsito em cada sentido, separadas por uma linha longitudinal descontínua;
- entre as referidas vias de trânsito existe um separador central;
- o piso encontrava-se em bom estado de conservação e seco e no local havia boa visibilidade;
- no sentido de marcha do arguido existia sinalização gráfica vertical informativa da aproximação de passadeira;
- ao aproximar-se desta, o arguido tomou a via da esquerda, por estar a da direita ocupada por veículos aí estacionados;
- nessas circunstâncias, a vítima iniciou a travessia da passadeira, da esquerda para a direita, atento o sentido levado pelo arguido;
- e após ter atravessado a passadeira que existia no sentido de marcha contrário ao do arguido e o separador central das vias, foi colhida quando se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira;
- o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo no corpo do ofendido, projectando-o sobre o capô e sobre o vidro da frente do lado direito.

A definição legal do que seja negligência, em termos penais, resulta do art.º 15.º do CP:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto».

Daqui se retira que a negligência terá um tipo objectivo, traduzido na realização de uma acção que supere o risco permitido e a imputação objectiva do resultado, havendo pois um desvalor de acção e um desvalor de resultado. Já o tipo subjectivo consiste no desconhecimento evitável do perigo concreto, o que nos leva a distinguir entre a negligência consciente (o autor conhecia o perigo abstracto gerado pela sua acção e podia conhecer o perigo concreto) e a negligência inconsciente (o autor actua desconhecendo o perigo criado pela sua acção). (nesta passagem seguimos de muito perto o Manual de Derecho Penal, Tomo I. Parte General, coordenado por Carlos Suárez-Mira Rodríguez, pag.s 338-340).
Ou seja, nos casos de negligência consciente, muito embora a tónica seja posta no desvalor da conduta descuidada e indiferente, não pode ser desprezado o resultado, já que actuando o agente num quadro que lhe exigia que conhecesse também o perigo concreto, o que lhe estava acessível, o desvalor da conduta é infectado pela sua indiferença face a esse conhecimento. Por isso se afirma que o autor não conhecia mas devia conhecer esse perigo, situação psicológica que, por isso mesmo, lhe é censurável.
Nos crimes dolosos, o agente é punido pelas condicionantes conhecimento e vontade relativas ao tipo ou tipos de ilícito praticados. Diversamente, nos crimes negligentes não existe, nunca, o elemento volitivo, e o cognitivo só ocorre na negligência consciente. Porque não é possível autonomizar qualquer vontade, o agente é punido pelo desvalor da acção e não pelo desvalor do resultado.
Age com culpa o condutor de um veículo que, circulando numa via aberta ao trânsito, não respeita o dever objectivo de cuidado que lhe é especificamente exigido pelas regras do direito estradal ou que, em função de determinada situação concreta, não adopta o procedimento adequado, de modo a evitar a lesão de interesses protegidos de outrém, sendo-lhe censurável a sua conduta ou omissão, por poder, e dever adoptar uma outra mais conforme.
Assim sendo, considerando esse acervo factual provado, que se prende com as circunstâncias envolventes do facto, cremos que a conduta do arguido lhe é censurável por ser violadora de regras do C.E..
«Estando, pois, no âmbito de previsão dessas normas, há nexo de causalidade entre as infracções e os danos causados pelo embate, se não se interpuser outra causa que, interrompendo o nexo causal, seja, só por si, causa bastante do acidente.» (Ac. Rel. Lx. de 6/1/1987, Col. Jur., I, pag.s 91 e seg.s)
Aliás, como afirma a sentença recorrida:
A estrutura típica do crime negligente é então integrada pela violação do dever objectivo de cuidado e pelo nexo de imputação objectiva - nos crimes de resultado.
Uma das obrigações decorrentes do dever de cuidado consagrado nas normas jurídicas é a percepção de uma situação de perigo e, consequentemente, a sua correcta avaliação de modo a evitar a produção do resultado: a ofensa do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
A lesão de bens jurídicos é consequência de não serem tomadas determinadas precauções e estas dependem necessariamente do conhecimento do perigo.
(…)
Assim, atenta a situação dos autos, o encargo do condutor traduz-se em respeitar as normas que lhe são impostas, além do dever de observar a diligência normal e que portanto, lhe pode ser exigida.
Nesse sentido, o preenchimento da tipicidade objectiva do crime negligente exige a verificação dos seguintes requisitos:
a) A existência de um dever objectivo de cuidado;
b) Uma acção ou omissão objectivamente violadora daquele dever;
c) Um resultado típico;
d) A imputação objectiva do resultado ao agente por sua vez eX1ge que a acção ou omissão violadora do dever objectivo de cuidado seja adequada à produção do resultado, que o resultado pudesse ser evitável pela conduta adequada à observância do dever objectivo de cuidado e, ainda que o resultado caia no âmbito de protecção da norma.
Para se verificar o tipo de culpa inerente à negligência é necessário que se verifiquem três elementos:
1) A possibilidade de prever o perigo de realização do tipo;
2) A actuação que não observe o cuidado objectivamente requerido;
3) A produção do resultado típico.
É, assim, necessário que o agente tenha omitido um dever de cuidado, que se tivesse sido acatado, teria impedido a produção de um evento danoso em si previsível.
Existe previsibilidade quando o agente nas circunstâncias em que se encontrava podia, tendo em conta as circunstâncias em que o evento se produziu, ter representado como possível o resultado ocorrido.
Assim sendo, em sede do tipo de culpa a negligência pressupõe o não uso da diligência devida, segundo as circunstâncias em concreto, para evitar o resultado.
A negligência consiste, pois, em qualquer das suas modalidades, consciente e inconsciente na omissão de um dever objectivo de cuidado e de diligência: o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não produção do facto ou o dever de ter previsto tal facto e de ter tomado as diligências necessárias para o evitar.
Este dever objectivo de cuidado assume um aspecto interno traduzido na obrigatoriedade de o agente ter o conhecimento do perigo e da sua gravidade como pressuposto da acção prudente, dever de exame prévio da situação, e um aspecto externo traduzido no dever de o agente conformar a sua actuação externa conforme impõe a norma de cuidado previamente percepcionada, ou que deveria tê-lo sido, no caso de negligência inconsciente.
(…)
Em matéria de acidente de viação a tarefa de delimitação do conteúdo do dever objectivo de cuidado está facilitada pela existência de regras da circulação rodoviária cuja infracção é indicadora da violação daquele dever.
Nos crimes rodoviários, «quando houver inobservância de leis ou regulamentos) a negligência consubstancia-se nessa inobservância) dispensando-se a prova em concreto) desde que o acidente seja um daqueles que a lei pretende evitar quando impôs a disciplina traduzida na norma violada» (cfr. neste sentido, o Ac. da Relação de Coimbra de 31.10.1990, in CJ, 1990, tomo 4, p. 100).
Efectivamente, as regras da experiência de vida, o princípio da normalidade, ensinam que na base das infracções das regras de trânsito está a conduta negligente do condutor do veículo.
Como se escreve no Ac. Rel. Coimbra de 29.01.2003, em www.dgsi.pt, «em sede de crimes rodoviários, a imputação de um crime negligente terá subjacente a violação de um dever objectivo de cuidado que emerge das regras de experiência comum ou da violação das normas do Código da Estrada, ou da violação de ambas, pelo que, «tendo existido uma violação das normas estradais, e sendo o evento produzido do tipo que a lei quis evitar quando impôs a disciplina violada, deve presumir-se a negligência».
Igualmente nos sentindo de que «Provando-se uma actuação contravencional do condutor do veículo, presume-se a sua culpa, no sentido de se projectar no juízo de censura final o desvalor da conduta contravencional como causa do resultado típico criminal» o Ac. STJustiça proferido no proc. nº 46288 em "Código Penal Anotado" de Leal Henriques- Simas Santos, II Vol, 3a edição, 2000, p. 197.
(…)
Ora, na presente situação tal não se apurou.
Com efeito, não se apurou que tenha havido qualquer tipo de negligência do arguido nomeadamente por distracção ou excesso de velocidade, mas provou-se a negligência do ofendido ao não ter usado o cuidado necessário na aproximação à passadeira, sendo que circulava na via publica com uma taxa de álcool de 0.5 g/litro.
No caso sub judice, não podemos por isso afirmar que existe o referido nexo de imputação objectiva, pelo que o arguido deverá ser absolvido.
Cremos que o juízo efectuado na sentença recorrida interpretou mal, salvo o devido respeito, tais invocadas doutrina e jurisprudência.
Com efeito, as circunstâncias em que se deu o acidente denotam a evidência de que a conduta do arguido foi negligente por se traduzir na violação causal de deveres específicos da condução estradal, v.g. do disposto no artº 103º, 2 e 4º, do CE.
Esta norma, submetida à epígrafe «Cuidados a observar pelos condutores» faz as seguintes imposições e estatuição:
2 - Ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.
4 - Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de € 120 a € 600.

No nosso caso o arguido, circulando numa via urbana, com perfeitas condições de piso, tempo e visibilidade, não colocou nessa condução todo o cuidado que lhe era exigível e de que era capaz; com efeito, não observou as imposições que lhe eram feitas pela norma, v.g. de reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões ou velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem. A isso acresce a dupla exigência de cuidado que lhe era imposta pela existência de um sinal gráfico vertical informador da existência da passadeira e que ele ignorou. Não podia também ignorar que, tratando-se de ambiente urbano, era provável o aparecimento de peões.
A vítima, que fazia a travessia da passadeira, da esquerda para a direita do arguido, há muito que era visível, pois que teve tempo de atravessar as duas faixas de rodagem contrárias, o separador central e ainda pisar a passadeira na faixa ocupada pelo arguido, encontrando-se sobre a segunda marca da passadeira quando foi colhida.
Daqui que não se compreenda a inclusão (no ponto 8 da factualidade assente) do segmento de forma abrupta para caracterizar o modo como a vitima iniciou a travessia da passadeira, pelo que essa conclusão deve ser expurgada desse ponto factual.
A conduta do arguido foi descuidada e inconsiderada, por não ter tomado na devida conta o aviso que constituía o referido sinal gráfico, a existência de uma passadeira e por estar em meio urbano, a tudo acrescendo a circunstância de nos momentos antecedentes ao atropelamento ter encetado uma manobra (ainda que justificada) de ultrapassagem de veículos que se encontravam estacionados ocupando a faixa da direita.
Daqui que se compreenda a afirmação justificadora feita na sentença recorrida, de que «o arguido nas declarações que prestou relativamente aos factos esclareceu que não se apercebeu de todo que o peão tinha entrado na passadeira, tendo admitido uma ligeira distracção, mas afirmando que de todo não o viu».
Não o viu porque, como aliás admitiu, circulava distraído, sendo indiferente a qualificação da distracção como ligeira o que lhe não retira o carácter de descuido.
Tal conclusão não é prejudicada pela circunstância de se ter apurado, em sede factual, que a infeliz vítima apresentava uma taxa de alcoolemia de 0,5 g/l, já que ficou por demonstrar a ocorrência de uma qualquer causalidade entre tal taxa, a afectação do controle dos seus movimentos e o infeliz evento.
Assim sendo, um correcto juízo probatório impõe, a par da eliminação daquele já referido segmento, que toda a factualidade remetida para os factos não provados seja, antes pelo contrário, considerado como provada:
8. Quando o ofendido se encontrava, sensivelmente, a atravessar a segunda marca da passadeira e após ter iniciado o atravessamento da referida passadeira, o arguido, que não se apercebeu que o ofendido o fazia, embateu com a frente do seu veículo no corpo do ofendido, projectando-o sobre o capô e sobre o vidro da frente do lado direito.
(…)
14. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma descuidada e bem sabia que ao aproximar-se da passadeira, que se encontrava devidamente sinalizada, deveria abrandar especialmente a marcha para poder parar, se necessário, o veículo para permitir a travessia, o que não fez.
15. Assim, o arguido quis conduzir o veículo à mesma velocidade a que seguia, sem abrandar a marcha, podendo e devendo prever que poderia atingir um peão que atravessasse a passadeira, como efectivamente atingiu o ofendido, causando-lhe as lesões corporais supra descritas que lhe determinaram a morte.
16. O arguido ao conduzir dessa forma fê-lo com manifesta imperícia e descuido.
17. O arguido sabia que o seu comportamento era punido por lei, não se abstendo, contudo, de o praticar.
A negligência do arguido é assim de qualificar como consciente porquanto ele representou como possível a possibilidade de realização do facto. (Artº 15º, a), do Código Penal.)
A conduta do arguido será, deste modo, integrável na previsão típica do artº 137º, 1, do CP e ainda no seu artº 69º, 1, a).
O crime em causa é enquadrado por uma moldura penal alternativa de prisão até 3 anos ou multa.
Porque estamos perante um crime cuja moldura penal é alternativa de prisão ou multa, a primeira tarefa que se impõe ao julgador é a de determinar qual delas deverá ser a eleita, já que, nos termos do disposto no artº 70º, do CP, por regra o tribunal deve optar pela medida não privativa da liberdade, sempre que esta seja susceptível de «realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Cremos que o historial do arguido, que ressalta dos factos provados, v.g. a inexistência de antecedentes criminais, a sua situação de desemprego e a integração familiar, ajudando a mãe nas tarefas diárias, logo inculca a ideia de que estamos perante um facto isolado na sua vida.
Dessa resenha factual, e tendo em consideração que não obstante serem prementes as exigências de prevenção geral, são muito ténues as exigências de prevenção especial relativamente ao arguido [quer na sua vertente de recuperação, quer de repressão].
Tal determina que se presuma ser manifesta a capacidade da pena alternativa de multa para influenciar a conduta futura do arguido, reconduzindo-a á via da legalidade. Com efeito, não podemos olvidar que estamos perante crime negligente.

No nosso caso, a moldura da pena de multa varia entre 10 e 360 dias, sendo concretizada por recurso às regras do artº 71º, 1 do CP (artº 47º, 1, CP) e sendo a sua diária fixada num montante variável entre 5 e 500 euros, fixado «em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais» (artº 47º, 2).
Resulta daquele artº 71º, que a medida da pena será feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (nº 1), sendo ainda, nos termos do seu nº 2, atendidas «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra ele, considerando, nomeadamente» aquelas que enumera.
As penas concretas são, assim, encontradas nesse verdadeiro jogo dialéctico de deve e haver entre as circunstâncias que beneficiam e aquelas que militam contra o arguido e devem representar para ele um importante sacrifício, que o faça sentir o quão reprovável foi a sua conduta e os perigos que o esperam caso nelas reitere. Do mesmo modo deverão constituir um alerta social, em termos de prevenção geral.
Assim, em benefício do arguido, consideraremos a culpa do agente, sendo a negligência consciente.
Por isso, a medida concretizada da pena deve situar-se algo acima do limite médio da moldura, atentas as considerações dialécticas atrás tecidas acerca do estádio em que se encontra o percurso criminal do arguido, que não tem antecedentes e das necessidades de prevenção geral. Deste modo será ajustada uma pena de 200 dias de multa.
A fixação do montante diário da pena de multa, dentro dos limites legais, “não deve ser doseada por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade” (Ac. desta Relação, de 13-07-95, C.J. XX, tomo 4, pág. 48).
A sua razão diária, atendendo ao que prescreve o artº 47º, 2, pode variar entre 5 e 500€, fixada pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.
Assim, tratando-se de arguido desempregado, mostra-se adequada a taxa diária mínima de 5€.
A par da condenação a título de pena principal, impõe-se ainda a condenação do arguido na pena acessória de proibição de conduzir, nos termos do disposto no artº 69º, 1, a) do CP. Aí se prevê a situação do nosso caso concreto, v.g. a prática pelo arguido de crime de homicídio cometido no exercício da condução com violação das regras de trânsito rodoviário. Tal inibição pode prolongar-se de 3 meses a 3 anos.
Os factores de determinação da medida da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor correspondem aos acima analisados a propósito da medida concreta da pena principal.
No dizer de Jorge de Figueiredo Dias, esta pena acessória tem por pressuposto material “a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável.” (…) “Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação (…).” “(…) deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano” (“Direito Penal Português. Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, Coimbra, 1993, p.165).
Sendo, como vimos, alto o grau de ilicitude, a culpa elevada e as exigências de prevenção geral acentuadas, por um lado, e não existindo, por outro, especiais necessidades de reintegração social, a aplicação da pena acessória em 6 meses de proibição de condução de veículos motorizados reputa-se como justa e adequada. Aliás, tal pena encontra-se muito mais próxima do limite mínimo da moldura, que é de 3 meses, do que do seu limite máximo que é de 3 anos (artº 69º, 1, a), do CP).

Por princípio, deve existir proporcionalidade entre a medida da pena principal e a da pena acessória.
A sanção acessória deve ser fixada de modo a encontrar correspondência com os critérios valorados quanto à pena de multa, adequada ao dolo apurado, à culpa do agente e bem assim aos seus antecedentes criminais e à sua integração social e familiar.
Assim sendo, mostra-se correcta a fixação dessa medida nos 9 meses, atenta a conjugação das circunstâncias que militam contra e as que beneficiam o agente. A sua conduta criminal deve ser objecto de reacção penal doseada de forma equilibrada, mas de modo a que ele intua a gravidade da sua conduta e as consequências que advirão caso nela reitere.

A par da incriminação penal, a acusação imputa ainda ao arguido a prática de uma contra-ordenação, da previsão do artº 103º, 2 e 4 do CE.
Analisamos já esta norma a propósito da incriminação penal, pois que esta assentou na negligência, traduzida na violação daquela regra da circulação estradal.
Porque a violação de tal norma foi considerada causal do acidente e levou à condenação do arguido, na perspectiva que adoptamos não pode a mesma ser novamente destacada para efeitos de condenação pela prática de ilícito de mera ordenação social.
Com a sua conduta negligente única, o arguido violou a norma em questão, pois que ao aproximar-se da passadeira em causa deveria ter reduzido a velocidade e se necessário parar a fim de deixar passar os peões que tivessem iniciado a travessia da faixa de rodagem.
A norma constitucional do artº 29.º, 5 da CRP proíbe a dupla incriminação e julgamento pela prática do mesmo crime. Crime, aqui, deve ser entendido como o substracto factual integrador da incriminação, pois que o julgamento não é pela prática de crimes mas sim pela prática dos factos em que eles se consubstanciam (daí ser até compreensível a permissão legal da alteração da incriminação, mesmo que os factos da acusação se mantenham inalterados). Se a mesma conduta integra em simultâneo a prática de crime e de contra-ordenação, as regras do concurso impõem que o agente seja condenado pela incriminação mais grave, ou seja, pelo crime, sendo a punição pela contra-ordenação consumida pela punição do crime. Estamos perante uma consunção impura pois que, apesar de a conduta do arguido ter integrado em simultâneo a prática dessa contra-ordenaçao, não pode ser por ela também condenado.
Aliás, o dig.mo magistrado recorrente, pese embora o desacordo que mostra acerca da estrutura formal da sentença, em termos substanciais manifesta entendimento semelhante ao que adoptamos; com efeito, afirma:
«Em relação à contra-ordenação, este Magistrado do Ministério Público tem um entendimento que não é unânime na Jurisprudência, segundo o qual, quando existe concurso real entre crime e contra-ordenação, e quando a contra-ordenação é instrumental em relação ao crime (o que sucede, invariavelmente, em acidentes estradais, em que a negligência das condutas se verifica, e o mesmo comportamento ilicito viola normas estradais e normais penais), entendemos que o crime "consome" a contra-ordenação, pelo que o arguido deverá ser apenas punido pelo crime, uma vez que, ao ser condenado pelo crime e pela contra-ordenação, em simultâneo, estaria a ser condenado duplamente, em pena penal e coima contraordenacional, duas vezes pelos mesmos factos.»
Assim sendo, o arguido será absolvido relativamente à acusação da prática daquela contra-ordenação.
Como última questão, de que o tribunal recorrido não tomou conhecimento por entender que a decisão de fundo que tomou prejudicou o respectivo conhecimento, está o pedido civil formulado pelo Centro Nacional de Pensões contra a Companhia de Seguros Vitória a fls. 302 e seg.s.
Pede o Centro Nacional de Pensões/Instituto da Segurança Social que a demandada Companhia de Seguros Vitória seja condenada a reembolsá-la da quantia de 39.460,98€, acrescida das pensões de sobrevivência que se vencerem e forem pagas na pendência da acção, bem como os respectivos juros de mora legais contados desde a citação até integral pagamento.
Como causa de pedir invoca os factos criminais em si e o teor da certidão de fls. 304, que entende ter o valor probatório tarifado de documento autêntico.
Contestou a Companhia de Seguros Vitória, impugnando os factos e afirmando que do acidente em causa resultaram para a demandante vantagens financeiras, já que «pagava ao falecido uma pensão de reforma no valor mensal de €8.565,71 e em consequência do acidente, passou a pagar à viúva uma pensão de sobrevivência no valor mensal de 4.744,09».
Face à decisão de fundo, tomada pelo tribunal de primeira instância e que ora será revogada, não foi aí tomado conhecimento dos factos em causa, designadamente daqueles invocados na contestação, seja directamente seja por remissão para o alegado no pedido civil formulado pelos herdeiros da vítima, cuja averiguação seria essencial para determinar da existência do pretendido direito de reembolso e da sua dimensão.
Assim sendo, e ao abrigo do disposto no artº 82º, 3, do CPP, remeto as partes para os tribunais civis, já que as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizam uma decisão rigorosa neste processo criminal.

Termos em que, na procedência parcial do recurso, nesta Relação se decide revogar a sentença recorrida, nos seguintes termos:
I – alterar a sentença, rectificando o ponto 8 dos factos provados e acrescentando-lhes os pontos 14 a 17, nos termos atrás referidos, os quais serão retirados dos factos não provados;
II – revogar a sentença na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelos artºs 137º, 1 e 69º, 1, a), ambos do CP;
III – em sua substituição, condenar o arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelos artºs 137º, 1 e 69º, 1, a), ambos do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco) e ainda na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 9 (nove) meses;
IV – ainda que com diferente fundamento, manter a absolvição relativamente à acusação pela prática da contra-ordenação p.p. pelo artº 103º, 2 e 4, do CE;
V - remeter as partes para os tribunais civis, relativamente ao pedido de reembolso formulado pelo Centro Nacional de Pensões/Instituto da Segurança Social contra a Companhia de Seguros Vitória.
Após baixa dos autos, a primeira instância cuidará do processamento a que se referem os nºs 2, 3 e 4 do artº 69º do CP.
O arguido pagará as custas do processo, que não as do recurso, com taxa de justiça fixada em 3 UC´s.
No mais, não haverá tributação.

Coimbra, 6 de Junho de 2018

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)