Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
439/07.0GBILH-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: PENA DE SUBSTITUIÇÃO
PENA DE PRISÃO
REGIME DE PERMNÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 09/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 40ºE 44º DO CP
Sumário: 1. Só se justifica a aplicação da pena de prisão se não houver alternativas à sua aplicação ou execução, cumprida em estabelecimentos prisionais adequados.

2. O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão.

3. É adequada e conforme as finalidades da punição, a decisão que autoriza condenado, que cumpre pena de prisão em regime de permanência na habitação pela prática de crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, a frequência das sessões ou aulas de condução num período determinado e sujeito à fiscalização da DGRS.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
O arguido J, encontrando-se a cumprir uma pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização de meios técnicos à distância, por crime de condução sem habilitação legal, requereu ao Tribunal que se autorizasse que o mesmo frequentasse aulas de condução de 2ª a 6ª feira das 18h ás 20h em determinada escola de condução, autorização que lhe foi concedida.

Não se conformando com a decisão, o Ministério Público recorreu para este Tribunal.

Nas suas alegações, o recorrente conclui na sua motivação nos seguintes termos:
«1°O arguido foi já condenado, pelo menos, catorze vezes pela prática do crime de condução sem habilitação legal.
2° Foi condenado em prisão suspensa sob condição de demonstrar que se inscreveu em aulas de condução nos presentes autos e nos processos
../08.9GTAVR, …/07.4GBILH e ../08.OGBILH, por decisões, respectivamente transitadas em julgado em 22 de Julho de 2008, 4 de Abril de 2008, 16 de Junho de 2008 e 10 de Outubro de 2008.
3°Assim, o arguido já teve inúmeras oportunidades de se habilitar a conduzir e, não obstante as condenações sofridas, não o fez antes, pelo que nos parece que não poderá ser durante o cumprimento da pena de prisão que o deve fazer.
4ªA autorização de frequência das aulas de condução desvirtua irremediavelmente o carácter de reclusão intrínseco à pena de prisão aplicada, mais se compadecendo com uma pena de prisão por dias livres ou em regime de semidetenção, que aqui não foram aplicadas nem requeridas.
5°Pelo exposto, o tribunal recorrido ao concluir, como concluiu, que encontrando- se o arguido preso por conduzir sem habilitação legal, “a frequência de aulas de condução não desvirtuaria as finalidades da punição, antes pelo contrário, permitiria alcançar de forma eficaz uma das finalidades, qual seja, a reintegração do arguido na sociedade”, fez uma errada interpretação do disposto nos art.°s 400, n°1, e 42°, n°1, do Código Penal.
6°Por outro lado, ao autorizar o arguido a ausentar-se da residência com vista a deslocar-se à Escola de Conduç ão, de forma regular, a decisão recorrida viola o disposto nos art°s 3°, n.°2, e 6°, n°1, ai. c), da L 122/99, de 20 de Agosto — Lei da Vigilância Electrónica, que apenas permite que aquele se ausente de tal residência de forma excepcional e mediante a necessária autorização judicial.
Não houve resposta do recorrido, tendo neste Tribunal da Relação sido mantida a posição do recorrente pelo Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto.

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II. FUNDAMENTAÇÂO

Importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente na sua motivação, a questão de saber se deve ou não ser autorizada a deslocação do condenado a frequentar aulas de condução em determinado período durante a execução da pena de prisão domiciliária que se encontra a cumprir, sendo, por isso, este o objecto do recurso.

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Importa, num primeiro momento, atentar na decisão recorrida:

«Atendendo ao teor do relatório junto a fls 260 e 261 autoriza-se que o arguido frequente as aulas de condução de 2ª a 5ª feira das 18 às 20 horas na Escola de Condução D. Pedro na.. sendo durante esse período o controlo das ausências efectuado nos termos referido a fls 226».

A compreensão da questão decidenda impõe, no entanto, à luz dos princípios que subjazem à fundamentação das decisões, nomeadamente na dimensão endoprocessual e extraprocessual decorrente da legitimação e compreensibilidade do das razões em que se funda o que se decide, que se insira nesta decisão alguns dos factos em que a decisão recorrida assenta.

E são eles: i) O arguido foi condenado, por sentença de 12.05.2008 como autor de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 12 meses mediante a condição de o arguido, no prazo de seis meses, demonstrar nos autos que se inscreveu numa escola de condução e frequenta as aulas; ii) em 10.03.2010, foi revogada a suspensão da pena de 8 meses de prisão imposta ao arguido e determinado que o mesmo cumprisse a referida pena em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância; iii) o arguido iniciou em 20 de Abril de 2010 o cumprimento da pena de prisão em permanência na habitação fiscalizada por vigilância electrónica; iv) o arguido requereu ao Tribunal que lhe fosse permitido frequentar as aulas de condução; v) a DRGS elaborou um relatório onde sobre a questão requerida pelo arguido diz: «Em termos de controlo, durante o período de saída de habitação, é interrompida a monitorização contínua que é substituída por outros meios de fiscalização, descontínuos ou aleatórios, tais como visitas inopinadas de técnicos à escola de condução, monitorização móvel e/ou presencial, contactos e articulação regular com o responsável para verificação da assiduidade e pontualidade, para além de outros mecanismos de controlo usados em situações idênticas»

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Está em causa nos presentes autos apenas a questão possibilidade de o arguido durante o período de cumprimento de uma pena de prisão em permanência na habitação, fiscalizada por vigilância electrónica, puder frequentar aulas de condução que o habilitem a poder exercer a condução.

Importa antes de mais começar por salientar que estamos no domínio de um incidente no domínio da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pena inovadora disponibilizada no ordenamento jurídico penal português com a reforma penal de 2007, decorrente da Lei nº 59/2007 de 29 de Agosto e estabelecida no artigo 44º do Código Penal.

É, no entanto, importante, chamar a atenção para a natureza da nova pena que aqui está em causa, uma pena de substituição detentiva da liberdade (na expressão de Maria João Antunes, in Alterações ao Sistema sancionatório», Jornadas sobre a Revisão do Código penal, Revista do CEJ, n.º 8, 2008, p. 8) para sublinhar que estamos no domínio da execução de uma pena não detentiva, substitutiva da prisão, ainda que em sentido impróprio (na expressão de Jorge Gonçalves, «A revisão do Código penal: alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares» Revista do CEJ, nº 8 p. 22.)

Ou seja o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão.

Com a introdução desta pena, quis o legislador, ainda, densificar o princípio fundamental de um sistema penal democrático, assente em princípios humanistas e ressocializadores da pena, nomeadamente da pena de prisão tout court, entendida como ultima ratio. Ou seja, só se justifica a aplicação da pena de prisão se não houver alternativas à sua aplicação ou execução, cumprida em estabelecimentos prisionais adequados.

O enquadramento tópico referido quis apenas chamar a atenção que, no caso concreto, está em causa uma situação nova em que o tribunal, num primeiro momento (que não está em causa nesta decisão sindicar) aplicou ao arguido recorrido uma pena de 8 meses em de prisão executada em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância que o arguido está a cumprir.

Esta pena, como qualquer uma das penas disponíveis no Código Penal e aplicada pelos Tribunais, tem como objectivo proteger bens jurídicos e reintegrar socialmente o arguido, conforme dispõe o artigo 40º do CP.

Como já referimos em anterior decisão em que estava em causa a plúrima condenação de um arguido por condução sem habilitação legal, «as condições de ressocialização do arguido devem ser particularizadas em função dos seus défices cognitivos, de modo a que sejam superados para conseguir superar o problema – ter condições para realizar a prova que lhe permita aceder à licença de condução. E isso passará, certamente por uma aposta na sua formação educativa intensa e adequada ao que se pretende evitar – a prática de novos crimes de condução sem habilitação legal» (cf. Acórdão desta Relação de Coimbra de 14 de Abril de 2010, processo 2755/09.8PTAVR)

Essa especificidade percepcionou-a o Tribunal, quando na condenação inicial dos autos, optou pela suspensão da execução da pena de prisão, sob condição de o arguido, no prazo de seis meses, demonstrar nos autos que se inscreveu numa escola de condução e frequenta as aulas, mesmo tendo em conta as suas várias condenações anteriores pelo mesmo ilícito (entretanto substituída).

Ou seja, a execução da pena de prisão aplicada em regime de permanência na habitação aplicada não deixa de ser orientada no sentido de suprir as dificuldades do condenado e permitir-lhe conseguir as condições para «tirar a carta de condução» dando assim conteúdo às finalidades da pena. É isto que configura o conteúdo da reintegração do agente na sociedade no caso concreto. E não estão demonstradas quaisquer razões de prevenção geral que impeçam a concretização desta finalidade.

A decisão do Tribunal, ao decidir da possibilidade da frequência das sessões ou aulas de condução do arguido num período determinado e sujeito à fiscalização da DGRS apenas dá conteúdo concreto ao que é o objectivo da Lei penal. Daí a relevância da sua concretização. E daí, também, alguma perplexidade pela incompreensão da decisão por parte do Ministério Público agora recorrente.

A decisão em causa é não só absoluta e juridicamente sustentada como sobretudo aquela que mais se compatibiliza com os princípios fundamentais que presidem à aplicação das penas, máxime as penas substitutivas da prisão e à reintegração do agente na sociedade.

Assim sendo, mantém-se a decisão recorrida, julgando improcedente o recurso.

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III. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 22 de Setembro de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida