Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1987/07.8TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: SUB-ROGAÇÃO LEGAL
PRESTAÇÕES FUTURAS
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL DE ANADIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 31º, NºS 1 E 4 DA LEI N° 100/97, DE 13 DE SETEMBRO.
Sumário: I – O direito de regresso contemplado na norma do artº 31º, nº 4 da Lei nº 100/97, de 13/09, tal como sucedia com o que estava consignado na norma correspondente da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965 (Base XXXVII, nº 4), consubstancia um caso de sub-rogação legal.

II - Por sua vez, o direito de regresso é um direito “ex novo” que nasce na titularidade daquele que extinguiu a relação creditícia anterior, sendo, pois, um direito próprio, um direito à restituição do que pagou ao credor, quando se verificarem as circunstâncias previstas na lei que lhe concedeu o direito de regresso.

III - A subrogação não se verifica em relação a prestações futuras.

IV - A sub-rogação supõe o pagamento e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento. Enquanto o não faz não é sub-rogado e não pode por isso exercer o direito do credor.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório:
A) - 1) – “E…, SA”, com sede em …, intentou, em Julho de 2007, no Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga - Anadia (Juiz 1) acção declarativa de condenação, sob forma de processo ordinário, contra “COMPANHIA DE SEGUROS A…, SA”, com sede em …, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 31.646,57, acrescida de juros de mora a contar da citação, bem como as quantias que a Autora vier a pagar, no futuro, ao trabalhador J… em consequência do contrato de trabalho subordinado existente entre este e ela, Autora, a relegar para execução de sentença.
Alegou, para o efeito, em síntese, que:
- No dia 4 de Agosto de 2004 o seu trabalhador J… sofreu um acidente de viação que foi, simultaneamente, acidente de trabalho, do qual foi exclusivamente culpado o condutor do veículo de matrícula …-DN, cuja responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação se encontrava transferida, por contrato de seguro, para a Ré;
- Em consequência daquele acidente o referido J… sofreu lesões físicas que o incapacitaram de trabalhar até 17 de Novembro de 2006, e ficou com uma incapacidade parcial permanente de 35% que o impossibilita de continuar a desempenhar as funções de motorista e distribuidor que exercia a cargo da Autora;
- Em cumprimento do Contrato Colectivo de Trabalho aplicável à actividade desenvolvida pela Autora (publicado no BTE n.°19 de 22/05/2003), até Outubro de 2006, a Autora pagou ao seu trabalhador J… a quantia correspondente à diferença entre as prestações pagas pelo seguro de Acidentes de Trabalho e o salário que o mesmo auferia à data do acidente, nas proporções previstas naquele CCT, no valor global de € 18.623,21, do que deve ser ressarcida;
- E porque a tal estava legalmente obrigada, após o período de ITA daquele J… foi obrigada a mantê-lo ao seu serviço e colocá-lo em condições compatíveis com a incapacidade de que este ficou a padecer, pagando-lhe o mesmo salário de € 871,00, auferido à data do acidente, quando as funções que o mesmo agora exerce poderiam ser feitas por trabalhador indiferenciado com salário não superior a € 403,00, sendo ainda certo que a Autora não necessitava de contratar outro trabalhador para tal efeito, dado que as tarefas agora acometidas a J… eram já realizadas por outros trabalhadores ao serviço da Autora.
- Entende, assim, que deve ser também ressarcida de todas as quantias pagas a título de salário, subsídios, seguros e contribuições pagas ao trabalhador, que à data da propositura da acção computavam já o valor global de € 13.023,36, ou pelo menos tal quantia deduzida do salário que a Autora pagaria a um trabalhador indiferenciado, no valor global de € 6.805,44, para o período de Outubro de 2006 até à data da propositura da acção.
2) - A Ré, na contestação que ofereceu, admitindo os factos dos quais resulta a responsabilidade do condutor do veículo por si seguro na produção do acidente, bem assim como a qualificação deste, também como acidente de trabalho.
Sustentou, porém, que a pretensão da Autora não tem fundamento legal uma vez que, de acordo com o regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos, regulada nos artigos 483° e ss. do Código Civil, a titularidade do direito à reparação cabe apenas à pessoa ou pessoas a quem pertence o direito ou interesse juridicamente protegido que a conduta ilícita violou, sendo excluídos os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, com as excepções dos n.s 2 e 3 do art.° 495° do Código Civil, em que a situação destes autos não se integra.
3) – Foi proferido despacho saneador, consignaram-se os factos que se entendiam estar já assentes e elaborou-se a base instrutória.
B) - Seguindo o processo os ulteriores termos normais, realizada que foi a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou:
«… julgo a presente acção procedente e, em consequência, condeno a Ré, Companhia de Seguros A…, SA a pagar à Autora a quantia de €31.646,57 (trinta e um mil, seiscentos e quarenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal anual em vigor, actualmente de 4%, a contar da citação, bem como nas quantias já vencidas e vincendas, contadas desde a propositura da presente acção, que a Autora tenha pago e venha a pagar em consequência do contrato de trabalho subordinado existente entre a Autora e J…, a relegar para execução de sentença. (…)».
C) - Tendo a Ré interposto recurso de Apelação desta decisão, formulou, nas respectivas alegações, as seguintes conclusões:
...
A Apelada, na resposta, defendeu a improcedência do recurso.
II - Em face do disposto nos art.ºs 684, nº 3 e 4, 690, nº 1, ambos do CPC[1], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660, n.º 2, “ex vi” do art.º 713, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [2]).
Assim, as questões a solucionar são as de saber se a Ré estava ou não obrigada a indemnizar a Autora e, em caso afirmativo, se essa indemnização se circunscreve a importância de € 8.904,83, como a Apelante, subsidiariamente, sustenta dever ser decidido.
III - Fundamentação:
1- Os factos:

2- O Direito:
O nº 1 do artº 31° da Lei n°100/97, de 13 de Setembro (legislação em vigor à data do acidente em causa e que veio a ser revogada pelo art.° 186° da Lei 98/2009, de 04 de Setembro) preceitua: “Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.”.
Por sua vez, o n° 4 desse mesmo artigo 31° dispõe: "A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no n° 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente".
Como tem sido dito, amiúde, pelos nossos tribunais superiores, o “direito de regresso” contemplado na norma supra transcrita, tal como sucedia com o que estava consignado na norma correspondente da Lei n° 2127, de 3 de Agosto de 1965 (Base XXXVII, nº 4), consubstancia, afinal, um caso de sub-rogação legal.[3]
A sub-rogação é uma forma de transmissão de obrigações que coloca o sub-rogado na titularidade do crédito primitivo (para o qual se lhe transmite).
Assim, sendo o pagamento pelo terceiro o facto gerador da transmissão da relação creditória em que se consubstancia a sub-rogação, esta não existe sem aquele, que, como seu pressuposto, é a condição e medida dos direitos do sub-rogado.
Por sua vez, o direito de regresso é um direito “ex novo” que nasce na titularidade daquele que extinguiu a relação creditícia anterior, sendo, pois, um direito próprio, um direito à restituição do que pagou ao credor, quando se verificarem as circunstâncias previstas na lei que lhe concedeu o direito de regresso.
Assim, o direito da Autora a ser reembolsada pelo responsável cível (aqui, pela ora Ré, por força do contrato de seguro), daquilo que pagou ao lesado, enquanto este esteve impossibilitado de trabalhar, em virtude da incapacidade temporária de que foi portador, no período compreendido 04/08/2004 a 05/09/2005, decorre directamente da sub-rogação legal comtemplada no citado artº 31º, nº 4, não havendo, aqui, para obstar ao que, correspondentemente, foi peticionado pela Autora, que invocar a impossibilidade de, à luz dos artº 483º, 495° e 496° do CC, serem ressarcidos danos, directos ou reflexos, de terceiro.
Ora, é em face do disposto no n° 4 do artigo 31° da citada Lei n° 100/97, que se entende como correcto, mas na medida em que se o tenha como restrito - adiante explicitaremos as razões desta restrição - ao período de Incapacidade Temporária do lesado, que mediou a data do acidente e 05/09/2005 (e, portanto, quantia global diversa da aí referida), o entendimento expresso na sentença, quando, com base no referido direito de sub-rogação, aí se diz: “…resultando provado que a Autora pagou a J…, entre a data do acidente e Outubro de 2006 (período durante o qual aquele não prestou qualquer serviço à Autora, como resulta supra do facto 31), a quantia global de €18.623,21, correspondente à diferença entre as prestações pagas pela Seguradora de acidentes de trabalho e o salário auferido por aquele, deve a Ré, enquanto entidade para quem foi transferida a responsabilidade civil do lesante, satisfazer o pagamento de tal quantia.”.
Como, em sintonia com o defendido pela Apelada, resulta provado que no referido período, entre 4.8.2004 e 5.9.2005, as diferenças salariais, entre a remuneração que o trabalhador da Autora auferia e aquela que recebeu da seguradora de acidente de trabalho, perfizeram o montante de € 8.904,83, apenas quanto a este se pode considerar o direito da autora, por via da aludida sub-rogação, de ser indemnizada pela Ré.
Sustentou a Autora que após o período de ITA daquele J…, estando legalmente obrigada a mantê-lo ao seu serviço e a colocá-lo em condições compatíveis com a incapacidade de que este ficou a padecer, pagou-lhe o mesmo salário de € 871,00, auferido à data do acidente, quando as funções que o mesmo agora exerce poderiam ser feitas por trabalhador indiferenciado com salário não superior a € 403,00, sendo ainda certo que não necessitava de contratar outro trabalhador para tal efeito, dado que as tarefas agora acometidas a J… eram já realizadas por outros trabalhadores ao seu serviço.
A esse propósito, considerou-se na sentença o seguinte: “…provado que, desde Outubro de 2006 até esta data, a Autora tinha os seus quadros, como continua a ter, completos, não dispondo de ocupação adequada e compatível com a formação profissional de J... Para o manter ocupado teve de o acometer de executar pequenos serviços e trabalhos, com pequenos recados e, a partir do armazém de produtos onde passou a prestar a s suas funções, na conferência e planeamento das cargas dos veículos, para cujo exercício não era necessária a contratação de nenhum trabalhador, nem a Autora necessitava que o J… lhe prestasse tais serviços, uma vez que, em condições normais, tais funções são executadas pelos outros trabalhadores ao seu serviço, continuando a Autora a pagar-lhe salário não inferior ao de categoria de motorista, auferindo actualmente € 995,00 ilíquidos, acrescidos de subsídios de férias e de Natal e de refeição. E, a título de contribuições obrigatórias para a Segurança Social, relativas a J…, a Autora despende mensalmente, pelo menos, € 206,86, correspondente a 23,75% do respectivo salário, e despesas com seguros de acidentes de trabalho, que importam no montante mensal de € 7,42.”.
Na sequência dessa consideração entendeu-se que tais danos também se reflectiam directamente na esfera jurídica da Autora, em consequência do evento danoso, pois que, “Não fosse o evento e não teria a Autor que ter ao seu serviço um trabalhador para executar as tarefas que actualmente são executadas por J…”, pelo que, a Ré também deveria ser igualmente condenada a pagar os montantes despendidos pela Autora “em consequência da reintegração profissional do lesado, uma vez que a Autora não carecia de um tal trabalhador ao seu serviço, tendo procedido à sua reintegração profissional por imperativo legal.”.
E, assim, concluiu-se na decisão ora recorrida: “Porque as quantias devidas a tal título variam em função dos aumentos salariais anuais, das sucessivas alterações de taxas legais de retenção em sede de IRS e de contribuições obrigatórias para a segurança social, apenas se considera neste momento o valor peticionado, liquidado até à data da propositura da acção, relegando-se a liquidação das quantias que entretanto se venceram e as que se venham a vencer, enquanto se mantiver o vínculo laboral entre a Autora e o sinistrado J…, para sede de liquidação em execução de sentença - cfr. art.° 661° do Código de Processo Civil.”.
Sucede que esta situação, que decorre do circunstancialismo existente após o fim do período de incapacidade temporária absoluta do trabalhador da Autora, é diferente daquela que anteriormente se verificava e se entendeu justificar, à luz da sub-rogação, o peticionado pela Autora, pois que já não se trata, apenas, de ressarcir esta pelo facto de ter pago ao trabalhador aquilo a que o mesmo teria direito se não ocorresse o acidente, mas antes a diferença entre o que lhe paga (e que já antes do acidente pagava) e o que entende que lhe deveria pagar (a menos) atento o facto de as tarefas que o mesmo executa (que é as que pode e poderá, no futuro, executar), corresponderem a uma remuneração inferior àquela que o trabalhador desempenhava anteriormente ao acidente.
Ora, não se negando que se possa constatar nessa situação um dano sofrido pela autora, não nos parece que o mesmo esteja abarcado no sentido que se surpreende na expressão “indemnização pelo acidente” constante da norma do referido artº 31º, nº 4, e, consequentemente, na sub-rogação aí prevista, pelo que, salvo o devido respeito, não deveria a Ré ter sido condenada a ressarci-lo.
Por outro lado, sendo certo que o lesado, trabalhador da Autora, ficou portador de uma incapacidade geral parcial permanente de 23% e totalmente incapacitado para o exercício do trabalho que exercia, de motorista, certo é também que, tendo o seu período de Incapacidade Temporária durado até 05/09/2005, ficou, a partir desta data, apto ao exercício de outras actividades dentro da sua formação técnico profissional.
Assim, não obstante se haja provado que a Autora efectuou pagamentos a esse seu trabalhador, em concurso com a seguradora laboral, em datas posteriores a 05/09/2005, não vemos, na matéria de facto provada, base factual onde possa radicar o direito que aquela invoca, de haver da Ré, as quantias que pagou posteriormente a essa data, pois que, sem mais, a simples prova de que o trabalhador em causa “…entre 4 de Agosto de 2002 e Outubro de 2006 não exerceu quaisquer actividades e serviços por conta da Autora”, não serve tal desiderato.
Finalmente, também a condenação da Ré a ressarcir os pagamentos que a Autora ainda não tinha satisfeito à data da instauração da acção não tem cabimento legal, pela adicional razão de que, como resulta daquilo que inicialmente se expôs quanto à figura da sub-rogação e conforme decidiu o STJ no Assento nº 2/78, de 9 de Novembro de 1977[4] (actualmente com valor de Acórdão de uniformização de jurisprudência), “A subrogação não se verifica em relação a prestações futuras.”.

É que, como bem se esclareceu no Acórdão do STJ de 22/04/2004 (Revista nº 04B404) “A sub-rogação supõe o pagamento e, portanto, o terceiro que paga pelo devedor só se sub-roga nos direitos do credor com o pagamento. Enquanto o não faz não é sub-rogado e não pode por isso exercer o direito do credor.».
IV - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação parcialmente procedente e revogando, em parte, a sentença recorrida, condenam a Ré, “Companhia de Seguros A…, S.A.” a pagar à Autora a quantia de € 8.904,83, acrescida de juros de mora à taxa legal anual em vigor, actualmente de 4%, a contar da citação, absolvendo a Ré do restante que foi peticionado.
Custas por Apelante e Apelada, na proporção do respectivo decaimento.
Coimbra, 10/12/2013

(Luís José Falcão de Magalhães)
(Sílvia Maria Pereira Pires)
(Henrique Ataíde Rosa Antunes)


[1] Salvo indicação em contrário, os preceitos deste Código que adiante forem citados, reportam-se, atenta a data em que se iniciou o processo e a data em que foi proferida a sentença (18/02/2013), à redacção que antecedeu aquela que foi introduzida pelo DL n.º 303/07, de 24/08 (artº 11º do citado DL n.º 303/07 e 7º, nº 1, da Lei 41/2013 de 26 de Junho).
[2] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ que adiante forem citados sem referência de publicação.
[3] Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 07/12/2011 (Apelação nº 6570/09.0TVLSB.L1-2), e restante jurisprudência que, a propósito, se citou na sentença recorrida.
[4] “In” D.R. 1ª Série, de 22-3-78 e BMJ nº 271º, pág. 100 e ss..