Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
736/09.0TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE LOUREIRO
Descritores: ITA
REMUNERAÇÃO
TRABALHO EFECTIVAMENTE PRESTADO
CUMULAÇÃO
Data do Acordão: 04/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º, Nº 1 E 26º, Nº 1, DA LAT/97.
Sumário: O facto de o sinistrado receber da seguradora uma indemnização por ITA e receber da empregadora a remuneração pelo trabalho efectivamente prestado em período de ITA não implica um qualquer duplo ressarcimento do sinistrado fundado na dita ITA: a indemnização por ITA ressarce o sinistrado pela redução efectiva da sua capacidade de trabalho; a remuneração compensa o sinistrado pelo trabalho que efectivamente prestou apesar de se encontrar de ITA e de, por isso, não se encontrar obrigado a prestá-lo, satisfazendo a empregadora com o seu pagamento a obrigação que sobre ela impende de remunerar o trabalho que foi efectivamente prestado sem que o sinistrado a tanto estivesse obrigado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Relatório
O autor propôs contra a ré a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe:
A) a quantia de € 11.104,20 correspondente a indemnização por períodos de incapacidade temporária absoluta de 10/04/2006 a 27/04/2006 e de 29/09/2007 a 15/06/2008;
b) os juros de mora calculados à taxa legal.
Alegou, em resumo, que sofreu um acidente de trabalho do qual emergiram para si as lesões e sequelas melhor descritas na petição, determinantes de um período de ITA de 279 dias (10/04/2006 a 27/04/2006 e 29/09/2007 a 15/06/2008), em consequência do que ficou constituído nos direitos de crédito correspondentes aos pedidos efectuados, sendo sujeito passivo desses direitos a ré, para quem estava transferida a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho que vitimassem o autor, recusando-se a ré a satisfazer voluntariamente tais direitos.
A ré seguradora contestou pugnando pela integral improcedência da acção.
Alegou, em resumo, que o autor não tem direito à indemnização peticionada, pois trabalhou efectivamente nos períodos de incapacidade temporária que suportam tal pedido e recebeu da empregadora a retribuição correspondente ao trabalho prestado nesses períodos.
Saneado e condensado o processo, procedeu-se a julgamento, com observância dos legais formalismos, logo após o que foi proferida sentença de cujo dispositivo consta, designadamente, o seguinte:
Pelo exposto julgo a acção parcialmente procedente por provada pelo que condeno a ré seguradora a pagar ao sinistrado a quantia de € 156,59 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do vencimento de tal quantia até efectivo e integral pagamento.”.
Do assim decidido recorreu o autor.
Apresentou as conclusões a seguir transcritas:
[…]
A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.
*
II- Principais Questões a Decidir:
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
1ª) se o autor tem direito a indemnização por incapacidade temporária absoluta, apesar de no período dessa incapacidade ter prestado trabalho e ter recebido a retribuição correspondente;
2ª) se a indemnização por incapacidade temporária parcial foi indevidamente calculada.
*
III – Fundamentação

A) De facto
Os factos dados como provados pela primeira instância são os a seguir transcritos:
[…]
*
B) De direito
Tanto quanto resulta dos factos provados, o autor sofreu um acidente de trabalho em 10/4/06.
Nos períodos de 10/4/06 a 27/4/06 e de 29/9/07 a 15/6/08, a seguradora recusou-se a atribuir ao autor qualquer espécie de incapacidade temporária.
Neste enquadramento e na ausência de uma qualquer outra razão que permitisse ao sinistrado faltar justificadamente ao serviço, facilmente se conclui que ao sinistrado não restava outra solução que não fosse a de prestar à sua entidade empregadora o trabalho a que contratualmente estava obrigado, impendendo sobre a entidade patronal a obrigação de pagar ao sinistrado o trabalho por este efectivamente prestado.
No entanto, no período compreendido entre 29/9/07 e 15/6/08, o autor esteve realmente afectado de ITA, conforme unanimemente reconhecido no laudo de junta médica e na própria sentença recorrida.
Assim sendo, a recorrida ficou constituída na obrigação de pagar ao sinistrado a indemnização prevista no art. 17º/1/e da LAT/97.
Cumpre agora referir, com relevo para a situação em apreço, que têm distintos fundamentos substantivos a obrigação de indemnização acabada de referir e a obrigação da entidade empregadora pagar ao sinistrado a remuneração pelo trabalho prestado.
A primeira dessas obrigações destina-se a compensar o sinistrado pela “…redução na capacidade de trabalho ou ganho do sinistrado…” (corpo do art. 17º/1 da LAT/97); não se destina, ao contrário do entendimento subjacente à decisão recorrida, a reparar o sinistrado por uma qualquer perda de retribuição.
É justamente por isso que: a) a retribuição a atender para efeitos de cálculo da indemnização é a auferida pelo trabalhador à data do acidente (art. 26º/1 da LAT/97), e não a que o sinistrado aufira à data em que se verifique a situação de incapacidade temporária, porventura diversa da auferida à data do acidente – caso a indemnização visasse compensar a perda de retribuição, naturalmente que a sua medida deveria corresponder à retribuição a auferir nos períodos de incapacidade, por ser dessa que o sinistrado ficará privado por não prestar trabalho em consequência da incapacidade; b) a indemnização é reduzida a 70% da retribuição ou da redução sofrida na capacidade geral de ganho (art. 17º/1/e/f da LAT/97) – caso a indemnização visasse compensar a perda de retribuição, naturalmente que não faria sentido a redução para os referidos 70%, pois que o dano suportado pelo trabalhador não corresponde a tal percentagem, mas sim ao valor integral da retribuição deixada de auferir; c) a indemnização por incapacidade temporária não está dependente da subsistência da relação de trabalho, sendo devida, a nosso ver, mesmo naquelas situações em que a situação de incapacidade temporária subsiste para lá da data da cessação do contrato de trabalho e em que, por isso, o sinistrado deixou de ser titular do direito à retribuição pela disponibilidade para o trabalho -  cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 6/2/2013, proferido no âmbito da apelação 393/07.9TTSNT.2.L1.
A segunda das mencionadas obrigações destina-se a remunerar o trabalhador pela sua disponibilidade para a prestação do trabalho a que está contratualmente obrigado - António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 463.
Portanto, ao contrário do que parece ter estado subjacente à decisão recorrida, o facto de o sinistrado receber da seguradora a indemnização por ITA e de receber da empregadora a remuneração pelo trabalho efectivamente prestado em período de ITA não implica um qualquer duplo ressarcimento do sinistrado fundado na dita ITA: a indemnização por ITA ressarce o sinistrado pela redução efectiva da sua capacidade de trabalho; a remuneração compensa o sinistrado pelo trabalho que efectivamente prestou apesar de se encontrar de ITA e de, por isso, não se encontrar obrigado a prestá-lo, satisfazendo a empregadora com o seu pagamento a obrigação que sobre ela impende de remunerar o trabalho que foi efectivamente prestado sem que o sinistrado a tanto estivesse obrigado.
Cumpre referir, igualmente, que ao contrário do que sucede no âmbito da responsabilidade civil em geral, a obrigação de indemnização emergente de acidentes de trabalho não abrange todos os danos sofridos pelo sinistrado (v.g. os danos sofridos pelo sinistrado nos bens de sua propriedade, os danos correspondentes a perdas patrimoniais sofridas pelo sinistrado por causa do acidente pela circunstância de, por exemplo, ter ficado impedido de participar num determinado evento por referência ao qual já se tenha suportado despesas de organização, os danos morais em situações de responsabilidade não agravada), mas apenas aqueles que se traduzam em morte (arts. 20º e 22º da LAT/97) ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho (arts. 17º, 19º, 23º e 24º da LAT/97), sendo que a medida das indemnizações/pensões devidas por morte ou por incapacidades para o trabalho estão tabeladas legalmente (arts. 17º/1 e 20º/1 da LAT/97), não dependendo do montante efectivo dos prejuízos realmente suportados pelo sinistrado/familiares por causa do acidente como sucede no âmbito da responsabilidade civil em geral (art. 566º/2 do CC).
Por outro lado, sustentar o entendimento sufragado na decisão recorrida seria facultar-se aos responsáveis pelas indemnizações por acidentes de trabalho um expediente que lhes permitiria desonerarem-se sistematicamente dessa obrigação, expediente esse que passaria pela sistemática recusa daqueles responsáveis em reconhecerem períodos de incapacidades temporárias aos sinistrados, com a consequente obrigação destes se apresentarem ao trabalho e correspondente obrigação das entidades empregadoras remunerarem a disponibilidade para o trabalho, ficando os sinistrados privados, assim, de qualquer indemnização pelo dano correspondente à redução da capacidade de trabalho ou de ganho.
Bem vistas as coisas e acolhendo a posição sustentada na decisão recorrida, nos casos em que a responsabilidade civil por acidente de trabalho estivesse transferida para seguradoras, passariam as entidades empregadoras a assumir os riscos e encargos inerentes às situações de incapacidades temporárias emergentes de acidentes de trabalho; nos casos em que essa responsabilidade se não mostrasse transferida, as entidades empregadoras compeliriam os trabalhadores a manter a disponibilidade para o trabalho, pagando-lhes a devida retribuição, ficando exoneradas da obrigação de ressarcirem o dano sofrido pelo sinistrado em termos de redução da capacidade de trabalho ou de ganho.
Atente-se, também, em que em situações como a dos autos, a obrigação de pagar ao sinistrado uma indemnização por incapacidade temporária é uma obrigação própria da seguradora destinada a ressarcir um concreto dano.
Ora, essa obrigação subsiste até se extinguir pelo cumprimento ou por verificação de uma outra causa extintiva diversa da do cumprimento.
Ora, tendo em conta que a remuneração paga pela empregadora se destina a compensar o sinistrado pela disponibilidade para o trabalho, não pode dizer-se que as prestações assim suportadas pela empregadora satisfazem a obrigação de ressarcimento da redução da capacidade de trabalho ou de ganho sofrida pelo sinistrado, pelo que essa obrigação ressarcitória não pode considerar-se extinta pelo cumprimento, ainda que por terceiro.
Também não vislumbramos que tenha ocorrido nenhuma outra causa extintiva, diversa do cumprimento, da  referida obrigação ressarcitória.
Como assim, subsiste tal obrigação, de que é sujeito passivo, no caso dos autos, a seguradora recorrida.
Os arts. 30º/1 da LAT/97 e 54º do RLAT/99, invocados na decisão recorrida para desonerar-se a seguradora da obrigação de pagar a indemnização por ITA, não se aplicam à situação em apreço
Na verdade, a aplicação desses normativos pressupõe, como claramente resulta do nº 2 do art. 54º, a prévia fixação ao sinistrado de uma incapacidade temporária, não superior ou superior a 50%, fixação essa que no caso dos autos não ocorreu justamente porque a seguradora se recusou a reconhecer ao sinistrado qualquer situação de ITA.
Sem essa fixação prévia dessa incapacidade temporária, não podiam o sinistrado e a sua empregadora saber se esta podia ou não recusar a prestação de trabalho pelo sinistrado.
Também não se aplica à situação dos autos o disposto no art. 136º/1 da LAT/09, por duas ordens de razões, a saber: 1ª) a LAT/09 só se aplica a acidentes ocorridos depois de 1/1/10 (arts. 187º/1 e 188º da Lei 98/09, de 4/9), tendo o acidente a que os autos se reportam ocorrido em 10/4/06; 2ª) esse normativo respeita, apenas, às situações de doença profissional, o mesmo sucedendo com a correspondente norma do art. 74º do DL 248/99, de 2/7.
Por tudo quanto vem de referir-se, deve a seguradora recorrida pagar ao sinistrado a indemnização devida pelo período de ITA verificado entre 29/9/07 e 15/6/08 (261 dias).
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De acordo com as condições particulares da apólice (fls. 18), as indemnizações por incapacidades temporárias devem ser calculadas com base no salário líquido integral do sinistrado – o autor alegou (art. 12º da petição inicial), sem impugnação da ré, que para estes efeitos o seu salário líquido integral diário era de 39, 80 euros, sendo com base nesse salário diário que deverão proceder-se aos cálculos das indemnizações devidas ao autor.
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Pelos 261 dias de ITA, deve a seguradora ao sinistrado o montante de 10.387,80 euros.
Pelos 18 dias de ITP a 25%, tem o sinistrado direito a que a seguradora lhe pague o valor de 179, 10 euros.
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IV - Decisão
Termos em que acordam os juízes que compõem esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação do autor procedente, condenando-se a seguradora a pagar ao sinistrado o valor de 10.566, 90 euros, por 261 dias de ITA e 18 dias de ITP a 25%.
Custas pela recorrida.


 (Jorge Manuel Loureiro - Relator)
 (Ramalho Pinto)
 (Azevedo Mendes)