Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1938/06.7TBCTB-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTINA PEDROSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
SUBROGAÇÃO
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.175, 182 CIRE, 377 C TRABALHO, 592, 593 CC, 265, 266, 514 CPC
Sumário: 1 - Atenta a evidente complementaridade entre os créditos salariais e os créditos do FGS, o qual, na medida dos pagamentos que haja efectuado aos trabalhadores em vez da entidade empregadora, fica subrogado nos direitos de crédito e beneficia das garantias existentes na esfera jurídica dos trabalhadores, nem o crédito destes prevalece sobre o do FGS nem este sobre aquele, devendo ser graduados a par uns dos outros e ficando o respectivo pagamento sujeito a rateio.

2. A lei aplicável à graduação de créditos em processo de insolvência é a que se encontrar em vigor na data do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência.

3.- O artigo 377.º do Código do Trabalho então em vigor veio conferir um privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores que ao tempo da declaração de insolvência exerciam a sua actividade nos imóveis do empregador, privilégio esse que prevalece sobre a hipoteca.

4 - Tratando-se de um facto constitutivo do privilégio creditório imobiliário conferido aos trabalhadores pelo referido preceito legal, o ónus da prova de que prestam “a sua actividade” no imóvel pertencente ao empregador sobre o qual querem invocar o privilégio imobiliário impende sobre os trabalhadores, nos termos gerais previstos no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil.

5 - Porém, ao processo de insolvência aplicam-se as norma do Código de Processo Civil, mormente os princípios do inquisitório e da cooperação (artigos 265.º e 266.º), da aquisição processual (artigo 515º) e a regra de que o tribunal pode decidir com base em factos de que teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções (nº 2 do artigo 514º).

6- Tais princípios permitem ao juiz que efectuou diligências instrutórias no decurso das quais averiguou que os trabalhadores exerciam funções nos imóveis apreendidos, considerar na sentença de graduação de créditos o facto (não alegado nem provado pelos trabalhadores) de que os trabalhadores exerciam a sua actividade nos imóveis em causa, graduando o seu crédito preferencialmente ao crédito garantido por hipoteca, em face do disposto no artigo 377.º do Código do Trabalho.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO
1. O FUNDO DE GARANTIA SALARIAL e A... são credores reclamantes nos autos de Insolvência supra identificados em que foi declarada insolvente D (…), LD.ª.
Notificados da sentença de verificação e graduação de créditos proferida em 25-03-2013, de cujo dispositivo consta que «o tribunal julga verificados e reconhecidos os créditos relacionados pelo Senhor administrador da insolvência e, em consequência, gradua-os da seguinte forma:
a. pelo produto da venda do prédio urbano, descrito na conservatória do registo predial de Castelo Branco sob o n.º (...)/151272 e inscrito na matriz sob o artigo (...).º:
1.º: os créditos reconhecidos aos trabalhadores da insolvente, que não foram pagos pelo Fundo de Garantia Salarial.
2.º: os créditos reconhecidos ao Fundo de Garantia Salarial.
3.º: o crédito reconhecido à A..., garantido por hipoteca.
4.º: o crédito reconhecido ao ISS, garantido por hipoteca.
5.º: os créditos comuns.
6.º: o crédito subordinado.
b. pelo produto da venda do prédio urbano, descrito na conservatória do registo predial de Castelo Branco sob o n.º (...)/19810918-C e inscrito na matriz sob o artigo (...).º-C:
1.º: os créditos reconhecidos aos trabalhadores da insolvente, que não foram pagos pelo Fundo de Garantia Salarial.
2.º: os créditos reconhecidos ao Fundo de Garantia Salarial.
3.º: o crédito reconhecido à A..., garantido por hipoteca.
4.º: o crédito reconhecido ao ISS, garantido por hipoteca.
5.º: os créditos comuns.
6.º: o crédito subordinado.» e não se conformando com a mesma, apresentaram recurso de apelação, que terminaram com as seguintes conclusões:
1.1. O FUNDO DE GARANTIA SALARIAL:
«a) O Fundo de Garantia Salarial assegura/adianta, em caso de incumprimento pelo empregador, o pagamento de créditos emergentes de contratos de trabalho e da sua violação ou cessação – artigo 336º do C. do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12/02) e 317º da Lei nº 35/2004, de 29/07;
b) Em consequência fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, nos termos do disposto no artigo 322º da Lei nº 35/2004, de 29/07 e 592º do C. Civil;
c) Em sentido amplo, sub-rogação designa o fenómeno que consiste em uma coisa (sub-rogação real) ou uma pessoa (sub-rogação pessoal) virem substituir, na relação jurídica, uma outra coisa ou pessoa;
d) Ao invés do decidido na Douta Sentença ora recorrida é pacífico na jurisprudência que os créditos do Fundo de Garantia Salarial e os dos trabalhadores devem ser graduados a par, sem precedências entre eles;
e) Assim, esses créditos do FGS e tais créditos dos trabalhadores, uns e outros dotados dos privilégios previstos no artº 377º do Código do Trabalho, devem ser graduados a par, ficando nsujeitos a rateio.” – Ac. do TRC de 22/03/2011, processo nº 480/08.6TBCTB-E.C1;
f) “O crédito (parcial) dos trabalhadores e o crédito advindo ao FGS (sub-rogado), apesar da sua fragmentação continuam a manter a sua natural interligação, isto é, completam-se mutuamente; e esta sua unitária configuração há-de ser sempre tomada em consideração em todas os momentos jurídico-processuais em que esta especificada circunstância venha a ter relevância jurídico-positiva.” AC. STJ de 20/10/2011 Processo 703/07.9TYVNG.P1.S1b;
g) porque o remanescente dos créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo beneficiam dos mesmos privilégios creditórios, a conclusão lógica a retirar é de que, na fase dos pagamentos, devem ambos ser colocados no mesmo patamar, isto é, no mapa de rateio final do processo de insolvência contemplado no Art. 182º do CIRE, devem ambos nele ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente;
h) A Douta Sentença recorrida fez uma incorreta interpretação do disposto nos artigos 322º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, e175º e182º, ambos do CIRE;
i) Deve, assim, ser dado provimento ao recurso, graduando-se os créditos privilegiados do Fundo de Garantia Salarial a pari com o remanescente dos créditos dos trabalhadores.
Nestes termos e nos mais que V. Exas. muito doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e em conformidade a Sentença de Verificação e Graduação de Créditos revogada»
1.2. A A...:
«I – Por sentença proferida nos presentes autos, foram considerados como gozando do privilégio imobiliário especial a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 377.º do Código do Trabalho os créditos dos trabalhadores da Insolvente e do Fundo de Garantia Salarial, tendo sido graduados com preferência sobre os créditos garantidos por hipoteca da aqui Apelante.
II – O privilégio imobiliário especial conferido aos trabalhadores pela alínea b) do n.º 1 do artigo 377.° do Código do Trabalho apenas se refere ao imóvel do empregador onde o trabalhador presta efectivamente a sua actividade laboral e não à globalidade dos imóveis da entidade patronal, pelo que tem que existir uma conexão directa entre a prestação laboral e o imóvel individualmente considerado onde esta actividade foi exercida.
III – Ora, os reclamantes trabalhadores limitaram-se a invocar que os seus créditos gozavam do privilégio decorrente do artigo 377.º do Código do Trabalho, não concretizando de qual dos privilégios creditórios consagrados naquele preceito legal entendem beneficiar o seu alegado crédito sobre a Insolvente, se o privilégio mobiliário geral ou imobiliário especial.
IV – Sendo certo que não poderá tratar-se do privilégio imobiliário especial conferido pela alínea b) do n.º 1 do artigo 377.° do Código do Trabalho dado que aqueles reclamantes trabalhadores não alegaram expressamente um pressuposto fáctico da garantia real de que beneficiavam, identificando cabalmente qual o imóvel em que exerciam a actividade laboral e, portanto, qual o bem sobre que incidia a referida garantia real, porque das informações carreadas para os autos não é possível retirar qualquer conclusão com exactidão e segurança, pelo que não podem os respectivos créditos ser considerados como beneficiários de tal privilégio imobiliário especial, nem tão pouco poderá o crédito do Fundo de Garantia Salarial, sub-rogado nos direitos de crédito daqueles reclamantes trabalhadores na exacta medida em que os satisfez, ser graduado com prevalência sobre o crédito do credor hipotecário.
V – Assim, impõe-se a graduação do crédito da ora Apelante com preferência sobre todos os demais créditos reclamados, atendendo à sua natureza de garantido por força de hipoteca registada sobre os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob os n.os (...)/151272 e (...)/19810918-C.
VI – O Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, mesmo que dela não haja impugnações, a fim de evitar violação da lei substantiva.
VII – Pelo que, mesmo que a decisão proferida, e ora objecto do presente recurso, haja decidido em conformidade com a lista elaborada pelo administrador da insolvência, homologando-a, tal não obsta a que a mesma seja agora revogada e alterada, em conformidade com o que impõem os dispositivos legais aplicáveis, e que será nos termos atrás referidos:
Em 1.º lugar, para obter pagamento pelo produto da venda dos prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco sob os n.os (...)/151272 e (...)/19810918-C – Crédito reclamado pela A..., garantido por hipoteca.
TERMOS EM QUE, com o mui douto suprimento de V. Exas.,
Deve ser concedido provimento à presente apelação, e em consequência, ser revogada a sentença recorrida, por a mesma se revelar directamente violadora, entre outras, das seguintes disposições legais: artigos 342.º e 686.º do Código Civil, 128.º, n.º 1 do CIRE e 377.º, n.º 1, alínea b) do Código do Trabalho, graduando-se o crédito garantido por hipoteca da ora Apelante com prevalência sobre os créditos dos reclamantes trabalhadores e do Fundo de Garantia Salarial».

2. Não foram apresentadas contra-alegações.

3. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso[1].
O presente recurso de apelação versa matéria estritamente de direito, e consiste em saber se:
- os créditos do Fundo de Garantia Salarial devem ser graduados a par com os créditos dos trabalhadores;
            - deve graduar-se em primeiro lugar o crédito garantido por hipoteca.
*****
III - O mérito dos recursos
            III.1. Do Fundo de Garantia Salarial
O Apelante Fundo de Garantia Salarial sustenta a sua pretensão no facto de os seus créditos deverem ser graduados a par com os créditos dos trabalhadores, e não em segundo lugar, como ficaram graduados na sentença recorrida.
Diga-se, desde já, que é nosso entendimento que lhe assiste razão.
Efectivamente, conforme já se decidiu neste Tribunal da Relação, em acórdão proferido no processo n.º 680/09.1T2AVR-G, de que a ora Relatora foi 1.ª Adjunta, pelos fundamentos ali vertidos e que com data vénia aqui se reproduzem «o Art. 380º do mesmo Cód. do Trabalho, na versão anterior dispunha que “A garantia do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assumida e suportada pelo Fundo de Garantia Salarial nos termos previstos em legislação especial”.
A regulamentação prevista foi feita pelos Arts. 317º a 323º da Lei 35/2004, de 29 de Julho, que ainda se mantém em vigor (cfr. alínea o) do nº. 6, do artº. 12º, da Lei 7/2009).
É, pois, com base em tal contexto legal que nos casos de declaração de insolvência o FGS assegura o pagamento dos créditos dos trabalhadores, embora não na totalidade, pois, de acordo com o disposto no Art. 319º Nº1 da citada Lei 35/2004, tal só acontece em relação aos salários que se tenham vencido nos seis meses que antecedem a data da propositura da acção.
O Art. 322º da citada Lei 35/2004, de 29.07, dispõe que “O Fundo de Garantia Salarial fica sub-rogado nos direitos de crédito e respectivas garantias, nomeadamente privilégios creditórios dos trabalhadores, na medida dos pagamentos efectuados acrescidos dos juros de mora vincendos”.
De acordo com os ensinamentos do Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª. edição, pág. 324, a sub-rogação é uma forma de transmissão de créditos, definindo-se, como sendo “a substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento”.
Dispõe o Art. 593º do C. Civil:
“ 1. O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.
2. No caso da satisfação parcial, a sub-rogação não prejudica os direitos do credor ou do seu cessionário, quando outra coisa não for estipulada.
3. Havendo vários sub-rogados, ainda que em momentos sucessivos, por satisfações parciais do crédito, nenhum deles tem preferência sobre os demais “.
Da conjugação de tal preceituado legal com o disposto no Art. 322º da citada Lei 35/2004, resulta que se  o Fundo de Garantia Salarial não paga aos trabalhadores a totalidade dos créditos, o remanescente, que permanece na titularidade deles, continua a beneficiar dos privilégios creditórios que antes beneficiava, restringindo-se o âmbito destes privilégios, no que ao Fundo respeita, à “medida dos pagamentos efectuados”, pois, apenas neste fica o Fundo subrogado.
Daqui resulta que o FGS pode, na medida em que satisfez os créditos dos trabalhadores, reclamá-los perante a massa insolvente.
Sendo pacífico o entendimento de que nas situações em que FGS não paga a totalidade dos créditos dos trabalhadores a parte remanescente continua na esfera jurídica destes, com o mesmo âmbito e beneficiando dos mesmos privilégios creditórios, já o mesmo não se verifica a respeito da preferência ou não no pagamento de uns em relação aos outros.
Na verdade, as divergências em relação a tais situações gravitam à volta da previsão dos nº.s 2 e 3 do citado Art. 593º do C.C., havendo quem defenda que não prejudicando a sub-rogação os direitos do credor, no caso de satisfação parcial do crédito, o remanescente deve ser pago em primeiro lugar, de acordo com o que dispõe o referido nº. 2 do citado Art. 593º – cfr., v.g. Ac. da Rel. do Porto de 14/07/2010, in  www.dgsi; enquanto outros entendem que tendo o legislador consagrado um sistema jurídico em que o Fundo entra no lugar do trabalhador, sendo transferidos para aquele todos os direitos que este tinha, na medida em que os tenha satisfeito, deve o Fundo ser pago em primeiro lugar - cfr., v. g. Ac. da Rel. do Porto de 17/02/2009, in www.dgsi.pt, e, uma terceira corrente, seguida por aqueles cujo entendimento vai na defesa de uma posição paritária dos créditos do Fundo e do remanescente dos créditos dos trabalhadores não pago por aquele – cfr., v. g., Ac. do S.T.J. de 20/10/2011, Acs. da Rel. de Guimarães de 27/02/2012 e de 29-05-2012 e Ac. da Rel. de Coimbra de 22/03/2011, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Como bem resulta explanado no citado Ac. do STJ de 20/10/2011, que aqui seguimos de perto, “o crédito (parcial) dos trabalhadores e o crédito advindo ao FGS (sub-rogado), apesar da sua fragmentação continuam a manter a sua natural interligação, isto é, completam-se mutuamente; e esta sua unitária configuração há-de ser sempre tomada em consideração em todos os momentos jurídicoprocessuais em que esta especificada circunstância venha a ter relevância jurídicopositiva”.
Esta complementaridade entre ambos os créditos faz com que não possa ser exercido o crédito do trabalhador contra o crédito do Fundo, mas também que o crédito deste não possa assumir a preferência sobre o daquele na concretização do seu pagamento.
E, porque o remanescente dos créditos dos trabalhadores e o crédito do Fundo beneficiam dos mesmos privilégios creditórios, a conclusão lógica a retirar é de que, na fase dos pagamentos, devem ambos ser colocados no mesmo patamar, isto é, no mapa de rateio final do processo de insolvência contemplado no Art. 182º do CIRE, devem ambos nele ser incluídos e contemplados, paritária e proporcionalmente.
Além de que, se os dinheiros disponíveis não chegarem para liquidar o crédito dos trabalhadores e o crédito do FGS, haverá que proceder a rateio entre um e outro, de acordo com o disposto no Artº. 175º do CIRE, sendo, pois, levados a rateio em plena igualdade de circunstâncias».
De facto, não nos parece que outra possa ser a solução porquanto o FGS paga aos trabalhadores aquilo que a empresa para a qual laboravam devia pagar e não satisfez. Como assim, atenta a evidente complementaridade entre os créditos salariais e os créditos do FGS, o qual, na medida dos pagamentos que haja efectuado aos trabalhadores em vez da entidade empregadora, fica subrogado nos direitos de crédito e beneficia das garantias existentes na esfera jurídica dos trabalhadores, nem o crédito destes prevalece sobre o do FGS nem este sobre aquele, devendo ser graduados a par uns dos outros e ficando o respectivo pagamento sujeito a rateio.
Assim sendo, há que concluir que assiste razão ao Recorrente na pretensão que formula no respectivo recurso, impondo-se, pois, a alteração do decidido pelo tribunal recorrido em conformidade com a pretensão daquele, graduando-se os créditos privilegiados do Fundo de Garantia Salarial a par com o remanescente dos créditos dos trabalhadores.
*****
            III.2. DA A...
Pretende a Apelante A... que, uma vez que os reclamantes trabalhadores não alegaram expressamente um pressuposto fáctico da garantia real de que beneficiavam, identificando cabalmente qual o imóvel em que exerciam a actividade laboral e, portanto, o bem sobre o qual incidia a referida garantia real, porque das informações carreadas para os autos não é possível retirar qualquer conclusão com exactidão e segurança, não podem os respectivos créditos ser considerados como beneficiários de tal privilégio imobiliário especial, nem tão pouco poderá o crédito do Fundo de Garantia Salarial, sub-rogado nos direitos de crédito daqueles reclamantes trabalhadores na exacta medida em que os satisfez, ser graduado com prevalência sobre o crédito do credor hipotecário.
Vejamos, se lhe assiste razão.
Para o efeito cumpre antes de mais afirmar que, conforme é jurisprudência pacífica, a lei aplicável à graduação de créditos em processo de insolvência é a que se encontrar em vigor na data do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência[2].
Desta sorte, ao caso em apreço é aplicável o Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, na redacção dada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.
Acontece, porém, que o referido Código do Trabalho de 2003 havia introduzido um novo regime quanto aos privilégios creditórios imobiliários que servem de garantia aos direitos de crédito de que são titulares trabalhadores estabelecido no respectivo artigo 377.º, em tudo semelhante ao ora consagrado no artigo 333.º do Código do Trabalho vigente, regime esse que entrou em vigor trinta dias depois da publicação da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, que regulamentou a referida Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, ou seja, no dia 28 de Agosto de 2004, estando portanto em vigor à data em que a insolvência foi declarada e transitou em julgado, respectivamente em 28-04-2008 e 05-06-2008.
Assim, nos termos do artigo 377º do referido Código do Trabalho:
“1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios;
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.
2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n.º 1 do artigo 747.° do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748.° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.”.
Conforme decorre cristalinamente do preceituado neste citado artigo, a lei veio conferir um privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores que ao tempo da declaração de insolvência exerciam a sua actividade nos imóveis do empregador, privilégio esse que prevalece sobre a hipoteca.
Ora, tratando-se de um facto constitutivo do privilégio creditório imobiliário conferido aos trabalhadores pelo referido preceito legal, é evidente que o ónus da prova de que prestam “a sua actividade” no imóvel pertencente ao empregador sobre o qual querem invocar o privilégio imobiliário impende sobre os trabalhadores, nos termos gerais previstos no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil.
No caso dos autos, diz a recorrente que os trabalhadores não cumpriram tal ónus que sobre si impendia e, por tal, não podia o tribunal entender, por não haver sido alegado nem provado pelos trabalhadores, titulares dos créditos reclamados e graduados, no momento da respectiva reclamação de créditos qualquer facto neste sentido.
Que dizer?
Em face do disposto no artigo 128.º, n.º 1, als. a) a e) do CIRE, no requerimento de reclamação de créditos dirigido ao administrador da insolvência, os credores devem mencionar, para além do mais, a proveniência do seu crédito, a sua natureza, a existência de garantias e a taxa de juros aplicável.
Alega a recorrente que os trabalhadores reclamantes, que viram os seus créditos laborais graduados em primeiro lugar para serem pagos pelo produto da venda dos dois imóveis identificados no auto de apreensão que antecede, não cumpriram tal ónus que a lei sobre eles faz impender, não tendo alegado oportunamente que exerciam a sua actividade laboral naqueles imóveis, situação que é extensível aos créditos do Fundo de Garantia Salarial, já que este tem um direito dependente do daqueles.
Pretende, por isso, que não podia o tribunal ter considerado que os trabalhadores beneficiavam do aludido privilégio creditório com base nos elementos constantes dos autos.
Pensamos, porém, que não lhe assiste razão e assim tem entendido o Supremo Tribunal de Justiça, em casos muito semelhantes ao que ora apreciamos[3].
Senão vejamos o que aconteceu no caso dos autos.
Após a reclamação dos créditos o administrador da insolvência elaborou a relação a que alude o artigo 129.º do CIRE, na qual constavam todos os créditos reclamados pelos trabalhadores como sendo créditos privilegiados.
Apesar de esta lista poder ser impugnada pelos credores reconhecidos pelo administrador de insolvência, em requerimento dirigido ao Juiz com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos, nos termos do preceituado no artigo 130.º, n.º 1, do CIRE, pelos credores reclamantes e mormente pela ora recorrente, não foi apresentada qualquer impugnação.
Ora, nos termos do artigo 130.º, n.ºs 1 e 3 do CIRE, na ausência de reclamações é proferida sentença de verificação e graduação de créditos, sendo a lista apresentada homologada pelo Juiz, salvo caso de erro manifesto.
O caso que ora se nos apresenta não configura qualquer erro manifesto porquanto existem trabalhadores e imóveis apreendidos para a massa, sendo lícito presumir que aqueles nestes exercessem as suas funções, pelo que, em face do referido normativo a lista apresentada pelo administrador de insolvência tinha que ser homologada com a graduação e verificação dos créditos.
Acresce que, não tendo os trabalhadores reclamantes fornecido no requerimento de reclamação dos seus créditos os elementos que permitissem desde logo considerar a existência dos requisitos legais relativos aos créditos laborais que beneficiam do privilégio imobiliário especial, a saber, a indicação de que exerciam a sua actividade para a empresa empregadora cuja insolvência foi declarada nos imóveis apreendidos, a Mm.ª Juiz, em despacho proferido antes da prolação da sentença, fundado precisamente na essencialidade de tal elemento para determinar a graduação entre os créditos dos trabalhadores e o crédito hipotecário, determinou a notificação do administrador da insolvência e, posteriormente, da representante dos trabalhadores para indicarem se os mesmos exerciam naqueles imóveis a sua actividade, o que foi confirmado por ambos, ainda que de forma mais expressiva pela referida representante.
Ora, como se afirmou no primeiro dos citados acórdãos, «a Ex.ma Juíza, no contexto da sua competência, mormente, do poder dispositivo, de direcção, inquisitório e de cooperação – [segundo este princípio as partes devem cooperar com o tribunal para a justa composição do litígio, o que implica, naturalmente, a colaboração probatória] – princípios previstos nos arts. 264º e 265º, nº3, e 266º do Código de Processo Civil – solicitou ao administrador da insolvência que fornecesse elementos para caracterizar os créditos reclamados. (…)
Sendo o processo de insolvência um processo urgente, um acrescido dever de celeridade na condução do processo, visando esclarecer dúvidas e remover obstáculos tudo em ordem à prevalência de razões substantivas sobre razões formais não é defeso ao julgador.
Ao invés do afirmado pelo recorrente, nessa actuação não está qualquer decisão-supresa, ou de favorecimento, mas antes a afloração daqueles princípios que valem também no processo de insolvência e seus apensos(…)».
Assim sendo, e estatuindo o artigo 11.º do CIRE que “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”, dúvidas não devem existir que também antes de proferir sentença no apenso de graduação de créditos, o juiz possa convidar à prestação de esclarecimentos, tanto mais que o artigo 17.º do CIRE manda aplicar subsidiariamente ao processo de insolvência, o Código de Processo Civil em tudo o que não contrariar as disposições daquele, não se vendo que usar as possibilidades conferidas ao juiz pelos artigos 265.º e 266.º do CPC, possam ser contrárias ao regime previsto pelo CIRE.

Isto mesmo foi entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça no já citado Acórdão, afirmando que «esta indicação de concretas fases do processo, onde não se alude a outros incidentes, como o da graduação dos créditos (que, em bom rigor, é decidida não em incidente mas por sentença), não exclui que o juiz possa convidar as partes ou o administrador da insolvência a prestar informações reputadas pertinentes.
Por outro lado, não se tratava de factos não alegados, mas antes de obter informação para que a sentença reflectisse, fosse consonante com a realidade material – o princípio da materialidade subjacente – como exigência da ideia de justiça é um imperativo dos Tribunais como órgão de soberania».
Aplicando este ensinamento ao caso dos autos devemos concluir que, tendo tal informação sobre se os trabalhadores exerciam funções nos imóveis apreendidos, reputada essencial para que a sentença de graduação de créditos reflectisse a materialidade subjacente, sido prestada quer pelo Administrador da Insolvência quer pela representante dos trabalhadores, nada obsta a que a mesma pudesse ter sido tida em conta, como foi, na sentença de graduação de créditos.
De facto, «o princípio da aquisição processual (artigo 515º do Código de Processo Civil) e a regra de que o tribunal pode decidir com base em factos de que teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções (nº 2 do artigo 514º do Código de Processo Civil) permitem considerar o facto (não alegado nem provado pelos trabalhadores) de que os trabalhadores exerciam a sua actividade no imóvel em causa».
Em consequência, improcede o presente recurso, sendo de confirmar nesta parte a graduação de créditos efectuada.
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III.3. Síntese conclusiva:
I - Atenta a evidente complementaridade entre os créditos salariais e os créditos do FGS, o qual, na medida dos pagamentos que haja efectuado aos trabalhadores em vez da entidade empregadora, fica subrogado nos direitos de crédito e beneficia das garantias existentes na esfera jurídica dos trabalhadores, nem o crédito destes prevalece sobre o do FGS nem este sobre aquele, devendo ser graduados a par uns dos outros e ficando o respectivo pagamento sujeito a rateio.
II - A lei aplicável à graduação de créditos em processo de insolvência é a que se encontrar em vigor na data do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência.
III - O artigo 377.º do Código do Trabalho então em vigor veio conferir um privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores que ao tempo da declaração de insolvência exerciam a sua actividade nos imóveis do empregador, privilégio esse que prevalece sobre a hipoteca.
IV - Tratando-se de um facto constitutivo do privilégio creditório imobiliário conferido aos trabalhadores pelo referido preceito legal, o ónus da prova de que prestam “a sua actividade” no imóvel pertencente ao empregador sobre o qual querem invocar o privilégio imobiliário impende sobre os trabalhadores, nos termos gerais previstos no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil.
V - Porém, ao processo de insolvência aplicam-se as norma do Código de Processo Civil, mormente os princípios do inquisitório e da cooperação (artigos 265.º e 266.º), da aquisição processual (artigo 515º) e a regra de que o tribunal pode decidir com base em factos de que teve conhecimento em virtude do exercício das suas funções (nº 2 do artigo 514º).
VI - Tais princípios permitem ao juiz que efectuou diligências instrutórias no decurso das quais averiguou que os trabalhadores exerciam funções nos imóveis apreendidos,  considerar na sentença de graduação de créditos o facto (não alegado nem provado pelos trabalhadores) de que os trabalhadores exerciam a sua actividade nos imóveis em causa, graduando o seu crédito preferencialmente ao crédito garantido por hipoteca, em face do disposto no artigo 377.º do Código do Trabalho.
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III - Decisão
Face ao exposto, acorda-se:
a) em julgar procedente o recurso de apelação do FGS, e revoga-se nessa parte a sentença recorrida, a qual se substitui, determinando que os créditos do Fundo Garantia Salarial e a parte remanescente dos créditos salariais dos trabalhadores não paga por aquele sejam graduados a par uns dos outros, devendo proceder-se a rateio entre eles, na proporção dos respectivos montantes, caso tal se revele necessário.
b) em julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pela A..., mantendo-se a sentença recorrida e prevalecendo os créditos dos trabalhadores e do FGS sobre a hipoteca.
Sem custas.
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Coimbra, 1 de Outubro de 2013

Albertina Pedroso ( Relatora )
Carvalho Martins
Carlos Moreira

[1] Com base nas disposições conjugadas dos artigos 660.º, 661.º, 664.º, 684.º, n.º 3, 685.º-A, n.º 1, e 713.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
[2] Cfr., por todos, o recente Ac. STJ de 07-02-2013, proferido no Processo n.º 148/09.6TBPST-F.L1.S1 - 7ª SECÇÃO, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. citado Acórdão e ainda os Acórdãos de 06-07-2011, proferido no processo n.º 897/06.0TBOBR-B.C1.S1 
- 6ª SECÇÃO, e de 22-10-2009, proferido no processo n.º 605/04.0TJVNF-A.S1 – 7.ª SECÇÃO, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.