Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
111680/13.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PROVA PERICIAL
FORÇA PROBATÓRIA
EMPREITADA
DEFEITOS DA OBRA
DIREITOS DO DONO DA OBRA
SUA SEQUÊNCIA
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE POMBAL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1207º, 1221º E 1222º DO C. CIVIL.
Sumário: I - A especial força probatória da prova pericial permite/exige que, em princípio – e salvo decisão, cabalmente justificada, do juiz em contrario –, os factos atinentes por ela não corroborados ou corroborados, não sejam, ou sejam, dados como provados.

II - No contrato de empreitada, e verificando-se a existência de defeitos, os direitos do dono da obra devem ser exercidos pela ordem consagrada nos artigos 1221.º e 1222.º do CC, a saber: eliminação dos defeitos, realização de nova obra, redução do preço ou resolução do contrato, com possibilidade, em qualquer caso, de pedido de indemnização, nos termos gerais.

III - Se, invocando-se a exceção de não cumprimento, o dono da obra pede, como condição de pagamento de parte do preço, a eliminação dos defeitos, e o tribunal condena pela redução do preço, comete nulidade por condenação em objeto diverso do pedido - artºs 615º, nº 1, al. e) -, cujo conhecimento depende de arguição da parte.

Decisão Texto Integral:






ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

C... – CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA instaurou  contra D... procedimento de injunção.

Requerendo fosse o requerido notificado a pagar-lhe a quantia de 17.423,11 €, referente ao preço de bens e serviços que alega terem por si sido prestados ao réu, acrescida de 3.396,66 €, a título de juros sobre o mencionado capital, e incluindo  o valor equivalente à taxa de justiça por si suportada.

O réu apresentou oposição.

Invocou a não receção das faturas apresentadas com o procedimento injuntivo e com a exceção do não cumprimento do contrato, alegando que a autora ainda não executou a obra e não lha entregou existindo cumprimento defeituoso do contratado por parte da autora.

Assiste-lhe direito a recusar-se a realizar qualquer pagamento à autora enquanto a obra não estiver concluída e não lhe for entregue, sendo eliminados os defeitos que identifica.

2.

Remetidos os autos á distribuição seguiram eles os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«…julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, decido:

a) Condenar o réu, D... a pagar à autora, C... – CONSTRUÇÃO CIVIL, LDA., a quantia de 6.740,31 € (seis mil, setecentos e quarenta euros e trinta e um cêntimos);

b) Condenar o réu no pagamento à autora de juros de mora vencidos, desde a data em que lhe foi notificado o requerimento injuntivo, e vincendos, calculados de acordo com as sucessivas taxas legais previstas para os juros comerciais e até efectivo e integral pagamento da quantia referida em a);

c) Absolver o réu do demais contra si peticionado;

d) Condenar autora e réu nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento.»

3.

Inconformadas recorreram ambas as partes.

3.1.

Conclusões da autora.

...

3.2.

Conclusões do réu.

...

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º, nº 4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são as seguintes:

1ª - Alteração da decisão da matéria de facto.

2ª – (Im)procedência da exceção de não cumprimento.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido - artº 607º, nº 5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente;  mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Assim sendo, e como constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, o recorrente não pode limitar-se a invocar mais ou menos abstrata e genericamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

 A lei exige que os meios probatórios invocados imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida.

Ora tal imposição não pode advir, em termos mais ou menos apriorísticos, da sua, subjetiva, convicção sobre a prova.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz.

Por conseguinte, para obter ganho de causa neste particular, deve o recorrente efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

 A qual, como é outrossim comummente aceite, apenas pode proceder se se concluir que o julgador apreciou o acervo probatório  com extrapolação manifesta dos cânones e das regras hermenêuticas, e para além da margem de álea em direito probatório permitida e que lhe é concedida.

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– cfr. neste sentido, os Acs. da RC de 29-02-2012, p. nº1324/09.7TBMGR.C1, de 10-02-2015, p. 2466/11.4TBFIG.C1, de 03-03-2015, p. 1381/12.9TBGRD.C1 e de 17.05.2016, p. 339/13.1TBSRT.C1; e do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1., todos  in dgsi.pt;

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

O caso vertente.

5.1.2.1.

Desde logo pugna a autora pela não prova do teor das a), b), c) e e) dos pontos 9 e 10 dos factos provados, a saber:

 9. Após realização dos trabalhos atrás referidos, a obra veio a apresentar as seguintes deficiências:

a. não foi aplicado rodapé no exterior da moradia;

b. o pavimento interior e exterior apresenta, pontualmente, algumas arestas vivas;

c. as paredes exteriores e interiores apresentam manchas em algumas áreas;

d. algumas peças dos rodapés interiores encontram-se descoladas;

e. o remate superior da piscina e a sua envolvente com o pavimento encontra-se mal executado.

10. A reparação das deficiências atrás mencionadas importa nas seguintes quantias, respectivamente (em relação às elencadas no ponto anterior):

a. 620,00 € + IVA;

b. 3750,00 € + IVA;

c. 3240,00 € + IVA;

d. 750,00 € + IVA;

e. 400,00 € + IVA.

11. No total de 10.682,80 €, com IVA incluído à taxa legal em vigor

O julgador fundamentou as respostas nos seguintes, essenciais, termos:

«…a prova testemunhal e a prova por declarações de parte se mostraram, como veremos, visivelmente comprometidas com o desfecho da presente acção e, por isso, insuficientes para, por si só, permitirem fundar a convicção do tribunal num ou noutro sentido. Desta forma, apenas quanto a factos cuja prova se encontra corroborada por outros elementos probatórios ou cuja simplicidade e distanciamento do núcleo decidendo dos autos o permitem, designadamente através da sua leitura conjugada com as regras de experiência ou de vida, pôde o tribunal valorar tais elementos de prova.

…a existência de defeitos na obra em causa resulta inequívoca dos diversos relatórios das perícias realizadas juntos aos autos e respectivos complementos e esclarecimentos escritos (cfr. fls 382 a 418, 461 a 464, 465 a 470, 617 a 623, 636 a 644, 673 a 680, 686 a 699 e 708 a 711), encontrando-se, dessa forma, provada a factualidade atinente a tal matéria (factos provados 8 a 11).

Cumpre, a este respeito salientar, por um lado, que a não instalação do rodapé exterior foi considerada, nos relatórios periciais realizados, como uma deficiência apenas estética, sendo todos os peritos unânimes que, não causando embora uma exclusão da aptidão da obra para o seu uso ordinário, a sua não instalação diminui a protecção do reboco e pintura das paredes exteriores em relação a limpezas do espaço exterior, pelo que não pode deixar de ser considerada, para os efeitos agora em apreço, como um defeito.

Os SENHORES PERITOS (D..., M..., A... e N...) confirmaram, na sua essência, o que já resulta dos relatórios, complementos e esclarecimentos escritos por si elaborados e juntos aos autos, tendo esclarecido os defeitos detectados na construção e as ações necessárias para os reparar e respetivo preço.»

Já a autora estriba a sua tese nos argumentos plasmados no ponto 6º e sgs. das conclusões.

Foi apreciada a prova.

Perscrutemos.

Tanto o tribunal como a autora fundamentaram as suas posições na prova pericial.

A prova pericial é necessária e releva relativamente a factualidade para cujo discernimento são necessários saberes especiais que, em maior ou menos grau ou medida, escapam ao múnus do julgador.

Mas, como é consabido e pacífico, o juiz, no seu poder/dever de analisar toda prova e circunstancialismo existentes nos autos de um modo concatenado, sensato e razoável, tem de ter-se como o «perito dos peritos», prevalecendo a sua posição, mesmo que, posto que justificadamente, contrarie a tese da perícia.

  Assim sendo, e desde logo quanto ao rodapé exterior.

Como alega a recorrente,  e resulta dos autos – fls. 478 -   a colocação do rodapé, e, assim, as suas próprias caraterísticas, vg.  dimensão, não consta do projeto.

O réu não alegou e provou que tenha sido posteriormente contratado.

Logo, a sua colocação  não pode ser exigível.

Ademais, os peritos alegam – fls. 688 - que a sua função é, essencial e determinantemente, estética, que não tanto protetora e funcional.

Por conseguinte,  a sua ausência não pode ser tido como um defeito da obra e, assim, este facto  e  o respetivo custo não podem ser dados como provados.

No atinente aos (des)nivelamento do pavimento.

Os peritos são unânimes em afirmar que, apesar do chão estar em geral bem nivelado, são visíveis algumas arestas vivas motivadas quer pela fraca qualidade das peças, quer por uma aplicação menos cuidada.

Ou seja, a autora também contribuiu para a existências de tais arestas.

Ora, como é consabido, constitui jurisprudência pacífica do nosso mais Alto Tribunal que:

 «O artigo 563º do C.Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.

Esta doutrina …deve interpretar-se de forma mais ampla, com o significado de que não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado».

«O artigo 563º do Código Civil consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

-- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

-- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano»

Cfr, entre outros, os Acs. do STJ de 29.06.04, p.03B4474,  de  07.04.2005, p. 05B294 , de 20.10.2005, p.05B2286, de 13-03-2008, p. 08A369, e de 20.01.2010, p. 670/04.0TCGMR.S1, todos  in dgsi.pt. e A. Varela, in Das Obrigações em Geral, 10.ª ed, I, 893, 899.

E versus o defendido pela autora, não está provado, porque ninguém o referiu, adrede e convincentemente, que, para o tipo de pavimento em causa, estas arestas vivas « estão dentro da normalidade do aceitável».

Por conseguinte, as mesmas têm de ser tidas como um defeito da obra a imputar à autora.

Relativamente a se as paredes exteriores e interiores apresentam manchas em algumas áreas.

A perícia colegial concluiu que Foram observadas microfissuras quer no interior quer no exterior da moradia. Constatou-se também a existência de manchas de humidade(cozinha) junto ao rodapé.

E mais concluiu que a causa de tais deficiências é a «má qualidade do reboco» - fls.690.

Perante esta certificação quanto ao facto genético gerador das manchas e humidades caiem por terra as aventadas causas por banda da autora  as quais a si não seriam imputáveis, como seja, o  largo lapso de tempo  que já decorreu desde a realização da obra e a necessidade de repintura das paredes.

Pela normalidade das coisas, e pelas regras da experiência comum, se as paredes estivessem bem rebocadas, não seria o decurso do tempo e, até, algum atraso na repintura, que provocaria as manchas e humidades.

Finalmente se o remate superior da piscina e a sua envolvente com o pavimento encontra-se mal executado.

Como dimana do alegado pela  recorrente, provados apenas podem ser os factos alegados; é o que decorre dos princípios da substanciação, do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes, em processos do presente jaez  nos quais se dilucidam apenas interesses privados de cariz patrimonial.

Ora da contestação do réu não emerge que ele se tenha queixado e alegado «do remate superior da piscina».

Destarte, e não obstante a resposta dada à questão 56ª pelos peritos a fls. 695, esta matéria não pode ser dada como provada.

Nesta matéria relevaria, porque algo conexa com a piscina, apenas o alegado no artº 31º da contestação, a saber:

«O pavimento que foi aplicado junto à piscina, foi assente na areia, sem que previamente tivesse sido executado um alicerce, encontrando-se descavado, devido ao vento e à chuva».

Quanto a esta matéria pronunciaram-se  os peritos.

E nenhum deles a confirmou.

Antes pelo contrário.

Os peritos disseram que o pavimento junto à piscina se encontra assente sobre betonilha de enchimento e regularização e está ligado por «cimento cola»- cfr. fls. 619 e 689.

Ademais, à pergunta se esse suporte é adequado à aplicação do pavimento, os peritos responderam «sim» - fls. 689.

5.1.2.2.

Neste âmbito defende o réu que deve ser dado como provado que, com os defeitos,  a casa sofreu uma desvalorização de 10%.

Vale aqui o já expendido no atinente à questão dos defeitos na piscina, colocada pela autora.

Percorrida a contestação do réu, nela não se enxerga a invocação desta desvalorização.

Antes o réu se reportando aos defeitos que invocou e aduziu o valor das despesas que terão de ser suportadas para os corrigir.

E entendendo que enquanto não forem corrigidos nada tem a pagar á autora.

O réu outrossim não deduziu tal facto, a título de superveniente, em novo articulado, nos termos do artº 588º e sgs. do CPC.

Por conseguinte, por falta de alegação e sob pena de violação dos supra aludidos princípios, este facto não pode, desde logo, por razões formais, ser considerado.

E mesmo que assim não fosse, ele não estaria provado.

É que a perícia colegial, meio de prova mais relevante do processo, apenas mencionou que os defeitos causam depreciação no imóvel, e que este não sofrerá qualquer desvalorização se forem corrigidos – fls.695.

5.1.3.

Decorrentemente, e no parcial provimento do recurso da autora neste particular, os factos a considerar são os seguintes:

...

5.2.

Segunda questão.

O julgador decidiu em conformidade com o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«Dispõe o artigo 1207º do Código Civil que “empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.”

…Trata-se,…de um contrato sinalagmático, na medida em que dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes: a obrigação de realizar uma obra a cargo do empreiteiro, tem como contrapartida a obrigação de pagar o preço, a cargo do dono da obra.

…um contrato oneroso, porque gera sacrifícios económicos, suportados por ambas as partes: ao sacrifício de pagar o preço, a cargo do dono da obra, equivalerá, do lado contrário, o sacrifício de fornecer trabalho e, eventualmente, materiais, a cargo do empreiteiro.

…um contrato comutativo (por oposição a aleatório), porque as vantagens patrimoniais que dele emergem são conhecidas, para ambas as partes, no momento da sua celebração.

…, o empreiteiro deve satisfazer as condições técnicas e jurídicas convencionadas com o dono da obra.

Trata-se (aquela realização da obra em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios) de um corolário do princípio do pontual cumprimento das obrigações (ínsito nos artigos 406º, nº. 1 e 762º, nº. 1, ambos do Código Civil). Reflecte ainda o respeito, pelo devedor da obrigação (solvens), dos limites impostos pela boa-fé (artigo 762º, nº. 2 do mesmo diploma legal) e do integral cumprimento da obrigação (artigo 763º do Código Civil).

As situações de perturbação da prestação do empreiteiro podem ser agrupadas, essencialmente, em quatro

: i) desconformidade da obra em relação ao que foi convencionado; ii) vícios que excluam ou reduzam o valor da obra; iii) vícios que excluam ou reduzam a aptidão da obra para o seu uso ordinário; iv) vícios que excluam ou reduzam o valor da obra para o uso contratualmente previsto.

Inexistindo acordo das partes acerca do fim a que a obra se destina, atende-se à função normal das obras da mesma categoria. Há, portanto, um padrão normal relativamente à função de cada obra: é com base nesse padrão que se aprecia a existência do vício.

Verificando-se uma das expostas perturbações, a lei confere ao dono da obra os direitos previstos nos artigos 1221º a 1223º do Código Civil (eliminação dos defeitos, realização de nova obra, redução do preço ou resolução do contrato e, em qualquer caso, indemnização, nos termos gerais).

…inequivocamente resulta ainda, da factualidade apurada, que estamos perante uma obra que foi executada com defeitos: não foi aplicado rodapé no exterior da moradia; o pavimento veio a apresentar, pontualmente, arestas vivas; as paredes exteriores e interiores apresentam manchas em algumas áreas; algumas peças dos rodapés interiores encontram-se descoladas; o remate superior da piscina e a sua envolvente com o pavimento encontra-se mal executado. Tratam-se de vícios que excluem ou reduzem a aptidão da obra para o seu uso ordinário.

Dispõe como segue o artigo 428º do Código Civil:

“1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.

2. A excepção não pode ser afastada mediante a prestação de garantias.”

Trata-se de um reflexo do direito ao pontual (rectius, exacto) cumprimento do contrato consagrado no artigo 406º, nº. 1 do Código Civil…

Consiste, em síntese, na “possibilidade de recusar licitamente a realização da prestação até que o credor cumpra ou se disponha a cumprir em simultâneo uma contra obrigação emergente do mesmo contrato bilateral” , visando o cumprimento simultâneo das prestações de ambas as partes que se encontrem unidas pelo sinalagma caracterizador do contrato, não funcionando “como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.”

Os requisitos de funcionamento do regime exposto são, assim: “i) que a obrigação cujo cumprimento é recusado esteja numa relação de sinalagmaticidade com a contra obrigação não cumprida; ii) que não exista uma obrigação de cumprimento prévio por parte daquele que pretende invocar a excepção; iii) e que o exercício da excepção de não cumprimento não exceda os limites impostos pelo princípio da boa fé.”

A este respeito, poderá levantar-se a questão de saber se, havendo prazos diferentes para as prestações em causa, o contraente obrigado a cumprir em segundo lugar pode invocar a exceptio com fundamento no cumprimento defeituoso da contraprestação.

Esta questão assume particular relevo em casos como o dos autos.

Com efeito, a obrigação do dono da obra vencer-se-á com a entrega da obra por parte do empreiteiro. Todavia, como vimos, o artigo 1208º do Código Civil impõe ao empreiteiro que a obra, tendo sido executada de acordo com o plano convencionado entre as partes, não tenha vícios ou defeitos.

Assim, se a obra apresentar defeitos que, tendo sido atempadamente denunciados (cfr. artigo 1220º do mesmo diploma legal), eram da responsabilidade do empreiteiro, parece poder o dono da obra eximir-se ao cumprimento do pagamento daquela parte do preço usando a excepção de não cumprimento. “É que o prazo de cumprimento do dono da obra só aparentemente estava vencido, pois a obra já então tinha defeitos da responsabilidade da empreiteira, que tornava a obrigação do dono da obra ainda não vencida.”

Por fim, o exercício desta excepção deve ser adequado à boa fé, devendo em cada caso ponderar-se “não só o valor objectivo da prestação não cumprida, mas também todas as outras circunstâncias que possam evidenciar que o exercício da excepção excede os limites impostos pela boa fé.”

Tendo-se provado que a prestação da autora, enquanto empreiteira, foi cumprida com defeitos (o que equivale a dizer que não foi perfeitamente cumprida), cumpre, assim, verificar o preenchimento dos acima apontados requisitos para o funcionamento do instituto em apreço.

Concluindo-se pela celebração de contrato de empreitada entre as partes, conclui-se de igual forma estar preenchido o primeiro dos apontados requisitos, porquanto as prestações das partes que se encontram em desequilíbrio (entrega da obra e pagamento do preço) se encontram também numa relação de sinalagmaticidade, uma tendo causa e origem na outra.

Por outro lado, inexiste qualquer obrigação prévia a cargo do réu para com a autora, tendo-se provado que as obrigações incumpridas em causa são apenas a entrega da obra (a cargo da autora e porque a não entregou sem vícios, isto é, porque não cumpriu de forma perfeita a obrigação) e a do pagamento de parte do preço da mesma (relativa aos defeitos detectados).

Por fim, da matéria de facto provada resulta que o valor objectivo da prestação não cumprida, bem como as restantes circunstâncias do caso (designadamente o cumprimento, até então, pontual dos pagamentos realizados pelo réu e o facto de a recusa do cumprimento do pagamento da parte restante do preço se circunscrever, essencialmente, ao valor que o mesmo previa despender para eliminação dos defeitos que detectou), permitem concluir que a excepção por si invocada não ultrapassa os ditames da boa fé.

Todavia, como se conclui da matéria de facto provada, a reparação dos defeitos existentes na obra em causa ascende apenas à quantia de 10.682,80 €, com IVA incluído à taxa legal em vigor.

O réu recusa, no entanto, o pagamento da quantia total de 17.423,11 €, com IVA igualmente incluído à taxa legal em vigor.

Assim, forçoso se torna concluir que a excepção por si invocada procede apenas parcialmente, limitada ao valor necessário para eliminação dos defeitos identificados na obra.»

Este discurso apresenta-se, em tese, curial,  quanto à dilucidação da exceção de não cumprimento, mas já não tanto quanto à abordagem do caso concreto.

Efetivamente, na sentença condenou-se no pagamento de quantia, em função da diferença do valor existente entre o valor da reparação dos defeitos e o valor que ainda está em dívida por conta do preço da empreitada.

Mas não foi este o caminho que foi trilhado pelo réu.

Conforme dimana da sua contestação, ele não impetra a redução do preço, mas antes invoca o seu direito de não pagar enquanto não forem eliminados os defeitos e anomalias existentes – artº 92º da contestação.

Tendo, inclusive, no recurso reiterado tal pedido – conclusão XXV.

E bem andou, já que não podia deixar de assim ser.

Na verdade, o iter sequencial de direito conferidos ao dono da obra defeituosa pelos artºs 1221º a 1223º do Código Civil (eliminação dos defeitos, realização de nova obra, redução do preço ou resolução do contrato e, em qualquer caso, indemnização, nos termos gerais) assume-se  -  ao menos por via de regra e, p. ex., salvo caso de desequilíbrio intolerável nas prestações -  de cumprimento obrigatório tal como se apresenta.

 Ou seja, e ele, não pode pedir a redução do preço se for possível a eliminação dos defeitos ou a realização de obra nova, pois que: « No contrato de empreitada, e verificando-se a existência de defeitos, os direitos do dono da obra devem ser exercidos pela ordem dos artigos 1221.º e 1222.º do Código Civil.» – cfr  Acs.  do STJ de 20.10.2009, p. 146/2001.S1, e de 07.07.2020, p. 31/04.1TBTMC.S1. in dgsi.pt.

Nesta conformidade, considerando a existência de defeitos na vivenda, assistiria ao réu, como dono da obra, e como por ele peticionado, o direito de ver esses defeitos – os ora provados nesta instancia recursiva -  eliminados, a expensas da autora empreiteira, sendo que, enquanto tal não acontecesse, teria ele o direito de recusar o pagamento da quantia de 17.423,11 €, com IVA.

Por conseguinte, ao condenar-se logo no pagamento de uma quantia em função da aludida diferença conclui-se que na sentença condenou-se em objeto diverso do pedido, o que acarretaria a sua nulidade – artº 615º, nº 1, al. e) do CPC.

Porém, o réu conformou-se com esta vertente condenatória da 1ª instância, não invocando, ao menos expressamente, no recurso, e não obstante a insistência na eliminação dos defeitos, tal nulidade, pelo que tal vertente  tem de ser mantida.

Nesta ótica, que foi a acolhida na sentença, e considerando a alteração da factualidade neste tribunal ad quem, assiste jus à autora de ver-se ressarcida pelo réu pela quantia 07.903,09 euros.

Ótica  esta que, diga-se, é a que cumprirá de um modo mais célere e definitivo a solução do caso,  pois que com ela se evitam mais obras na moradia por banda da autora – mesmo as apenas atinentes à eliminação dos defeitos – com todas as vicissitudes  eventualmente daí advenientes e potenciadoras de novos conflitos entre as partes.

Improcede o recurso do réu e procede, parcialmente, o da autora.

6.

Sumariando.

 I - A especial força probatória da prova pericial permite/exige que, em princípio – e salvo decisão, cabalmente justificada, do juiz em contrario –, os factos atinentes por ela não corroborados ou corroborados, não sejam, ou sejam, dados como provados.

II - No contrato de empreitada, e verificando-se a existência de defeitos, os direitos do dono da obra devem ser exercidos pela ordem  consagrada nos artigos 1221.º e 1222.º do CC, a saber: eliminação dos defeitos, realização de nova obra, redução do preço ou resolução do contrato, com possibilidade, em qualquer caso,  de pedido de indemnização, nos termos gerais.

III - Se, invocando-se a exceção de não cumprimento, o dono da obra pede, como condição de pagamento de parte do preço, a eliminação dos defeitos, e o tribunal  condena pela redução do preço, comete nulidade por condenação em objeto diverso do pedido -  artºs 615º nº1 al. e) -,  cujo conhecimento depende de arguição da parte.

7.

Deliberação.

Termos em que se  acorda julgar o recurso do réu improcedente, e o recurso da autora parcialmente procedente e, em consequência, agora, condenar o réu a pagar à autora a quantia de 07.903,09 euros.

Custas pelas partes na proporção da  sua presente sucumbência.

Coimbra, 2021.10.12.

Carlos Moreira

João Moreira do Carmo

Fonte Ramos