Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
881/20.1T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: SUSPENSÃO E DESTITUIÇÃO DE GERENTE
JUSTA CAUSA
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO COMÉRCIO DE ALCOBAÇA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 64.º, ALÍNEA B, 257.º, N.º 4, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I) Integram justa causa para a suspensão ou destituição de gerente todas as práticas ou condutas do gerente, positivas ou omissivas, que, em abstracto, sejam idóneas a quebrar a relação de confiança exigida pelo cargo, tornando desse modo inexigível à sociedade a sua manutenção na função.

II) Incorre nessa justa causa o sócio gerente que não aplica o produto da venda de imóvel (€ 185.000,00) na eliminação do encargo para o qual estava destinado pela vontade expressa dos sócios, e utiliza uma parte dessa verba para pagamento dos seus suprimentos num elevado montante - € 140.000,00.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A. intentou no Juízo de Comércio de Alcobaça, Comarca de Leiria uma acção com processo especial para suspensão e destituição de gerente contra B. , alegando em síntese:

Autor e Ré foram casados entre si, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio em 11.03.2020; desde 10.02.2020 que são os únicos sócios da sociedade F., LDA, na qual cada é um detentor de uma quota no valor nominal de € 50.000,00 correspondente a 50% do capital; as funções de gerente pertencem exclusivamente à Requerida, vinculando-se a sociedade apenas com a respectiva assinatura; em 17.10.2018 realizou-se uma Assembleia Geral da aludida sociedade com a presença de todos os sócios na qual foi discutida mas não votada a aquisição de um automóvel para as deslocações da Requerida enquanto gerente; não obstante, veio a Requerida, enquanto gerente da sociedade, a adquirir para esta um novo automóvel, em regime de leasing, pelo qual esta ficou a pagar uma prestação mensal de cerca de € 770,00; realizada uma Assembleia Geral da mesma sociedade para discussão e votação das contas de 2018,  foi elaborada uma acta onde é mencionada a presença do A., apesar deste não ter estado presente; tendo a sociedade F. recebido a quantia de € 185.000 pela alienação de uma fracção predial deliberada na Assembleia Geral realizada a 13.06.2019, em Dezembro do mesmo ano a Ré ainda não tinha procedido à amortização do leasing imobiliário do mesmo imóvel com o produto da dita venda; em 06.12.2019 realizou-se nova Assembleia Geral tendo como ordem de trabalhos a alteração do objecto da sociedade; apesar de terem votado a favor de tal alteração a Requerida e o sócio C. , que em conjunto detinham apenas duas quotas perfazendo € 49.875,00 do capital social, e contra o ora Requerente, representando uma quota de € 45.000,00  foi elaborada a respectiva Acta com a menção de que aquela proposta teria sido aprovada com aqueles votos; em 13.01.2020 e 10.02.2020 os três sócios minoritários cederam as suas quotas a Requerente e Requerido, quedando cada um com uma quota representando 50% do capital social; em 18.06.2019 o Requerente renunciou à gerência; em Março de 2020 o Requerente foi informado que o dinheiro destinado à amortização do empréstimo feito à sociedade para o leasing imobiliário havia sido transferido para “parte incerta”, sendo certo que desde a renúncia do Requerente a Requerida apenas tem poderes para movimentar as contas da sociedade.

Remata pedindo que se decrete a suspensão e destituição da Requerida do cargo de gerente da sociedade F. , Lda, nos termos dos art.ºs 366, nºs 1 e 6, do CPC, 257, nº 6, do CSC e 1055 do CPC.

Contestou a Requerida C. defendendo-se por impugnação, alegando que actuou sempre dentro dos seus poderes de gerente, nunca tendo causado qualquer prejuízo à sociedade, terminando com a improcedência da acção e a condenação do Requerente como litigante de má fé em multa e indemnização não inferior a € 5.000,00.

Foi pelo Requerente apresentado nos autos um articulado superveniente no qual alegou que em consequência da consulta de extractos bancários da sociedade conseguiu apurar recentemente que no ano de 2019, servindo-se de dinheiro da sociedade, a Requerida pagou gastos e despesas pessoais que discrimina num total de € 28.843,53 quando a receita apurada nesse período foi de apenas € 13.536,00.

Admitido o aludido articulado superveniente, foi concedido à Requerida o inerente direito de resposta, que a mesma exerceu, refutando a veracidade dos factos ali alegados.

A final foi prolatada sentença na qual se julgou a acção procedente por provada, e, em função disso, se destituiu a Requerida do cargo de gerente da sociedade F. , Lda.

Inconformada, deste veredicto recorreu a Requerida, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.

                                                                       *

A apelação.

Nas conclusões com que encerra a respectiva alegação a Requerida e agora recorrente levanta as seguintes questões:

Omissão de pronúncia sobre o contrato de comodato;

Reapreciação da matéria de facto;

Se não estão reunidos os pressupostos do art.º 64, nº 1, al.ªs a) e b) do CSC e 257 nº 6 do CPC.

Não houve resposta do apelado.

Apreciando.

(…)

De sorte que são estes os factos que esta Relação tem por definitivamente provados:

1. A F. , LDa é uma sociedade que tem por objecto o arrendamento de imóveis; compra e venda de imóveis urbanos ou rústicos e revenda dos adquiridos para esse fim; exploração e comercio florestal e agrícola; exploração florestal; construção civil e reconstrução de imóveis; galeria de arte; actividades de formação e centro de explicações; exploração de cafetaria; organização de eventos; consultoria para os negócios e a gestão e nas referidas actividades; comércio, importação, exportação e representações de produtos, artigos, máquinas e equipamentos nas referidas actividades.

2. Entre 13.01.2020 e 10.02.2020, os três sócios minoritários ( C. , D. e E. ) cederam as suas quotas ao Requerente ( A. ) e à Requerida ( C. ), de tal forma que cada um destes passou a ser titular de uma quota de € 50.000,00 e de uma participação correspondente a 50% do capital social, situação que ainda se mantém.

3. O Requerente e a Requerida foram casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio por sentença datada de 11.03.2020.

4. Através da AP.2 de 2019.06.18 encontra.se registada a cessação de funções como gerente da “ F. , Lda” por parte do aqui requerente.

5. Desde pelo menos a data referida em 4. que as funções de gerência da Sociedade são exclusivamente assumidas pela Requerida, obrigando-se a Sociedade com a assinatura de um gerente.

6. No dia 17.10.2018 realizou-se uma Assembleia Geral da Sociedade, com a presença de todos os sócios.

7. Nessa Assembleia Geral, foram discutidos e deliberados diversos assuntos, de entre os quais se destaca a proposta da Requerida de aquisição pela Sociedade de um novo veículo automóvel para as suas deslocações, que ora se transcreve: “(…) No segundo ponto da ordem de trabalhos, a gerente C. [Requerida] informou que o carro desta empresa, o Peugeot 206 de 2005, está na oficina devido a uma avaria na estrada. Informou os sócios da necessidade de compra de outro veículo para as suas deslocações. Referiu ainda que se informou com o contabilista certificado, o Dr. H., para a aquisição mais vantajosa em benefícios fiscais e seria um carro plugin. Também o seguro da I. na assistência não cobriu o veículo de substituição e será uma questão a reformular no seguro, uma vez que a informação dos seguros era que tinha este benefício. O sócio A. [Requerente] não está de acordo que se faça esta aquisição. (…)”

8. Em data não concretamente apurada, mas após a Assembleia Geral referida em 7, foi celebrado pela Requerida, atuando enquanto gerente da Sociedade um contrato para aquisição de um veículo da marca BMW Série 4 híbrido.

9. Em virtude da celebração deste contrato, a Sociedade ficou obrigada ao pagamento de uma prestação mensal de cerca de € 770,00 (setecentos e setenta euros).

10. Por “email” datado de 16 de Abril de 2020 o requerente solicitou à requerida o envio da ata da Assembleia Geral de aprovação de contas de 2018 e as contas aprovadas.

11. No dia 13.06.2019 reuniu-se a Assembleia Geral da Sociedade, com a presença de todos os sócios acima referidos, tendo sido produzida a Ata n.º 19.

12. Da ordem de trabalhos daquela Assembleia Geral constavam os seguintes pontos: “Ponto primeiro – Venda da fracção predial autónoma, da freguesia da x..., adiante melhor identificada, de que a sociedade é dona. Ponto segundo – Aplicação do produto da venda referida no ponto primeiro.”

13. Em relação ao Ponto Primeiro da ordem de trabalhos, foi unanimemente deliberado vender ao sócio C. e a sua Mulher a fração predial autónoma designada pela letra H, correspondente ao lado direito do 3.º andar do prédio urbano no regime da propriedade horizontal, sito na Rua ..., na freguesia da x... – ..., município de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 248 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 1045, pelo preço de € 185.000 (cento e oitenta e cinco mil euros).

14. Em relação ao Ponto Segundo da ordem de trabalhos, foi unanimemente deliberado aplicar o produto da venda do referido imóvel na extinção, pelo pagamento do crédito ainda subsistente devido ao Banco J., do contrato de locação financeira quem tem por objeto a fração predial autónoma designada pelas letras AE do prédio sito na Rua ..., em y..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 222 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 3856.

15. Em cumprimento da deliberação tomada no âmbito do Ponto Primeiro da ordem de trabalhos, o imóvel aí identificado foi efetivamente vendido ao sócio C. e a sua Mulher.

16. O valor da sua alienação - €185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil euros) – foi recebido na conta bancária da Sociedade em dia 21.08.2019.

17. Pelo menos até à data da instauração da presente ação mês de dezembro, a Requerida ainda não havia procedido à amortização do contrato de leasing imobiliário alusivo ao prédio referido em 14.

18. No dia 06.12.2019 realizou-se uma Assembleia Geral da Sociedade, da qual resultou a Ata n.º 20.

19. Da Ata n.º 20 consta que se encontravam presentes os seguintes sócios: (i) C. , ora Requerida, titular de uma quota com o valor nominal de € 45.000; (ii) A. , ora Requerente, titular de uma quota com o valor nominal de € 45.000; (iii) C. , titular de uma quota com o valor nominal de € 4.875.

20. A Assembleia Geral tinha como ponto único da ordem de trabalhos a “Inclusão das atividades dos códigos CAE números 55201 e 55204 no pacto social da empresa F. Lda.” e das atividades de alojamento mobilado para turistas e outros locais de alojamento de curta duração no objeto social da Sociedade.

21. Esta proposta, apresentada pela Requerida, foi colocada a votação, contando com os votos a favor da Requerida e do sócio C. , e com o voto contra do Requerente.

22. É de notar que os sócios que votaram favoravelmente a deliberação em causa detinham, em conjunto, 49,875% do capital social da Sociedade.

23. Ainda assim, da Ata n.º 20 consta que a deliberação de alteração do objeto social da Sociedade foi “(…) aprovada pelos presentes com dois votos a favor: de C. , com uma quota com o valor nominal de 4.875,00€ (quatro mil, oitocentos e setenta e cinco euros) e de C. , titular de uma quota com o valor nominal de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros) e um contra de A. , com uma quota com o valor nominal de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros) tendo igualmente sido aprovado com os mesmos votos, o novo pacto social da sociedade e obrigações legais.(…)”

24. No mês de março de 2020, o Requerente foi informado telefonicamente pelo balcão da J. que o dinheiro depositado na conta da Sociedade, e que se destinava à amortização do empréstimo referido em 14, havia sido transferido.

25. Encontra-se registada com a ap 1668 de 2020.03.19 a aquisição por parte de G. a F. , lda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o numero 3278/20080930-H.

26. Foram realizadas pela requerida as transferências bancarias/pagamentos da conta da sociedade F. , Lda, domiliciada na J., S.A identificados nos documentos n.º 4 e 5 juntos pelo requerente com o seu articulado superveniente e que se dão aqui por integralmente reproduzidos.

27. Resulta das transferências/pagamentos referidos em 26. compras no intermarche no valor de €10,69 (datada de 2019.08.16), €47,13 (2020.01.05), €39,98 (2020.01.10), €44,92 (2020.01.21), €43,52 (2020.01.24), €26,33 (2020.01.29) e compra no “PingoDoce” no valor de €34,99 (2020.01.27).

28. A requerida fez transferências bancárias da quantia de €40 000,00 (2019.08.28) e da quantia de €100 000,00 (2020.01.30) da conta da sociedade F. ,LDa. não tendo tais valores sido transferidos para contas da sociedade.

29. Ora a verdade é que a 31 de dezembro de 2018, Requerente e Requerida possuíam os seguintes créditos de suprimentos sobre a sociedade: Requerente A. - €160.269,40 Requerida C. - €149.843,63.

30. A Requerida retirou no ano de 2019 e 2020 a quantia global de € 140.000,00 da conta da sociedade a título de devolução de suprimentos para si própria.

31. As aludidas transferências foram concretizadas a mando e pela ação da requerida; não foram do conhecimento do requerente nem obtiveram a sua prévia concordância.

32. A gerente tirou um curso de formação profissional na Sociedade Nacional de Belas Artes suportado financeiramente pela sociedade F. , Lda.

33. A sociedade adquiriu no ano de 2019 equipamento informático e fotográfico.  

  

                                                                       *

Sobre a justa causa para a suspensão/destituição da Requerida.

Escreveu-se na decisão recorrida sobre a conduta da Requerida na gestão da sociedade F. :

“De facto a lealdade que se impõe a um administrador diligente e criterioso no exercício de funções exige que o mesmo, no seu desempenho, tenha como mote e fio condutor a prossecução do objecto social e a salvaguarda dos interesses da sociedade. No entanto, o que ressalta dos factos provados relativamente às transferências bancárias é que a conduta da requerida teve como propósito o seu interesse pessoal, ignorando os interesses do outro sócio e da própria sociedade, confundindo-os com os próprios, sem distinção entre o património social e os seus bens pessoais. Ora tal conduta redunda numa quebra de confiança que justifica fazer cessar o cargo de gerente, por a sua manutenção não ser exigível à sociedade”.

Contrapõe a Requerida na sua alegação recursiva que “Foram sendo coerentemente justificados todos os actos de gestão levados a cabo pela Rte (aqui há lapso na medida em que obviamente se queria dizer Requerida)”.

Mas, salvo o devido respeito, sem razão.

Se não vejamos.

A destituição de gerentes nas sociedades por quotas encontra-se disciplinada no art.º 257 do CSC, sendo aí patente que, em princípio, não tendo sido pactuado um direito especial à gerência nem uma maioria qualificada, os sócios são sempre livres de deliberar a todo o tempo a destituição de gerentes (nºs 1, 2 e 3 do art.º 257).

Todavia, existindo justa causa, já pode a deliberação ser tomada por maioria simples mesmo com um direito especial à gerência (nºs 2 e 3), pode qualquer sócio, ainda que minoritário, intentar acção contra a sociedade para a suspensão e destituição (nº 4) e, havendo apenas dois sócios, deve o sócio interessado em demonstrar a justa causa de destituição do outro socorrer-se da acção a intentar contra ele (nº 5).

A esta última corresponde a situação da presente acção.

O conceito de justa causa não é propriamente um conceito absolutamente indeterminado, uma vez que o nº 6 do art.º 257 do CSC estatui que “Constituem justa causa de destituição, designadamente a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respectivas funções”.

Afigura-se-nos que os autos evidenciam a aludida violação grave dos deveres de gerente por banda da Requerida.

Com efeito, não foi impugnada a matéria constante dos pontos do acervo fáctico que suporta a procedência do pedido, a saber:

Em 13.06.2019 foi deliberado em Assembleia Geral da F. vender a fracção designada pela letra H do prédio sito na rua ..., x..., ..., ..., pelo preço de € 185.000,00 ao sócio C. e mulher;

E aplicar o produto da venda na liquidação do leasing imobiliário referente à fracção AE do prédio sito na Rua ..., y..., ...;

O imóvel foi efectivamente vendido e o valor recebido em conta da sociedade;

Até à data da instauração da presente acção o leasing não foi liquidado;

O referido dinheiro foi transferido;

Em 2019 e 2020 a Requerida retirou da conta da sociedade a quantia de € 140.000,00 para pagar a si própria os suprimentos de que era credora.

Este factualismo configura a violação dos deveres de lealdade no interesse da sociedade a que alude a alínea b) do art.º 64 do CSC.

Com efeito, estabelecem-se neste artigo os deveres fundamentais de quem gere ou administra uma sociedade comercial.

Aí se dispõe:

“« 1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar: a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores. 2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade”.

É com base nesta tipificação que ao juiz cabe avaliar se ocorre a justa causa que nos termos do nº 4 do art.º 257 do CSC permite a qualquer sócio requerer a suspensão e destituição do gerente em acção intentada contra a sociedade.

Integrarão justa causa todas as práticas ou condutas, positivas ou omissivas, do gerente que, em abstracto, sejam idóneas a quebrar a relação de confiança exigida pelo cargo, tornando desse modo inexigível à sociedade a sua manutenção na função[1].     

No caso dos autos, é de considerar que a actuação da Requerida espelhada na materialidade acima identificada, por um lado, de desrespeito da vontade societária de aplicação do produto da venda de um imóvel, e, por outro, provendo à satisfação imediata e intempestiva de um interesse pessoal da Requerida – pagamento de suprimentos à revelia da fixação de prazo imposta pelo art.º 245, nº 1 do CSC[2] – consubstancia uma situação objectivamente grave e intolerável de traição da confiança que nela depositava o ente societário.

Note-se que Requerida e Requerente, que até então já detinham as quotas de longe mais significativas, passaram no início de 2020 a ser os únicos sócios da F. .

Não tem, por conseguinte, qualquer respaldo no acervo fáctico – sendo até desprovida de qualquer sentido porque oposta ao que aqui se acha plasmado – a proclamação da Requerida/apelante contida na conclusão 64ª de que os seus actos de gestão “foram sendo coerentemente justificados”.

Na verdade, não aplicar um valor significativo e vultuoso, como era aquele que adveio da venda do imóvel (€ 185.000,00) na eliminação do encargo para o qual estava destinado pela vontade expressa dos sócios é já de si uma grosseira violação dos deveres de diligência e cuidado que impendem sobre todo e qualquer gerente, mas é, sobretudo, uma falha de lealdade que compromete a relação com os restantes sócios e a sociedade.

Também o facto concomitante de a Requerida se ter pago dos seus suprimentos num elevado montante - € 140.000,00 – após ter transferido aquela verba da conta da sociedade, equivale, pelo menos, a um novo, reiterado e inadmissível desprezo da aludida regra do dever de diligência e gestão criteriosa do património social.    

Donde que a decisão recorrida não merece censura.

Pelo exposto, na improcedência da apelação, confirmam a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

                        Coimbra, 25 de Janeiro de 2022

  

    

                                               (Freitas Neto – Relator)

                                               (Paulo Brandão)

                                               (Carlos Barreira)       

 


[1] Neste sentido, cfr., além do mais, o Acórdão do STJ de 20.01.99, citado e localizado na decisão recorrida, (CJ, 1999, Acórdãos do STJ, Tomo I, p. 37 e ss), no qual (fls. 40) é justamente mencionada a noção de justa causa avançada por Baptista Machado (Pressupostos da resolução por incumprimento, 1979, p. 21), autor que a conceptualiza como “qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim (…)”. Na facticidade apurada nos vertentes autos é ostensivo que o escopo social foi perfeitamente desprezado em moldes que legitimam a suspeita de futuros comportamentos de idêntico teor.
[2] Normativo que, acautelando o interesse social, prevê a possibilidade do pagamento dos suprimentos em prestações.