Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
79/16.3T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: TRABALHADORES INDEPENDENTES – SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO.
NOÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO – TEMPO DE TRABALHO PARA ALÉM DO PERÍODO NORMAL DE TRABALHO.
APÓLICE UNIFORME.
Data do Acordão: 05/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – JUÍZO DO TRABALHO DE C. BRAN
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO SECÇÃO SOCIAL
Decisão: PROCEDENTE
Legislação Nacional: DL 159/99, DE 11/05; ARTºS 8º, NºS 1 E 2, E 81º DA LAT (LEI Nº 98/2009, DE 4/09).
Sumário:
I – Aos sinistrados trabalhadores independentes aplica-se o regime decorrente do DL 159/99, de 11/05, que veio regulamentar a obrigatoriedade de seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes e que garante, com as devidas adaptações, as prestações definidas pela Lei nº 98/2009, de 4/09 (LAT/2009), remetendo para a dita (artº 181º) muitos dos aspectos de regulamentação do regime de acidentes de trabalho daqueles trabalhadores.
II – O artº 8º, nº 1, da Lei nº 98/2009 (LAT) contém a definição genérica de acidente de trabalho.
III – Para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar (a) um elemento espacial, em regra o local de trabalho; (b) um elemento temporal, em regra correspondente ao tempo de trabalho; e (c) um elemento causal, ou seja o nexo de causa e efeito entre, por um lado, o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e, por outro lado, entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
IV – Entende-se por ‘local de trabalho’ todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador, e por ‘tempo de trabalho além do período normal de trabalho’ o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho – als. a) e b) do nº 2 do artº 8º da LAT.
V – A LAT/2009 consagra, no seu artº 81º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo ‘acidentes de trabalho’ deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.
VI – A Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para trabalhadores independentes (Norma nº 14/99-R, de 16/12, com as alterações introduzidas pelas Normas nºs 11/2000-R, de 13/11, 16/2000-R, de 21/12, e 13/2005-R, de 18/11) inclui definições de local e tempo de trabalho em tudo idênticas às da LAT.
VII – Tem de haver uma qualquer conexão espacial e temporal entre o momento do acidente e a prestação de atividade por parte do trabalhador independente, que permita concluir pela existência dos elementos espacial e temporal legalmente previstos.
Decisão Texto Integral:
Processo 79/16.3T8CTB.C1
Apelação
505/18

Relator: Ramalho Pinto
Adjuntos: Felizardo Paiva
Jorge Manuel Loureiro

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A… intentou a presente acção emergente de acidente de trabalho contra R..., pedindo que esta seja condenada a reconhecer o acidente como de trabalho e, em consequência, a pagar as seguintes prestações:
a) 2.628,02 € (dois mil seiscentos e vinte e oito euros e dois cêntimos) a título de pensão anual e vitalícia, devida a partir de 05 de Janeiro de 2016, dia imediato ao falecimento do sinistrado, seu marido, e até perfazer a idade da reforma por velhice, data em que passará a ser do montante anual de 3.504,03 €;
b) 5.533,68 € (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos), a título de subsídio por morte;
c) 1.100,00 € (mil e cem euros), a título de subsídio por despesas de funeral;
d) 40,00 € (quarenta euros) a título de despesas de transporte;
Alegou, para o efeito e tal como consta da sentença recorrida:
O sinistrado, trabalhador independente, foi vítima de um acidente de trabalho no dia 04.01.2017, pelas 14h55 horas, que ocorreu quando se deslocava do centro de inspeções C…, de D…, onde tinha ido levar o veículo que usava no seu dia-a-dia à inspecção, para o seu local de trabalho.
À data do acidente tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes laborais transferida para a Ré seguradora, pela remuneração de 8.760,08€, que o sinistrado efetivamente auferia.
Não tendo até há data recebido o capital de remição correspondente às pensões anuais e vitalícias devidas, o subsídio por morte e as despesas com as deslocações efetuadas, cujo pagamento agora reclama.
A Ré contestou, invocando não aceitar a caracterização do acidente como de trabalho, alegando que o sinistrado, no dia do acidente, não estava no tempo, no local de trabalho ou no trajecto, não se enquadrando a situação no que se dispõe nos arts. 8.º e 9.º da Lei dos Acidentes de Trabalho. Mais sustenta que, em qualquer caso, o acidente sempre terá resultado de negligência do sinistrado, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Citado o CNP, veio o mesmo apresentar pedido de reembolso, alegando que, relativamente ao beneficiário B…, pagou subsídio por morte e pensões de sobrevivência à viúva, a Autora, no valor total de 6.128,86 € (seis mil cento e vinte e oito euros e oitenta e seis cêntimos), cujo reembolso reclama agora da Ré seguradora.
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença, cuja parte dispositiva transcrevemos:
Assim sendo, e tendo em conta os considerandos tecidos, decide-se julgar totalmente procedente a ação e, em consequência, decide-se reconhecer o Acidente dos autos como de Trabalho e, em consequência, condenar a ré seguradora a pagar à autora as seguintes prestações:
a) 2.628,02 € (dois mil seiscentos e vinte e oito Euros e dois cêntimos) a título de pensão anual e vitalícia, devida a partir de 05 de Janeiro de 2016, dia imediato ao falecimento do sinistrado, e até perfazer a idade da reforma por velhice, data em que passará a ser do montante anual de 3.504,03 €, a qual será paga, adiantada e mensalmente até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 cada da pensão anual, sendo que os subsídios de férias e de Natal, no valor de 1/14 cada de pensão anual, são, respetivamente, pagos nos meses de Junho e de Novembro (art.º 72.º da Lei n.º 98/2009 de 04.09).
b) 5.533,68 € (cinco mil quinhentos e trinta e três Euros e sessenta e oito cêntimos), a título de subsídio por morte;
c) 1.100,00 € (mil e cem Euros), a título de subsídio por despesas de funeral;
d) 40,00 € (quarenta Euros) a título de despesas de transporte;
e) Mais se condena a ré seguradora no reembolso ao Centro Nacional de Pensões (ISS/CNP), do valor total de 6.128,86 € (seis mil cento e vinte e oito euros e oitenta e seis cêntimos), pago a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência à viúva A…, até ao limite do valor da indemnização fixada e a deduzir a esta;
f) Mais se condena a ré no pagamento de juros de mora, à taxa legal, sobre as aludidas quantias, contados desde a data dos respetivos vencimentos e até integral pagamento.
*
Custas a cargo da ré”.
x
Inconformada, veio a Ré interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A Autora contestou, pugnando pela manutenção do julgado.
Foram colhidos os vistos legais.
O Exmº PGA emitiu parecer fundamentado no sentido da improcedência do recurso.
x
Definindo-se o âmbito dos recursos pelas suas conclusões, temos, como questões a decidir:
-a reapreciação da matéria de facto;
- a qualificação do acidente como de trabalho;
- a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado.
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A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:
(…)
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O direito:
- a impugnação da matéria de facto:
(…)
Improcede, assim, e na sua totalidade, a impugnação.
- a segunda questão- se o acidente sofrido pelo sinistrado se deve considerar como de trabalho:
Sendo o sinistrado trabalhador independente aplica-se-lhe o regime decorrente do DL 159/99, de 11/05, o qual veio regulamentar a obrigatoriedade de seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes e que garante, com as devidas adaptações, as prestações definidas pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, (LAT/2009) remetendo para ela (por força do disposto na norma remissiva do art. 181.º daquela Lei) muitos dos aspectos de regulamentação do regime de acidentes de trabalho daqueles trabalhadores.
A apelante considera que o acidente se não pode qualificar como de trabalho, rebatendo a seguinte justificação da sentença:
“Ora, aqui chegados, dir-se-á que no caso dos autos, não resultou que o sinistrado se deslocasse da sua residência para o seu local de trabalho, nem sequer que se deslocasse do centro de inspeções C… de D…, onde tinha ido levar o seu veículo, para o seu local de trabalho, não se podendo por isso concluir que o acidente tenha ocorrido quando o sinistrado se deslocava para o trabalho, pelo que não se poderá reconhecer o acidente ocorrido como um acidente de trabalho, na modalidade que a doutrina e jurisprudência conhecem por acidente in itinere.
Ora, a verdade é que não obstante o acidente ter sido equacionado nos autos como de eventual acidente in itinere, ocorrido (ou não) quando o sinistrado se deslocava para o local de trabalho, o certo é que não nos revemos nesta discussão.
Na verdade, e como resultou demonstrado, o sinistrado era trabalhador por conta própria, e no dia dos fatos regressava do centro de inspeções C… de D…, onde tinha ido levar à inspeção o veículo que usava no exercício da sua atividade profissional e das deslocações a ela inerentes e, onde de resto, transportava ferramentas próprias do seu trabalho.
Tanto chega, segundo se crê, para caraterizar o acidente ocorrido como um acidente de trabalho.
É que, sendo o sinistrado um trabalhador por conta própria, era a ele quem competia desenvolver, para além naturalmente das tarefas relacionadas com a atividade de armador de ferro propriamente dita, toda uma série de outras atividades necessárias à prossecução da sua profissão, como por exemplo, o cumprimento de obrigações fiscais, a aquisição de instrumentos de trabalho, a realização de depósitos bancários, a realização ou regularização de seguros obrigatórios, a reparação de instrumentos de trabalho, entre outras, atividades estas que importariam deslocações várias do sinistrado – a repartições de finanças, estabelecimentos comerciais, instituições bancárias, seguradoras ou oficinas.
Ora, no caso dos autos, o sinistrado tinha-se deslocado precisamente ao Centro de inspeções C… de D…, onde tinha ido levar à inspeção o veículo que usava no exercício da sua atividade profissional e das deslocações a ela inerentes e, onde de resto, transportava ferramentas próprias do seu trabalho.
Encontrava-se portanto a efetuar deslocação com vista à inspeção (obrigatória) de veículo que usava no exercício da sua atividade profissional.
E por isso se entende estarmos perante um acidente de trabalho strictu senso (e não como equacionado pela autora, perante um acidente in itinere), considerando-se que a atividade exercida pelo sinistrado no momento e hora do acidente e inerente deslocação é acessória às tarefas (de armador de ferro) abrangidas pelo objeto do contrato de seguro”.
Não subscrevemos este entendimento.
Em primeiro lugar, importa realçar que a situação em apreço não tem similitude com a apreciada pelo citado, na sentença, Ac. da Rel. de Lisboa de 14/06/2017- aí a sinistrada- trabalhadora independente- regressava a casa depois de ter prestado actividade nas instalações da aí Ré.
O artº 8º, nº 1 da Lei n.º 98/2009, de 4/9, (que é LAT aplicável) contém a definição genérica de acidente de trabalho, dispondo que “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo do trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Ou seja, como tem apontado a nossa jurisprudência, para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar (a) um elemento espacial, em regra, o local de trabalho, (b) um elemento temporal, em regra, correspondente ao tempo de trabalho e (c) um elemento causal, ou seja, o nexo de causa e efeito entre, por um lado, o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e, por outro lado, entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Entende-se por “local de trabalho” “todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador; e por “tempo de trabalho além do período normal de trabalho” “o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”- als. a) e b) do nº 2 de tal artigo.
Tal como é realçado no Ac. deste Relação de 10/03/2016, in www.dgsi.pt (relator Azevedo Mendes) , nos termos do “Regime Jurídico do Contrato de Seguro”, aprovado pelo Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, nomeadamente nos seus artigos 32.º a 35.º, o contrato de seguro deve ser formalizado por escrito pelo segurador, num instrumento denominado apólice, sendo regulado pelas estipulações dele constantes, a menos que a desconformidade entre ele (apólice) e o acordado resultem de documento escrito o de outro suporte duradouro (art. 35.º).
A LAT/2009 consagra, no seu art. 81.º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo “Acidentes de Trabalho” deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo Instituto de Seguros de Portugal.
A Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes (Norma n.º 14/99-R, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelas Normas n.ºs 11/2000-R, de 13 de Novembro, 16/2000-R, de 21 de Dezembro, e 13/2005-R, de 18 de Novembro), incluem definições de local e tempo de trabalho em tudo idênticas às da LAT:
Local de trabalho: Todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho, considerando-se como tal a própria residência habitual ou ocasional do trabalhador, nos casos em que o trabalho seja efectuado em casa.
Tempo de trabalho: Além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho”.
Não pode adoptar-se o entendimento tão amplo como o seguido na sentença de que, porque o trabalhador independente não está sujeito a horário e local de trabalho, não se pode dizer que o acidente não ocorreu em tempo e local de trabalho
Terá de haver uma qualquer conexão espacial e temporal entre o momento do acidente e a prestação de actividade por parte do trabalhador independente, que permita concluir pela existência dos elementos espacial e temporal legalmente previstos.
E, no caso concreto, ela não existe- o acidente ocorre quando o sinistrado regressava do centro de inspecção automóvel, sendo que nada ficou provado – ónus a cargo da beneficiária (artº 342º, nº 1, do CC) - no sentido de que se dirigia para um qualquer sítio onde fosse exercer a sua actividade. Isso mesmo se salienta na fundamentação da resposta à matéria de facto- “E assim sendo, entende-se que, em face da prova produzida e acima referida, não resulta efetivamente provado que o sinistrado se dirigia para o seu local de trabalho (ou mesmo para a sua residência) no momento em que se deu o acidente, tendo ficado por apurar o destino da deslocação do sinistrado – tudo o que justifica as respostas dadas à base Instrutória formulada nos autos”.
Estamos na presença de um simples cumprimento de obrigações legais, como seja a inspecção obrigatória de veículos, comum a todos os proprietários de automóveis, independentemente da sua utilização pessoal e/ou profissional, não se podendo descurar um pormenor importante- se o veículo não passar nessa inspecção, o passo seguinte será o de submeter o mesmo às reparações e correcções necessárias, condicionadoras da sua utilização profissional, situação que o proprietário não pode afastar à partida.
Acresce que a motivação que levou o sinistrado à inspecção teve que ver com o facto de se tratar de um dia chuvoso- facto 16, o que só por si indicia que no espírito do mesmo estava, para não dizer a impossibilidade, pelos menos um onerosidade no exercício da sua actividade.
Reproduzimos aqui, pela sua pertinência, a argumentação da apelante de que diferente interpretação do conceito de local e tempo de trabalho levar-nos-ia a estender, imprudentemente, a responsabilidade por acidentes de trabalho a campos em que não deve ser aplicada (p.e. percurso a uma hospital no âmbito de doença ou lesão não relacionada com o trabalho, em que também se poderia argumentar que o trabalhador necessita de aptidão física para praticar a sua actividade profissional).
E que “a responsabilidade objectiva por acidentes de trabalho é, por definição, aquela que se justifica na justa medida em que traduz a cobertura de um risco associado a uma actividade profissional: é nesta excepcionalidade (art. 483, n.º 2 do Código Civil) que reside a pedra-de-toque deste instituto”.
Procede, assim, o recurso, ficando prejudicada a abordagem da terceira questão objecto do mesmo- a descaracterização do acidente.
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Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a Ré do pedido.
Custas, em ambas as instâncias, pela recorrida.

Coimbra, 25/05/2018