Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/16.6T8GRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
DESNECESSIDADE
PRINCÍPIO DO PEDIDO
FLEXIBILIZAÇÃO DO PEDIDO
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JC CÍVEL E CRIMINAL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.1293, 1543, 1547, 1549, 1569 CC
Sumário: 1 - A desnecessidade capaz de conduzir à extinção da servidão (que tenha sido constituída por usucapião ou legalmente) tem de ser objectiva do prédio dominante; mas não tem forçosamente que resultar duma alteração verificada em momento superveniente à respectiva constituição e que tenha retirado toda e qualquer a utilidade à servidão.

2 - Embora seja imanente e essencial à servidão que a mesma traga proveito ao prédio dominante, esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante; nesta hipótese, há que efectuar um juízo de proporcionalidade actualizado sobre os interesses em jogo e caso haja alternativa – caso, com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente – deve permitir-se a extinção, por desnecessidade, da servidão; salvo se a manutenção da servidão não trouxer desvalorização para o prédio serviente e o mesmo não obtenha vantagens em dela se libertar.

3 – Assim, resultando dos factos que a servidão utiliza o caminho de acesso ao próprio prédio serviente – ou seja, que com ou sem manutenção da servidão a fruição da respectiva parcela de terreno do prédio serviente continuará a ser a mesma – é exíguo o “peso” que a manutenção da servidão representa para o prédio serviente, não se justificando (ainda que existam alternativas para o prédio dominante com um mínimo de prejuízo para este) declarar a servidão extinta por desnecessidade.

4 - Pedindo os donos do prédio dominante que sejam retirados os portões colocados no caminho de servidão, pode, sem que tal viole o princípio do pedido, condenar-se na entrega das chaves dos portões.

Decisão Texto Integral:




Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

T (…), Lda., com sede (…), intentou a presente acção sob a forma do processo comum de declaração, contra C (…) e esposa M (…) agricultores, residentes (…), pedindo que sejam estes sejam condenados a:

“a) reconhecer que a autora é dona e legítima possuidora do prédio misto identificado no artigo 2º da petição inicial.

  b) reconhecer que o seu [dos RR.] prédio misto, inscrito na matriz rústica nº K (...) e na matriz urbana nº (...) , descrito na conservatória do (...) sob o nº K (...) /20041008, está onerado por uma servidão predial de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) – X (...) e vice versa), caminho de terra batida, que se revela por sinais visíveis e permanentes através da ausência de ervas ou plantas e dos sulcos provocados pelos rodados dos veículos que ali circulam há mais de 60 anos, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 5 a 6 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, conforme planta de localização que constitui o doc. nº 12 e das três aerofotografias, autenticadas, do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº 216, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996.

..c) quando assim se não entenda, condenar-se os réus a reconhecer que o seu prédio misto, inscrito na matriz rústica nº (...) e na matriz urbana nº (...) , descrito na conservatória do (...) sob o nº (...) /20041008, está onerado por uma servidão predial voluntária de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por usucapião, há mais de 60 anos, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) – X (...) e vice versa), caminho de terra batida, que se revela por sinais visíveis e permanentes através da ausência de ervas ou plantas e dos sulcos provocados pelos rodados dos veículos, quer de tração animal, quer motorizados, que ali circulam há mais de 60 anos, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 5 a 6 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, conforme planta de localização que constitui o Doc nº 12 e das três aerofotografias, autenticadas, do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº 216, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996.

  d) retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

  e) absterem-se de, por qualquer meio estorvar o uso e fruição da passagem referida em b) e ou c).

  f) pagar à autora uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, pelos motivos supra alegados, a liquidar em execução de sentença.”

Alegou, para tal, em síntese, serem a A. e os RR. donos dos 2 prédios mistos (vizinhos) que identificou, os quais há quase cem anos fizeram parte de um único prédio misto, conhecido e designado por “Quinta das K (...) ”, que se autonomizou em três prédios distintos; prédio aquele – a inicial Quinta das K (...) – cujo acesso sempre se fez por um caminho de terra batida (que descreve) que entronca na EN 332, que atravessa o que é hoje o prédio dos RR. e que liga ao caminho que se encontra no que é hoje o prédio da A., pelo que, com a separação física dos três prédios, o referido caminho continuou a servir os três prédios, assim se constituindo em servidão por destinação de pai de família, ou, a não se entender assim, por usucapião.

Mais alegou a A. que o seu prédio não tem, a não ser por tal caminho, acesso directo à EN 332; e que os outros dois caminhos (que admite que existem) de terra batida que o ligam à via pública são de circulação insuficiente e limitada no tempo (nomeadamente, no período do inverno), razão pela qual necessita do descrito caminho (devido às suas actividades e dimensão).

E alegou ainda que os RR. colocaram, no início do caminho no prédio deles, um cadeado com portão, impedindo a utilização do descrito caminho pela A. e dificultando a exploração do prédio da A., com a consequente diminuição do seu valor.

Os RR. contestaram.

Alegaram, em resumo, que sobre o caminho existente no prédio deles (RR.) não tem a A. qualquer direito de servidão de passagem, dado que, quando os 3 prédios eram um único prédio, havia outros 4 caminhos de acesso ao que é hoje o prédio da A., mantendo, actualmente, o prédio da A. o acesso por tais outros 4 caminhos; e acrescentam que pelo caminho em causa – que só passou a existir a partir dos anos 50 – apenas muito esporadicamente e com autorização deles/RR. se passou para o prédio da A..

Alegaram ainda que o caminho em causa está largo e transitável devido à intervenção que os RR. fizeram no mesmo e que a A. poderá/deverá fazer o mesmo em relação aos referidos 4 caminhos que dão acesso ao seu prédio, inexistindo por isso qualquer encrave, relativo ou absoluto, não se encontrando assim reunidos os requisitos de que a lei faz depender a constituição de uma servidão legal de passagem, não se tendo também esta constituído quer por destinação de pai de família quer por usucapião.

E, acrescentam, a ter-se a mesma por constituída, deverá a mesma ser julgada extinta por desnecessidade, em virtude da existência dos outros caminhos que dão bom (desde que a A. proceda à sua manutenção e limpeza) e directo acesso ao prédio da A.; razão pela qual concluem pela improcedência da acção e deduzem pedido reconvencional, em que pedem que seja “declarada a extinção da servidão de passagem por desnecessidade da mesma, condenando-se a A/Reconvinda a reconhecer tal extinção e a abster-se de praticar actos conducentes à sua passagem pelo prédio dos RR/Reconvintes”.

A A. replicou, mantendo o alegado na PI e assim se opondo ao pedido reconvencional.

Realizou-se audiência prévia, em que foi admitido o pedido reconvencional, proferido despacho saneador – em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém – identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Após o que, realizada a audiência, a Exma. Juíza proferiu sentença, em que concluiu o seguinte:

“ (…)

 julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

 condenar os réus C (..:) e M (…) a reconhecer que a autora T (…), Lda. é dona e legítima proprietária do prédio misto, sito em Aldeia da Z (...) , denominado “Quinta das K (...) ”, com a área total de 1683299,95 m2, área coberta de 363,35 m2, área descoberta de 1682936,6, inscrito na matriz rústica nº 2978 e na matriz urbana nº (...) .

 condenar os RR. C (…) e M (…) a reconhecer que o seu prédio misto, inscrito na matriz rústica nº (...) e na matriz urbana nº (...) , descrito na conservatória do (...) sob o nº (...) /20041008, está onerado por uma servidão predial de passagem a pé e veículos motorizados, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio da autora que se inicia a partir de um caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) – X (...) e vice versa), caminho de terra batida, com uma extensão de 2098 metros e com uma largura (leito) de 4,5 metros que atravessa o prédio dos réus e continua para o prédio da autora, nos termos constantes da planta de localização que constitui o Doc nº 12 e das aerofotografias do Instituto Geográfico do Exército Português, referente à carta militar nº 216, datadas do ano de 1947, 1958 e 1996,

 condenar os RR C (…) e M (…) a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

 condenar os RR. C (…) e M (…) a absterem-se de, por qualquer meio, estorvar o uso e fruição da passagem referida.

 absolver os RR. C (…) e M (…)s do pedido de pagamento à autora uma indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais a liquidar em execução de sentença.

 julgar improcedente a reconvenção deduzida pelos RR. C (…) e M (…) e em consequência absolver a A. “T (…) Lda.” do pedido reconvencional deduzido pelos Réus.

(…)”

Inconformados com tal decisão, interpuseram os RR. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue/inverta o decidido e que “(…) decida pela condenação da recorrida a reconhecer a extinção da servidão e a abster-se de praticar actos conducentes à sua passagem pelo prédio dos recorrentes.”

A A. respondeu, sustentando a manutenção da sentença recorrida.

Recurso sobre o qual, em 21/02/2018, foi proferida Acórdão, nesta Relação de Coimbra, a “anular a decisão proferida na 1.ª Instância;

 - revogando-se o que se decidiu nos pontos 12, 19 e 55 dos factos provados, para que, no que se vier a decidir, seja ampliado/esclarecido o que, em termos de acesso à inicial Quinta das K (...) , ocorria antes de 09/09/1921, facto/data esta que deve ser mencionada no que venha a ser considerado provado ou não provado.

 - revogando-se o que se decidiu nos pontos 25, 26, 27, 28, 29, 70, 73 e 93 dos factos provados, para que, no que se vier a decidir, seja ampliado/esclarecido/fixado tudo o que se revele relevante para avaliar das condições de utilização dos “outros” 4 caminhos, podendo/devendo acrescentar-se todos os elementos/contributos relevantes que tenham sido omitidos nos factos, sugerindo-se, para que tudo seja apreendido de forma imediata, coerente e lógica, que os factos respeitantes às características e particularidades e às condições de utilização dos “outros” 4 caminhos sejam narrados, na nova sentença a proferir, de forma única, arrumada, coerente e sequencial (podendo, naturalmente, no que se vier a revelar necessário, reapreciar-se outros pontos de facto, já julgados, a fim de evitar contradições, assim como fazer-se uso do art. 5.º/2/b) do CPC, adicionando-se, após o devido contraditório, factos complementares ou concretizadores que venham a resultar)”.

Regressados os autos à 1.ª Instância, entendeu a Exma. Juíza que o cumprimento de tal Acórdão anulatório de 21/02/2018 não exigia a produção de qualquer prova adicional e após consignar tal entendimento nos autos (e notificar as partes para se pronunciarem sobre as “características e particularidades e às condições de utilização dos “outros” 4 caminhos”) proferiu nova sentença em que concluiu do mesmo que na decisão anterior, julgando/decidindo a acção parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente, exactamente nos mesmos termos da anterior sentença.

Mais uma vez inconformados, interpõem os RR. novo recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue/inverta o decidido e que “(…) decida pela condenação da recorrida a reconhecer a extinção da servidão e a abster-se de praticar actos conducentes à sua passagem pelo prédio dos recorrentes.”

Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:

(…)

A A. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a sentença recorrida as normas processuais e substantivas referidas pelos RR, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II – Reapreciação da Decisão de Facto

Referiu-se no anterior Acórdão proferido nos autos (em 21/02/2018) que o essencial da divergência recursiva então manifestada pelos RR./apelantes se circunscrevia a duas questões:

 - à questão da constituição da servidão por destinação de pai de família: e

 - à questão da desnecessidade da servidão.

E que, tendo em vista concluir-se que a servidão não se constituiu por destinação de pai de família e que a única constituída, por usucapião, é desnecessária, os RR/apelantes haviam começado por impugnar a decisão de facto; mais concretamente, os pontos de factos (os 10, 11, 19, 20 e 55 da 1.º sentença) relacionados com a “separação/divisão” do prédio inicial e com a constituição da servidão por destinação de pai de família e os pontos de factos (os 25, 26, 27, 28, 29, 70, 73 e 93 da 1.º sentença) respeitantes às características e particularidades dos outros 4 caminhos (além da servidão invocada) de acesso ao prédio da A..

Impugnações essas que, segundo o anterior Acórdão proferido, “mostram – sem prejuízo de não concordarmos com parte da argumentação expendida e, em função disso, com parte das alterações (de facto) pretendidas – que o quadro factual, respeitante às duas questões (que suscitam a divergência recursiva), tem que ser ampliado e esclarecido”.

Daí que, pelas razões que constam do anterior Acórdão proferido, se haja revogado o que se havia decidido nos pontos 12, 19 e 55 dos factos provados, para que fosse ampliado/esclarecido o que, em termos de acesso à inicial Quinta das K (...) , ocorria antes de 09/09/1921; e se haja revogado o que se havia decidido nos pontos 25, 26, 27, 28, 29, 70, 73 e 93 dos factos provados, para que fosse ampliado/esclarecido/fixado tudo o que se revelasse relevante para avaliar das condições de utilização dos “outros” 4 caminhos.

Pois bem – regressados os autos, na sequência de novo recurso, a este Tribunal da Relação – retomando o raciocínio exposto no anterior Acórdão, constata-se que na nova sentença que foi proferida foram aditadas datas aos então pontos 12, 19 e 55 dos factos provados (da 1.º sentença) e que os então pontos 25, 26, 27, 28, 29, 70, 73 e 93 dos factos provados (da 1.ª sentença) foram redigidos de forma um pouco menos desarrumada[1].

Como é sabido, a anulação duma sentença não prejudica os efeitos do julgado na parte não recorrida – cfr. art. 635.º/5 do CPC, que consagra o princípio da proibição da “reformatio in pejus” – o que significa que só as questões já suscitadas no anterior recurso podem agora, proferida a 2.ª sentença pela 1.º Instância, voltar a ser suscitadas em novo recurso.

Limitação esta que o presente recurso respeita, não se suscitando sequer todas as questões (respeitantes à reapreciação da decisão de facto, que é o que neste passo se “discute”) suscitadas no anterior recurso.

Temos pois, delimitando o objecto do recurso da decisão de facto, que, aqui e agora, os RR/apelantes apenas colocam em crise pontos de facto relacionados com a “separação/divisão” do prédio inicial e com a constituição da servidão por destinação de pai de família.

Efectuada tal “nota de sequência”, debrucemo-nos sobre tal estrito objecto:

A propósito do qual já se expendeu no anterior Acórdão:

“ (…)

Os factos respeitantes à separação/divisão do prédio inicial foram, a nosso ver, alegados pela A./apelada de modo pouco preciso, pelo que, tendo a sentença recorrida seguido a redacção/alegação da A./apelada, a referida imprecisão acabou por repercutir-se no modo como foram reflectidos/fixados os factos provados.

Foi, designadamente, dado como provado que:

(…)

Factos estes que não batem totalmente certo entre si, com os documentos juntos e com o que se relatou na motivação de facto.

E tudo decorre, salvo o devido respeito e como já se referiu, do modo impreciso – sem se referenciar devidamente no tempo tais separações/divisões – como se introduziu/alegou a “separação/divisão” do prédio inicial (artigos 9.º a 12.º da PI).

A ponto de os RR/apelantes, baseando-se apenas nos pontos 10, 11, 19, 20 e 55 (todos sem datas), virem agora invocar a nulidade da divisão da inicial Quinta das K (...) , por, segundo eles, não se encontrar junto o título que, observando a forma prescrita na lei, formalizou a divisão (cfr. art. 57.º e ss. das suas alegações).

Sem razão, naturalmente: basta atentar nos documentos juntos e “usar” as datas que dos mesmos é possível extrair.

Efectivamente, resulta de tais documentos que a divisão do prédio inicial – da “Quinta das K (...) ” inicial – em 3 prédios (no prédio dominante da A., no prédio serviente dos RR. e no prédio que hoje é do Sr. (…) não se fez duma única vez e por isso a divisão não aconteceu num único momento temporal.

Como resulta da escritura pública de divisão, de 09/09/1921, o prédio inicial – a “Quinta das K (...) ” inicial – dividiu-se em 2 prédios, ficando um deles para o avô dos C (...) que venderam à A. e o outro para os sucessores e representantes de (…) (vários deles com o apelido “C (…) assim como o R. marido), sendo este prédio (como se refere no ponto 8) que veio à titularidade e posse dos RR. por sucessão familiar; após o que, por divisão de tal coisa comum (efectuada entre o R. e a sua irmã M (…) – cfr certidões da conservatória do registo predial juntas a fls. 62 e ss e 69 e ss da providencia cautelar), a aquisição (tendo por causa a divisão de coisa comum) do prédio serviente foi e está registada a favor dos RR. desde 08/04/2004 e que a aquisição (tendo por causa divisão de coisa comum) do terceiro prédio (do que é hoje do (…)) foi registada a favor da (…) desde 20/12/2004, assim como foi e está registada a sua posterior aquisição pelo Sr. E(…) (por compra a (…)) desde 16/11/2006.

Temos pois que o prédio inicial – a “Quinta das K (...) ” inicial – começou por ser dividida, em 09/09/1921, em 2 prédios; e que foi um destes dois prédios (o que não ficou para os antepossuidores da A.) que, mais tarde, em data que se ignora mas seguramente anterior a 08/04/2004, foi dividido em mais dois prédios: no prédio que é hoje dos RR. e no prédio que é hoje do Sr. (…)

E o que se acaba de dizer impõe esclarecimentos/rectificações nos pontos 9, 11 e 54 dos factos; devendo passar a constar dos mesmos o seguinte:

9. A referida M (…) e marido J (…) vieram, posteriormente, a vender o prédio rústico 6.979.º (e não a quota-parte do prédio misto) que lhes coube na divisão de coisa comum a um cidadão de nacionalidade espanhola de nome M (…).

11. A Quinta das K (...) autonomizou-se, em 09/09/1921, em duas parcelas prediais: uma que ficou a pertencer à família C (…)e que é a parcela/prédio que esta família vendeu à A. em 06/02/2009; outra parcela/prédio que ficou a pertencer aos sucessores de M (…), tendo esta parcela/prédio, por divisão de coisa comum entre o R. e a sua irmã M (…) (após o terem recebido por sucessão, como se refere no ponto 8), sido dividido, em data anterior a 08/04/2004, em dois prédios, sendo um deles o dos RR. (melhor identificado no ponto7) e o outro (referido no ponto 9) o que hoje pertence ao cidadão de nacionalidade espanhola, de nome M (…)

54. O cidadão de nacionalidade espanhola, M (…) referido em 9 e 11, que tem a aquisição do prédio rústico 6.979.º registada desde 16/11/2006.

E destes esclarecimentos/rectificações – máxime da que consta do ponto 11 – resulta que das duas divisões que, ao longo do tempo, ocorreram no prédio inicial – na “Quinta das K (...) ” inicial – só a primeira, ocorrida em 09/09/1921, tem verdadeiramente relevo jurídico para a constituição da servidão por destinação de pai de família.

Tendo nessa data a “Quinta das K (...) ” inicial sido dividida em dois prédios, temos que, na tese da A./apelada, nesse momento temporal, em 09/09/1921, já o acesso à “Quinta das K (...) ” inicial era efectuado através do caminho identificado nos pontos 12 e seguintes da sentença recorrida; o que, ainda na tese da A./apelada, terá continuado a acontecer, a partir de 09/09/1921, quando tal caminho ficou na parcela/prédio que ficou a pertencer aos sucessores de M (…) e o mesmo continuou a ser usado para aceder à parcela/prédio que ficou para a família C (…) (e que hoje pertence à A.); assim como, ainda na tese da A./apelada, bem mais tarde, quando a parcela/prédio que (em 1921) ficou a pertencer aos sucessores de M (…) foi de novo dividida e o caminho identificado nos pontos 12 e seguintes da sentença passou a ficar no prédio dos RR. (melhor identificado no ponto 7).

Por conseguinte – é onde se pretende chegar – quando nos pontos 12, 19 e 55 se diz:

que “o acesso à quinta das K (...) era também efectuado, desde que há memória, a partir do caminho” identificado nos pontos seguintes;

que tal caminho “sempre serviu [de acesso] quando a Quinta das K (...) era do mesmo proprietário”.

que “quando ainda era um único prédio, a quinta já tinha quatro caminhos de acesso ao seu interior”;

está, porventura sem tal ter sido devidamente reflectido, a falar-se e a dar-se como provado factos que são anteriores a 09/09/1921[2], uma vez que foi nessa data que a Quinta das K (...) deixou de ser um único prédio, que, enquanto “Quinta das K (...) ”, no seu todo, deixou de existir, dando lugar a dois prédios: ao que hoje é da A. e àquele que foi bem mais tarde dividido, dando lugar ao prédio que hoje é dos RR. e ao prédio que hoje é do Sr. E (...) .

Enfim, em síntese, falar de acessos e caminhos à “Quinta das K (...) ”, na sua dimensão inicial (que é o ponto de partida da A/apelada), é falar de algo que, necessariamente, ocorreu antes de 09/09/1921, uma vez que a “Quinta das K (...) ”, na sua dimensão inicial, deixou de existir (foi dividida) em tal data.

E é justamente por isto, máxime em face do que consta da motivação de facto, que o decidido em tais pontos de facto 12[3], 19 e 55 se nos afigura pouco compreensível e, por isso, deficiente e obscuro.

Relatando a motivação de facto da decisão recorrida os depoimentos das pessoas ouvidas em audiência, constata-se que a testemunha com a memória mais antiga dos factos/caminhos (um dos anteriores donos do prédio da A., o Sr. Eng. J (…)) se situa por volta de 1945 – como os RR./apelantes chamam a atenção – pelo que não é apreensível o meio de prova em que a decisão recorrida se baseou para dar como provado o que ocorreu antes de 09/09/1921[4].

Como começámos por referir, tudo decorre, salvo o devido respeito, do modo impreciso – sem se referenciar devidamente no tempo tais separações/divisões – como se introduziu/alegou a “separação/divisão” do prédio inicial, o que levou a que, na decisão de facto da sentença recorrida, não se haja porventura ponderado/reflectido devidamente que, ao dar-se como provado o que consta dos pontos 12, 19 e 55 dos factos provados, se estavam a dar como provados factos ocorridos antes de 09/09/1921.

Efectivamente, uma de duas: ou a motivação de facto não está completa ou, estando, há uma aparente discrepância entre esta e o que se deu como provado, o que tudo conflui para que reputemos como deficiente e obscuro o que se deu como provado nos referidos pontos 12, 19 e 55 dos factos provados.

Concluindo, quanto a este 1.º aspecto da impugnação de facto (em que, quanto ao quadro factual respeitante à separação/divisão dos prédio, se impugnam os factos 10, 11, 19, 20 e 55):

 - nenhuma censura merece o que se deu como provado no ponto 10;

 - altera-se a redacção do ponto 11 no sentido supra referido, assim como as redacções, também no sentido supra referido, dos pontos 9 e 54 (alterações estas ao “abrigo da análise crítica das provas” e de acordo com o art. 607.º/4 do CPC, ex vi art. 663.º/2 do CPC).

 - altera-se a redacção do ponto 20 dos factos no seguinte sentido: “na referida escritura de divisão, de 09/09/1921, não existe qualquer declaração de vontade a propósito de constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão[5];

- revoga-se, pelas razões supra referidas, o que se decidiu nos pontos 12, 19 e 55 dos factos provados, para que seja ampliado/esclarecido o que, em termos de acesso à inicial Quinta das K (...) , ocorria antes de 09/09/1921, facto/data esta que deve ser mencionada no que venha a ser considerado provado ou não provado. (…)”

Exposição/transcrição cujo conteúdo e sentido mantemos.

O que desde logo significa que sobre os pontos 10 e 11 dos factos provados (de ambas as sentenças) já emitimos pronúncia, concluindo mesmo, como consta da transcrição acabada de efectuar, que “nenhuma censura merece o que se deu como provado no ponto 10” e que se “altera a redacção do ponto 11 no sentido supra referido”.

Repare-se:

Não há discussão sobre os prédios da A., dos RR. e do Sr. (…) terem feito parte, de há 100 anos para trás, de um único e mesmo prédio[6]; assim com não se discute que, pela escritura referida no ponto 5 dos factos, tal único prédio foi dividido, em 09/09/1921, em dois prédios[7], ficando uma parte/prédio para os antecessores daqueles (família C(…)) que venderam à A. o que é hoje o prédio identificado no ponto 2 dos factos provados (estando assim completo o “trato sucessivo”, nos último 100 anos, em relação a tal parte/prédio).

Sendo assim, foi a outra parte/prédio de tal divisão – é uma ilação simples e irrefutável – que (tendo ficado para os sucessores de M (…), como se diz no ponto 5 dos factos provados) deu necessariamente origem ao prédio que, como se diz no ponto 8 dos factos provados, “veio à titularidade e posse dos RR. por sucessão familiar e por divisão de coisa comum que efectuaram com a irmã do R. marido”, a qual (irmã) vendeu entretanto o prédio que lhe coube em tal divisão (com o irmão e aqui R.) ao Sr. (…)

É pois indiscutível, a nosso ver, que o que consta dos pontos 10 e 11 dos factos provados da sentença sob recurso não merece qualquer censura (sendo a questão da nulidade, ou não, da divisão ocorrida em 09/09/1921, uma questão de direito cujo lugar próprio de apreciação não ocorre aqui e neste momento).

Passemos pois à divergência que os RR/apelantes dirigem contra o que se deu como provado nos pontos 13, 20 e 25 da sentença ora recorrida (que correspondiam, na 1.ª sentença, aos pontos 12, 19 e 55):

Divergência cuja essência reside em saber se ficou (ou não) provado que o caminho/acesso identificado nos pontos 13 a 19 de factos (da 2.ª sentença) já existia em 09/09/1921, por ocasião da divisão da “Quinta das K (...) ” inicial.

A tal propósito, escrevemos no anterior Acórdão que, face à prova produzida, não era “apreensível o meio de prova em que a decisão recorrida se havia baseado para dar como provado o que ocorreu antes de 09/09/1921”, acrescentando mesmo que “uma de duas: ou a motivação de facto não estava completa ou, estando, há uma aparente discrepância entre esta e o que se deu como provado”; razão por que anulámos a sentença, para que fosse ampliado/esclarecido o que ocorria antes de 09/09/1921.

Assim, face à ampliação/esclarecimento efectuado, entendemos, em linha com o referido no anterior Acórdão, que não ficou suficientemente provado que o caminho/acesso identificado nos pontos 13 a 19 de factos (da 2.ª sentença) já existisse antes de 09/09/1921, por ocasião da divisão da “Quinta das K (...) ” inicial.

O modo impreciso como se introduziu/alegou a “separação/divisão” da “Quinta das K (...) ” inicial – sem se referenciar devidamente no tempo as duas separações/divisões sofridas – levou a que, na produção da prova, não fosse dada a devida atenção à demonstração do que efectivamente acontecia/existia em termos de caminhos/acessos, antes e até 09/09/1921.

O foco probatório respeitante ao caminho/acesso identificado nos pontos 13 a 19 de factos incidiu sobre o tempo mais recente; com sucesso, conduzindo à aquisição de tal direito de servidão por usucapião, modo de aquisição este que os RR./apelantes já não colocam sequer em crise.

Mas sobre o que aconteceu/ia no tempo mais antigo, foi a prova produzida muito débil e frágil.

Como, aliás, consta do relato da sentença recorrida:

O R. C (…), ouvido em declarações de parte, afirmou que o caminho (em discussão nos autos) foi feito, arranjado e composto nos anos 50, desde que o pai tinha carro.

O Eng. J (…) (um dos vendedores à A.), com 78 anos de idade, referiu que, em miúdo, costumava ir à quinta e que sempre utilizou o acesso/caminho que aqui está em discussão.

A M (…), que nasceu nas W (...) há cerda de 70 anos, referiu que, na era de 50/60, existia uma vereda, tendo sido o pai do R. C (...) , quando se casou e comprou carro, que arranjou o caminho para poder passar de carro.

O M (…) com 74 anos e conhecedor da Quinta das K (...) desde “gaiato”, referiu que o caminho antigamente já existia, mas era apenas um “caminho de cabras” ou um “carreiro” e que até aos anos 70, quando o pai do R. comprou um carro, mal se passava.

O F (…), com 78 anos e conhecedor da Quinta das K (...) desde miúdo, referiu que o caminho antigamente também existia, mas era apenas uma rodeira.

Enfim, verdadeiramente, temos apenas uma pessoa – o Eng.º J (…), um dos antigos donos e vendedor do prédio à A. – a falar na existência dum caminho/acesso (próximo do que actualmente existe) em tempos mais antigos, porém, os tempos mais antigos de que falou (em função do que lhe foi perguntado e do modo como lhe foi perguntado) não vão além de 1945.

Como resulta de tudo o que se referiu (designadamente, no primeiro Acórdão), o momento que interessava – a data juridicamente relevante – era o que aconteceu/ia antes e até 09/09/1921, o que nos remete para um tempo tão antigo que excede a memória dos homens, para algo de que nenhum homem vivo observou o princípio/início, para algo que é “imemorial”.

E a prova de que algo aconteceu em tempos “imemoriais” não se faz perguntando os vivos apenas e só pela sua memória directa.

A propósito da posse imemorial, escrevia Guilherme Moreira (Águas, I, n. 20) que “para a posse imemorial, a prova recaía não só sobre os factos presenciados pelas testemunhas, mas sobre o conhecimento que, positivamente ou negativamente, tinham do que se havia passado na geração anterior”[8].

Ou seja, prova-se que algo aconteceu em tempo “imemoriais” quando os vivos não sabem quando começou; e por não o saberem nem por observação directa nem pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores.

Sendo assim, por uma testemunha de 78 anos de idade dizer que, em miúdo, costumava ir à quinta e que sempre utilizou o acesso/caminho que aqui está em discussão, não se pode dizer e dar como provado que tal caminho existe e é utilizado desde tempos imemoriais.

Não foi, é certo, exactamente tal “imemorialidade” que se escreveu no ponto 13 dos factos provados (e no ponto 12 da primeira sentença) – em que, ao contrário, se escreveu “desde que há memória” – porém, parece ter sido com o sentido de “imemorialidade”, em face do que se acrescentou a seguir (que vai para além daquilo de que há memória), que a expressão “desde que há memória” foi, por lapso, utilizada[9].

E se, em face do que o Sr. Eng.º J (…) disse, não pode dar-se como provada a imemorialidade do caminho, também não pode dar-se como provado, por apelo a presunções de experiência, que o caminho (delineado nos pontos 13 a 19 dos factos provados) existe e é utilizado desde “data anterior a 1921”.

Não por não haver testemunhas com mais de 100 anos, não por não haver quem se possa lembrar do que aconteceu antes de 1921, mas sim, como resulta do que já se referiu, por a memória indirecta dos vivos não ter sido sequer inquirida, perguntando-se-lhes, designadamente, pelas informações que lhes chegaram dos seus antecessores.

Mais, se não houvesse, como é o caso, outros caminhos a servir o prédio inicial, se esses outros caminhos não se dirigissem, como é o caso, às povoações adjacentes ( W (...) e Aldeia da Y (...) )[10], se o prédio inicial não fosse (há cerca de 100 anos) duns senhores espanhóis (para onde também havia um terceiro caminho, no sentido oposto ao caminho/servidão em discussão), se não houvesse um quarto caminho por todos designado como o da “entrada principal” da Quinta das K (...) , se não houvesse várias testemunhas a dizer que em meados do século passado o caminho/servidão em discussão não passava duma vereda, enfim, se não houvesse todos estes “ses”, talvez se pudesse retirar a ilação do caminho/servidão em discussão ter necessariamente que existir desde que o prédio era só um e antes da divisão de 09/09/1921, porém, não é o caso.

É verdade que também não foi feita a prova de, apenas após 1921, o caminho/servidão ter passado a existir[11], porém, não é disto, mas da prova da sua existência antes de 1921 (de que não foi feita a prova suficiente), que se trata.

Enfim, é este “non liquet” factual que deve ser reflectido na decisão de facto, ou seja, os factos devem espelhar que não ficou suficientemente provado que o caminho/acesso identificado nos pontos 13 a 19 de factos (da 2.ª sentença) já exista antes de 09/09/1921, por ocasião da divisão da “Quinta das K (...) ” inicial (reflectindo os factos a sua existência apenas a partir de 1945).

Em consequência, altera-se a redacção dos pontos 13, 20, 22 e 25 dos factos provados no seguinte sentido:

“13. O acesso às duas parcelas prediais que resultaram da primeira divisão (em 09/09/1921) da Quinta das K (...) era também efectuado, desde por volta de 1945, a partir de um caminho de terra batida que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) - X (...) e vice-versa).”

“20. Desde por volta de 1945 (estando a inicial Quinta das K (...) já dividida, desde 09/09/1921, em dois prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários diferentes: a família C (…) e os sucessores de (…)) e posteriormente (estando a inicial Quinta das K (...) dividida, desde data anterior a 08/04/2004, em três prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários também distintos) que o referido caminho de terra batida serviu de acesso (desde 1945) aos dois prédios e actualmente aos três prédios: da A., dos RR. e do M (…)

“22. A autora e ante possuidores do seu prédio utilizavam o referido caminho de terra batida para acesso ao seu prédio, a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados, à vista de toda a gente, designadamente dos RR. e dos seus antecessores, sem estorvo ou oposição de ninguém, desde a data de 1945 referida nos factos anteriores.”[12]

“25. Quando ainda era um único prédio, em data anterior a 09/09/1921, a Quinta das K (...) já tinha quatro caminhos de acesso ao seu interior”[13].

E acrescenta-se aos factos não provados um ponto em que se diz que não se provou que:

“O caminho de terra batida referido nos pontos 13 a 19 dos factos provados servisse a Quinta das K (...) quando a mesma, antes e até 09/09/1921, era um prédio único.”

E retira-se dos factos não provados o ponto 28, em que se dizia que não se provou que “o caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR. existe apenas desde os anos cinquenta do século passado”.

É quanto basta para afirmar, em tais estritos termos, a procedência parcial do recurso de facto.


*


III. Fundamentação de Facto

III A – Factos Provados

1. A autora, “T (…), Lda.”, é uma sociedade comercial que se dedica à exploração agrícola, cinegética, animal, florestal e silvicultura.

2. O Prédio misto, sito em Aldeia da Z (...) , denominado “Quinta das K (...) ”, com a área total de 1683299,95 m2, área coberta de 363,35 m2, área descoberta de 1682936,6, inscrito na matriz rústica nº 2978 e na matriz urbana nº (...) , com a seguinte composição e confrontações:

- Parte urbana: casa de rés-do-chão – S. coberta: 363,35 m2 – S. descoberta: 336,65 m2 – Norte, sul e nascente, herdeiros de J (…); poente, (…)

- Parte Rústica: cultura de sequeiro, lameiro, pinhal, mato, pastagem, mata de carvalhos, mata de acácias – Norte, (…); Sul, (…) nascente, fronteira de Espanha; poente, caminho;

encontra-se descrito na conservatória do registo predial do (...) sob o nº (...) /20081231, com inscrição a favor da autora pela AP. (...) de 2009/02/10.

3. Por escritura pública de compra e venda celebrada, no dia seis de Fevereiro de dois mil e nove, no cartório notarial do notário (…), lavrada a fls. 55 a fls. 57, do livro de notas para escrituras diverso número duzentos e quarenta, (…) declararam vender e a aqui autora “T (…), Lda.” declarou comprar o prédio misto supra identificado.

4. O avô das pessoas identificadas como vendedoras na escritura pública referida em 3., F (…) e a esposa I (…), no dia de 20 de Agosto de 1919, por escritura pública de venda e quitação, exarada respectivamente a folhas 7 a 8 verso, do livro nº 59, do Notário (…), do cartório Notarial de (...) , declararam comprar metade da quinta das K (...) a (…) e mulher (…).

5. O referido F (…) e esposa, em 09 de Setembro de 1921, outorgaram escritura pública de divisão amigável com os sucessores e representantes de M (…) proprietários da outra metade da quinta das K (...) , exarada respectivamente nas folhas 45 verso a 48, do livro nº 24, do Notário (…), do Cartório Notarial do (...) .

6. A autora há mais 70, 80 anos que, por si ou pelos seus ante possuidores, anteriores proprietários do prédio misto supra identificado (em 2), vêm possuindo e fruindo tal prédio, como coisa sua, de boa-fé, de forma contínua, à vista de toda a gente, pacificamente, cultivando-o e colhendo os seus frutos, benfeitorizando, usando e pagando os inerentes impostos, sem oposição ou estorvo de ninguém, com a convicção de que o pode fazer por ser a única dona e o reconhecimento geral de que tem tal direito, na ignorância de qualquer vício dos títulos pelos quais adquiriu.

7. O Prédio misto, sito na quinta das K (...) , com a área total de 930000 m2, área coberta de 187 m2 e área descoberta de 929813 m2, inscrito na matriz rústica nº (...) e na matriz urbana nº (...) com a seguinte composição e confrontações: terreno de centeio, lameiro, mato e pastagem e dependências agrícolas com 1210 m2 e casa de cave, rés-do-chão e sótão com 187 m2 – norte, (…); sul, limite de Aldeia da Y (...) ; nascente, caminho de aldeia da Y (...) ; poente, limite de Aldeia da Z (...) , encontra-se descrito na conservatória do registo predial do (...) sob o número (...) /20041008 e aí inscrito a favor dos RR.

8. Tal prédio misto identificado veio à titularidade e posse dos RR. por sucessão familiar e por divisão de coisa comum que efectuaram com a irmã do R. marido, M (…)

9. A referida M (…) e marido J (…) vieram, posteriormente, a vender o prédio rústico 6.979, que lhes coube na divisão de coisa comum, a um cidadão de nacionalidade espanhola de nome M (…)

10. O prédio misto da A., o prédio misto dos RR. e o prédio do M (…)faziam parte de um único prédio misto conhecido e designado por Quinta das K (...) .

11. Este inicial prédio designado de Quinta das K (...) dividiu-se, em 09/09/1921, em duas parcelas prediais: uma que ficou a pertencer à família C(…)e que é a parcela/prédio que esta família vendeu à A. em 06/02/2009; outra parcela/prédio que ficou a pertencer aos sucessores de M (…) tendo esta parcela/prédio, por divisão de coisa comum entre o R. e a sua irmã M (…) após o terem recebido por sucessão, sido dividido, em data anterior a 08/04/2004, em dois prédios, sendo um deles o dos RR (melhor identificado em 7) e o outro (referido em 9) o que hoje pertence ao cidadão de nacionalidade espanhola de nome M (…).

12. O cidadão de nacionalidade espanhola M (…) referido em 9, 10 e 11, tem a aquisição do prédio rústico 6.979 registada desde 16/11/2006.

13.O acesso às duas parcelas prediais que resultaram da primeira divisão (em 09/09/1921) da Quinta das K (...) era também efectuado, desde por volta de 1945, a partir de um caminho de terra batida que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) - X (...) e vice-versa).

14. O seu percurso não teve alterações ao longo dos anos.

15.O caminho referido em 13 é um caminho de terra batida, com uma extensão de cerca de 2098 metros e com uma largura média de 4,5 metros no leito do caminho.

16. O caminho é plano, não apresentando desigualdades relevantes de nível.

17.O leito do caminho, em todo o seu percurso, não tem ervas ou plantas, evidenciando sulcos provocados pelos rodados dos veículos que ali circulam.

18.Uma parte da extensão do referido caminho atravessa o prédio misto dos RR. até chegar ao limite do prédio da A. onde se situa a metade das antigas casas senhoriais da quinta das W (...) , sendo que a outra metade das casas “senhoriais” situa-se na propriedade dos RR.

19.No prédio da A., o referido caminho de terra batida vai até às suas instalações agrícolas.

20. Desde por volta de 1945 (estando a inicial Quinta das K (...) já dividida, desde 09/09/1921, em dois prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários diferentes: a família C (…) e os sucessores de M (...) e posteriormente (estando a inicial Quinta das K (...) dividida, desde data anterior a 08/04/2004, em três prédios distintos e autónomos, pertencentes a proprietários também distintos) que o referido caminho de terra batida serviu de acesso (desde 1945) aos dois prédios e actualmente aos três prédios: da A., dos RR. e do M(…).

21. Na referida escritura de divisão de 09/09/1921 não existe qualquer declaração de vontade a propósito de constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão.

22.A autora e ante possuidores do seu prédio utilizavam o referido caminho de terra batida para acesso ao seu prédio, a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados, à vista de toda a gente, designadamente dos RR. e dos seus antecessores, sem estorvo ou oposição de ninguém desde a data de 1945 referida nos factos anteriores.

23. O transporte de produtos para amanhar e semear terra, a posterior recolha e transporte de frutos e produtos armazenados, bem como o transporte de animais e o transporte de materiais de construção para reparações e reconstruções da casas e instalações agrícolas era feito através do referido caminho.

24. O prédio da A. não confronta com a estrada nacional nº 332.

25. Quando ainda era um único prédio, em data anterior a 09/09/1921, a Quinta das K (...) já tinha quatro caminhos de acesso ao seu interior.

26. O prédio da A. tem quatro entradas que estão ligadas a caminhos públicos.

27. O prédio da A, para além do caminho que passa no prédio dos réus, referido em 13, pode ter os seguintes acessos: o caminho que confronta com a aldeia das W (...) , o caminho que confronta com a fronteira espanhola, o caminho de Aldeia da Y (...) e o caminho da sua entrada principal que dá acesso a um caminho público, que, por sua vez, entronca na E.N. 332.

28. Os outros caminhos de terra batida que ligam o prédio da A. à via pública, são, designadamente, os dois últimos referidos no facto anterior, ou seja, o caminho interno do prédio da Autora e o conhecido e designado pelo caminho da “Aldeia da Y (...) ”, no qual existe um portão de entrada e no chão uma “portadela canadiana” com vista a impedir a entrada e saída de animais.

29. O caminho denominado “interno”, supra referido, liga a entrada principal do prédio da A, a um caminho que, por sua vez, entronca com a E.N. 332.

30. Assim, o prédio da A. tem também como acessos o caminho interno, da sua entrada principal, que dá acesso ao caminho público, que vai entroncar na E.N. 332; e o caminho de Aldeia da Y (...) .

31. O senhor de nacionalidade espanhola, tem também acesso à sua propriedade pelo caminho de Aldeia da Y (...) .

32. Os caminhos de terra batida referidos em 28 a 30, têm extensão de 3.400 metros, e 3.300m, respectivamente; e largura de 2,90m e 2,60m, respectivamente.

33. O caminho interno do prédio da autora tem troços com declives e pendentes acentuados, e é ladeado por azinhas, que constituem espécie legalmente protegida.

34. O caminho de terra batida da Aldeia da Y (...) tem colocados, no seu início e mais adiante do seu percurso, dois portões.

35. Este caminho tem, no seu percurso, algumas valas.

36. E durante os meses de Inverno, mais chuvosos, forma baixios, que acumulam água.

37. Pelo que, no tempo chuvoso, partes do caminho ficam com água.

38. Da aerofotografia, autenticada, do Instituto Geográfico do Exercito Português, referente à carta militar nº 216, datada de 1996, correspondente às coordenadas GPS 40°27'8.30"N 6°51'34.02"W do Google Earth, não aparece evidenciado este caminho.

39. Os caminhos que ligam à aldeia das W (...) e à Aldeia da Y (...) , existem e sempre foram também passagem para quem neles quisesse passar para se deslocar à referidas aldeias.

40. O caminho designado por caminho interno do prédio da A, é um caminho que também liga a aldeia das W (...) , aldeia vizinha ao prédio da A., ao designado por caminho de Aldeia da Y (...) .

41. Este caminho tem duas entradas directas que confrontam com a via pública em dois pontos opostos do prédio: o caminho da aldeia das W (...) que atravessa o prédio da A até ao caminho da Aldeia da Y (...) ; e do outro lado, o caminho da Aldeia da Y (...) que liga ao caminho da Aldeia das W (...) .

42. E dá acesso a um caminho público que entronca na E.N. 332, que se situa a cerca de 300 ou 400 metros da entrada do prédio dos RR, do lado esquerdo, no sentido de marcha E.N. 332 – Quinta das K (...)

43. O seu leito tem a largura referida em 32. e pode ser transitável, a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido, limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos.

44. O designado caminho de Aldeia da Y (...) , tem início na E.N. 332, atravessa um caminho de terra batida que vai entroncar no referido caminho interno do prédio da A, que segue até à aldeia das W (...) e encontra-se transitável desde o troço da E.N. 332, onde entronca, até ao limite da propriedade do senhor de nacionalidade espanhola, e também a partir do início da propriedade do referido proprietário.

45. Por este caminho passam pessoas com interesse pessoal ou profissional em deslocar-se à Quinta das K (...) , podendo ser utilizado pela Autora e seus colaboradores.

46. A passagem por este caminho pode ser feita para a ligação Aldeia da Y (...) - W (...) e vice-versa, podendo ser utilizada por qualquer interessado.

47.Desde que os RR colocaram o aloquete no portão, que passam neste caminho veículos da A., de seus colaboradores, associados ou visitantes, para acederem ao prédio da A.

48.A portadela canadiana existente no chão, referida em 28, é um obstáculo a que os animais passem para aquele caminho.

49 A A. pode utilizar este caminho, que dá acesso da referida estrada nacional até ao interior do seu prédio, sem ter de atravessar o prédio dos RR., passando por um caminho público que entronca com a referida E.N.

50. Este caminho é exterior e circunda parte do prédio da A. pelo lado do caminho da aldeia das W (...) .

51. Foi neste caminho, perto da entrada, que a A colocou uma placa ou reclame em metal, enterrado no solo, com mais de dois metros de altura, com as inscrições “A.C.L.; Quinta das K (...) ; Criador”,

52. A A., seus colaboradores, clientes, convidados, fornecedores podem aceder pela referida entrada na qual se encontra o referido reclame, que serve para indicar o início e a entrada daquela exploração agrícola ao público.

53. Este caminho encontra-se limpo de mato e de outra vegetação, com rodeiras de passagem de viaturas.

54. Existe um acesso interno do prédio da A ao referido caminho.

55. No caminho que liga directamente o prédio da A à fronteira de Espanha, existe um portão com um cadeado.

56. Essa entrada dá acesso ao caminho, bem como à E.N. que dá acesso à localidade espanhola de La Alamedilla, localidade vizinha da aldeia portuguesa das W (...)

57. A A., seus colaboradores, fornecedores e visitantes também utilizam este caminho.

58. O facto de ser território espanhol não impede a entrada dos mesmos.

59. Este caminho tem uma largura nunca inferior a 2,80, está limpo de mato e tem rodeiras de passagem de viaturas.

60. Pode ser utilizado pela A., colaboradores, fornecedores, visitantes, para aceder ao prédio da A. sem ter de atravessar o prédio dos RR.

61. É um caminho transitável, sendo costume o representante legal da A, actualmente, passar por ele.

62. Veterinários, fornecedores e clientes têm acedido ao prédio da A. sem necessitarem de atravessar o prédio dos RR.

63. Tanto um veículo ligeiro de passageiros, como um camião TIR podem transitar nos caminhos referidos em 27., desde que os mesmos sejam arranjados e preparados para o efeito.

64. A A. pode limpar, alargar, alisar, colocar terra, designadamente em buracos, regos e declives, nos caminhos que dão acesso à sua propriedade,

65. O caminho, designado por “caminho interno”, cujo leito tem 2,90m de largura, pode ser transitável, a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido, limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos.

66. Pelo caminho designado por “caminho de Aldeia da Y (...) ”, ou pelos outros três caminhos que dão acesso ao prédio da A podem passar carros, carrinhas e camiões ou semi-trailer, desde que nos caminhos sejam arranjados, preparados e alargados nos termos referidos em 63 a 65.

67. Nos caminhos que confrontam com o prédio da A poderão transitar, tanto um veículo ligeiro de passageiros, como um camião TIR ou semi-trailaer, desde que os mesmos sejam arranjados e preparados para o efeito, envolvendo tal preparação, no sentido de possibilitar o trânsito deste último tipo de veículos, também o seu alargamento.

68. A autora é uma sociedade agrícola, com intuito e fins lucrativos, e que explora o prédio designadamente na área animal e exploração agrícola.

69. A autora além do investimento que realizou para adquirir o prédio - 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros) - tem realizado investimentos para a exploração agrícola.

70. Investimentos que se materializaram e materializam na reconstrução e construção de infra-estruturas agrícolas designadamente;

- Bebedouros e comedouros para os bovinos;

- Armazém para recolha de fardos de palha e outros materiais agrícolas;

- Curral para animais com manga para tratamento veterinário;

- Silo para alimentos de animais.

71.A autora tem projectos de expansão agrícola que passam pela construção de mais infra-estruturas de apoio à actividade agrícola e exploração animal designadamente ampliação do armazém, construção de um novo curral e pequenas barragens.

72. O que implica o transporte para o seu prédio de materiais de construção civil.

73. Bem como o acesso ao prédio da autora de operários da construção civil.

74. A autora já aprovou um projecto urbanístico de ampliação e reconstrução da metade das casas “senhoriais” da quinta das K (...) , que se encontram em ruínas, para fins de agroturismo.

75. O prédio da autora é zona de caça turística concessionada pela portaria nº 391/2010 de 25 de Junho.

76. No prédio da autora existem mais de 84 bovinos de raça limousine.

77. A autora tem dezenas de porcos pretos.

78. A autora tem marca nacional registada no instituto nacional de propriedade industrial, com o número 455624, para os produtos e serviços que produz na quinta das K (...) .

79. Os bovinos são alimentados por fardos de palha e por silagem.

80. Cada fardo de palha pesa em média 250 K e os rolos de silagem 800K cada um.

81. Cada semi-trailer tem um comprimento aproximado de 19 metros e 2.55 metros de largura.

82. Em cada abastecimento, um semi-trailer pode transportar mais de 24.000 mil toneladas de carga, sendo que o peso total do semi-trailer é de cerca de 46 toneladas.

83. Ao prédio da autora deslocam-se vários fornecedores, clientes e veterinários que sempre lá acederam pelo caminho que atravessa o prédio dos réus.

84. Os réus colocaram o primeiro portão na entrada do caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido aldeia da Y (...) - X (...) e vice-versa), e que atravessa o seu prédio.

85. Tal portão não tinha fecho e ou cadeado, sendo que a autora e aqueles que se deslocavam ao seu prédio, bem como os que se deslocavam ao prédio dos réus, utilizavam o caminho sem qualquer constrangimento, abrindo e fechando o portão.

86. Em data não concretamente apurada, os réus colocaram um novo portão, sem fecho ou cadeado, no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio.

87.Em data não concretamente apurada, os réus colocaram cadeados nos portões, impedindo o acesso ao prédio da autora pelo referido caminho.

88. O legal representante da A., que reside na cidade da Covilhã, teve conhecimento de tal fato praticado pelos RR. pelo seu pai, que vive na aldeia de W (...) .

89. Os RR., com o seu comportamento, estão a dificultar a exploração agrícola da autora.

90. Na certidão matricial da parte rústica refere-se que o prédio da A, a nascente, confronta com fronteira de Espanha e a poente confronta com caminho.

91.Os portões referidos em 85. e 86. foram colocados pelos RR para prevenir que os animais da sua exploração agrícola fugissem da mesma e fossem para a estrada ou para os prédios rústicos dos vizinhos.

92. Inexiste qualquer documento ou declaração de vontade de constituição de qualquer direito de passagem ou servidão.

93. O caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR, (em causa nos presentes autos), encontra-se largo e em boas condições de circulação porque os RR tratam dele, limpando-o, refazendo as valetas, desobstruindo-as após a estação invernosa, retirando o mato e outra vegetação, colocando terra para tapar os buracos e os regos provocados pelas chuvas e alisando-o, o que fazem todos os anos, várias vezes.

94. Foi o pai do Réu marido, em data não concretamente apurada, que melhorou o caminho que passa pelo prédio dos RR, para poder passar com o automóvel em segurança.

95. O R marido apresentou queixa junto das autoridades policiais, cujo inquérito correu termos sob o n.º 89/14.5GBALD, na 2.ª Secção do DIAP da Comarca da Guarda.


***

III – B Factos Não provados

Não se provou que:

1. O caminho referido em 13 dos factos provados era, desde que há memória, o único acesso à quinta das K (...) .

2. O caminho de terra batida referido nos pontos 13 a 19 dos factos provados servisse a Quinta das K (...) quando a mesma, antes e até 09/09/1921, era um prédio único.

3. O caminho referido em 13 tem uma largura média de 5 metros e existem troços do caminho que têm uma largura de seis metros.

4. É este caminho que serve, hoje, de único acesso aos três prédios em que se autonomizou a Quinta das K (...) .

5. O referido em 22 e 23 dos factos provados foi feito de uma forma única pelo caminho que passa no prédio dos RR..

6. O caminho, denominado interno, teve origem na acção da natureza que criou regos e valadas batidas pelas passagens e só possibilita a circulação de veículos automóveis ligeiros com altura ao solo superior à normal e com tração às quatros rodas.

7. As valas referidas em 35 dos factos provados são profundas e a área possível de circulação não excede os dois metros.

8. No tempo chuvoso é impossível transitar pelo mesmo.

9. O caminho da “Aldeia da Y (...) ” é recente.

10. Até finais dos anos noventa do século XX, percursos deste caminho eram carreiros que só permitiam a passagem a pé e ou com animal.

11. Trata-se de um acesso à propriedade da A. por favor e por mera tolerância do Srº (…).

12. A circulação pelos caminhos referidos em 27 dos factos provados é limitada no tempo, pois só é possível circular durante alguns períodos do ano, designadamente com tempo seco.

13. No período das chuvas, percursos dos referidos caminhos ficam, completamente intransitáveis e nos restantes troços, verifica-se o atolamento dos veículos ligeiros.

14. O referido em 69 a 72 dos factos provados implica que o transporte de materiais de construção civil tenha de ser feito através de camiões de tara elevada com grua, e o transporte dos operários em camionetas ou carrinhas.

15. A autora pretende iniciar brevemente as obras referidas em 74 dos factos provados.

16. O prédio da Autora é frequentado por larguíssimas dezenas de caçadores.

17. A A. costuma ter, no seu prédio, bovinos e porcos doutros criadores, que são alimentados na sua propriedade até à idade adulta.

18. O transporte dos fardos de palha e rolos de silagem para o prédio da autora tem de ser efectuado por camiões com atrelado (semi-trailer).

19. O acesso de camiões semi-trailer, para o prédio da autora, só é possível através do caminho que entronca na estrada nacional nº 332 (sentido aldeia da Y (...) – X (...) e vice-versa), e que atravessa o prédio dos réus.

20. O transporte de gado bovino e porcos do prédio da autora para os matadouros públicos só é possível em veículos pesados, que apenas podem circular em segurança no caminho que atravessa o prédio dos réus.

21. O acesso referido em 83 dos factos provados era feito diariamente.

22. O referido em 86 dos factos provados ocorreu no fim da primavera do ano civil de 2014.

23. O legal representante da autora questionou os réus sobre as suas intenções, alertando-o para o facto do acesso ao seu prédio ser feito, desde tempos imemoriais, pelo caminho que entronca na estrada nacional nº 322 e que atravessa o prédio destes.

24. Os réus informaram o legal representante da autora que que podia continuar a utilizar e aceder ao seu prédio pelo caminho como sempre o fez.

25. O referido em 87 dos factos provados ocorreu em finais de Setembro de 2014.

26. Os réus com o seu comportamento estão a diminuir o valor económico-financeiro da propriedade da autora.

27. Esta conduta dos réus causa relevantes prejuízos à autora, quer patrimoniais, quer não patrimoniais.

28. A antiga proprietária da Quinta das K (...) sempre passou, desde pelo menos o ano de 1919, pelo caminho que liga à fronteira espanhola.

29. O primeiro portão foi colocado pelos RR em 1980 e o segundo há, pelo menos, sete anos.

30. No caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR desde sempre apenas lá entrava quem estivesse devidamente autorizado a tal.

31.O anterior proprietário do prédio da A apenas lá passou três ou quatro vezes por ano, a pé e com autorização e tolerância dos RR, e apenas a partir de uma determinada altura, depois de existir uma relação de maior confiança entre os RR e o referido vizinho.

32. O que ocorreu há menos de quinze anos, sendo que apenas passou o proprietário e o empregado que tinha ao seu serviço, por algum motivo específico, dado que diariamente o referido empregado utilizava o caminho da entrada principal do prédio da A.

33. O caminho que passa pelo prédio dos RR. apenas contém os sinais da passagem dos seus proprietários e únicos moradores, os RR, e de quem estes autorizam.

34. Caso os RR. não actuassem sobre o caminho nos termos referidos em 93 dos factos provados, o mesmo estaria intransitável.

35. No dia 22/08/2014, pelas 8h00, o pai do representante legal da A, que reside na aldeia das W (...) , tentou passar pelo referido caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR sem autorização, no sentido de quem vem da E.N. 332 para o interior do prédio dos RR, em direcção ao prédio da A.

36. Atendendo a que o portão da propriedade dos RR que se situa perto do largo onde se encontram o caminho de acesso à entrada principal dos RR e o caminho de aldeia da Y (...) se encontrava fechado, tentou quebrar o aloquete que os RR haviam colocado no seu portão.

37. Tendo a R mulher presenciado esta situação, deslocou-se ao local, no sentido de o dissuadir a danificar o aloquete da propriedade dos RR, tendo, em acto contínuo, o referido senhor, colocado as suas mãos à volta do pescoço da R mulher e apertou-o com força.

38. Tendo-se esta conseguido libertar e encontrando-se sozinha no local, não teve alternativa senão fugir para o interior da sua residência, com medo de ser novamente agredida.

39. Este, não tendo conseguido quebrar o referido aloquete, partiu a rede delimitadora do prédio dos RR que se encontra em posição perpendicular em relação à posição do referido portão, passou com o seu veículo e deixou a referida rede quebrada e aberta.

40. Quando a Quinta das K (...) era una, da propriedade da senhora M (…), em 1919 e seguintes, e sendo esta de nacionalidade espanhola e residente em Espanha, não circulava pelo caminho de acesso à entrada principal do prédio dos RR, que não existia, mas apenas pelo caminho junto à fronteira espanhola que confrontava com a referida Quinta, montada num burro ou a cavalo.

41. Onde hoje se situa o caminho de acesso à entrada principal do prédio dos RR, era tudo ocupado por pastagem e árvores.

42. A construção do caminho que passa no prédio dos RR ocorreu nos anos cinquenta do século passado, quando o pai do R marido adquiriu um automóvel.

43. Se a A, clientes, colaboradores, fornecedores, alguma vez passaram no caminho que passa pelo prédio dos réus, exceptuando meia dúzia de vezes por mera tolerância e autorização dos RR em situações específicas, as restantes, a terem ocorrido, foi sem a autorização destes.

44. O caminho referido como de Aldeia da Y (...) desde tempos imemoráveis, ou, pelo menos, há mais de oitenta e até cem anos, era o único caminho que os habitantes da aldeia das W (...) seguiam para alcançarem a Aldeia da Y (...) .

45. Onde se realizavam trocas comerciais porta a porta ou nos apelidados mercados de animais e instrumentos e utensílios agrícolas e de produtos resultantes da actividade agrícola e pecuária e era também utilizado para se dirigirem ao mercado da aldeia de Alfaiates.

46. Tal caminho foi criado há pelo menos cerca de oitenta ou até cem anos, e sempre foi mantido com esse objectivo.

47. Há mais de cinquenta anos, já o R marido e as outras crianças que nasceram na Quinta das K (...) utilizavam esse caminho para irem para a escola primária situada na aldeia das W (...) .

48. Pelo menos desde 1988 até 1993, os RR passaram sempre por esse caminho para transportarem as suas filhas para o estabelecimento do 1.º ciclo do ensino básico que frequentaram desde o 1.º ano até ao 4.º ano de escolaridade, que se situava na aldeia das W (...) ,

49. O que faziam com uma frequência diária, pelo menos duas vezes por dia, para as ir levar e buscar depois das aulas, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, durante o período de tempo referido, de pelo menos cinco anos consecutivos.

50. Os caminhos referidos em 27 dos factos provados encontram-se em terrenos totalmente planos e praticamente em linha recta.

51. O referido em 57 dos factos provados acontece pelo menos com uma frequência semanal.

52. Nunca no caminho que dá acesso à entrada principal do prédio dos RR passou quem quer que fosse, como quer que fosse, mas apenas lá entrou quem estivesse devidamente autorizado a tal.


*


IV – Fundamentação de Direito

Como já se referiu no anterior Acórdão proferido nos autos, a presente acção é no essencial uma acção “confessória”[14] de servidão, competindo assim à A./apelada (proprietária do prédio pretensamente dominante) provar o direito de servidão (de passagem) cuja existência/reconhecimento solicita a final; prova – do direito real de servidão – que em tese pode ser feita pela prova de qualquer um dos concretos factos que consubstanciem algum dos modos de aquisição referidos no art. 1547.º do CC (contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família), sendo que, no caso, foram/estão invocados, a título principal, a destinação de pai de família e, a título subsidiário, a usucapião.

Servidão predial que pressupõe – sendo, na definição legal (art. 1543.º do CC), o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de um outro prédio pertencente a dono diferente – uma relação entre dois prédios (o chamado dominante e o designado serviente), cuja existência/propriedade, no caso, nunca esteve em causa, ou seja, não se discute – nunca se discutiu – a questão da propriedade da A./apelada sobre o pretenso prédio dominante (o misto identificado no ponto 2 dos factos provados) nem a propriedade dos RR./apelantes sobre o pretenso prédio serviente (o misto identificado no ponto 7 dos factos provados).

Efectivamente, o cerne da discussão/litígio sempre se situou apenas e só na servidão de passagem e na consequente violação da mesma; discussão/litígio que, ao contrário do que é habitual neste tipo de acções reais, não “desemboca” apenas e só na posse e na usucapião, uma vez que, como se acaba de referir, a A/apelada começa por invocar, a título principal (antes da subsidiária usucapião), como primeiro modo de aquisição da servidão, a destinação de pai de família.

Objecto processual este que foi alargado pelos RR. na contestação/reconvenção, ao pedirem, a título subsidiário (para o caso de ser reconhecida a servidão), a extinção da servidão, por desnecessidade.

A este objecto processual, assim esquematicamente traçado, a sentença recorrida deu as seguintes respostas:

 - reconheceu a existência da pretendida servidão;

 - reconheceu que a mesma foi constituída por destinação de pai de família;

 - ponderou que, caso assim não se entenda, deverá a mesma ser considerada constituída por usucapião, o que apenas não se reconheceu e declarou a final por entender que tal ficou prejudicado pela procedência do modo de aquisição invocado a título principal;

 - denegou a extinção de tal servidão por desnecessidade, por, tendo sido constituída por destinação de pai de família, não lhe ser aplicável a causa de extinção do art. 1569.º/2 do C. Civil; e

 - observou que, mesmo a entender-se de modo diferente (que o art. 1569.º/2 do C. C. é aplicável às servidões constituídas por destinação de pai de família), analisando a factualidade provada, não ficou demonstrada a desnecessidade, reconvencionalmente invocada/pedida, da servidão.

“Respostas” estas de que os RR./apelantes divergem tão só na parte em que se reconheceu que a servidão foi/está constituída por destinação de pai de família e na parte em que se considerou, analisando a factualidade provada, que não ficou demonstrada a desnecessidade da servidão, ou seja, dito doutro modo, os RR/apelantes aceitam que o que ficou e foi dado como provado é de molde a dever considerar-se constituída a invocada servidão de passagem, porém, “apenas” por usucapião, assim com não discutem que uma servidão constituída por destinação de pai de família não é, à face da letra da lei (referido art. 1569.º/2 do C. Civil), susceptível de ser extinta por desnecessidade.

Sendo este, em síntese, o sentido essencial da presente apelação[15], temos que, como já referimos, a divergência recursiva dos RR./apelantes se circunscreve:

1 - À questão da constituição da servidão por destinação de pai de família: e

2 – À questão da desnecessidade da servidão, sendo que a esta 2.ª questão apenas se verdadeiramente chegará se a primeira tiver resposta negativa (se a servidão não se tiver constituído por destinação de pai de família)[16].

Começando pela primeira questão, ou seja, pela constituição da servidão por destinação de pai de família:

Dispõe-se a tal propósito no artigo 1549º do CC – com a epígrafe “constituição por destinação de pai de família” – que “ se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com o outro, serão esses sinais havidos como prova de servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.

Significa pois tal preceito que, quando fracções/partes de um determinado e concreto prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, os sinais visíveis e permanentes de serventia de uma fracção/parte para com a outra, são havidos como servidão (direito de servidão), que assim se considera constituída no preciso momento em que ocorre a separação, o que só não acontecerá (tal constituição de servidão) se outra coisa houver sido declarada no documento de separação do prédio.

Podemos pois dizer que a constituição de tal servidão supõe:

 - um mesmo prédio, com duas fracções, que tenha pertencido ao mesmo dono[17];

 - haver sinais visíveis e permanentes (em pelo uma das partes/fracções) que revelem serventia de uma fracção para a outra; e

 - ocorrer a separação do domínio sobre tais fracções e não haver, no documento relativo à separação, uma declaração contrária à servidão.

E, aplicando o direito convocável aos factos dados como provados, temos como preenchidos o 1.º e o 3.º requisitos, outro tanto não sucedendo, porém, quanto ao 2.º requisito.

Efectivamente, em 09/09/1921, como consta dos factos, foi a inicial “Quinta das K (...) ” dividida em dois prédios, sem que, como consta do ponto 21 dos factos provados, “da referida escritura de divisão conste qualquer declaração de vontade a propósito da constituição/manutenção/extinção de encargo ou servidão”; ou seja, ocorreu a separação do domínio sobre o prédio inicial e verifica-se o “requisito negativo” de não existir declaração oposta à constituição da servidão[18], o que, tudo junto, preenche o último requisito referido.

Por outro lado, até tal data, sendo a inicial “Quinta das K (...) ” um único prédio, pertenciam as duas fracções (em que foi dividida) aos mesmos comproprietários, pelo que se deve considerar que as duas fracções (em que o domínio foi separado) pertenciam ao mesmo dono[19], o que preenche o primeiro requisito referido.

O que, porém, não ficou provado foi que existissem os sinais visíveis/aparentes e permanentes reveladores da serventia de uma fracção para a outra, “relação de serventia” que, caso tivesse ficado provada, se transformaria – com a separação/autonomização das fracções e a inexistência de declaração oposta à constituição da servidão – em direito de servidão predial, constituído por destinação de pai de família.

Com este 2.º requisito exigem-se (para a constituição da servidão por destinação de pai de família) o mesmo tipo de sinais que, caso estivéssemos perante prédios pertencentes a donos diferentes, denunciaram uma servidão aparente (e susceptível de ser constituída por usucapião – cfr. 1543.º e 1293.º/a) ambos do CC), ou seja, também aqui, como na usucapião, serventias não aparentes não justificam a sua “transformação” e a constituição duma servidão por destinação de pai de família.

Ora, repete-se, não se provou que tal “aparência” de serventia existisse antes de 1945 (como resulta dos ponto 13 e ss dos factos provados) entre as fracções/partes em que se dividiu a inicial Quinta das K (...) , razão pela qual, não se provando haver sinais visíveis e permanentes (em pelo uma das partes/fracções) reveladoras da serventia de uma fracção para a outra, aquando da divisão do domínio, em 09/09/1921, não ficou preenchido o 2.º requisito supra enunciado.

Significa tudo isto, em conclusão, que a A. falhou na prova do modo de aquisição invocado a título principal – destinação de pai de família – para a existência de direito de servidão (de passagem) cuja reconhecimento solicita a final, razão pela qual tem tal pedido – respeitante à aquisição da servidão por tal modo – que ser julgado improcedente, com a consequente revogação do que a seu propósito foi decidido na sentença recorrida.

O que nos remete para segunda questão supra enunciada, ou seja, para a questão da desnecessidade da servidão.

A sentença recorrida, como já se referiu, considerou que a servidão invocada também se terá constituído por usucapião e, quanto a este modo de constituição, nada há, em termos divergentes, que possa ser dito ao que foi exposto na decisão recorrida, dando-se o caso de nem sequer os RR/apelantes suscitarem qualquer tipo de divergência recursiva quanto à verificação de tal modo de constituição (por usucapião) da servidão, antes se “limitando” a sustentar, em divergência com a sentença recorrida, que, em face dos factos, se deve considerar demonstrada a desnecessidade, reconvencionalmente invocada/pedida, de tal servidão (que, repete-se, aceitam estar constituída por usucapião).

É justamente por tudo isto que damos por adquirida nos autos a constituição, por usucapião, duma servidão de passagem (sobre o prédio id. no ponto 7 dos factos e a favor do prédio identificado no ponto 2 dos factos), com o conteúdo e extensão constante dos pontos 13 a 19 dos factos provados, saltando de imediato para a questão, reconvencionalmente suscitada, da desnecessidade de tal servidão (constituída por usucapião).

Em face dos factos, trata-se de questão cuja solução, seja ela qual for, não é, a nosso ver, pacífica e indiscutível.

Vejamos, começando pelo direito[20] :

Dispõe o artigo 1569º/2 do CC, que “as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”; acrescentando no seu n.º 3 que “o disposto no número anterior é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (…)”.

Solução legal esta inteiramente compreensível.

Efectivamente, consistindo a servidão predial, segundo a noção dada pelo artigo 1543º do CC, “o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (…)” e podendo levar ao aumento do valor do prédio dominante (através do qual são gozadas as utilidades objecto da servidão) em detrimento do valor do prédio serviente (cfr. art. 1544º do C. C.), tornando-se desnecessário o gozo de tais utilidades, por razões ligadas à regular utilização do prédio dominante, é compreensível que a servidão possa/deva cessar.

Dito de outro modo, representando o encargo/servidão uma excepção ao princípio geral do conteúdo tendencialmente ilimitado do direito de propriedade (cfr. art. 1305º do CC), é compreensível que se extinga, enquanto excepção/compressão de tal princípio geral, se desnecessária, de molde a que o direito de propriedade retome a plenitude da sua vocação originária.

Parte o artigo 1569º/2 e 3 do CC da ideia[21] de que devem ser “libertados” os prédios onerados de encargos desnecessários que os desvalorizam, sem que, em contrapartida, valorizem o prédio dominante; considera que onde não há necessidade não se justifica o encargo, que, em princípio, é causa de prejuízos para o prédio serviente.

Ideia esta, da “desnecessidade”, que, enquanto causa de extinção de servidões, teve por fonte o § único (acrescentado pela Reforma de 16 de Dezembro de 1930) do art. 2279º do C. Civil de Seabra[22], não sofrendo, na passagem para o actual C. Civil, qualquer alteração conceitual; razão pela qual se mantém actual o estudo sobre a “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais” (publicado na Separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, Ano 1964), da autoria do Prof. Oliveira Ascensão, invariavelmente citado nas decisões dos tribunais que se debruçam e apreciam uma questão de desnecessidade de servidão.

E em que é consistia, para o Prof. Oliveira Ascensão, a desnecessidade?

Dizia ele: “a desnecessidade tem de ser objectiva, típica e exclusiva da servidão, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assentaria na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito. A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta, graças a uma utilização "latu sensu" de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante surge-nos a figura da desnecessidade” (ob. citada, pág. 10). E continuando, acrescentava mais à frente: “a desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não no prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante.” (ob. citada, pág. 12).

Partindo daqui – e fazendo a exegese de tais ensinamentos – uma parte significativa da nossa jurisprudência[23] passou a considerar que a desnecessidade capaz de conduzir à extinção da servidão tem de se caracterizar por uma mudança objectiva no prédio dominante (em virtude da qual a servidão deixou de se revestir de qualquer utilidade para tal prédio dominante) e, além disto, de se verificar em momento posterior e superveniente à respectiva constituição.

Tese a que, com todo o respeito, não aderimos inteiramente.

Pelo seguinte:

Previa o já referido § único do art. 2279º do Código de Seabra – que, como já referimos, é a fonte do actual 1569.º/2 – três hipóteses em que a desnecessidade da servidão se podia verificar:por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.

Hipóteses que o actual art. 1569º/2 deixou de prever, porém – é o ponto de partida do nosso raciocínio divergente com a referida corrente jurisprudencial – não o fez por entender que as mesmas não constituam casos de desnecessidade, mas sim, bem diferentemente, por entender que tal previsão se apresenta como redutora (enquanto enumeração taxativa) e desinteressante (como indicação exemplificativa)[24].

Ou seja, pode/deve continuar a considerar-se que se verifica a desnecessidade duma servidão (constituída por usucapião) se a utilidade que ela proporciona pode ser obtida por outro meio igualmente cómodo; a ratio legis – como resulta da transcrição efectuada – foi a de dar maior liberdade de apreciação aos tribunais e não a inversa; por outras palavras, foi a de não espartilhar numa enumeração taxativa (como a do § único do art. 2279º do Código de Seabra) a apreciação dos tribunais.

Normalmente – não custa reconhecê-lo – a “desnecessidade” resultará duma alteração das circunstâncias do prédio dominante, porém, tal não pode/deve impedir, caso tais circunstâncias já ocorressem no momento da constituição da servidão por usucapião, que o proprietário do prédio serviente requeira a extinção de um encargo (para o seu prédio) que não tem justificação.

A desnecessidade, como causa ou fundamento da extinção da servidão – ponto em que se concorda com a corrente jurisprudencial citada – tem sempre que ser objectiva, típica e exclusiva do prédio dominante, não se confundindo com a desnecessidade subjectiva, que assenta na ausência de interesse, vantagem ou conveniência pessoal do titular do direito.

E será mesmo, via de regra, superveniente.

Porém, não tem que ser sempre superveniente, uma vez que o que a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador tal avaliação, segundo um juízo de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo.

Juízo de proporcionalidade que deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso; na existência de alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente, uma vez que, v. g., está garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente.

O que se acaba de dizer (nos dois anteriores parágrafos) suscita, antevê-se, a seguinte crítica:

A servidão predial, como já se referiu, pode ter como objecto quaisquer utilidades do prédio serviente; sendo essencial e imanente à servidão predial/real a possibilidade de essas utilidades serem gozadas por intermédio do prédio dominante e a este trazerem proveito. E justamente por ser assim – por ter que haver utilidades do prédio serviente a ser gozadas por intermédio do prédio dominante e a este trazerem proveito – a válida constituição do tipo legal do direito de servidão supõe “ab initio” a “necessidade”, pelo que a “desnecessidade” (duma servidão validamente constituída) só pode ser, forçosa e logicamente, superveniente[25].

Trata-se, todavia, com todo o respeito, duma crítica algo sofística.

As “utilidades” que preenchem o conteúdo atípico do direito real de servidão e que trazem proveito ao prédio dominante – proveitos que, como já referimos, não têm que ter natureza económica – nem sempre são estritamente indispensáveis e necessárias ao prédio dominante.

O caso dos autos/recurso – com os 4 acessos ao prédio da A. na data em que o caminho de servidão sob discussão se constituiu – é disto elucidativo; recorrentemente, deparamo-nos nos processos com situações em que a servidão de passagem, constituída por usucapião, é a favor dum prédio que sempre confinou com estradas ou caminhos públicos[26].

E, dir-se-á, se os proprietários do prédio serviente se não opuseram à posse duma tal servidão durante o tempo suficiente à sua aquisição por usucapião – se, apesar da existência de outros caminhos ou servidões, consentiram na utilização do seu prédio para acesso ao prédio vizinho – é porque entenderam ou admitiram que tal era útil e proveitoso ao prédio dominante.

Porém, há que reconhecer que a utilidade e o proveito que o proprietário do prédio serviente entendeu e admitiu pode não ser ou corresponder a uma estrita necessidade do prédio dominante.

É susceptível de integrar o válido conteúdo duma servidão a “mera” utilidade (do prédio serviente a ser gozada por intermédio do prédio dominante); sendo que a “necessidade”, naturalmente e por maioria de razão, também integrará o conteúdo válido duma servidão (em certos casos, até dá lugar à constituição coerciva da servidão), todavia, para o nosso raciocínio, interessa reter que basta a “mera” utilidade.

Efectivamente, concretizando um pouco, em relação a um prédio que tem um único caminho/acesso, o estabelecimento dum segundo caminho/acesso é algo que não é certamente inútil; não será estritamente necessário, mas inútil é que por certo não se pode dizer que seja na generalidade dos casos e, neste contexto, não parece que sobre este segundo caminho/acesso possa dizer-se que padeça de “desnecessidade originária”.

Enfim – é onde pretendemos chegar – a “desnecessidade originária” (que conduz à nulidade do acto constitutivo da servidão por violação do princípio da tipicidade) não pode ter o mesmo recorte conceitual da “desnecessidade” que preenche a causa de extinção das servidões, prevista no art. 1569.º/2 do C. Civil; aquela tem que ser mais exigente e exprimir uma ideia de total e absoluta inutilidade e esta, sim, deve “contentar-se” e ficar por uma ideia de dispensabilidade.

Em síntese, se se pode constituir por usucapião um caminho/servidão que não é totalmente necessário e imprescindível ao prédio dominante, não se deve depois exigir, para a apreciação da sua possível extinção por desnecessidade, a sua total e absoluta inutilidade (uma vez que também não foi a sua total e absoluta utilidade que se exigiu no momento da sua constituição); e muito menos circunscrever a desnecessidade à que for superveniente (à constituição da servidão), pois que, naturalmente, se “ab initio” o caminho/servidão não era totalmente necessário, será sempre difícil divisar e destrinçar a parte da desnecessidade que é superveniente.

É por tudo isto que não aderimos à tese da desnecessidade da servidão ter forçosamente que radicar numa alteração objectiva verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão e de molde a retirar-lhe toda a utilidade.

Embora uma servidão traga proveito ao prédio dominante – é este o seu requisito existencial – esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante.

Nesta hipótese, quando alguém adquiriu, por usucapião, um direito de servidão sobre outro prédio em que a sua utilidade não justifique esse encargo, deve ser concedido, ao proprietário do prédio onerado, o direito de requerer a extinção de tal encargo, por desnecessidade deste; desnecessidade, como fundamento na extinção da servidão, que deve assim aferir-se em relação ao momento da introdução da acção em juízo (ao momento do exercício do direito potestativo extintivo).

Sintetizando o que vem de ser dito[27], o que a nosso ver a lei pretende é uma ponderação actualizada da necessidade do encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador tal avaliação, segundo um juízo de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo; em que devem ser ponderadas as circunstâncias concretas de cada caso, a existência de alternativa que sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante – na medida em que esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente – permite eliminar o encargo incidente sobre o prédio serviente.

O que também significa que não basta (para a extinção da servidão por desnecessidade) que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que este outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não, desproporcionalmente, agravadas.

É no fundo, encurtando palavras e razões, algo semelhante à 3.ª hipótese prevista no § único do antigo art. 2279º do Código de Seabra, isto é, a desnecessidade da servidão verifica-se por “o proprietário dominante poder fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.

Tendo isto presente, revertendo aos factos dos autos/recurso, estamos perante um questão cuja solução, como já referimos, não é pacífica e indiscutível.

Comecemos por (tentar) alinhar os factos de forma clara, coerente e lógica.

Além da servidão de passagem (cuja extinção por desnecessidade se pede), tem o prédio (dominante) da A. mais 4 caminhos e “4 entradas que estão ligadas a caminhos públicos” (ponto 26 dos factos).

Quanto às características e particularidades de cada um dos caminhos/acessos ao prédio da A.[28]:

Quanto à servidão de passagem:

É um caminho que entronca na EN nº 332 (sentido Aldeia da Y (...) - X (...) ); atravessa o prédio misto dos RR. até chegar ao limite do prédio da A. (onde vai até às suas instalações agrícolas); é de terra batida, plano, com o leito sem ervas ou plantas, não apresentando desigualdades relevantes de nível; tem uma extensão de cerca de 2.098 metros (desde a E. N. n.º 332) e uma largura média de 4,5 metros no leito do caminho; é utilizado pela A. para acesso a pé, de tractor, veículos ligeiros e pesados (para amanhar e semear terra, a posterior recolha e transporte de frutos e produtos armazenados, bem como o transporte de animais e o transporte de materiais de construção para reparações e reconstruções da casas e instalações agrícolas).

Quanto ao denominado “Caminho de Espanha”:

É um caminho que dá acesso à E.N. que liga à fronteira de Espanha e à localidade espanhola de La Alamedilla (localidade vizinha da aldeia portuguesa das W (...) ).

Tem uma largura nunca inferior a 2,80 (incluindo as bermas, até à vedação e azinheiras, são no total 4,60 metros de largura; tendo 4,10 metros junto ao portão), está limpo de mato e tem rodeiras de passagem de viaturas; é um caminho transitável (embora o leito apresente algumas irregularidades); e desde o prédio da A. até à localidade espanhola de La Alamedilla são 2.500 metros.

Pode ser utilizado pela A., colaboradores, fornecedores, visitantes, para aceder ao prédio da A. sem ter de atravessar o prédio dos RR.

Quanto ao “Caminho de W (...) ”:

No seu início tem 3,10 metros de largura e tem uma inclinação acentuada.

No seu percurso mais estreito, tem 2,80 metros; é muito irregular e nalguns pontos do seu percurso tem uma inclinação muito acentuada.

Desde o seu início, até ao portão que dá acesso ao prédio da A., percorrem-se 900 metros; e no interior do prédio da A. mais 1.000 metros.

Quanto ao Caminho da Aldeia da Y (...)

Tem a extensão de 3.300 metros (até à EN 332) e a largura (na parte mais estreita) de 2,60 m (sendo 3,20 metros no seu ínicio).

Tem colocados, no seu início e mais adiante dois portões.

Tem, no seu percurso, algumas valas; durante o tempo chuvoso dos meses de Inverno forma baixios, que acumulam água, ficando assim partes do caminho com água.

Encontra-se limpo de mato e de outra vegetação, com rodeiras de passagem de viaturas.

Por este caminho passam pessoas com interesse pessoal ou profissional em deslocar-se à Quinta das K (...) , podendo ser utilizado pela Autora e seus colaboradores.

A passagem por este caminho pode ser feita para a ligação Aldeia da Y (...) - W (...) e vice-versa, podendo ser utilizada por qualquer interessado.

A A. pode utilizar este caminho, que dá acesso da referida estrada nacional até ao interior do seu prédio, sem ter de atravessar o prédio dos RR., passando por um caminho público que entronca com a referida E.N. 332.

Quanto ao denominado “Caminho Interno”:

Liga a entrada principal do prédio da A. a um caminho que, por sua vez, entronca com a E.N. 332.

Tem extensão de 3.400 metros e a largura de 2,90 m (e incluindo as bermas e até à vedação e azinheiras, tem 4,80 metros de largura)

Tem troços com declives e pendentes acentuados e é ladeado por azinheiras.

É transitável a pé, de bicicleta, de mota, de carro, ou mesmo de tractor, carrinha, camião ou semi-trailer, desde que mantido limpo e também alargado, designadamente nos troços em que possui declives acentuados, para permitir a passagem deste último tipo de veículos.

Acrescentando-se, em relação a todos estes últimos 4 caminhos, que pelos mesmos podem passar carros, carrinhas e camiões TIR ou semi-trailer, desde que sejam arranjados e preparados, envolvendo tal preparação, para possibilitar o trânsito deste último tipo de veículos, também o seu alargamento; e que a A. pode limpar, alargar, alisar, colocar terra, designadamente em buracos, regos e declives de tais caminhos. E acrescentando-se, em relação ao caminho de servidão, que se encontra largo e em boas condições de circulação porque os RR. tratam dele, limpando-o, refazendo as valetas, desobstruindo-as após a estação invernosa, retirando o mato e outra vegetação, colocando terra para tapar os buracos e os regos provocados pelas chuvas e alisando-o, o que fazem todos os anos, várias vezes.

E passando a efectuar o juízo de proporcionalidade e de ponderação de todas estas circunstâncias, características e particularidades, começaremos por dizer não vemos razões para considerar que as utilidades que o caminho de servidão proporciona não possam vir a ser também proporcionadas, com similar comodidade e regularidade, pelos denominados “Caminho da Aldeia da Y (...) ” e “Caminho de Espanha”.

Os declives/inclinações acentuados existentes, em alguns pontos dos seus percursos, nos denominados “Caminho Interno” e “Caminho de W (...) ” levam a considerar que estes dois caminhos serão acessibilidades que não garantirão a mesma comodidade do caminho de servidão.

Mas, quanto aos denominados “Caminho da Aldeia da Y (...) ” e “Caminho de Espanha”, face às suas extensões, larguras e regularidades, apresentam-se como alternativas que, com um mínimo de prejuízo para o prédio da A. (dominante), permitem garantir uma acessibilidade idêntica à do caminho de servidão, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio da A..

As diferenças de extensão entre estes 3 caminhos não são significativas (até por não estarmos perante percursos a realizar necessariamente a pé), não havendo assim uma incomodidade decorrente da maior distância a percorrer.

São mais estreitos o “Caminho da Aldeia da Y (...) ” e o “Caminho de Espanha” (2,60 metros e 2,80 metros, respectivamente, nos pontos mais apertados), é certo, que o caminho de servidão (com 4,50 metros), porém, mesmo nos pontos mais estreitos, têm a largura suficiente para proporcionar as utilidades facultadas pelo caminho de servidão, sendo identicamente planos, limpos de matos e transitáveis; permitindo inclusivamente, em face das suas larguras, que por eles passem a maioria dos veículos pesados.

Precisam de ser arranjados e preparados – envolvendo tal preparação, para possibilitar o trânsito de pesados semi-trail, também o seu alargamento – mas deu-se como provado que a A. pode limpá-los, alargá-los, alisá-los, ou seja, que a A. pode proceder, em relação a tais dois caminhos, como os RR. fazem em relação ao caminho de servidão (que, segundo se provou, se encontra largo e em boas condições de circulação porque os RR. tratam dele, limpando-o, refazendo as valetas, desobstruindo-as após a estação invernosa, retirando o mato e outra vegetação, colocando terra para tapar os buracos e os regos provocados pelas chuvas e alisando-o, o que fazem todos os anos, várias vezes).

Não obstante, sendo o caminho de servidão mais largo e estando arranjado percebe-se que A. pretenda mantê-lo; mas, como supra se expôs e defendeu, “inutilidade” e “desnecessidade” não são, para o que aqui interessa, conceitos idênticos.

A nosso ver, repete-se, uma servidão pode trazer proveito ao prédio dominante, mas a manutenção desse proveito pode não se justificar, em face do encargo que resulta para o prédio serviente e da utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante; nesta hipótese, quando a utilidade não justifica o encargo, a servidão pode/deve ser extinta por desnecessidade.

Enfim, o cerne do juízo da concreta ponderação que estamos a efectuar acaba por estar no “balanço” entre a exiguidade da utilidade conferida pela servidão e o “peso” que a manutenção da servidão representa para o prédio serviente.

E pelo primeiro termo (de tal “balanço”) não há obstáculo à conclusão pela desnecessidade, uma vez que as vantagens da servidão – visto que existem duas alternativas (para o prédio dominante) com um mínimo de prejuízo para este (o maior prejuízo serão mesmo os arranjos que a A. terá que passar a fazer nos caminhos alternativos) – não são significativas.

Sucede, porém, quanto ao segundo termo (de tal “balanço”), que não vemos que a manutenção da servidão seja um encargo que, só por si, traga um significativo ónus/desvalorização para o prédio serviente e que o mesmo obtenha significativas vantagens em dela se libertar.

A ponderação actualizada da “necessidade” da servidão, avalia se existe uma alternativa que garanta uma acessibilidade, com idêntica comodidade, ao prédio dominante, tendo, porém, como ratio, que a explicação para a extinção está em que não se justifica manter algo que impede a fruição normal do prédio serviente[29].

Ora – é o ponto – é justamente este impedimento à fruição normal do prédio serviente que a manutenção da servidão não preenche.

Há, como sempre, que respeitar os factos provados[30], mas uma servidão com 4,5 metros de largura, com a utilidade de por ela poderem passar pesados semi-trail, constituída segundo a sentença recorrida em data anterior a 1921, é bastante inabitual.

O que temos, bem vistas as coisas, é um caminho de terra batida com 4,5 metros de largura, caminho esse que, sendo o caminho de acesso ao prédio dos RR., estes foram ao longo dos anos/décadas arranjando e alargando; e que o exercício da servidão iniciado quando o caminho tinha seguramente outras características se exerce agora pelo caminho alargado e melhorado de acesso ao prédio dos RR..

A propósito da extensão e exercício das servidões, dispõe-se no art. 1564.º do C. Civil que as servidões são reguladas nos termos do respectivo título e que, “na insuficiência do título, observar-se-á o disposto nos artigos seguintes”; logo se acrescentando-se no artigo 1565.º que a “ (…) servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação” e que “ (…) em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente

A circunstância do art. 1564.º fazer referência discriminada à “extensão e ao exercício da servidão”, não dá lugar a dúvidas quanto à relevância do título naqueles casos em que, ao lado dos aspectos qualitativos, que definem a fisionomia ou a natureza do encargo (servidão de águas, servidão de vistas, etc), há aspectos quantitativos, que interessam à concretização prática do direito e à fixação dos seus limites.

Se o título constitutivo é exaustivo, explícito e inequívoco quanto à extensão e exercício da servidão – dizendo, por exemplo, que a servidão de passagem é estabelecida para a exploração agrícola do prédio dominante ou para a cultura duma horta ou vinha – o dono do prédio dominante não poderá utilizar a passagem para qualquer outro género de exploração ou para outros fins a que o prédio venha a ser destinado.

Em tal hipótese, as necessidades do prédio dominante que a servidão tem em vista satisfazer “entram” e fazem parte do próprio conteúdo da concreta servidão, pelo que utilizar a servidão para outros fins configurará uma verdadeira alteração do conteúdo da servidão.

No caso, o “título” da servidão sub-judice é o que (sem censura dos RR.) se deu como provado, ou seja, uma servidão de passagem para transportar produtos, amanhar e semear terra, recolher e transportar frutos e produtos armazenados, bem como animais e materiais de construção, iniciada há mais de 70 anos, com 4,5 metros de largura, podendo por ela passar inclusivamente pesados semi-trail[31].

Ora, como referimos, um “título” com este conteúdo e extensão só se terá formado, a nosso ver, por a servidão aproveitar as utilidades daquilo que é o caminho de acesso ao prédio dos RR., ou seja, com ou sem manutenção da servidão, a fruição da respectiva parcela de terreno do prédio dos RR. continuará a ser a mesma, pelo que o prédio dos RR. não obtém significativas vantagens ao libertar-se da servidão.

Não estamos perante aquela típica situação em que a parcela de terreno em causa, deixando de ser caminho de servidão, passará a ser agricultada (em que a servidão é um encargo que acaba por impedir o proprietário de retirar as utilidades que a porção de terreno adstrita à servidão normalmente proporciona); aqui, a parcela de terreno em questão, mantendo-se ou extinguindo-se a servidão, continuará a proporcionar tão só as utilidades que um caminho proporciona.

Enfim, sendo assim – sendo exíguo o “peso” que a manutenção da servidão representa para o prédio serviente, embora as vantagens da servidão não sejam (por existirem duas alternativas para o prédio dominante com um mínimo de prejuízo para este) significativas para o prédio dominante – não há fundamento, a nosso ver, para considerar totalmente preenchido o conceito de desnecessidade do art. 1569.º/2 do CC e para declarar a servidão (constituída por usucapião) extinta por desnecessidade, o que, em conclusão final, conduz à improcedência, nesta parte, da apelação e à correspondente improcedência da reconvenção.

Mas, como é evidente, a não extinção da servidão não significa que a parcela de terreno que a mesmo ocupa não seja propriedade dos RR. e faça parte da prédio identificado em 7 dos factos provados, ou seja, a não extinção da servidão não significa que os RR. não possam tapar (no exercício do direito que o art. 1356.º do C. Civil lhes confere) o caminho/servidão.

O que os RR. não podem é impedir o exercício da servidão e para tal, colocando portões no início do caminho, têm é que dar as chaves dos mesmos à A., sendo nesta obrigação – de entregar as chaves e não de retirar os portões – que devem ser condenados, aspecto em que se revoga/modifica a decisão recorrida.

Efectivamente, o princípio do pedido deve ser hoje entendido mitigadamente[32], ou seja, sempre que uma parte requeira uma medida “drástica” (retirada dos portões) e o juiz entenda conveniente e justo o decretamento duma medida menos radical e qualitativamente diferente (entrega das chaves dos portões), deve/pode fazê-lo, dentro da ideia de que o juiz deve intervir sempre com a finalidade de tornar o processo um caminho privilegiado para alcançar um resultado materialmente justo e eficiente.

Dito doutra forma, do pedido deduzido (retirada dos portões) é, afinal de contas, possível extrair o pedido subsidiário não expresso de entrega das chaves dos portões: é a ideia de que quem quer o mais quer o menos que, no caso, justifica a interferência/modificação do “pedido radical” (retirada dos portões) deduzido pela A..


*

Para terminar, duas notas sobre as nulidades suscitadas nas duas primeiras conclusões da alegação recursiva dos RR/apelantes.

A referida na alínea A), ainda que se verificasse, ficaria prejudicada pelo desfecho favorável dado à impugnação dos RR/apelantes quanto aos pontos 13, 20 e 25 dos factos provados da sentença recorrida (pontos esses a que se reportaria o efeito útil de tal nulidade).

A referida na alínea B), ainda que se verificasse, estaria igualmente prejudicada pela circunstância dos RR/apelantes não manifestarem qualquer divergência recursiva em relação ao que foi dado como provado sobre as características e particularidades dos outros 4 caminhos de acesso ao prédio da A. (características e particularidades que com tal nulidade se relacionam).


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V - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e consequentemente:

Revoga-se a sentença recorrida na parte em que a mesma declara que se encontra constituída por destinação de pai de família a servidão de passagem que descreve; e, em sua substituição, declara-se que a servidão de passagem assim descrita (na sentença recorrida) se encontra tão só constituída por usucapião;

Revoga-se a sentença recorrida na parte em que a condena os RR. a retirar os portões que colocaram no início do caminho e no limite da parte do caminho que percorre o seu prédio; e, em sua substituição, condenam-se os RR. a entregar as chaves de tais portões à A. (no prazo de 10 dias, após o trânsito); e

Confirma-se em tudo o mais a sentença recorrida.

Custas na 1.ª Instância: da acção, por A. e RR. em partes iguais; e da reconvenção, pelos RR.. Custas nesta instância: por A. e RR., na proporção de 1/3 e 2/3.


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Coimbra, 30/04/2019

Barateiro Martins ( Relator )

Arlindo Oliveira

Emídio Santos


[1] Embora não de forma completamente clara (como é exemplo o ponto 28 em que, depois de no ponto imediatamente anterior, se identificarem todos os caminhos, começa com a expressão – “os outros caminhos (…) são (…)” – que até pode fazer pensar que ainda há mais caminhos; ou as diversas repetições de conteúdos factuais, como é o caso do ponto 65 que repete o 43 ou o caso dos pontos 63, 66 e 67) e sequencial; para além de continuarem a faltar alguns elementos factuais, como a extensão do “Caminho de Espanha” ou a extensão e largura do “Caminho de W (...) ”.
[2] Embora se possa ir um pouco mais longe e dizer-se que se está a falar de factos anteriores a 20/08/1919, data em que metade de tal quinta inicial foi vendida aos avós das pessoas que venderam à A..

[3] É certo que no ponto 12 dos factos se alude ao tempo “desde que há memória”, porém, também aí se fala, no ponto 12, no tempo em que existia a “Quinta das B (...) ” e este era um tempo que tem que ser situado antes de 09/09/1921.

[4] E as cartas (do Instituto Geográfico do Exército) que se encontram fotocopiadas num envelope apenso ao vol. III da providência cautelar também não são anteriores a 1947, revelando até, no confronto entre si, que em uma ou duas dezenas de anos se podem estabelecer (e ver do ar) diferenças não insignificantes nos caminhos existentes no terreno.
[5] Nada se pode dizer sobre o que consta do documento da 2.ª divisão, uma vez que aos autos apenas estão juntos os registos (na CRP) decorrentes de tal divisão.
[6] Isto mesmo é reconhecido pelos RR. na contestação; é referido pelo R. C(…) nas suas declarações de parte (cfr. relato constante da sentença recorrida), pelo anterior dono ((…) do prédio da A. e por todas as testemunhas a quem tal foi perguntado.
[7] Constando inclusivamente de tal escritura de divisão (ver fls. 29 verso dos autos) os termos em que tal divisão foi efectuada (ou seja, a constituição de cada um dos dois prédios).

[8] Ainda a propósito da posse imemorial, refere Durval Ferreira (in Posse e Usucapião, pág. 127) que a “posse imemorial é aquela em que, por um lado, a memória dos vivos não atinge, cuja origem excede tal memória e em que, por outro lado, não existe memória do contrário (de situação contrária), directa e indirecta (por tradição oral dos antepassados)”

“ (…) No direito comum, fundamentalmente com base em influências canónicas, defende-se a partir da figura da posse imemorial e através duma subtil utilização de considerações sobre a prova testemunhal, que, todavia, bastaria uma “posse centenária” (de 100 anos), para se adquirir por usucapião um direito do particular sobre a matéria pública (…).

Com efeito, a racionalização escolástica, partindo do princípio de que a prova da posse imemorial se deve fazer por testemunhas, mas que a memória humana sobre a terra não se conserva por testemunho directo mais além do que três gerações, então bastava uma posse por 3 gerações (…) e veio a ser acolhida com a mesma dimensão de posse prescricional irrefutável, como era a da posse imemorial.

(…) A dita “posse centenária” só terá interesse considerá-la e autonomizá-la na perspectiva da aquisição de direitos privados, por usucapião, sobre certas coisas públicas (apesar do art. 202.º do C. Civil), como aliás, foi a finalidade da construção de tal figura (…)”.
[9] Aliás, terá sido a partir de tal mesma e única expressão (“desde que há memória”) que se considerou, na apreciação jurídica efectuada na 1.ª sentença proferida, que estava provado que tal caminho já existia na data da 1.ª divisão do prédio, em 09/09/1921.

[10] Todos sabemos que os acessos aos prédios partem das estradas e caminhos públicos que a cada momento existem; daí que, noutro tempo (há mais de 100 anos), tais acessos se dirigissem, via de regra, aos caminhos/estradas que ligavam as povoações (como seria, no caso, o caminho que ligava/liga as povoações de W (...) e da Aldeia da Y (...) ); entretanto, com a construção de novas estradas, são muitas vezes feitos novos acessos (às novas estradas) e aqueles acessos que noutro tempo eram utilizados (e que por vezes eram os únicos acessos) passam a ser menos utilizados (sendo desleixados e até abandonados). Não sabemos naturalmente se algo parecido com isto aconteceu – e muito menos o afirmamos – porém, é um dado da experiência que milita contra a certeza da ilação efectuada pela sentença recorrida.
[11] Sem prejuízo de ter ficado provado, a nosso ver, que o que quer que tenha existido em tempos mais antigos teria pouco a ver com o caminho/acesso actual (que, segundo as declarações do representante legal da A., permite que passem “camiões semi-trail”)
[12] Embora este ponto não conste da explícita impugnação dos RR/apelantes, harmonizou-se, para evitar dúvidas, a sua redacção com as alterações introduzidas aos pontos 13, 20 e 25.
[13] Além do que estava em reapreciação, este ponto 25 tinha um evidente lapso de redacção, uma vez que, como resulta de tudo o que se diz nos autos (e logo a seguir no ponto 27), o caminho referido em 13 não seria um dos 4 caminhos de acesso, mas sim, segundo a A., o quinto.
[14] A acção confessória é por natureza a acção através da qual um terceiro pede que lhe seja reconhecida, com as consequências daí decorrentes, a titularidade dum direito real (limitado) sobre coisa alheia.
[15] Era o sentido da 1.ª apelação e, em função do disposto no art. 635.º/5 do CPC, outro não poderia ser o sentido da presente apelação.
[16] Para além, claro está, das questões subsequentes sobre a violação da servidão.

[17] Ou haver dois prédios que tenham pertencido a um mesmo dono.
[18] É pois exactamente ao contrário do que os RR/apelantes referem na conclusão Z), ou seja, não tem que existir qualquer declaração no documento da separação do domínio para a servidão se constituir, presumindo a lei que, na ausência de qualquer declaração, a serventia (transformada em servidão) se mantém/constitui.

[19] Tendo-se a separação dos domínios dado por um título negocial, substantiva e formalmente, válido: a divisão “amigável” da coisa comum era claramente admitida pelo C. de Seabra (cfr. art. 2181.º/1.ª parte do C. de Seabra) e, tendo sido feita por escritura pública, foi feita pela forma exigida pelo art. 2184.º do C. de Seabra; não tendo assim qualquer cabimento, com todo o respeito, a nulidade oposta pelos RR/apelantes a tal divisão “amigável” de 09/09/1921.
[20] E seguindo de perto o que já expusemos no Ac. proferido, em 13/05/2014, na apelação n.º 4054/11 do 2.º Juízo Cível de Coimbra, publicado in CJ, Tomo III, pág. 8 e ss.
[21] Expressa na transcrição a seguir efectuada da nota oficiosa do Min. da Justiça.
[22] Dizia-se na nota oficiosa do Min. da Justiça, relativa ao Dec. n.º 19.126 que se “tem em vista libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis que desvalorizam os prédios servientes sem que valorizem os prédios dominantes.”

[23] Cfr., v. g., Ac. Rel. Coimbra de 25/10/1983, in CJ, Tomo IV, pág. 62/4; Ac. Rel. Porto de 07/03/1989, in CJ, Tomo II, pág. 189/90; Ac. Rel. Coimbra de 30/01/2001; Ac. Rel. Coimbra de 13/06/1995, in CJ Online, Ref. 10847/1995; Ac. Rel. Coimbra de 16/04/2002, in CJ Online, Ref. 8625/2002; Ac. Rel. Coimbra de 20/04/2010, in CJ Online, Ref. 3241/2010; Ac. Rel. Porto de 26/11/2002, in CJ Online, Ref. 6952/2002; Ac. Rel. Évora de 22/09/2011, in CJ Online, Ref. 8753/2011.

[24] São disto elucidativas as palavras do Prof. Pires de Lima, no Anteprojecto (do actual C. Civil) das Servidões Prediais (Bol. 64, pág. 34/5): “Na redacção deste artigo omiti as 3 hipóteses previstas na parte final do § único do art. 2279.º - « ou por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, ou por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo». Como enumeração taxativa, parece-me perigosa a especificação; como enumeração exemplificativa, deixa de ter interesse, e é preferível que os tribunais gozem de maior liberdade de apreciação”.

[25] Se a “desnecessidade” é originária – dizem, v. g. Oliveira Ascensão, Direitos Reais, pág. 511/2; Alberto Vieira, Direitos Reais, pág. 852; e Carvalho Fernandes, Direitos Reais, pág. 457 e 470 – nunca esta funcionará como causa de extinção da servidão, uma vez que, antes disso, haverá nulidade do acto constitutivo da servidão (enquanto direito real) por violação do princípio da tipicidade.

[26] Com o que, sublinha-se, não temos em vista dizer e concluir – longe disso – que basta a existência de um caminho (ou outra servidão) a dar acesso ao prédio dominante para se julgar extinta, por desnecessidade, uma concreta servidão de passagem.

[27] E que corresponde ao que vemos defendido, v. g., no Ac. STJ, de 27-5-99, in BMJ nº 487, pág. 313 e ss.; no Ac. STJ de 21/03/2013, in CJ Online, Ref. 1489/2013; no Ac. Rel. Coimbra de 06/12/2005, in CJ Online, Ref. 8198/2005; e no Ac. Rel. Coimbra de 15/05/2005, in CJ Online, Ref.. 8004/2005
[28] Em que se completam e integram as lacunas – designadamente, a extensão do “Caminho de Espanha” e a extensão e a largura do “Caminho de Boticas” – com o que consta da motivação de facto da sentença recorrida.

[29] Como se escreveu no Ac desta Relação de 15/05/2005, “(…) estando em causa uma restrição ao exercício tendencialmente pleno do direito real de propriedade, como acontece com o encargo decorrente duma servidão de passagem, não se nos afigura correcta uma interpretação da norma do art. 1569°, de que resulte que a mesma seria aplicável apenas aos casos em que a servidão perdeu toda e qualquer utilidade para o prédio dominante. (…) A compressão de cerne de qualquer direito, v. g. de um direito real de gozo, só deverá em princípio considerar-se legítima até onde o "sacrifício", ónus ou encargo imposto sobre a coisa se revele necessária para assegurar a terceiro uma fruição "normal" do seu próprio direito; não assim se tal sacrifício se revelar exorbitante ou anómalo, face ao quadro objectivo de circunstâncias que em dado momento se verifique. O que a lei no fundo pretende é uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o prédio, deixando ao prudente alvedrio do julgador avaliar se no momento considerado - e segundo uma prognose de proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo - haverá ou não outra "alternativa" que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo incidente sobre o prédio serviente”.

[30] E é justamente por isto que há todo o interesse em ser-se rigoroso e preciso na sua fixação e redacção, para que não se diga nem mais nem menos do que efectivamente se considera estar provado.

[31] Em servidões com mais de 70 anos coloca-se recorrentemente a questão de saber se a mesma só pode ser utilizada para as necessidades do prédio dominante que existiam na data da constituição, ou se pode ser também utilizada para quaisquer necessidades futuras (entretanto surgidas) resultantes dum alargamento da exploração ou mesmo duma transformação do destino económico do prédio. A questão acaba por ser um problema de interpretação da vontade; que normalmente não é extraível do título, estando a solução/orientação na vontade usual das pessoas. Sendo função da servidão cooperar com a extensão das necessidades do prédio dominante, resulta que, em princípio, poderão beneficiar da servidão as novas necessidades desse prédio; tendo, porém, sempre presente que as novas necessidades não podem ir ao ponto de sacrificar totalmente os interesses do prédio serviente aos do prédio dominante, que o conteúdo da servidão não pode variar ao sabor de todas as transformações que se forem operando no prédio dominante. E sem prejuízo do conteúdo da servidão não ser extensivo às novas necessidades que a tornam mais onerosa, como se extrai do referido 1565.º, n.º 2, do C. Civil: o prédio serviente não está sujeito às modificações do prédio dominante que sejam anormais e imprevisíveis, estando, todavia, sujeito às modificações que forem naturais e previsíveis, desde que “com o menor prejuízo para o prédio serviente”. Enfim, o dono do prédio serviente está sujeito às necessidades do prédio dominante existentes ao tempo da constituição da servidão, bem como às ulteriores, especialmente se forem normais e previsíveis, desde que destas não resulte prejuízo para o prédio serviente; o conteúdo da servidão não fica cristalizado no tempo (se, há 40/50 anos, se passava de carroça, é inteiramente normal e previsível que, agora, se passe de veículo automóvel), sendo extensível às novas necessidades do prédio dominante, porventura até das resultantes duma transformação do seu destino económico. Seja como for, a verdade é que não é suscitada nenhuma questão concreta sobre o exercício da servidão e o que se deu provado (o título) – uma servidão iniciada há mais de 70 anos, com 4,5 metros de largura, com a utilidade de por ela poderem passar inclusivamente pesados semi-trail – não dá lugar a grandes discussões.

[32] Neste sentido, A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno processo civil – Miguel Mesquita, in RLJ, ano 143.º, pág. 134 e ss..