Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3881/20.8T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: UTILIDADE ECONÓMICA DO PEDIDO
VALOR DA CAUSA
PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
INVALIDADE DE ACTOS JURÍDICOS
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 296.º E 297.º, DO CPC
Sumário: I - O único valor que releva para a fixação do valor da causa é o que constituir a utilidade económica imediata do pedido – artº 296º nº1 do CPC.
II – Assim, se na ação se pretende apenas assegurar o pagamento de certo montante, e, para este efeito, se pede a invalidade de certos atos jurídicos, o valor dos bens a estes atos atinentes não releva para se concluir existir uma cumulação de pedidos - e, assim, somar-se o seu valor nos termos dos artºs 297º nº2 e 301º do CPC -, pois que se trata apenas de atos instrumentais dos quais não é retirada utilidade económica.
Decisão Texto Integral: Adjuntos: Luís Cravo
Alberto Ruço



ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA  RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA,  instaurou contra BB ação declarativa, de condenação.

Atribuiu à ação o calor de € 61.317,30.

O  Sr. Juiz atribuiu à ação o valor de € 1.466.510,70.

Por não concordar com este valor, a ora reclamante interpôs recurso de apelação autónoma, a subir imediatamente e em separado.

O recurso não foi admitido.

Reclamou, a autora tendo o presente relator decidido pela admissibilidade do mesmo hic et nunc.

Cumpre, pois, apreciar o mérito do recurso.

2.

No recurso a recorrente formulou as seguintes conclusões:

B1. O presente recurso vem interposto do despacho que fixou o valor da causa em € 1.466.510,70, contrariamente ao valor indicado pela Recorrente em sede de requerimento e de Petição Inicial, que era de € 61.317,30.

B2. Com efeito, entende a Recorrente que o Douto Tribunal lavrou em erro na apreciação da matéria de direito, mormente na determinação da norma aplicável. Ademais, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.

B3. Ainda que na ação se tenham deduzido pedidos cumulados, designadamente, a condenação dos Réus a reconhecer que a Autora tem um direito de crédito sobre o Réu BB e, por outro lado, a impugnação da validade, quer por fraude à lei, quer por simulação absoluta, dos vários atos praticados, não poderá ser aplicável, tout court, o artigo 297.º/2 do Código de Processo Civil.

B4. Os pedidos cumulados de impugnação de validade dos vários atos são uma decorrência necessária para garantir o efeito útil da sentença proferida, mormente, para conceder eficácia jurídica ao reconhecimento do direito de crédito, uma vez que se tem em vista, oportunamente, a satisfação desse mesmo crédito.

B5. Em sentido diverso, deve ser aplicável o artigo 297.º/1 do Código de Processo Civil, atendendo especialmente a que o valor da causa representa a utilidade económica imediata do pedido, e a utilidade/beneficio económico que se pretende obter reconduz-se ao reconhecimento do direito de crédito.

B6. Por outro lado, a determinação errónea do valor da causa comina num valor muito superior ao valor real, sendo um valor que não corresponde ao beneficio económico que a Recorrente terá com a eventual e hipotética procedência do pedido. Por conseguinte, revela-se excessivamente onerosa e desproporcional a fixação do valor da causa em € 1.466.510,70, violando, assim, de forma flagrante, o princípio da proporcionalidade (cuja consagração jurídico-constitucional está prevista no artigo 18.º).

B7. Acresce que, existe igualmente a violação do direito ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), uma vez que não se está a assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos da Recorrente, mediante um processo equitativa e justo. Em sentido diverso, onera-se a Recorrente com um valor da causa avultadíssimo (que se repercute nos valores das custas processuais) e que não corresponde à utilidade económica da causa.

B8. A interpretação do disposto nos artigos 297.º e 300.º, ambos do CPC, no sentido de que o valor a atribuir à causa, em caso de verificação de pedidos, corresponderá, tout court (isto é, não tendo em real consideração a utilidade económica do pedido), à soma de todos eles é inconstitucional na medida em que viola o disposto nos artigos 18.º e 20.º, ambos da CRP.

B9. Por tudo o que foi exposto e alegado, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que fixe o valor da causa em € 61.317,30, nos termos do artigo 297.º/1 do Código de Processo Civil.

Inexistiram contra alegações.

3.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é  a seguinte:

Ilegalidade do despacho que fixou o valor da ação em €1.466.510,70.

4.

O despacho impugnado tem o seguinte teor:

«Face à forma como a autora estrutura a acção, atento os pedidos principais cumulativos deduzidos nas als. a), b), pontos i) a xi), e d) a f) do petitório, e a respectiva causa de pedir ora invocada, no petitório, é inegável que a autora vem “in casu” mover uma acção de impugnação da validade dos actos aí mencionados, ora por fraude à lei, ora por simulação absoluta, a titulo principal, com vista a obter, oportunamente, a satisfação do crédito no valor de €61.317,30 de que se arroga titular sobre o 4º réu, contra os réus.

Por, assim, ser, dúvidas não há que “in casu”, na determinação do valor da causa dever-se-á atender aos critérios gerais previstos nos nºs 2 e 3, do art. 297º, do CPC e bem assim, aos critérios especiais previstos no art. 301º, nºs 1 e 2, do CPC.

Ora, estatui-se no art. 297º, do CPC, no que aqui interessa, o seguinte:

“2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles;

E, por sua vez, reza o art. 301º, do CPC, no que aqui interessa, o seguinte:

“1-Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais.”

Assim, e tendo em consideração os actos impugnados pela autora - e cuja anulação pretende através da procedência dos pedidos principais cumulativamente deduzidos nas diversas als. do petitório elencadas atrás, e tendo em consideração os critérios gerais e especiais aludidos atrás norteadores “in casu” da fixação do valor à presente causa, dúvidas não há que o valor a fixar à acção, e por extensão à causa, terá necessariamente de corresponder à soma dos valores de cada um dos actos impugnados, a saber: €1.027.660,00 (valor patrimonial do legado do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...34º da freguesia ..., efectuado às 2ª e 3ª Rés, por testamento outorgado pelo “de cuiús”, impugnado, por negócio em fraude à lei – cf. teor da certidão matricial do prédio em causa de fls. 227 dos autos)+€136.350,70 (valor estipulado pelos doadores na escritura de doação do prédio misto inscrito nas matrizes prediais urbana e rústica sob os artigos ...26... e ...35º, respectivamente - impugnada, por negócio em fraude à lei – cf. teor da escritura pública de fls. 229 a fls. 231 dos autos) + €5.000,00 (valor do aumento de capital na sociedade P..., Lda. - e impugnado, por negócio em fraude à lei – cf. teor do doc. nº25 junto com a petição inicial) + €2.500 (valor da amortização pela predita sociedade da quota do “de cuiús” – e impugnado, por negócio em fraude à lei – -cf. teor do doc. nº25 junto com a petição inicial) + €15.000,00 (valor estipulado na escritura pública pela cessão gratuita do quinhão hereditário do 4º réu a favor da 1ª ré – e impugnado por negócio em fraude à lei – cf. teor da escritura pública junta como doc. 27 com a petição inicial)+ €140.000,00 (valor/preço estipulado pelos contraentes na escritura de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra J correspondente ao terceiro andar esquerdo, lado nascente e garagem individual do prédio urbano sito na ..., lote ...4, descrito na CRP com o nº ...48 – e impugnada por simulação – cf. teor da escritura pública junta como doc. nº 28 com a petição inicial) +€140.000,00 (valor/preço estipulado pelos contraentes na escritura de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra D correspondente ao sexto andar esquerdo, lado nascente, e garagem individual, na cave, do prédio urbano, sito na ..., lote ...4, descrito na CRP com o nº ...48 – e impugnada por simulação – cf. teor da escritura pública junta como doc. nº 28 com a petição inicial) = €1.466.510,70.

Porém, “in casu”, a autora atribuiu, na petição inicial, à acção - e ao invés do pugnado pela mesma no requerimento sob epígrafe - errónea e indevidamente o valor de €61.317, 30 equivalente ao crédito de que se arroga titular sobre o 4º réus, tendo-se socorrido, para tal, errónea e indevidamente do critério geral previsto no art. 297º, nº1, do CPC, que não é aplicável “in casu” na determinação do valor a fixar à presente causa.

Pelo exposto, decido “ex oficio”:

a)Fixar à causa o valor de €1.466.510,70.

b)Subsequente à data do trânsito em julgado do presente despacho, deverá a secretaria proceder à notificação da autora AA e dos réus CC e outros, patrocinados pelo Ilustre Mandatário Judicial, Dr. DD para, no prazo de 10 dias, efectuarem o pagamento/auto - liquidação do complemento/diferencial da taxa de justiça devida, tendo em consideração, apenas, o valor de €275.000,00, no presente momento - cf. arts. 6º, nºs 1 e 7, “a contrario”, e 11º, do RCP, bem como, a Tabela I, do citado Diploma Legal.»

               

5.

Apreciando.

Estatui o artigo 296.º  do CPC:

1 - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.

 E prescreve o artigo 297.º:

1 - Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.

2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.

3 - No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar.

Vemos assim que os critérios fulcrais/primordiais e decisivos para a fixação do valor da causa são os seguintes:

- o quid deve reportar-se ou assumir o jaez concreto, material e objetivo,  pois que se refere a uma  «utilidade económica»; e sendo que se esta utilidade se consubstanciar numa certa quantia em dinheiro é este o valor a considerar;

- Tal utilidade  não pode ser futura, diferida ou mediata, mas antes imediata, ou seja, já existente e, assim, exigível;

-  Tal utilidade tem de constar, adrede e inequivocamente, da pretensão, do pedido final formulado.

Estas ideias mestras dimanam do mais legal.

Assim, se se formulam pedidos acessórios com valores ainda não vencidos, apenas relevam para o valor da causa os já vencidos – artº 297º nº3, 2ª parte.

E, no caso de pedidos alternativos ou subsidiários, «unicamente» se considera um certo valor, nos termos do nº3 deste preceito.

Verdade que em caso de cumulação de pedidos, o valor da ação é o da soma de todos eles.

Mas para que tal aconteça temos de estar perante uma verdadeira  e real cumulação, e, bem, assim, serem respeitados e estarem presentes os supra aludidos critérios/requisitos gerais.

 Na verdade, e como já aludido, o valor da causa de harmonia com o disposto no nº 1 do art.º 296º do CPC, não pode ser outro que não seja o correspondente ao valor do pedido que consubstancie para o respetivo impetrante uma efetiva e imediata utilidade económico financeira.

 Pelo que, máxime se alguma dúvida houver, «Na determinação do valor da causa, tratando-se de pedidos distintos, deve atender-se à estrutura destes no confronto com a respetiva causa de pedir e aos interesses que a Autora com eles pretende alcançar e efeitos jurídicos que quer conseguir» - AC. RE de 08.03.2018, p. 1264/17.6T8EVR-A.E1, in dgsi.pt. (sublinhado nosso)

No caso vertente.

 Devidamente interpretada a pretensão da autora, verifica-se que ela, não obstante formular os pedidos de invalidação de certos atos ou negócios jurídicos,  com eles pretende apenas assegurar  a satisfação do seu crédito sobre  o 4º réu.

Isto se deu conta o próprio julgador, ao expender que: «Face à forma como a autora estrutura a acção, atento os pedidos principais cumulativos deduzidos nas als. a), b), pontos i) a xi), e d) a f) do petitório, e a respectiva causa de pedir ora invocada, no petitório, é inegável que a autora vem “in casu” mover uma acção de impugnação da validade dos actos aí mencionados, ora por fraude à lei, ora por simulação absoluta, a titulo principal, com vista a obter, oportunamente, a satisfação do crédito no valor de €61.317,30 de que se arroga titular sobre o 4º réu, contra os réus.»

Temos assim que a  real e efetiva utilidade económica  imediata que a autora pretende obter com a ação é apenas conseguir que aquele valor de cerca de 60 mil euros possa vir a ser assegurado pelo valor dos bens atinentes aos atos jurídicos cuja validade impugna, e, assim, tal verba lhe seja paga pelo 4º réu.

Por conseguinte, o único verdadeiro pedido com interesse económico financeiro para a autora prende-se com o assegurar de tal garantia e o consequente seu pagamento.

Os restantes pedidos são meramente instrumentais para a consecução deste seu desiderato atinente à mencionada verba.

Deles não beneficiando a autora, e nem  deles retirando qualquer utilidade económica, para além do que ultrapassar o valor do crédito que invoca contra o 4º réu.

Podendo, numa certa perspetiva e analogicamente, operar-se uma comparação com o que a lei estatui para os pedidos alternativos e subsidiários, nos quais, como se viu, ela apenas se reporta unicamente a um certo valor.

Pois que, reitera-se, independentemente dos restantes valores relativos aos outros pedidos – in casu os atinentes aos valores dos bens cujos negócios se querem invalidados -  o único montante, e consequentemente, a singela utilidade económica que a autora assegura, é o/a relativo/a ao crédito que se arroga contra o 4º réu.

Por conseguinte, se alcançando a final conclusão que, na verdade, e com vista à fixação do valor da causa, não nos encontramos perante um caso de real cumulação de pedidos, para o efeito de somar os respetivos valores, nos termos do artº 297º  nº 2 do CPC.

Antes, como pugna a recorrente, se devendo deitar mão do critério geral dos artºs 296º nº1 e 297º nº1 do CPC, nos termos sobreditos, e, destarte, apenas considerar para a determinação do valor da causa o montante do crédito invocado que a autora pretende assegurar e ver satisfeito.

 Procede o recurso.

(…)

6.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar o despacho recorrido, e fixar o valor da causa, no montante do crédito invocado.

Custas recursivas pelo vencido a final, ou na proporção da sucumbência.

Coimbra, 2024.03.19.