Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2314/22.0T9CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: CRIMES CONTRA A HONRA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DE DESPACHO
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: REVOGAÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO E DETERMINAÇÃO DA SUA SUBSTITUIÇÃO POR OUTRO DESPACHO, QUE EXPLICITE AS RAZÕES PORQUE CONSIDEROU INDICIADOS E NÃO INDICIADOS OS FACTOS NELE DESCRITOS
Legislação Nacional: ARTIGOS 182.º, 183.º, N.º 1, ALÍNEA A), 185.º, N.º 1, E 187.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 97.º, N.º 5, E 123.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGO 9.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I – As ofensas da honra e consideração de outrem, integradoras dos crimes contra a honra, podem ser efectuadas verbalmente, por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão e até por omissão, como resulta dos artigos 182.º, 183.º, n.º 1, alínea a), 185.º, n.º 1, e 187.º, n.º 2, do Código Penal.

II – Seria ilógico e irrazoável punir o discurso verbal directo, difundido pela rádio, televisão, “Youtube” e outros meios similares, mas já não o discurso escrito ou gráfico, ainda que difundido pelos mesmos meios de comunicação, redes sociais ou jornais.

III – Na decisão instrutória é necessário e imprescindível que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre os factos que considera indiciados e não indiciados.


Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:
Relator: João Abrunhosa
1.ª Adjunta: Capitolina Rosa
2.º Adjunto: Jorge Jacob

por despacho de 30/05/2023, decidiu-se não pronunciar os Arg.[1] nos seguintes termos:

“... I

Admitida o intervir nos autos como assistente, … S.A., …, deduziu acusação particular contra:

1. …

2. …

imputando-lhes a prática, em co-autoria material, na forma consumada, de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva, previsto e punido pelos art.ºs 13.º, 14.º, 26.º e 187.º do Código Penal, …


*

O Ministério Público não deduziu acusação.

*

Discordando da douta acusação, requereram os arguidos a abertura da instrução, pugnando pela não pronúncia, …

[2].

[3].

[4].

Do imputado crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva:

[5], …

[6].

[7].

[8].

[9].

[10].

[11].

[12].

[13].

[14].

…, temos, desde logo, do suporte documental carreado para os autos, a apresentação, por parte do co-arguido …, enquanto advogado, no exercício dessa sua actividade profissional, e em representação do co-arguido …, da peça processual propondo, contra a ali ré, ora assistente, “acção para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho…

Neste conspecto, temos por certo, desde logo, que as expressões dos arguidos não foram afirmadas verbalmente, mas por um escrito dirigido ao Tribunal, o que afasta a subsunção da sua conduta na imputada norma incriminatória, …

Ainda que assim não fosse, não se descobre, nas expressões e no contexto do seu proferimento, a idoneidade dos factos para ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que se mostrem devidos a pessoa colectiva, desde logo porque o círculo do proferimento das expressões é muito restrito, quedando-se no órgão a quem se dirigiu o requerimento, o Tribunal, no âmbito da propositura de uma acção, a qual, embora em processo de natureza pública, tem o seu desfecho dependente, designadamente, da prova dos respectivos factos alegados, respeitantes a um acidente de trabalho que, efectivamente, vitimou uma das pessoas ao serviço da ora assistente, tal não bastando, pois, de acordo com um juízo de adequação nos moldes supra delineados, para sequer beliscar a credibilidade, o prestígio ou a confiança eventualmente depositados pela comunidade naquela sociedade comercial ora assistente.

Por outro lado, e pese embora o princípio da suficiência do processo penal (art.º 7.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal), a questão essencial que perpassa dos autos é, essencialmente, de natureza laboral, sede onde, aliás, se encontra a ser discutida e onde obterá a sua solução…

Acresce o particular contexto processual em que as expressões foram proferidas.

Nesta sede, e porque os deveres dos Srs. Advogados balançam, designadamente, entre as obrigações de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas e tratar com zelo a questão de que sejam incumbidos, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade (art.ºs 97.º, n.º 2, e 100.º, n.º 1, al. b), do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 145/2015, de 09/09) e o dever geral de urbanidade para com todos os intervenientes processuais (art.º 110.º, n.º 1, do citado Estatuto), devendo, portanto, ser garantida ao advogado a necessária liberdade de expressão, consagra o legislador uma causa de exclusão da ilicitude quando se trate do uso de expressões ou imputações indispensáveis à defesa da causa – cfr. art.º 150.º, n.º 2, do Cód. de Processo Civil (“Não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”). …

De notar que desta forma se entende e expressa a ideia de que a imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém.

[15].

Ora, percorrendo o texto em análise, constata-se que o mesmo é apresentado, pelo arguido …, enquanto advogado, em representação do arguido …, ali autor, naquela acção laboral, apresentando a sua versão dos eventos, não extravasando, de modo algum, o âmbito da indispensabilidade para a defesa da causa e no âmbito do exercício do patrocínio forense do sua constituinte, expondo a factualidade narrada com base em elementos que colheu e carreou para os autos, mas, também, no pressuposto da necessidade de sobre tal factualidade vir a ser produzida a pertinente averiguação e demonstração da sua veracidade ou não.


*


*

Em conclusão, não se descobre uma razoável probabilidade de uma futura condenação dos arguidos, em sede de julgamento, pelos factos que lhes são imputados pela assistente no seu douto requerimento para abertura da instrução e com a respectiva qualificação jurídica.

Restará, pois, concluir pela não pronúncia.


*

...”.

*

Não se conformando, a Assistente “… S.A.”, interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação, com as seguintes conclusões:

“...


*

2.         …, não se almeja qualquer razão que possa justificar que a afirmação ou prolação de factos inverídicos possa ser criminalmente punível quando tomada a cabo verbalmente e não o seja quando tomada a cabo por escrito.

8.         Acresce que, a assistente titula o direito de reclamar que a credibilidade, o prestígio e a confiança que lhe são devidos, e espelham o carácter digno dos seus representantes, não sejam ofendidos perante prestigiados membros dos órgãos de soberania da comunidade em que se insere, por isso, mesmo que o conteúdo do referido requerimento apenas fosse conhecido pelas pessoas que integram o Tribunal para o qual foi dirigido tal peça processual, sempre seria idóneo a ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que se mostram devidos à assistente, designadamente por essas pessoas.

9.         A jurisprudência é inclusive pacífica quanto à possibilidade do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço ser praticado entre mandatário judicial e mandante, numa peça processual, naturalmente dirigida a um tribunal .


*

[16]

[17]

[18]

[19].

[20]

[21]


*

[22][23], … a única questão fundamental a decidir no presente recurso é a seguinte:

Existência de indícios suficientes para que os Arg. sejam pronunciados.


*

Cumpre decidir.

Se sufragássemos o entendimento de que, para o preenchimento do tipo do art.º 187º do CP, as “...afirmação ou propalação tem que ser efectuada verbalmente, pela “palavra dita”, não cabendo na conduta típica as afirmações ou propalações feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão ...”, naturalmente estaria prejudicada a apreciação das outras questões, porque essa obviaria, em qualquer dos casos, à pronúncia dos Arg..

Mas, ao contrário,  entendemos que os crimes contra a honra podem ser cometidos por qualquer meio de expressão[24],[25], e, até, por omissão, como resulta dos art.ºs 182º, 183º/1-a), 185º/1 e 187º/2 do CP.

Especificamente, quanto ao tipo de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (art.º 187º do CP), a remissão para o art.º 182º do CP não se mostra necessária, porque esta pode ser produzida através da afirmação ou da propalação, que significa acto de tornar pública determinada informação[26].

Mas isso não acontece com o art.º 180º, que contém a expressão “... dirigindo-se a terceiro ...”, nem com o art.º 181º, que contém a expressão “... dirigindo-lhe palavras ...”, ambas incutindo a ideia de expressão verbal, o que também resulta do art.º 182º, ao conter a expressão “... À difamação e à injúria verbais são equiparadas ...”, o que  torna necessária a equiparação prevista neste art.º.

Acresce que, na medida em que o art.º 187º/2 do CP remete para o art.º 183º, que no seu n.º1/a), se refere a “... meios ... que facilitem a sua divulgação ...” através dos quais é cometida a ofensa, tal implica que as ofensas a organismo, serviço ou pessoa colectiva, possam ser praticadas através de outros meios para além da expressão verbal.

Para além disso, não faria sentido que fosse punível a conduta de alguém que faz um discurso, imputando factos inverídicos a uma determinada instituição, mas já não a daquele que faz publicar num jornal, ou numa rede social, um texto imputando-lhe os mesmos factos inverídicos. A ser assim, a norma puniria a conduta com menos capacidade de pôr em causa perante terceiros o bom nome da pessoa colectiva, mas não puniria a conduta com mais capacidade de o fazer.

Por outro lado, careceria de sentido lógico e de razoabilidade, punir o discurso verbal directo, difundido pela rádio, televisão, “Youtube” e outros meios similares, mas já não o discurso escrito ou gráfico, ainda que difundido pelos mesmos meios de comunicação, redes sociais ou jornais.

O intérprete tem que presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º/3 do CC), pelo que a lei não deve ser interpretada com um sentido ilógico ou irrazoável.


*

Isto posto.
Os actos decisórios devem ser sempre fundamentados, especificando-se os motivos de facto e de direito da decisão (art.º 97º/5 do CPP)[27].

A função da fundamentação é a de “…legitimar a decisão perante as partes e também coram populo, neutralizando as suspeitas de arbítrio; e, por outro lado, de emprestar à decisão os coeficientes indispensáveis de racionalidade e de objectividade, que a tornam objectivamente sindicável e controlável por terceiros, maxime pelos tribunais superiores. O consenso comunica-se também à compreensão normativa da fundamentação: ela deve assegurar a consistência lógico-racional capaz não só de tornar a decisão vinculativa no horizonte subjectivo de quem a proferiu, mas também de lhe emprestar a indispensável plausibilidade intersubjectiva em relação a terceiros. Face aos quais terá de despertar a mesma convicção, a mesma “certeza”.(sublinhado nosso)[28].

O despacho recorrido especifica, como deve, os factos que considera indiciados e não enunciados e enumera os meios de prova que levou em conta, mas nada diz quanto às razões dessa decisão de indiciação.

A falta de fundamentação dos actos decisórios, com excepção das sentenças, acórdãos (art.º 379º do CPP) e dos despachos de aplicação de medidas de coacção (art.º 194º/4 do CPP), constitui mera irregularidade[29].

No presente caso estamos, pois, em face de uma irregularidade.

Mas essa irregularidade, porque impede o controlo por este tribunal da razoabilidade da decisão de indiciação constante do despacho recorrido, que foi expressamente impugnada, afectando o valor do acto, pode ser conhecida oficiosamente, ordenando-se a sua reparação, no momento em que da mesma se tomar conhecimento (art.º 123.º/2, do CPP).

Trata-se de uma situação similar à ausência da indicação dos factos indiciados e não indiciados, na medida em que também impede o controlo da razoabilidade da decisão recorrida, que a jurisprudência vem, maioritariamente, considerando que é uma irregularidade de conhecimento oficioso[30].

É o que fazemos, ficando, deste modo, prejudicada a análise das restantes questões suscitadas no recurso.


*****

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, revogamos o despacho recorrido e determinamos que seja substituído por outro, que explicite as razões porque considerou indiciados e não indiciados os factos nele descritos.

Sem custas.


*

Notifique.

D.N.


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(Elaborado em computador e integralmente revisto pelo subscritor (art.º 94º/2 do CPP).

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[1] Arguido/a/s.
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[21]
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[23]

[24] Nesse sentido, veja-se as seguintes doutrina e jurisprudência:
- M. Miguez Garcia/J.M. Castela Rio, in “CP... com notas e comentários”, Almedina, 2ª ed., 2015, pág. 787, …
- acórdão da RP de 11/09/2013, relatado por Pedro Vaz Pato, no proc. 4581/10.2TAVNG.P1, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RP de 27/01/2016, relatado por Maria Luísa Arantes, no proc. 332/14.0TAVLG.P1, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RP de 18/03/2017, relatado por Lígia Figueiredo, no proc. 454/14.8TABRG.P2, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RP de 18/03/2020, relatado por Maria dos Prazeres Silva, no proc. 2270/17.6T9VFR.P1, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RP de 03/05/2023, relatado por Pedro Afonso Lucas, no proc. 105/20.1T9CPV.P1, in www.dgsi.pt, …
[25] Contra este entendimento, veja-se a seguinte jurisprudência:
- acórdão da RP de 23/05/2012, relatado por Ernesto Nascimento, no proc. 1429/09.4PIPRT, in www.dgsi.pt, …
- acórdão da RC de 20/02/2019, relatado por Alice Santos, no proc. 316/17.7T9SEI.C1,  …
[26] In “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” da Academia das Ciências de Lisboa, Editorial Verbo, 2001.

[27] Cf. nesse sentido o acórdão da RP de 11/01/2012, relatado por Joaquim Gomes, in JusNet 595/2012, …
[28] Manuel da Costa Andrade, em parecer datado de Março de 2009, junto ao, processo n.º 263/06.8JFLSB.L1, por nós relatado na Relação de Lisboa.
[29] Neste sentido, cf. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 2008, p. 55, e Vinício Ribeiro, in “CPP Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, pp. 277.
[30] Nesse sentido, veja-se a seguinte jurisprudência:

- acórdão da RG de 09/07/2009, relatado por Cruz Bucho, no processo 504/07.4GBVVD-A.G1, in www.gde.mj.pt, …
- acórdão da RP de 14/06/2017, relatado por Eduarda Lobo, no processo 5726/14.9TDPRT.P1, in www.gde.mj.pt, …