Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1548/10.4TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
OBJECTO DO PROCESSO
PEDIDO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 661, 668 CPC, 11, 12, 24 CE
Sumário: 1. Inexiste a nulidade da sentença por condenação em objeto diverso se, em ação de indemnização por acidente de viação, o autor pede a condenação da ré no pagamento do valor venal do veículo com a alegação da reparação ser superior a este valor e o tribunal, não se provando tal alegação, mas apenas os danos do veículo, condena no montante necessário à sua eliminação.

2. Se se prova que o veículo A deixou rastos de travagem em que a linha de travagem das rodas do seu lado direito, medeou da berma direita, desde o seu início até ao seu fim, entre 1,30 a 1,80 m, e foi depois embater no veículo B - que entrava na via por onde aquele circulava oriundo, em manobra de viragem à esquerda, de estrada que com ela entroncava -, essencialmente na porta do condutor, não pode dar-se como provado que o embate se verificou quando aquela manobra estava já concluída e este veículo já circulava totalmente inserido na hemi faixa direita da via onde pretendia entrar, e, assim de frente para o veículo A., mas antes que ainda estava em plena manobra e obliquado perante este.

3. Nestas circunstancias, o acidente tem de ser assacado aos dois condutores, devendo o condutor do veículo A, porque, assumidamente, circulava em excesso de velocidade, versus a conduta do condutor do veículo B consubstanciada na entrada descuidada na via onde aquele circulava sem cuidar de se certificar da aproximação de veículos, ser considerado o principal culpado.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

A (…) intentou contra Companhia de Seguros, (…), S.A. ação declarativa de condenação, com processo sumário.

Alegando, em síntese:

No dia 20 de Outubro de 2007, na zona do entroncamento da via em que circulava – Rua Fonte dos Ratos, com a Rua da Capela de São João, teve lugar um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro/passageiros com matrícula DH (...), conduzido pelo autor e a ele pertencente e o veículo ligeiro/mercadorias, com a matrícula AX (...), pertencente a (…) e, sendo conduzido por (…) por conta e no interesse daquela Sociedade e segurado na ré.

Que o acidente se deveu a culpa deste condutor  que circulava no meio da via de trânsito, no sentido de Ilha de Baixo/Ilha de Cima, a uma velocidade de cerca de 90 Km/hora sendo que para quem circula no sentido de marcha do veículo segurado na Ré, a cerca de 250 metros do local do embate, no inicio da localidade, se depara com um sinal C13 - (de proibição de exceder a velocidade máxima de 50 Km por hora).

E, a essa velocidade, ultrapassou o eixo da via que delimita as duas faixas de trânsito, passando a circular ocupando parcialmente a faixa de rodagem da esquerda, onde circulava o veículo DH (...), pertencente ao Autor, indo desse modo embater com a parte frontal do seu veículo na frontal lateral esquerda do veículo pertencente ao Autor.

Que os danos causados no seu veículo foram de tal forma avultados, que são superiores ao seu valor comercial, não sendo assim viável a sua reparação.

A ré nunca efectuou qualquer peritagem ao veículo sinistrado pelo que este se encontra, ainda hoje, em sua casa, no mesmo estado em que ficou na altura do acidente e a aguardar que a Ré efectue a requerida peritagem,

Ele, autor, efectuou a peritagem ao veículo sinistrado, para avaliar dos prejuízos sofridos e consultou um perito que os avaliou num valor superior ao custo da viatura.

Acrescenta que o valor venal da sua viatura, antes do acidente, era de € 10.677,50 (dez mil seiscentos e setenta e sete Euros e cinquenta cêntimos), valor que despendeu, cinco meses antes do acidente, com a sua aquisição no estado de novo.

Mais afirma que esteve desde a data do acidente (20.10.2007), até à data de hoje, sem a sua viatura.

Durante meses foi obrigado a alugar viaturas a pessoas amigas, visto necessitar de uma viatura diariamente para se deslocar, enquanto o seu carro esteve imobilizado, ao quais pagou várias quantias, que calcula no montante total de Euros 1.500,00 (mil e quinhentos Euros).

Afirma, ainda, que foi obrigado a receber assistência médica no Hospital de Gala – Figueira da Foz, em virtude do acidente sofrido. Com efeito, sofreu diversas contusões e traumatismos que o obrigaram, nesse mesmo dia, a receber assistência médica.

Posteriormente, devido aos ferimentos acima referidos, necessitou de um período de reabilitação e recuperação durante um mês. Durante tal período de baixa, não pode trabalhar, como agricultor, e não recebeu qualquer remuneração ou subsídio.

No período em que não pode exercer a sua profissão, foi obrigado a contratar trabalhadores para efectuarem as tarefas por si até ali desempenhadas, tendo pago aos mesmos, a quantia que calcula no montante de € 500,00 (quinhentos Euros).

Que fez diversos telefonemas, escreveu várias cartas, e deslocou-se à delegação de Leiria da Ré, várias vezes.

Assim, calcula que despendeu a quantia de € 25,00 Euros (vinte e cinco Euros) de telefonemas para a Ré; a quantia de € 15,00 Euros (quinze Euros) de correspondência para a Ré; a quantia de € 35,00 Euros (trinta e cinco Euros) de tempo despendido.

Por outro lado, refere que durante os 6 meses seguintes ao acidente não dormia convenientemente e acordava muitas vezes a altas horas da noite com insónias, o que lhe causou bastante transtorno, preocupação e uma grande mágoa.

Acrescenta que em consequência do acidente sofreu dores.

Peticionou:

 A condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 13.752,50 euros que incluem os danos patrimoniais supra referidos e, ainda, mil euros a título de danos não patrimoniais.

 Contestou a ré:

Que o acidente se ficou a dever a atuação do autor que ignorou o sinal de stop que tinha à sua frente ao chegar ao entroncamento da Rua Fonte dos Ratos com a Rua Capela de S. João.

Ademais o DH penetrou na Rua Capela de S. João, sem fazer a manobra de mudança de direcção para a esquerda na perpendicular atravessando toda a faixa de rodagem, em obliquidade, para a esquerda.

E que o condutor do DH, antes de fazer penetrar este na faixa de rodagem da Rua Capela de S. João, não cuidou de verificar se, de qualquer dos lados desta via, se aproximava qualquer veículo.

Que o DH sofreu o impacto da colisão predominantemente na lateral esquerda. Já o AX, com a colisão, sofreu danos na quina frontal lado esquerdo.

Pediu:

 A improcedência da ação.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que:

Julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor:

- uma indemnização referente à reparação da viatura sinistrada a apurar em liquidação de sentença, sendo certo que a indemnização a atribuir nunca poderá ser superior ao montante de €10.677,50, peticionado pelo autor, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

- uma indemnização pela privação do uso da viatura sinistrada cujo valor deve ser apurado em liquidação de sentença, não podendo o respectivo valor ser superior a €1 500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

- uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos no montante de €1 000,00.

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Inexistiram contra-alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º A do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas são,  lógica e metodologicamente, as seguintes:

1ª –  Anulação da sentença por enfermar do vício do artº 668º nº1 al.e), in fine, do CPC e por necessidade de ampliação da matéria de fato.

2ª - Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

3ª – improcedência da ação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

Diz a recorrente que a sentença é nula porque condenou em objeto diverso.

Esta nulidade está relacionada com o artº 661º nº1 do CPC e o respeito que merece o princípio do dispositivo, em função do qual se assegura à parte o poder/dever de assegurar o thema dedidendumcfr. Abílio Neto in Breves Notas ao CPC, 2005, p.195.

In casu e bem vistas as coisas, o pedido formulado consiste na condenação numa indemnização pecuniária. O objeto da ação é, pois, uma determinada soma em dinheiro.

E o tribunal condenou nesta espécie, pois que condenou numa indemnização com valor a apurar  em liquidação de sentença.

Certo é que reportou a liquidação de tal valor monetário à reparação da viatura sinistrada, versus o impetrado pelo autor, que a conexionava com o valor venal, de mercado, do veículo.

Mas tal não coloca a condenação em campo, intrínseca ou substancialmente, incompatível com o pedido formulado.

 Pois que ela se situa ainda dentro do fato geneticamente gerador da causa petendi, qual seja: o acidente rodoviário.

E porque, tanto o interesse do demandante se satisfaz, como, principalmente, o dever da ré, se cumpre, com a indemnização que se julgar ser devida, independentemente de ela se alicerçar, direta e imediatamente, na reparação ou no valor de venda.

E sendo certo que se colocou um limite à indemnização decorrente da reparação, qual seja, o montante atinente ao valor de mercado do carro, cumprida se encontra ainda a imposição legal de que a condenação, em termos quantitativos, deve situar-se dentro do peticionado pelo autor, pelo que inexiste violação quer do artº 668º nº1. al.e),  porque cumprido se encontra o estatuído no artº 661º nº1, e, assim, inexiste a invocada nulidade.

5.1.2.

Diz a recorrente que não consta, nem dos factos provados nem dos factos não provados, materialidade que foi alegada pela Ré na contestação e objecto de discussão e julgamento e sobre que não incidiu qualquer decisão positiva ou negativa, nomeadamente:

ARTIGO 19º  - O condutor do AX foi surpreendido pela entrada súbita e inesperada do DH e viu com surpresa, este veículo, à sua frente, a interceptar a sua mão de trânsito, atravessando a Rua da Capela de S. João em trajectória oblíqua?

ARTIGO 22º - Tentando assim movimento escapatório e em manobra de recurso, furtar-se à colisão que anteviu inevitável?

ARTIGO 24º - O DH sofreu o impacto da colisão predominantemente na lateral esquerda?

ARTIGO 25º - O AX com a colisão sofreu danos na quina frontal lado esquerdo?

Vejamos.

Foi prescindida a seleção dos fatos relevantes para a decisão através da elaboração da BI o que é permitido por lei para casos de simplicidade da causa – artº 508º-B do CPC.

Esta faculdade deve ser exercida comedidamente, cum granno sallis, pois que BI desempenha uma função saneadora, sintetizadora e que em muito contribui para uma cabal seleção dos fatos e, assim, para uma apreciação da causa  de um modo mais linear, racional e célere.

Tal como sagazmente alertado pela recorrente na sua conclusão 7ª, o despacho saneador e a seleção dos factos pertinentes destina-se a evitar que o tribunal, aquando da decisão sobre a matéria de facto, se confronte com um “amontoado” de factos que, naturalmente, dificulta uma cabal, acertada e profícua apreciação dos mesmos.

O caso vertente é  disso paradigmático pois que ele não se apresenta assim tão simples e a omissão de elaboração da BI  poderia acarretar dúvidas, e, quiçá, lapsos ou omissões, que poderiam ser liminarmente dissipados e evitados se tal elaboração tivesse tido lugar.

No entanto sempre se dirá, no que para esta questão concerne, e sem prejuízo do que na seguinte  infra se decidirá, que tais dúvidas não têm razão de ser e estes lapsos ou omissões inexistem.

Na verdade os artºs da contestação aludidos são a versão da ré quanto ao modo como ocorreu o acidente, rectius quanto aos fatores que o despoletaram.

Jurídico-processualmente tal postura consubstancia-se como mera defesa por impugnação, posto que motivada. Na verdade a ré não aceita os factos aduzidos pelo autor quanto á dinâmica e às causas do acidente, antes as contradiz.

Ora, por via de regra, quanto o réu se defende apenas por impugnação – e não já por exceção – a sua tese não necessita de ser quesitada.

Pois que, impendendo o ónus da prova sobre o autor, basta a consideração da sua posição para uma boa decisão da causa: se ele prova os factos por si alegados, ganha, se os não prova, perde; isto independentemente da consideração da tese do réu. A qual, se considerada, implicaria dupla quesitação, desnecessária e excrescente, na terminologia do Mestre Alberto dos Reis.

No caso vertente os dois primeiros artigos reportam-se à causa do acidente, as quais são antagónicas com as invocadas pelo autor, qual seja o excesso de velocidade e a condução no centro da via por parte do condutor do AX, e, bem assim, relacionam-se com o plasmado pelo demandante relativamente ao cumprimento, de sua banda, do sinal de STOP e do posterior avançar  para o entroncamento com cumprimento dos deveres de cuidado.

Ora esta versão do autor quanto às causas do acidente foi considerada e sobre ela foi emitia pronuncia, quer no sentido da sua prova, quer  no da sua não prova.

Mais. Foi até pelo tribunal dado como provado que o autor parou à entrada do entroncamento (mal ou bem, infra se julgará). Logo, e até por esta posição do tribunal a quo, se pode concluir que a versão da ré não seria acolhida e encontra-se tacitamente respondida ou prejudicada pelas respostas dadas quanto às causas e dinâmica do sinistro. Assim, e considerando, inclusive, o que infra se decidirá quanto à alteração da decisão sobre a matéria de facto, ainda que algum interesse ou relevo se possa conceder para tal factualismo, razões de economia de meios e celeridade processual, impedem que se fulmine de tão grave vício a posição do tribunal quanto aos factos alegados e considerados naquela decisão.

Consequentemente, inexiste necessidade de ampliação da matéria de facto, vg., pelo teor doa aludidos artigos, pelo que queda vedada a anulação da sentença com base em tal vício.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

Há que considerar que no nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº655º do CPC.

Perante o estatuído neste artigo pode concluir-se, por um lado, que a lei não considera o juiz como um autómato que se limita a aplicar critérios legais apriorísticos de valoração.

Mas, por outro lado, também não lhe permite julgar apenas pela impressão que as provas produzidas pelos litigantes produziram no seu espírito.

 Antes lhe exigindo que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação – cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

Na verdade prova livre não quer dizer prova arbitrária, caprichosa  ou irracional.

Antes querendo dizer prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente, posto que em perfeita conformidade com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

5.2.2.

Por outro lado há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, dgsi.pt, p.03B3893.

 Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída dialeticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Efetivamente, com a produção da prova apenas se deve pretender criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente num grau de probabilidade o mais elevado possível, mas em todo o caso assente numa certeza relativa, porque subjetiva, do facto. – cfr. Acórdão desta Relação de 14.09.2006, dgsi.pt, citando Antunes Varela.

Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável.- Cfr. Figueiredo Dias, in Dto. Processual Penal I Pág. 205.

Nesta conformidade  - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade, e, até, falibilidade, vg. no que concerne á decisão sobre a matéria de facto.

Mas tal é inelutável e está ínsito nos próprios riscos decorrentes do simples facto de se viver em sociedade onde os conflitos de interesses e as contradições estão sempre, e por vezes exacerbadamente, presentes, havendo que conviver - se necessário até com laivos de algum estoicismo e abnegação - com esta inexorável álea de erro ou engano.

O que importa, é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, tendencialmente, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

É que a verdade que se procura, não é, nem pode ser, uma verdade absoluta -porque assente em premissas de cariz matemático-, mas antes uma verdade político-jurídica, a qual é consecutida se a sentença  convencer os interessados diretos: as partes – e, principalmente, a sociedade em geral, do seu bem fundado: isto é, a sentença valerá acima de tudo se for validada e aceite socialmente.

5.2.3.

Nesta perspetiva tem sido jurisprudencialmente entendido que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas, nem pode significar a desvalorização da sentença de 1ª instância, que passaria a ser uma espécie de "ensaio" do verdadeiro julgamento a efectuar pelo Tribunal da Relação.

 É da decisão recorrida que tem sempre de se partir, porque um tribunal de recurso não julga ex novo.

Assim, a função do Tribunal da 2ª Instância deverá circunscrever-se a "apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1º grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos - Ac. do Trib. Constitucional de  3.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51º, pág. 206 e sgs e Ac. da Rel. de Lisboa de 16.02.05,  dgsi.pt. com realce e sublinhados nossos tal como nas citações infra

Assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a uma fonte de prova em detrimento de outra, com base na imediação e oralidade, tendo por base um juízo objectivável e racional, só haverá fundamento válido para proceder à sua alteração caso se demonstre que tal juízo contraria as regras da experiência comum» -Ac. da Relação de Coimbra de  18.08.04, dgsi.pt.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade -, mais importante do que a validade científica dos mesmos,  pois que o julgador pode não estar habilitado a avaliá-los nesta vertente –Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

5.2.4.

(…)

5.2.6.

Por todo o exposto os factos provados e a considerar são os seguintes:

Factos provados:

1) No dia 20 de Outubro de 2007, pelas 17:40 horas, teve lugar um acidente de viação na Rua Capela de São João, 3105, freguesia da Ilha, concelho de Pombal, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro/passageiros com matrícula DH (...), conduzido pelo autor e o veículo ligeiro/mercadorias com a matrícula AX (...), conduzido por (…).

2) O autor, antes do embate, conduzia o veículo ligeiro/passageiros com matrícula 92- DH-14 na Rua Fonte dos Ratos e pretendia passar a circular na Rua da Capela de São João.

3) Na Rua Fonte dos Ratos existe um sinal B2 de STOP que se situa 10,5 metros de distância antes da entrada do entroncamento das duas vias de trânsito.

4) …

5) o A. ao aproximar-se do entroncamento iniciou manobra de viragem à esquerda para passar a circular na Rua da Capela de São João.

6) O embate ocorreu a cerca de 8, 65 metros do entroncamento.

7) Nessa mesma altura, o veículo AX (...) circulava na Rua da Capela de São João, no sentido de marcha de Ilha de Baixo/ Ilha de Cima, a uma velocidade de cerca 60k/h.

8) O AX circulava pela Rua da Capela de S. João, pela sua mão de trânsito.

9) A Rua da Capela de São João, no lugar da Ilha, onde circulava o veículo AX (...), é uma via de trânsito, com uma faixa de rodagem em cada sentido, sem qualquer delimitação central.

10) A Rua da Capela, antes do local do acidente e tendo em conta o sentido de marcha do veículo AX, apresenta uma curva à direita, seguida de uma recta com cerca de 50 metros até ao local onde situa o entroncamento da Rua da Capela de São João com a Rua Fonte dos Ratos.

11) A via, no local do acidente, tem a largura de 4,50 metros.

12) O piso no local do acidente encontrava-se seco.

13) A velocidade permitida no local é de 50km/h.

14) O embate ocorreu a cerca de 2,20 da berma direita, atento o sentido de marcha do DH.

15) O veículo AX travou, tendo deixado rastos de travagem assinalados no piso com 19,10 metros de comprimento.

16) O AX embateu com a parte frontal na frontal lateral esquerda do veículo DH.

17) Após o embate, o veículo DH (...) foi projectado para fora da faixa de trânsito onde circulava, ficando imobilizado num terreno de cultura, situado na berma do lado direito, tendo em conta o sentido de marcha do DH.

18) O AX, após o embate, imobilizou-se ficando atravessado na via, com a sua parte frontal virada para a faixa de rodagem onde circulava o veículo DH.

19) A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação por qualquer dano patrimonial e/ou não patrimonial causado pela circulação do veículo de matrícula AX (...) encontrava-se transferida para a seguradora aqui ré, através de contrato de seguro válido, titulado pela apólice nº. 750942171.

20) A viatura DH foi adquirida em Abril de 2007 pelo valor de €10.677,50

21) Em consequência do acidente o DH  sofreu danos por virtude dos quais deixou de circular.

22) O Autor, em consequência do acidente, recebeu assistência médica no Hospital de Gala – Figueira da Foz.

23) Em virtude do referido acidente, o Autor sofreu contusões e traumatismos que o obrigaram, nesse mesmo dia, a receber assistência médica, tendo ficado internado até ao dia 25/10/2007.

24) - Quando o condutor do DH fez entrar a dianteira deste na Rua Capela S. João, o AX já circulava na reta que precede o entroncamento, atento o seu sentido de marcha: Ilha de Baixo > Ilha de Cima.

25) O condutor do DH mudou de direção para a esquerda  para passar a circular a na Rua da Capela de São João, circulando nesta, até ao momento do embate, em obliquidade.

26) O condutor do DH, antes de fazer penetrar este veículo na faixa de rodagem da Rua da Capela, não cuidou de verificar se  do lado  em que circulava o AX se aproximava qualquer veículo.

5.3.

Terceira questão.

5.3.1.

Da culpa no sinistro.

Perante os factos apurados tem de concluir-se que a culpa do acidente não pode ser imputada apenas ao condutor do AX.

Na verdade este agiu com culpa porque circulava em excesso de velocidade.

Mas a atuação do autor também é censurável.

Efetivamente, e independentemente de se não ter apurado se ele parou, ou não, antes do sinal de STOP, ou se parou, ou não, já depois dele e à entrada do entroncamento, certo é que, fosse como fosse, não cuidou de verificar se na estrada onde pretendia entrar, e que se apresentava com prioridade em relação aquela donde saía, circulavam veículos, pelo menos no sentido em que circulava o AX, e que se apresentava como o mais perigoso para si, pois que era aquele que imediatamente ia ocupar aquando da sua manobra de mudança de direção para a esquerda.

A ratio e o fito do sinal vertical de STOP não é tanto obrigar os condutores a parar, ou, noutra nuance, a sua finalidade não se esgota nesta paragem, mas, antes, com a mesma, facilitar/permitir/exigir ao condutor que, com atenção e esforço intelectual e acuidade psicológica e visual, diligencie no sentido de verificar se algum veículo ou obstáculo o impede de efetuar a manobra e/ou continuar a marcha, em segurança.

Consequentemente, da factualidade apurada pode concluir-se que o autor violou, pelo menos, o disposto nos artºs 11º nº2 e 12º nº1 do CE.

Não obstante e quanto à distribuição da culpa entende-se que ela deve ser assacada, em maior grau, ao condutor do AX.

Na verdade a atuação, concausal do sinistro, do autor pode classificar-se como meramente negligente e descuidada, com ela nem sequer tendo perspetivado o sinistro, pois que, neste caso, certamente que assim não agiria.

 Já a conduta do condutor do AX  de condução em excesso de velocidade foi voluntária e assumida. Admitindo, ou sendo-lhe exigível que admitisse, que, por qualquer motivo, tal velocidade excessiva poderia causar, ou contribuir, para um acidente, tal como veio a acontecer. O que é tanto mais de censurar quanto é certo ser consabido que a velocidade excessiva é a causa primeira dos acidentes rodoviários.

 Acresce que em vias secundárias da natureza das presentes, o cuidado com a velocidade deve ser acrescido, pois que elas não reúnem as condições de segurança das vias rápidas ou autoestradas, por virtude, vg. dos seus sucessivos cruzamentos e entroncamentos e dos  seus inúmeros e potenciais fatores acrescidos de risco, como sejam, a circulação ou surgimento repentino de veículos, pessoas, animais e objetos.

Ademais, não obstante se ter apurado que o AX circulava a uma velocidade de cerca de 60KM/H, as circunstancias do caso apontam mais no sentido de uma velocidade superior do que inferior a tal numero.

Na verdade, o AX deixou um rasto de travagem de quase 20m e, não obstante, ainda embateu no DH com a violência bastante para causar os graves danos materiais e pessoais que se provaram ou indiciam, sendo que tudo aconteceu numa reta, na qual é suposto o seu condutor ter perceção visual numa distancia bastante para, se circular a velocidade adequada ou razoável, evitar o embate ou, ao menos, minimizar o impacto do mesmo e os consequentes danos.

Ora esta velocidade era claramente desadequada às condições da via – até porque, na versão do condutor do AX, no momento, estava a chover –, constituindo ele uma flagrante violação do artº 24º nº1 do CE, pelo que o juízo de censura a imputar sobre a sua conduta é mais grave do que o imputável à conduta do A.

Tudo visto e ponderado considera-se justo e equitativo distribuir a culpa do acidente pelos respetivos condutores na percentagem de 65% para o do AX e de 35% para o do DH.

5.3.2.

Da obrigação de indemnizar e do quantum indemnizatório.

A ré pugna pela inadmissibilidade/ilegalidade da sua obrigação de indemnizar porque, diz, nem sequer foram dados como provados os danos na viatura do autor.

Mas tal handicap, a existir, foi, como se viu, neste tribunal ad quem inequivocamente ultrapassado, pois que, dos elementos probatórios constantes nos autos emerge, à saciedade, que o DH sofreu danos decorrentes do acidente rodoviário em causa, facto que foi consagrado na atinente decisão, para que dúvidas não houvessem.

Todavia, sempre seria defensável concluir que tais danos resultavam da factualidade provada pela 1ª instância, nos pontos 16 e 21, devidamente interpretada. O que foi entendimento da Sra. Juíza quando na sentença consigna: «tendo-se demonstrado que a mesma sofreu danos que a impediam de circular, sempre poderá em liquidação de sentença apurar-se quais os concretos danos sofridos pela mesma, sendo certo que a indemnização a atribuir nunca poderá ser superior ao montante de €10.677,50, peticionado pelo autor.»

Assim, e porque in casu se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana  relativamente ao condutor do AX, a obrigação da ré em indemnizar, ex vi do contrato de seguro firmado, emerge.

E emerge nos termos definidos na sentença, ou seja, e no que se reporta, desde logo, ao prejuízo sofrido com o veículo do autor, pela condenação na reparação dos danos que o mesmo sofreu. Sendo que quanto aos demais a recorrente não os contesta, pelo menos adrede e inequivocamente nas conclusões, como é legalmente exigível.

Na verdade, e como já supra se aludiu, o pedido do autor na indemnização pelo valor venal do carro, não obsta, à míngua de factos provados que clamem a conclusão que o custo da reparação é superior aquele valor, e considerando que se provou que o seu veículo sofreu danos, se condene no quantum necessário à reparação, naturalmente e como bem referido na sentença , tendo-se como limite  máximo o valor de €10.677,50, peticionado pelo autor e, agora, e por força da distribuição de culpas, a quota parte de 65% fixada para o condutor do AX.

 Percentagem esta que, outrossim, deverá incidir sobre os restantes montantes indemnizatórios arbitrados.

6.

Sumariando.

I – Inexiste a nulidade da sentença por condenação em objeto diverso se, em ação de indemnização por acidente de viação, o autor pede a condenação da ré no pagamento do valor venal do veículo com a alegação da reparação ser superior a este valor e o tribunal, não se provando tal alegação, mas apenas os danos do veículo, condena no montante necessário à sua eliminação.

II – Sem prejuízo da realização conscienciosa da justiça do caso, o que passa, vg., pela consideração das posições das partes, deve perspetivar-se a prolação da decisão com celeridade e economia de meios.

III – Se se prova que o veículo A deixou rastos de travagem em que a linha de travagem das rodas do seu lado direito, medeou da berma direita, desde o seu início até ao seu fim, entre  1,30 a 1,80 m, e foi depois  embater no veículo B - que entrava na via por onde aquele circulava oriundo, em manobra de viragem à esquerda, de estrada que com ela entroncava -, essencialmente na porta do condutor, não pode dar-se como provado que o embate se verificou quando aquela manobra estava já concluída e este veículo já circulava totalmente inserido na hemi faixa direita da via onde pretendia entrar, e, assim de frente para o veículo A., mas antes que ainda estava em plena manobra e obliquado perante este.

IV – Nestas circunstancias, o acidente tem de ser assacado aos dois condutores, devendo o condutor do veículo A, porque, assumidamente, circulava em excesso de velocidade, versus a conduta do condutor do  veículo B consubstanciada na entrada descuidada  na via  onde aquele circulava sem cuidar de se certificar da aproximação de veículos, ser considerado o principal culpado.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, condenar  agora a ré a pagar ao autor 65% dos montantes seguintes:

- do correspondente a indemnização referente à reparação da viatura sinistrada a apurar em liquidação de sentença que terá como valor máximo €10.677,50, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

- do correspondente a indemnização pela privação do uso da viatura sinistrada a apurar em liquidação de sentença, não podendo ser superior a €1 500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

- do correspondente a indemnização por danos não patrimoniais sofridos no montante de €1 000,00.

Custas na proporção da presente sucumbência.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Carlos Marinho