Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
498/12.4TBTNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PARENTESCO
SINISTRADO
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS – 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 496º, Nº 1 DO C. CIVIL.
Sumário: i. O dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse, e pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato.

ii. A lei – artigo 496.º C. Civil - refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos.

iii. Na verdade a lei e, máxime, a sua interpretação, deve, por via de regra e salvo situações excepcionais, representar a emanação do sentimento comum e acolher e ser operada de acordo com as concepções éticas socialmente vigentes e prevalecentes.

iv. E sendo que a defesa da dignidade do ser humano e a valorização da sua vertente psicossomática são valores e bens cada vez mais atendíveis e tuteláveis na hodierna sociedade portuguesa, mal se compreenderia, que, pelo menos nos casos mais gravosos, não fosse indemnizável a forte afectação da vertente pessoal, consubstanciada em inequívocos e gritantes sofrimentos, podendo a sua postergação constituir injustiça e iniquidade intoleráveis.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

A A. M…, casada, domestica, residente na Rua …, intentou a presente acção comum sob a forma ordinária contra a R. Companhia de Seguros B…, S.A., com sede na Rua ...

Em síntese, alegou que é casada segundo o regime da comunhão de adquiridos com P...

No dia 27 de Abril de 2009, ocorreu um acidente de trânsito no qual foram interveniente o seu marido. Esse acidente deveu-se à descuidada manobra da condutora de um veículo seguro pela R., a qual empreendeu a manobra de marcha atrás, derrubando uma empilhadora que atingiu o marido da A..

Este sofreu diversos ferimentos, apresenta um quadro neuromotor de paraplegia ASIA A, com nível neurológico D11, encontra-se algaliado em drenagem contínua para sistema fechado; necessita de treino intestinal, com medicação em dias alternados; apresenta tónus muscular nos membros inferiores; encontra-se dependente em AVD’s; apresenta uma incapacidade permanente parcial de 75%.

O marido da A. necessita de reeducação vesico-esfinteriana intestinal e sexual.

 Necessita de assistência médica permanente e de substituição permanente dos mecanismos ligados à incontinência.

A A. como mulher do acidentado veio a sofrer e sofrerá directa e reflexamente graves danos quer de natureza patrimonial quer não patrimoniais.

A A. era uma mulher que à data do acidente tinha 41 anos e, o filho mais novo com 11 meses. A partir da data do acidente, até hoje e futuramente, seu marido ficará na sua dependência. A Autora deixou de ter vida autónoma, pois o acidentado seu marido não se lava, não se veste, não se deita sozinho, pois esta agarrado a uma cadeira de rodas e, no dia-a-dia, há barreira arquitectónicas.

A vida sexual normal deste casal jamais é possível, pois seu marido ficou impotente, e impossibilitado de ter relações sexuais, erecção e ejaculação.

 Na gestão da casa não pode seu marido prestar o mais elementar apoio, compra de géneros alimentícios, limpezas, orientação dos filhos menores, deslocar-se autonomamente, a não ser dentro de casa.

E trata-se de um casal jovem, a A. tinha 41 anos à data do acidente, pois nasceu em 6/10/1967 e seu marido 44 anos, pois nasceu em 7 de Abril de 1965, constituindo um casal feliz.

Terminou peticionando que a acção seja julgada procedente por provada, e em consequência a Ré condenada a pagar à A. a importância de 50.000,00€, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora legais após a sua fixação definitiva.

A R. B…, S.A., veio contestar a fls. 39, referindo que o que está em causa não é um acidente de viação, pois participava na operação de descarga do veículo, está excluída a cobertura do contrato de seguro porque a condutora é sobrinha do sinistrado, o sinistrado teve culpa no acidente ao colocar-se naquela posição, e o art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil, exclui o direito de indemnização da A..

Após julgamento, a 1.ª instância proferiu a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, porque provada em parte, e condeno a R. Companhia de Seguros B…, S.A., a pagar à A. M… a quantia de € 40.000 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora vincendos desde a presente data até efectivo e integral pagamento, à taxa legal que estiver em vigor.

Absolvo a R. de tudo o mais que foi peticionado.”.

2. Objecto da instância de recurso

B…, S.A., Ré nos Autos em referência, não se conformando com a Sentença proferida, dela vem interpor Recurso de APELAÇÃO, alinhavando as seguintes conclusões:

A autora/apelada M… responde ao recurso, concluindo:

As questões a decidir são as seguintes:

i. Da obscuridade na decisão da matéria de facto;

Diz a recorrente que, “...se a E… conduzia o veículo (ponto 2.6), se na altura era noite e o veículo dirigia-se ao terreno a fim de aí descarregar um empilhador (2.8), não se percebe porque o Tribunal a quo não demonstra, como é que no circunstancialismo supra descrito (sic) E… tinha o veículo parado (??), encontrando-se a cerca de 2/3 metros da traseira deste um empilhador (2.13) que colheu P… que passava por trás (2.16).

Há um lapso temporal que não consta dos factos, e por isso se defende que há obscuridade que torna a Decisão de Facto ininteligível (art. 615º nº 1 c) do NCPC.

Confirma-se a realização de uma manobra integrada numa operação de carga e descarga, configurando um acidente de laboração.

O referido evento ocorreu quando a condutora do veículo 18-BF-36 realizava uma manobra de marcha atrás integrada numa operação de carga e descarga, a qual está excluída pelo art. 14º nº 4 al. c) do DL 291/2007. Como tal, está excluído da cobertura de responsabilidade civil automóvel, e conduz à procedência do Recurso e absolvição da Recorrente”.

Com todo o respeito pela alegação da apelante – que coincide no essencial com a que apresentou no Processo … -, entendemos que não tem razão.

No seguimento do Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Coimbra – apelação n.º … – no qual se discutiram todas as questões agora levantadas pela apelante, nomeadamente a questão da dinâmica e culpa no acidente e a exclusão da responsabilidade (parentesco e operações de carga e descarga) -, as partes lavraram acordo, que se encontra a fls. 141, no qual assentaram:

“...em vista do trânsito em julgado da decisão proferida no processo n.º …, em que o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu confirmar a condenação da ré B… como única responsável pelo ressarcimento dos danos ocorridos em consequência do acidente, acordam em considerar assentes por acordo todos os quesitos da Base Instrutória, com excepção dos quesitos 26 a 30, que são eliminados.

O presente litígio fica assim reduzida à questão de direito de saber se a autora tem direito ao ressarcimento da lesão e o valor que invoca”.

Ou seja, movidas pelo sempre presente princípio da cooperação, as partes restringiram – porque consideraram estarem todas as restantes questões já suficientemente explicadas e decididas no citado Acórdão, que tem cópia a fls. 90 a 126 – o objecto desta acção a duas questões:

i. O alcance da norma do artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil;

 e,

ii. O “quantum indemnizatório”.

Por isso, a 1.ª instância coloca no seu escrito, que,“... em vista do teor da certidão de fls. 72, relativa a anterior processo movido à R. pelo marido da aqui A., bem como à posição expressa pelas partes aquando da audiência de discussão e julgamento, a questão central a resolver é, neste momento, meramente de direito e traduz-se no reconhecimento ou não do direito da A. a ser compensada pelos danos não patrimoniais que emergem do acidente de que o seu marido foi vítima.

E, na afirmativa, na determinação desses danos e do quantum indemnizatório”.

Nada mais.

Mas, mesmo que não se verificasse tal circunstancialismo, a invocada contradição não corporiza qualquer nulidade, antes devendo ser analisada à luz da previsão do n.º 4 do artigo 712.º do Código do Processo Civil, o que nos autos não acontecerá atento o acordo fixado no tocante à matéria de facto, além de que a apelante não deduz verdadeira impugnação da matéria de facto.

Mais, a factualidade assente ajusta-se (sendo suficiente) com a decisão proferida pelo Tribunal de Torres Novas.

Não existe qualquer insuficiência ou desarmonia entre a fundamentação e a decisão.

Avançando.

A 1.ª instância fixou a seguinte matéria de facto:

ii. Aplicação da norma do artigo 496.º, nº 3 do C. Civil:

Trata-se de reconhecer, ou não, à autora o direito a ser indemnizada pelos danos que sofreu em consequência do acidente em que o seu marido P… foi interveniente e lesado.

A 1.ª instância diz que sim.

Fundamenta a sua opção com as seguintes palavras:

“A jurisprudência e a doutrina dividem-se quanto ao reconhecimento do direito de indemnização pelos danos não patrimoniais ou reflexos que se verifiquem na esfera de terceiros (não directamente lesados pelo acto ilícito) (…) Ponderados todos estes argumentos, afigura-se que a Lei Civil, em particular o art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil, não só admite como impõe o ressarcimento dos danos sofridos pela autora na sequência do acidente de que foi vítima, em primeira linha, o seu marido P...

A A. M… também foi vítima desse acidente, pois sofreu danos que, inquestionavelmente, o direito não pode deixar de os considerar muitíssimo relevantes e de os tutelar…”.

É um facto, que o seguro obrigatório, como ensina o Prof. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 10ª ed. vol. I, pág. 709, é “… um seguro pessoal (da responsabilidade civil da pessoa que possa ser obrigada a reparar os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões causadas por veículos) e não um seguro real”.

E sendo a sua obrigatoriedade estabelecida no interesse de terceiros vítimas do acidente, e não do condutor ou detentor do veículo, carecia de sentido que o seguro garantisse ou garanta a indemnização aos familiares respectivos pelos danos emergentes da morte/ofensas corporais do próprio condutor que a ela deu causa”.

Não pode, assim, haver dúvidas de que, nos termos do nº 1 do art.º 14º do Dec. Lei nº 291/2007, de 21/08 (seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), estão agora excluídos da garantia do seguro obrigatório, quer a indemnização pelo dano da morte do condutor do veículo, quer os danos morais da sua perda, sofridos pelas pessoas mencionadas nos nºs 2 e 3 do artº 496º do C. Civil, quando o condutor se apresenta como o responsável do evento danoso – não fora assim, estaríamos no domínio de uma espécie de seguro de vida (ou, enfim, algo de parecido) a favor de familiares em caso de morte da pessoa segura.

Mas, nos autos está demonstrado que a culpa na produção do acidente é imputável à condutora E…, o que torna a solução jurídica não unânime, como a 1.ª instância cita no seu escrito e que aqui reproduzimos.

Não poderemos deixar de concordar com a 1.ª instância quando, fundadamente, opta pela tese actualista.

Por isso, basta-nos reproduzir, nestes autos, o escrito da 1.ª instância.

“O art.º 496.º do Código Civil, preceitua que:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.

Uma primeira orientação interpretativa, dita clássica ou tradicional, sustenta que a resposta a este tipo de pretensões de ressarcimento dos danos não patrimoniais indirectos, isto é que surgem na esfera jurídica de outras pessoas que não os lesados directos com o acto ilícito, deve ser negativa.

Partindo de uma visão restritiva e limitadora do dever de indemnizar, restringem apenas a quem é directamente lesado com o acto ilícito a titularidade do direito à indemnização.

Evidencia-se nesta orientação a preocupação em evitar desmedidas, despropositadas ou abusivas pretensões indemnizatórias contra os lesantes e contra quem assumiu a responsabilidade destes, como é o caso das seguradoras. Esgrime-se o argumento da natureza excepcional do citado art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil:

só em caso de morte há direito à indemnização por danos não patrimoniais e apenas quanto às pessoas aí indicadas. E tal norma, por ser excepcional, não comporta interpretação analógica, nem extensiva.

No sentido desta orientação: SINDE MONTEIRO in Revista de Direito e Economia, XV, 370, DARIO DE ALMEIDA, Manual, pág.165, ANTUNES VARELA, R.L.J., ano 103, pág. 250, nota 1, Revista dos Tribunais, ano 82, pág. 409, os acórdãos R.P. de 4/4/91, C.J. ano XVI, tomo I, pág.255, R.C. de 20/9/94, C.J. ano XIX, tomo IV, pág. 35, R.C. de 26/10/93, C.J. ano XVIII, tomo IV, pág.69, R.L. de 6/5/99, C.J. ano XXIV, tomo III, pág.88, S.T.J. de 21/3/2000, C.J. ano VIII, tomo I, pág.138, STJ de 21.3.2000, p. 1027/99, de 26.2.2004, p. 4298/03, de 31.10.2006, p. 3244/06, de 1.3.2007, p.4025/06 e de 17.9.2009, p. 292/1999.S1.

Contra esta orientação há muito que se levantam vozes discordantes e autorizadas, que pugnam pela relevância e tutela dos danos não patrimoniais indirectos, nas casos em que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito – art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil.

Desde logo, VAZ SERRA, em anotação ao acórdão do S.T.J. de 13/1/70, defende a possibilidade de interpretação extensiva: “Ora, o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato”.

Se, por ex., como na hipótese sobre que o acórdão incidiu, um filho menor é vítima de um acidente de viação, ficando aleijado gravemente, a dor assim causada a seus pais pode ser tão forte como o seria se o filho tivesse morrido em consequência do acidente ou mais forte ainda.

Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais o direito a satisfação pela dor sofrida põe eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.

Para se admitir tal direito, bastará dar à al. 3 do nº 1 do artigo 56 do Código da Estrada uma interpretação extensiva, considerando-a aplicável também a outros casos em que os parentes nela indicados sejam causados danos em consequência da lesão do lesado imediato, ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte deste.

A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma (RLJ, ano 104, pág. 14 e 15).

Os n.ºs 2 e 3 do art.º 496.º do Código Civil não postergam o princípio geral consagrado no seu n.º 1: qualquer pessoa que sofra danos não patrimoniais tem direito a ser indemnizada, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é evidente.

Um dos exemplos da relevância dos danos sofridos por terceiros é aquele em que, por virtude de um acidente de viação, o lesado ficou numa situação de impotência sexual, prejudicando o relacionamento sexual no casamento.

Nesta situação, trata-se de um dano directo, e não reflexo, cuja obrigação radica na violação do direito da personalidade, o direito à sexualidade sexual (art.70 do CC) (cf. Cons. SOUSA DINIS, Dano Corporal em acidentes de viação, C.J. ano IX, tomo I, pág.11 e 12, Ac RP de 26/6/2003, C.J. ano XXVIII, tomo III, pág. 200).

O Desembargador ANTÓNIO GERALDES, num excelente artigo sobre a “Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros“, publicado nos Estudos de Homenagem ao Prof. INOCÊNCIO GALVÃO TELES, vol.IV, pág.263 e segs.), analisou com profundidade esta temática, designadamente com contributos do direito comparado, chegando à seguinte conclusão:

“São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.496 nº 1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado;

“ Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº 2 do art. 496“.

Conclui-se, por isso, ser de rejeitar a doutrina clássica, eivada de uma lógica demasiado formal, sem atentar que o direito deve servir para a vida e a jurisprudência, que tem desempenhado um papel preponderante na reelaboração do direito da responsabilidade civil, designadamente no âmbito dos acidentes de viação, não pode deixar de utilizar todo o arsenal metodológico que possibilite adequar eficazmente o direito à realidade social dos tempos modernos, o que implica, no dizer do grande pensador do século XX, que foi MICHEL FOUCAUL, transformar o direito civil numa “ jurisdição de tipo sociológico “ (FRANÇOIS EWALD, Foucault, A Norma e o Direito, pág.153 e 154) – acórdão da Relação de Coimbra de 25/5/2004, disponível na base de dados da DGSI, proc. 3480/03).

E, também no sentido da tutela deste direito, visto como um dano directo, cita-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/9/2009, numa situação semelhante:

“No caso presente o autor pediu e viu satisfeita pelas instâncias, como já se referiu, a concessão duma reparação pelos danos morais sofridos em consequência do acidente que vitimou a autora, sua mulher. E cremos que, vistos os factos apurados e a interpretação dos textos legais aplicáveis que reputamos adequada, acima exposta, a decisão é de manter (note-se que a recorrente não questiona o valor da reparação arbitrada, mas sim o direito a ela). Efectivamente, não há qualquer dúvida de que a comunhão plena de vida que constitui o elemento definidor essencial do casamento, nos termos do artº 1577º, ficou profundamente alterada por virtude do acidente sofrido pela autora. Tal comunhão, segundo a lei, é constituída pelo conjunto de direitos e deveres recíprocos que vinculam os cônjuges, fixado no artº 1672º; e ante os factos relatados, designadamente, sob os nºs 32 a 37, 39 a 45, 49 a 52, 60 e 61, reveladores das sequelas físicas e psíquicas que passaram a afectar em permanência a autora, é inquestionável que a consistência prática, se assim nos podemos exprimir, dos direitos de coabitação (no qual se inclui o débito conjugal), cooperação e assistência de que o autor é titular enquanto membro da sociedade conjugal que forma com sua mulher ficou seriamente comprometida; tais direitos – todos eles – sofreram uma relevante amputação, desequilibrando em manifesto desfavor do autor os pratos da balança que integra a comunhão de vida por ambos projectada; e quando se tenha na devida conta a relativa juventude de ambos à data do acidente, em conjugação com o facto de então constituírem um casal feliz e realizado, unido pelo casamento há dezanove anos, logo se poderá concluir como assumem particular gravidade os danos morais do recorrido, justificando-se, por isso, a sua tutela jurídica no quadro do artº 496º, nº 1.

Trata-se, aliás, nesta perspectiva, de danos directos – e não de danos reflexos ou causados a terceiros – por isso que atingem concomitantemente ambos os autores enquanto pessoas casadas uma com a outra” – DGSI, proc. 2733/06.9TBBCL.S1.

O recente acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Maio, cita a Resolução 75-7 do Conselho da Europa, de 14.3.1975, a qual no seu n.º 13.º estipula: O pai a mãe e o cônjuge da vítima que, em razão, duma ofensa à integridade física ou mental desta, tiverem sofrimentos psíquicos, não podem obter reparação deste dano a não ser em presença de sofrimentos de carácter excecional; outras pessoas não podem pretender uma tal reparação.

E conclui: “Na verdade a lei e, máxime, a sua interpretação, deve, por via de regra e salvo situações excepcionais, representar a emanação do sentimento comum e acolher e ser operada de acordo com as concepções éticas socialmente vigentes e prevalecentes.

E sendo que a defesa da dignidade do ser humano e a valorização da sua vertente psicossomática são valores e bens cada vez mais atendíveis e tuteláveis na hodierna sociedade portuguesa, mal se compreenderia, que, pelo menos nos casos mais gravosos, não fosse indemnizável a forte afectação da vertente pessoal, consubstanciada em inequívocos e gritantes sofrimentos, podendo a sua postergação constituir injustiça e iniquidade intoleráveis” – DGSI, proc. 2582/7.7TBCBR.C1.

Seguindo na mesma direcção, embora apelando a outros fundamentos, o acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/11, argumenta lapidarmente: “Volvidos mais de quarenta anos sobre a entrada em vigor do Código Civil vigente, num quadro de grande sinistralidade estradal, com a obrigação legal de segurar a responsabilidade civil no que respeita a danos causados a terceiros e com a melhoria das condições de assistência médica que permitem a sobrevivência de pessoas que anteriormente dificilmente sobreviveriam, há que questionar se o referido projecto normativo ainda se mostra adequado às novas realidades da vida, isto é, se não ocorre presentemente uma situação carecida de tutela jurídica e que não tem o necessário arrimo normativo expresso.

Na nossa perspectiva, os familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente, de forma irreversível, acham-se numa situação em tudo equiparável do ponto de vista dos interesses em jogo à situação dos familiares de uma vítima que morre em consequência das lesões. Por vezes, o sofrimento de familiares de vítimas que sobrevivem fortemente incapacitadas, poderá até ser superior ao dos familiares de uma vítima que vem a falecer.

Neste circunstancialismo, afigura-se-nos que as previsões dos nºs 2 e 3 do artigo 496º do Código Civil são lacunosas carecendo de ser preenchidas por um procedimento de analogia legis.

Em contraponto, dir-se-á que a existirem as apontadas lacunas, as mesmas não serão susceptíveis de ser supridas por um procedimento analógico, dado estarem em causa normas excepcionais, normas relativamente às quais o legislador exclui a aplicação analógica (artigo 11º do Código Civil).

Daí que, sensíveis a este argumentário, segundo cremos, alguns se acolhem à sombra da difícil se não impossível distinção da interpretação extensiva da integração analógica, invocando um proteico espírito do legislador, para desse modo completar a previsão normativa de acordo com aquilo que afirmam ser o espírito do legislador.

A objecção que antecede ao procedimento analógico obriga-nos a determinar o sentido da proibição da aplicação analógica das normas excepcionais.

Segundo cremos, com esta proibição legal, o que o legislador pretendeu foi evitar que um regime excepcional pudesse por via da aplicação analógica ser transformado num regime regra.

 No entanto, se na situação omissa se verificarem as razões que levaram à adopção do preceito excepcional, parece que nada obstará à aplicação analógica da norma excepcional. Ao invés, parece que tal procedimento será uma decorrência necessária do princípio da igualdade, uma exigência da justiça do caso.

Ora, a nosso ver, as razões que levaram ao disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 496º do Código Civil também se verificam relativamente aos familiares de pessoas vítimas de lesões corporais graves que as afectam de forma permanente e irreversível, pelo que se justificará a aplicação analógica de tais preceitos a estes casos” – DGSI, processo n.º 5441/05.4TBLRA.C1”.

Resta a 2.ª questão (o valor indemnizatório).

Mostram os autos que, na sequência do embate descrito e das lesões sofridas por P…, este ficou paraplégico, com total insensibilidade dos membros inferiores; ficou incontinente, passou a sofrer de impotência pós-vascular traumática; os seus intestinos deixaram de funcionar de forma natural; ficou obrigado a mudar de posição de duas em duas horas, para não se ferir e criar escaras.

Mais, na sequência do embate descrito e das lesões sofridas, P… apresenta um quadro neuromotor de paraplegia ASIA A, com nível neurológico D11, encontra-se algaliado em drenagem contínua para sistema fechado; necessita de treino intestinal, com medicação em dias alternados; apresenta tónus muscular nos membros inferiores; e encontra-se dependente em AVD’s; e apresenta uma incapacidade permanente parcial de 75%. − P… necessita de reeducação vesico-esfinteriana intestinal e sexual. − Necessita de assistência médica permanente. − Necessita de substituição permanente dos mecanismos ligados à incontinência. − Por virtude do acidente em causa e das lesões de que P… ficou portador, a Autora sente profundo desgosto por vê-lo incapacitado e sente-se traumatizada pela sua incapacidade.

A partir da data do embate, até hoje e futuramente, P… ficará na dependência da Autora.

A Autora deixou de ter vida autónoma, pois P… não se lava, não se veste, não se deita sozinho, nem consegue ultrapassar sem ajuda as barreiras arquitectónicas que enfrenta na cadeira de rodas que necessita para se movimentar.

A vida sexual normal da Autora e de P… jamais é possível, pois este ficou impotente, e impossibilitado de ter relações sexuais, erecção e ejaculação.

A Autora sente desânimo perante a vida, podendo vir a desenvolver quadro clínico do foro psiquiátrico.

Na gestão da casa, designadamente compra de géneros alimentícios e limpezas, ou na orientação dos filhos menores, P… deixou de poder dar o mais elementar apoio.

Poderemos concluir, que estas lesões são muitíssimo relevantes, em termos pessoais, sociais e económicos.

E, não se diga, como a propósito escreve a 1.ª instância, “… que a indemnização a que a R. foi condenada a pagar ao marido da A. já ressarciu a M….

Tal indemnização apenas se centrou na pessoa do P… e nas lesões que este sofreu.

Mas essas lesões repercutiram-se também na esfera jurídica da aqui A. e a anterior indemnização não equacionou as consequências para a M...

O projecto de vida da A. – partilha de esforços e de convivência marital – sofreu uma grande e grave alteração aquando do acidente. O acidente não foi apenas um episódio relevante e pleno de consequências para o P... Também para a M… significou uma alteração gravosa para a sua vida, vendo-se, em larga medida, perturbada nos seus próprios direitos (vg. à sexualidade) e nas suas expectativas e sobrecarregada com os seus deveres conjugais, que se elevaram exponencialmente.

Em vista da relação matrimonial existente entre a A. M… e o sinistrado P… e das extensas lesões e consequências evidenciadas nos factos apurados, inclusivamente de forma directa nos direitos da própria A., é de acolher a pretensão desta e de reconhecer o direito a ser compensada por todos os danos que também sofreu”.

Por isso, achou o valor de € 40.000,00 para compensar tal dano.

A apelante não se conformando com tal valor diz:

“Em caso de entendimento diferente mas sem conceder, há a salientar que o valor atribuído à Recorrida a título de compensação é exorbitante e não justificado, aproximando-se perigosamente dos valores praticados em caso de dano morte, que é defendido por todo universo Jurisprudencial e Doutrinal como o bem supremo”.

Com todo o respeito pelo valor deste dano não patrimonial (sofrido pela companheira do lesado) fixado pela 1.ª instância, teremos de concordar com a apelante.

De facto, os princípios da igualdade e da unidade do direito e o valor da previsibilidade da decisão judicial vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização.

 Ou seja, o recurso à equidade não obsta à ponderação, como termo de comparação, dos valores pecuniários encontrados para o mesmo efeito noutras decisões judicias relativas a casos semelhantes, transitadas em julgado, sem prejuízo das especificidades e particularidades do caso que, concretamente, é submetido à apreciação do tribunal.

Na decisão proferida no Processo n.º … foi fixada o valor de €50.000,00 a favor do lesado P...

Ora, por muito intensa e duradoura que seja a relação do casal, entendemos que o valor da dor sofrida pela autora M…, não poderá situar-se tão próximo do valor que o julgador achou para o sofrimento do marido P...

Mais, o valor médio fixado para o dano morte – será naturalmente o mais intenso - situa-se nos valores extremos de € 50.000/70.000.

Por isso, achamos que a quantia de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), mostra-se justa e adequada para, de alguma forma, compensar a alteração na vivência do casal.

 Resta o sumário:

i.O dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato.

ii.A lei – artigo 496.º - refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos.

iii.Na verdade a lei e, máxime, a sua interpretação, deve, por via de regra e salvo situações excepcionais, representar a emanação do sentimento comum e acolher e ser operada de acordo com as concepções éticas socialmente vigentes e prevalecentes.

iv.E sendo que a defesa da dignidade do ser humano e a valorização da sua vertente psicossomática são valores e bens cada vez mais atendíveis e tuteláveis na hodierna sociedade portuguesa, mal se compreenderia, que, pelo menos nos casos mais gravosos, não fosse indemnizável a forte afectação da vertente pessoal, consubstanciada em inequívocos e gritantes sofrimentos, podendo a sua postergação constituir injustiça e iniquidade intoleráveis.

3. A Decisão

Pelas razões expostas e no provimento parcial do recurso, fixamos em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), o valor indemnizatório devido à autora M…, confirmando-se, no mais, a douta decisão recorrida.

Custas na proporção do decaímento.

Coimbra, 1 de Abril de 2014.

(José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Jaime Ferreira)