Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1172/22.9T9LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DEFICIENTE DOCUMENTAÇÃO/PERCEPÇÃO DE DEPOIMENTO
NULIDADE
IRREGULARIDADE
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 363º, 364º, 120º, 122º, 101º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, AUJ N.º 13/2014.
Sumário:
I. A deficiente perceção em audiência pelos próprios intervenientes no julgamento do depoimento de uma testemunha que foi ouvida por teleconferência não é equiparável à omissão ou deficiente documentação, a que se refere o AUJ n.º 13/2014, não se encontrando ferido de nulidade.
II. Se o arguido, ali presente, considerou que o depoimento em causa é essencial e que é impercetível, impedindo-o de impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deveria, logo naquele momento, dar a conhecer essa sua posição e tornar notório para o Tribunal que considerava ocorrer uma irregularidade de tal forma grave que afetaria todos os atos subsequentes.
III. Não o tendo feito, a irregularidade mostra-se sanada.
Decisão Texto Integral:

            Acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. RELATÓRIO

            1. No processo comum coletivo, com o NUIPC1172/22.9T9LRA que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, no Juízo Central Criminal de Leiria, foi proferido acórdão, em 19-06-2023 [referência104158267], com o seguinte dispositivo (transcrição):

               «Em face do exposto, decidem os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo julgar procedente, por provada, a acusação pública deduzida, e, em consequência:

. ABSOLVER o arguido da prática de um dos crimes de violência doméstica imputados (relativo ao seu filho AA);

. ABSOLVER o arguido da prática dos três crimes de ameaça agravada imputados;

. ABSOLVER o arguido da prática do crime de detenção de arma proibida imputado;

. CONDENAR o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e d), nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada crime;

. Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, CONDENAR o arguido BB na pena única de 5 (cinco) anos de prisão;

. SUSPENDER a execução da referida pena pelo período de 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova;

- O regime de prova (artigo 53º, nº 1 do Código Penal) aplicado ao arguido assentará em plano individual de readaptação social, a ser delineado pela DGRSP, e do qual constarão, nomeadamente, os seguintes deveres:

a) de resposta a todas as convocatórias do juiz responsável pela execução do plano e do técnico de reinserção social;

b) de recebimento de visitas do técnico de reinserção social e de comunicação ou colocação à sua disposição, com a máxima prontidão possível, de informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;

c) de informação ao técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação com duração superior a oito dias, indicando a data previsível do regresso;

d) de frequência de programa de agressores de violência doméstica;

e) da obrigação, durante dois anos, de afastamento do arguido de pelo menos 500 metros da residência e do local de trabalho de CC e de DD;

f) de proibição, durante dois anos, de todo e qualquer contacto com a CC e DD – presencial, por telefone, e-mail, carta ou redes sociais, por si ou por interposta pessoa;

. CONDENAR ainda o arguido na pena acessória de proibição de contactos, por si ou por interposta pessoa, e por qualquer meio, com CC e com DD, pelo período de 2 (dois) anos (artigo 152º, nº 4 do Código Penal);

. CONDENAR ainda o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 5 (cinco) anos (artigo 152º, nº 4 do Código Penal);

. Mais CONDENAR o arguido a pagar a CC a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), a título de reparação dos prejuízos sofridos (artigo 21º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16.09 e artigo 82º-A do CPP);

. Mais CONDENAR o arguido a pagar a DD a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), a título de reparação dos prejuízos sofridos (artigo 21º, nº 2 da Lei 112/2009, de 16.09 e artigo 82º-A do CPP);

. CONDENAR, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigo 513º e 514º do CPP, artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao referido diploma), e nas demais custas.»

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido.

            2.1. – O recorrente sintetizou os seus argumentos nas seguintes conclusões (transcrição):

               «V. CONCLUSÕES

a) - Por douto acórdão, o arguido foi CONDENADO

(…)

o) - O arguido requereu a entrega de cópia da gravação das declarações prestadas oralmente na audiência de discussão e julgamento.

p) - Para além do mais que impugna, o arguido pretende que o tribunal ad quem reaprecie a prova gravada.

q) - Sucede que, a mandatária do arguido ao ouvir agravação da mesma, a fim de elaborar parte do presente recurso para a qual o conhecimento da mesma se mostrava necessário, apercebeu-se de que, no que toca ao depoimento da testemunha EE, a correspondente gravação encontra-se, inaudível, ouvindo-se apenas e só, do princípio ao fim, um enorme eco, não se conseguindo discernir o depoimento de forma clara e percetivel.

r) - As respostas dadas pela testemunha não se percebe uma única palavra.

s) - Apenas se consegue perceber apesar de ser com algum esforço, a resposta a uma pergunta do Ministério Publico, acerca da arma e ainda a resposta dada à questão do:

t) - Ministério Público: “Alguma vez a sua irmã, a senhora viu alguma coisa, do casamento deles se era um casamento feliz se eles tinham problemas, viu alguma coisa.

u) - Testemunha: (impercetível)

v) - M. P.: olhe espera lá que nos não a conseguimos perceber…

w) - M. P.: algumavez a sua irmãlhe confidenciou ou lhe pediu ajuda ou lhe disse que se queria divorciar do Sr. BB?

x) - Testemunha: Agora …. Sim.

y) - M.P.: “E há mais tempo nunca aconteceu?”

z) - Testemunha: “Não, pedir o divorcio, não.

aa) - M. P.: “não, ou que se queria separar dele ou pedir-lhe conselhos sobre como é que o havia de fazer? foi só agora desta última vez?

bb) - Testemunha: exatamente, desta vez, antes … (Impercetível

cc) - M.P.: Olhe alguma vez ela lhe contou se era um casamento feliz?

dd) - Testemunha: impercetível… senhor BB … irmã…impercetível … enganar … impercetível … eu até …impercetível…

ee) - M.P.: Oh d EE espere aí um bocadinho que nós não a conseguimos perceber

ff) - Juiz: ou fala mais devagar, a senhora está a falar muito rápido…

gg) - Testemunha: impercetível

hh) - M.P.: tem de falar muito devagarinho

ii) - Testemunha: impercetível

jj) - Ficou irremediavelmente inquinado o depoimento desta testemunha.

kk) - Ora, face a esta situação, necessário é concluir não se ter procedido à exigida documentação de tais declarações.

ll) - Com a reapreciação da prova gravada, o arguido, obviamente, pretendia e pretende ainda, impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

mm) - Para tanto, a audição do depoimento prestado pela dita testemunha, seria absolutamente crucial, pelos motivos supra explanados.

nn) - Tendo em conta o exposto, está o recorrente ilegalmente impossibilitado de impugnar, como era e é sua intenção, a decisão proferida sobre a matéria de facto, vendo assim, e designadamente, postergado o seu direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, o que, além do mais, se traduz numa violação flagrante do seu direito de defesa, direito este aliás consagrado no artigo 32º, n.º 1, da própria Constituição da República Portuguesa C.R.P.).

oo) - Cumpre referir que, nos termos do artigo 363° do C.P.P., «As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade».

pp) - A não documentação das aludidas declarações constitui, pois, uma violação legal cominada com nulidade, sendo assim inválida essa documentação, bem como a audiência de julgamento no seu todo e ainda todos os atos subsequentes, incluindo, naturalmente, a sentença ora impugnada.

qq) - Nulidade esta que ora pois expressamente se deduz.

rr) - Quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua impercetibilidade constituem nulidade dependente de arguição, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no art.º 412º, n.ºs 3 e 4, do C. Proc. Penal, resultando assim inviabilizada a apreciação da prova, pelo Tribunal “ad quem”, em conformidade com o preceituado no n.º 6, do mesmo normativo.

ss) - Na verdade não se consegue alcançar de onde resulta a convicção do Tribunal a quo acerca da “credibilidade” que imprime ao depoimento da testemunha quando se lê no Acórdão: “A testemunha EE, irmã de CC e cunhada do arguido, depôs de forma segura, detalha, lógica e descomprometida, tendo por isso, merecido credibilidade.”

tt) - O depoimento da testemunha não se percebe do início ao fim e consegue-se identificar a resposta a uma pergunta, como se disse supra, com algum esforço.

uu) - Portanto, não se alcança a convicção do Tribunal a quo, acerca da credibilidade desta testemunha, quando não conseguiu perceber o raciocino seguido da mesma.

vv) - Quanto a nós, com o devido respeito, está o mesmo inquinado por impercetibilidade.

ww) - Até o depoimento da assistente CC, é difícil de perceber, onde a Mm Juiz repete a testemunha, muitas vezes com conclusões próprias daquilo que consegue alcançar.

xx) - Nulidade, que, pelos motivos supra expostos se argui.

(…)

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, por tudo o exposto deve ser concedido provimento ao recurso interposto e, consequentemente, revogar-se a douta decisão em crise, devendo ABSOLVER-SE o arguido nos termos peticionados.»

            3. Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, concluindo pela seguinte forma:

«1. Decorre do Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 03 de Julho de 2014, proferido no Processo 419/11.1TAFAF.G1-A.S1: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação     desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.».

2. No dia 23 de Junho de 2023, o recorrente requereu a gravação da audiência, o que lhe foi disponibilizado em 26 de Junho de 2023 e só no dia 20 de Julho de 2023 deu entrada no recurso onde alega a referida nulidade.

3. Foi ultrapassado o prazo dos 10 dias e conforme decorre de jurisprudência obrigatória, a referida nulidade encontra-se sanada.

4. Da mera leitura da fundamentação escrita pelo Tribunal Colectivo, resulta que não se verifica a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.

5. É da meia admissão dos factos feita pelo arguido, as meias explicações apresentadas e da ausência de justificação para os factos relatados na acusação, que quando confrontados com os depoimentos prestados pelas testemunhas, mostram o caminho da decisão perfilhado pelo Tribunal e consequentemente, não se verifica a alegada nulidade e como tal deverá ser mantido o acórdão.

6. Por não ter sido impugnada a matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º3, do Código de Processo Penal, apenas está em causa a verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que haveria de resultar da leitura do texto do acórdão e que não se verifica.

7. A condenação na pena de 5 anos de prisão, suspensa na execução com sujeição ao regime de prova, pela prática de dois crimes de violência doméstica agravada, com uso de arma de fogo, revela-se adequada e proporcional à culpa do recorrente e deverá ser mantida.

Por tudo o exposto entendemos dever improceder, na totalidade, o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se na íntegra o acórdão.»

(…)

            6. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de que deve ser mantido o teor integral do acórdão em recurso, sustentando, em síntese o seguinte:

            - A gravação do depoimento da testemunha EE não está afetada de qualquer deficiência, sendo, até, de boa qualidade. Ocorreu, isso sim, deficiente transmissão via “webex”, tendo o depoimento sido ouvido na sala do tribunal com cortes.

            - Tal depoimento não foi decisivo para a economia da decisão, aliás, aquilo que foi possível ao Tribunal ouvir serviu de suporte à decisão de absolver o Recorrente da prática do crime de detenção de arma proibida por que vinha acusado;

            - O acórdão mostra-se devidamente fundamentado e não padece de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal;

            - Quanto ao erro de julgamento, o Recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 412º nºs 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, pelo que, o recurso deve ser rejeitado nesta parte ou, pelo menos, julgado improcedente.

            - Inexiste, na decisão em recurso qualquer violação do princípio “in dúbio pro reo”.

            7. O Assistente DD respondeu a este parecer aderindo integralmente à posição ali manifestada.

            8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

            Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

            1ª – Nulidade do julgamento e de todos os atos subsequentes, decorrente da não documentação do depoimento prestado pela testemunha EE, nos termos do disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal [conclusões q) a xx)]

            2ª – Nulidade do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 374º nº2 e 379º nº1 alínea a) do Código de Processo Penal [conclusões yy) a aaaa);  dddd) a ssss) e uuuu) a bbbbb)]

            3ª – Vícios de contradição insanável entre factos dados como provados e factos dados como não provados e de insuficiência para a decisão, nos termos do disposto no artigo 410º nº2 alíneas a) e b) do Código de Processo Penal [conclusões bbbb), cccc e bbbbbb)]

4ª - Erro de julgamento no que concerne a todos os factos dados como provados [conclusões tttt) e cccc)]

5ª – Incorreta determinação da pena principal e das quantias devidas a título de reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas [conclusões ddddd) a yyyyy)] 

            2. Da decisão recorrida.

            O acórdão proferido pelo Tribunal a quo, nos segmentos que interessam atento o objeto do recurso, é do seguinte teor (transcrição):

            «FACTOS PROVADOS:

Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma (e excluindo-se a matéria genérica, conclusiva ou probatória da mesma constante), resultaram provados os seguintes factos constantes:

DA ACUSAÇÃO:

1. O arguido BB e CC contraíram casamento católico em ... 1992, na Freguesia e Concelho ..., tendo o casal, inicialmente, ido residir na localidade de ..., ..., e, a partir do ano de 2000, fixado residência na morada atual do arguido, sita na Rua ..., ..., ....

2. Do referido casamento nasceram dois filhos: DD (nascido a .../.../1994) e AA (nascido a .../.../2005).

3. Após o casamento, por algumas vezes, o arguido demonstrou ciúmes de CC.

4. No ano de 2014, CC disse ao arguido que se pretendia divorciar do mesmo, ao que o arguido lhe respondeu: ‘Não vais a lado nenhum, eu vou atrás de ti até ao fim do mundo, se eu sei que tens alguém, eu mato-te’.

5. Nesse ano, o arguido, em conversa com a cunhada EE, e referindo-se a CC, disse: ‘Ela só sai daqui com os pés para a frente’.

6. Na constância do matrimónio, por vezes, quando discutia com CC, o arguido batia com as portas com força e deixava de falar com CC e com os filhos, durante dias seguidos.

7. Na constância do casamento, por diversas vezes, em datas não apuradas, o arguido disse a CC: ‘Se sei que andas com alguém, mato-te’.

8. O arguido já pertenceu aos Comandos, sendo caçador.

9. O arguido possui licença de uso e porte de armas, tendo, na sua posse, guardadas num cofre, num roupeiro no corredor da casa de família:

i. Uma licença de uso e porte de arma, classe D, nº ...97/2012, emitida em ... e válida até 26.04.2022;

ii. Uma espingarda, classe D, marca ..., modelo ...21, nº de série ..., calibre .. GA, manifestada pelo livrete ...;

iii. Uma espingarda Classe D, marca ..., nº de série ...22, calibre .. GA, manifestada pelo livrete ....

10. No dia 14 de Março de 2022, pelas 20h00m, quando eram quase horas de o filho AA ir para o treino de futebol, o mesmo não queria ir, por se sentir adoentado.

11. A pretensão do filho AA era apoiada por CC.

12. Contudo, o arguido, em tais circunstâncias, afirmou que o filho AA tinha de ir ao treino, começando a exaltar-se, atirando com o comando da televisão para o chão, enquanto dizia: ‘Foda-se! A partir de agora, vão vocês com ele ao treino. Têm a mania que gozam comigo!’.

13. Após, o arguido saiu da sala e bateu com a porta de tal forma que quebrou o vidro da mesma.

14. Quando o filho DD lhe perguntou porque estava a agir assim, o arguido levantou a mão para lhe bater, tendo o DD levantado os braços para se defender.

15. Após, e nessa sequência, o arguido disse ao filho DD: ‘Ó caralho, sai daqui!’.

16. A partir dessa noite, o arguido passou a pernoitar na garagem.

17. No dia 18 de Março de 2022, pelas 20h00m, após CC ter saído de casa para ir levar o filho AA ao jantar de encerramento da época futebolística, o arguido BB dirigiu-se ao armário existente no corredor da casa, pegou numa espingarda das supra descritas e em quatro cartuchos, e, com a mesma, foi à sala onde se encontrava o filho DD, dirigindo-se ao mesmo e disse-lhe: ‘Estás a contá-los? Um para ti, outra para a tua mãe, outro para o teu irmão e outro para mim’.

18. De seguida, o arguido colocou um cartucho no bolso e municiou a arma com três cartuchos, puxou a culatra da mesma e disse ao filho DD: ‘Tu já não sais daqui!’.

19. DD sentou-se no sofá, tentando acalmar o pai, tendo-se o arguido sentado à sua frente, com a arma empunhada e com o dedo no gatilho.

20. Após, o arguido disse ao filho DD: ‘Pensam que gozam comigo, mas acabou. O dia do pai é amanhã e celebramos todos juntos, do lado de lá’.

21. Nessa sequência, o filho DD trocou algumas palavras com o pai, tendo-lhe o arguido dito: ‘Está dito, está dito. É para fazer, é para fazer’.

22. DD pediu ao arguido para ir à casa de banho, ao que o arguido acabou por aceder, dizendo-lhe para deixar o telemóvel junto do arguido, seu pai.

23. Entretanto, CC entrou em casa, tendo o arguido dito ao filho DD para vir para junto de si, apontando-lhe a arma.

24. Do mesmo modo, o arguido fez um gesto com a espingarda para CC ir para junto do filho.

25. Após CC dizer ao arguido que estava doido, tocou o telemóvel da mesma, tendo o arguido dado uma palmada na mão de CC, fazendo com que o telemóvel desta caísse ao chão.

26. Entretanto, o filho DD ajoelhou-se e pediu ao pai para o perdoar, se lhe tivesse feito alguma coisa.

27. Após, o arguido dirigiu-se à despensa e desmuniciou a arma.

28. Na sequência dos factos ocorridos no dia 18 de Março de 2022, DD saiu de casa de morada da família, com medo de que o arguido concretizasse a ameaça de morte que fez a todo o agregado familiar, apenas ali se mantendo CC com o filho AA.

29. No dia 21 de Março de 2022, o arguido disse a CC: ‘Acabo o que não fiz na sexta feira. Está dito, está dito. É para fazer, é para fazer’.

30. Em consequência das referidas expressões, CC sentiu receio de que o arguido concretizasse os anúncios que efetuou e atentasse contra a sua vida e a dos seus filhos.

31.

32. Quando o filho DD tinha cerca de 11 ou 12 anos, numa brincadeira com um primo, soltou alguns animais do arguido, e, quando este chegou a casa, ficou bastante enervado e desferiu pontapés no rabo e cachaços no pescoço do filho DD.

33. Quando o filho DD tinha cerca de 20-21 anos de idade, no dia em que festejavam o aniversário do filho AA, na casa de família, no decorrer da festa, DD disse que ia sair, o que o arguido não gostou.

34. No dia ... de 2022, após ir buscar o filho AA ao treino, juntamente com CC, o arguido disse a ambos: ‘Não passa de hoje’.

35. Após chegarem a casa, o arguido saiu de casa.

36. Após ter saído de casa, o arguido ligou ao filho DD e disse-lhe: ‘se for necessário, vou ao fim do mundo procurá-los’.

37. Noutra chamada telefónica, feita de seguida, o arguido disse ao filho DD: ‘Se a tua mãe não atender, vou ao Posto apresentar queixa’.

38. Após a GNR ..., por uma questão de segurança, ter conduzido CC e AA ao Posto, o arguido, não sabendo do paradeiro dos mesmos, mas desconfiando de que estivessem na GNR, dirigiu-se às imediações do Posto, tendo sido detido pelas 23h40m.

39. Nas datas supra descritas, o arguido detinha, na sua posse e na sua residência, as seguintes armas e munições (entregues por CC à GNR no dia ... 2022):

i. Uma arma de caça, de marca ..., com o nº de arma ...22, de calibre .12, de 1 cano;

ii. Uma arma de caça, de marca ..., com o nº de arma ..., de calibre .12, de 1 cano;

iii. Uma arma de ar comprimido, de marca ..., nº de arma desconhecido, de calibre .22, de 1 cano;

iv. Uma arma de ar comprimido, de marca ..., com o nº de arma desconhecido, de calibre 4,5mm, de 1 cano;

v. Uma arma de ar comprimido, de marca desconhecida, com o nº de arma ..., de calibre 4,5mm, de 1 cano;

vi. 696 cartuchos, de calibre .12;

vii. 18 cartuchos de calibre .12 platina;

viii. 7 cartuchos de calibre .12 cobre;

ix. 33 cartuchos de calibre 12/70 caça grossa;

x. Uma caixa de chumbos 4,5 mm;

xi. 422 munições .22;

xii. Um livrete de manifesto de arma nº ...3, emitido em .../.../2018;

xiii. Um livrete de manifesto de arma nº ...2, emitido em .../.../2015;

xiv. Uma licença de uso e porte de arma nº 1197/2012-02, emitida em ....

40. Uma das armas de caça supra descritas foi a que o arguido exibiu a CC e DD no dia 18 de Março de 2022.

41. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente.

42. Ao proferir as expressões referidas e ao atuar do modo descrito, agiu o arguido com intenção de causar medo e inquietação na mulher CC e no filho DD e de prejudicar os mesmos na sua liberdade de movimentos e de autodeterminação, sabendo que as referidas condutas e expressões eram idóneas a provocar medo e inquietação nos mesmos, pretendendo que estes se sentissem inseguros e tementes a si, assim como limitados nas suas liberdades pessoais, o que quis e logrou conseguir.

43. Ao atuar do modo descrito, agiu o arguido com o propósito claro e conseguido de maltratar física e psicologicamente a sua mulher e o seu filho DD, criando-lhes um estado de medo, intranquilidade e insegurança, sem qualquer respeito pela sua identidade e integridade, humilhando-os, ameaçando-os e diminuindo-os, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar nos mesmos, como provocaram, sofrimento físico e psíquico.

44. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as condutas descritas eram proibidas e punidas por lei.

DA CONTESTAÇÃO:

45. A arma de calibre .22 encontrava-se em casa do arguido, a pedido da irmã de CC, que reside no estrangeiro e pediu ao casal que lhe guardasse a referida arma.

46. A referida arma encontra-se registada e manifestada em nome de EE, irmã de CC.

Mais se apurou:

47. Os factos descritos, ocorridos no dia 18 de Março de 2022, duraram mais de uma hora.

Da Situação Pessoal do Arguido:

1. O arguido é o segundo de uma fratria de cinco elementos.

2. Aos 4 anos de idade do arguido, faleceu, por afogamento, uma irmã deste, um ano e meio mais nova – o que marcou de forma significativa o agregado familiar do arguido.

3. A mãe do arguido assumiu uma atitude punitiva em relação ao arguido, chegando a castigá-lo fisicamente, mesmo após a maioridade deste.

4. O relacionamento dos pais foi ocasionalmente marcado por episódios de violência, e, entre os irmãos, ocorreram, ao longo do tempo, períodos alternados de aproximação e afastamento.

5. Atualmente, o arguido tem maior proximidade ao irmão mais velho e maior distanciamento em relação à irmã mais nova.

6. O arguido abandonou a Escola durante o 2º ciclo do ensino básico, não completando a escolaridade obrigatória, na sequência de acidente que implicou o seu internamento hospitalar.

7. O arguido decidiu não regressar à Escola e passou a apoiar o pai na agricultura e a mãe, como doméstica.

8. O arguido começou a trabalhar aos 14 anos de idade, em empresa de carpintaria e marcenaria mecânica, onde permaneceu 11 anos até à sua integração na atual empresa.

9. O arguido trabalha há 30 anos na mesma empresa, como marceneiro, auferindo € 1.250,00 mensais, insuficientes face aos compromissos financeiros vigentes.

10. O arguido tem bom relacionamento com a entidade patronal e uma atitude responsável no cumprimento das obrigações laborais (assiduidade, pontualidade e zelo), tendo uma atitude prestativa com os empregadores e os colegas.

11. O arguido e CC namoraram durante cerca de 6 anos.

12. Durante o namoro, o arguido cumpriu o Serviço Militar Obrigatório, nos Comandos, e desenvolveu o gosto pela caça (atividade que cessou com a apreensão das suas armas, no âmbito dos presentes autos).

13. Atualmente, e desde o início de 2023, o arguido e CC encontram-se divorciados.

14. CC saiu do país com o filho mais novo, encontrando-se atualmente a residir em ..., onde o filho se encontra a estudar.

15. O filho mais velho do casal, DD, encontra-se a residir e a trabalhar na ....

16. Com a saída de CC e dos filhos do casal do país, o arguido regressou à casa de morada de família.

17. A imagem social do arguido no meio residencial é positiva.

18. Após a constituição como arguido, BB teve apoio médico, com prescrição de medicação para controlo da ansiedade e para indução do sono, o que estabilizou o seu humor.

19. O arguido vivencia isolamento social, com o seu atual repertório de vida restringido, quase em exclusivo, ao quotidiano laboral.

20. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta. 

(…)

           

            3. Apreciação do recurso.

            3.1. – Da nulidade do julgamento e de todos os atos subsequentes, decorrente da não documentação do depoimento prestado pela testemunha EE, nos termos do disposto no artigo 363º do Código de Processo Penal.

            Compulsadas as conclusões q) a xx) do recurso, verifica-se que o Recorrente argui a nulidade processual a que alude o artigo 363º do Código de Processo Penal[2], alegando, em suma, que o depoimento prestado em audiência pela testemunha EE é inaudível mostrando-se irremediavelmente inquinado, sendo mister concluir que não se procedeu à exigida documentação de tal depoimento.

Com esse fundamento, o Recorrente sustenta que, pretendendo impugnar a matéria de facto tida por provada e sendo o depoimento em causa “absolutamente crucial” para o efeito, se mostra “postergado o seu direito ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, o que, além do mais, se traduz numa violação flagrante do seu direito de defesa”, consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa.

Nessa medida, argui a nulidade prevista no artigo 363º, a qual, impedindo-o de cumprir o ónus de especificação previsto no artigo 412º nºs 3 e 4 e, por essa via, inviabilizando a apreciação da prova pelo Tribunal de Recurso, torna inválida a documentação do depoimento em causa e bem assim, a audiência de julgamento no seu todo e, ainda, os atos subsequentes, incluindo o acórdão recorrido.

Vejamos.

O Tribunal procedeu à audição da gravação do depoimento da testemunha em causa e de tal audição resulta, por um lado, que não se trata (como defende o Exmo. Procurador-geral Adjunto no seu douto parecer) de deficiente gravação do mesmo, mas sim de deficiente audição na própria sala do Tribunal e, por outro lado, que essa deficiente audição não corresponde, como afirma o Recorrente a total impercetibilidade.

A testemunha encontrava-se no estrangeiro e depôs através do sistema de videoconferência.

É perfeitamente claro, atento o facto de se ouvir sem quaisquer cortes o que dizem quer a Mmª Juiz Presidente, quer a Digna Magistrada do Ministério Público, quer os Ilustres Mandatários presentes na sala, que as deficiências na perceção do que diz a testemunha decorrem do facto de esta dispor de rede de INTERNET deficiente e falar demasiado rápido. Assim, é notório que, quando é solicitada a mudar de local para obter melhor rede, ouve-se melhor o que diz, logrando-se, também, melhores condições de audição quando fala mais pausadamente.

O Recorrente configura a situação em causa como nulidade de falta ou deficiente documentação, nos termos do disposto no artigo 363º, o qual é do seguinte teor:As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade”.

Esta redação, dada pela Lei nº48/2007 de 29/8, impôs a obrigatoriedade da documentação na ata de todas as declarações prestadas oralmente na audiência, cominando com nulidade a inobservância desse procedimento[3].

A documentação é, pois, obrigatória, sem exceção, não dependendo da concordância dos sujeitos processuais, nem podendo ser por eles prescindida. Passou a haver um regime único de documentação de declarações orais na audiência de julgamento, sem qualquer distinção, quer se trate de julgamento perante tribunal singular, quer se trate de julgamento perante tribunal coletivo, quer se trate de julgamento de arguido ausente. E toda a prova produzida oralmente na audiência de julgamento é documentada por meio de registo em suporte técnico idóneo a assegurar a reprodução integral.

Com efeito, estabelece o artigo 364º nº1, quanto à forma de documentação: “1 - A audiência de julgamento é sempre gravada através de registo áudio ou audiovisual, sob pena de nulidade, devendo ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número seguinte.”

E o nº6 do mesmo preceito, que: “6 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 101.º”, cujo n.º 4 dispõe que “Sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior”.

É pacífico o entendimento de que à total omissão da documentação em ata das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo das mesmas. Com efeito, a documentação será deficiente quando não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes.

O caso dos autos não é de falta de documentação, nem sequer de deficiente documentação - conforme nota o douto parecer já mencionado – e a essa questão voltaremos infra.

Contudo, mesmo que se considerasse que, atenta a dificuldade de perceção do que diz a testemunha (tanto na sala do Tribunal como através da gravação) tudo se poderia reconduzir à nulidade cominada no artigo 363º, uma vez que estaria posta em causa a possibilidade de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a mesma teria de considerar-se sanada.

Com efeito, trata-se de um vício procedimental cometido durante a audiência que, embora previsto no citado artigo 363º, não faz parte da enumeração taxativa das nulidades insanáveis constante do artigo 119º nem como tal é cominado em qualquer outra disposição legal. Por isso, consubstancia uma nulidade sanável, sujeita ao regime previsto do artigo 120º sendo, pois, dependente de arguição.  

O entendimento jurisprudencial quanto à arguição dessa nulidade divergiu durante algum tempo, porém, o Supremo Tribunal de Justiça pôs termo a essas divergências com o Acórdão de Uniformização n.º13/2014, de 3-07-2014[4]  fixando a seguinte jurisprudência: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.»

Assim, é incontornável que a nulidade em causa só pode ser arguida no prazo de 10 dias e perante o tribunal em que o respetivo vício procedimental teve lugar, cabendo ao tribunal de recurso apenas a eventual reponderação da decisão – se impugnada em recurso – que, em 1ª instância, tenha recaído sobre a sua arguição oportunamente deduzida.

Arguida de forma tempestiva a nulidade, caberá ao tribunal de primeira instância suprir o vício que acarrete tal nulidade, se reconhecer a sua verificação, renovando os depoimentos que se mostrem por ele afetados (artigo 122º, n.º 2), após o que, sanada a irregularidade, o processo retomará a sua normal tramitação. Se o tribunal não reconhecer a nulidade, restará ao sujeito processual que a arguiu impugnar a decisão perante o tribunal de recurso.

Ora, no caso dos autos, a audiência de discussão e julgamento onde foi prestado o depoimento indicado ocorreu no dia 5 de junho de 2023 [referência 104030994]; o Recorrente requereu que lhe fosse facultada a respetiva gravação em 23-06-2023 [referência 9867938] e a gravação da audiência foi disponibilizada ao recorrente no dia 26 de junho de 2023 [referência 104245155].

O recurso foi interposto no dia 20 de julho de 2023 [referência 9950109].

Resulta do descrito processado que já na data em que foi requerida cópia da gravação, o prazo em causa se havia esgotado.

De todo o modo, não há dúvidas de que, tendo o Recorrente vindo arguir a nulidade em sede de motivação do recurso, o fez, claramente, fora de prazo, pelo que, a ocorrer a deficiência de gravação (que, como já afirmámos, não será o caso), sempre se imporia concluir pela sanação da correspondente nulidade.

E não se diga que desta forma, vê o Recorrente prejudicados os seus direitos a um duplo grau de jurisdição em matéria de facto e de defesa.

Em primeiro lugar, porque, como veremos, entendemos que a forma como o depoimento foi prestado e valorado pelo Tribunal a quo não impede o Recorrente de impugnar a decisão sobre a matéria de facto e, por outro lado, porque também se exige aos intervenientes processuais que atuem de forma diligente, cooperando com o Tribunal na realização da justiça sendo esta uma dimensão do próprio exercício do direito de defesa.

A imposição pelo legislador de regras para a tramitação da arguição de nulidades, não constitui qualquer limitação do direito de defesa, apenas obriga ao exercício do direito no tempo e na forma decorrentes da tipicidade processual, sob pena de sanação do vício. Tal configura uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade dos interessados, que, como se disse, também orienta o nosso processo penal.

O princípio da legalidade da tramitação processual, está intimamente ligado a valores tutelados constitucionalmente, como são a certeza e a segurança jurídicas. Seria inconcebível que o direito de defesa ou, mesmo, o direito ao processo equitativo (consagrados nos artigos 32º e 20º da Constituição da República Portuguesa) se sobrepusessem, anulando-os, a tais valores fundamentais.

O Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, em inúmeros acórdãos, (…), que o princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2º da Constituição) postula “uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.[5]

No caso dos autos a conduta processual do arguido/Recorrente pautou-se pela falta de diligência, não arguindo em tempo, a nulidade de que agora se pretende fazer valer.

Mas, como já temos vindo a anunciar, o caso dos autos não é um caso de falta ou deficiente documentação, mas sim de deficiente perceção pelos próprios intervenientes no julgamento do depoimento de uma testemunha que foi ouvida por teleconferência.

Tal deficiência de perceção não está cominada com qualquer nulidade, nos termos previstos nos artigos 119º e 120º, pelo que, o ato estaria, quando muito, ferido de irregularidade, atento o princípio da legalidade em matéria de nulidades, consagrado no artigo 118º.

Estabelece o artigo 123º que:

“1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado.”

O Recorrente assistiu na sala do Tribunal às deficiências de transmissão do depoimento da testemunha. Não foi confrontado com esta realidade depois de requerer a cópia da gravação (que se limita a reproduzir aquelas deficiências, não acrescentando quaisquer outras). Era seu dever arguir a irregularidade logo no momento, manifestando a sua posição de que não se lograva entender o que dizia a testemunha e que a mesma deveria comparecer em Tribunal ou sugerir qualquer outra alternativa para melhorar a perceção do que era dito.

Mais, a Mmª Juiz Presidente deu por terminado o depoimento da testemunha em causa dizendo “Não ouvimos tudo, mas ouvimos o essencial”.

Se o arguido, ali presente, considerou, como vem agora alegar em sede de recurso, que o depoimento em causa é essencial e que é impercetível impedindo-o de impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deveria, logo naquele momento, dar a conhecer essa sua posição e tornar notório para o Tribunal que considerava ocorrer uma irregularidade de tal forma grave que afetaria todos os atos subsequentes.

Ao invés, o recorrente ouviu a Mmª Juiz presidente afirmar que a forma como foi possível ouvir o depoimento era satisfatória e conformou-se com isso.

Nessa medida, atento o disposto no artigo 123º nº1, a irregularidade mostra-se, também ela, sanada por não ter sido arguida na forma e no tempo legalmente previstos.

Embora relativos a situações de deficiente gravação de depoimentos, têm vindo a surgir entendimentos jurisprudenciais no sentido de que, mesmo ultrapassados os prazos previstos no artigo 123º nº1, caso a deficiência ponha em causa a possibilidade de o Tribunal de recurso apreciar a impugnação da matéria de facto, tal irregularidade deve ser declarada e ordenada a sua reparação, nos termos do disposto no nº2 do preceito, uma vez que, a não se proceder dessa forma, ficariam irremediavelmente prejudicados os direitos dos sujeitos processuais.

São exemplo desse entendimento os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-04-2019[6] e de 14-06-2022[7], constando do sumário deste último o seguinte:

I – O tribunal da Relação tem que criar a sua própria convicção e não se limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias, embora naturalmente limitado aos pontos indicados pelo recorrente.

II – Face ao atual estado da arte, em matéria de impugnação da matéria de facto em processo penal, muito por força da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo na consagração de um processo equitativo, em que se exige que o tribunal da Relação crie a sua própria convicção, a documentação da prova é peça fundamental.

III - Este tribunal ad quem não pode cumprir o seu dever, isto é, apreciar o recurso da matéria de facto, face à deficiente gravação da prova inteiramente imputável ao tribunal a quo.”

Não obstante, tal entendimento não é aplicável ao caso dos autos (pressupondo que o entendimento em causa também é aplicável a situações em que um determinado depoimento não é percetível por deficiente audição na sala do Tribunal e, necessariamente, impercetível na gravação e, por isso, não acessível ao Tribunal de recurso), na medida em que o depoimento em causa, por um lado, não é impercetível nos termos invocados no recurso e, por outro lado, não é essencial na economia da decisão sobre a matéria de facto, sendo que a sua perceção nos termos em que a mesma é possível, não coloca em causa os direitos de defesa do Recorrente nem o de duplo grau de jurisdição, já que não o impede de impugnar a matéria de facto cumprindo o ónus imposto pelo artigo 412º e, consequentemente, não impediria, realizada tal impugnação, este Tribunal ad quem de apreciar tal impugnação.

Aderimos, nesta parte, ao que vem dito no douto parecer já mencionado, porque não diríamos melhor:

«Afirmou o arguido, a dado passo do seu recurso, que “As respostas dadas pela testemunha não se percebe uma única palavra”, o que, salvo o devido respeito, encerra em si algum exagero, pois, ouvida a gravação em causa, é de meridiana clareza que assim não é, percecionando-se algumas frases e o sentido de outras, embora, amiúde, se tenha que recorrer a uma contextualização  esforçada  do depoimento.

Isto é, tal depoimento, pelas limitações já referidas, nunca poderia ter sido considerado como decisivo para fundamentar a culpabilidade do recorrente, (embora, do que se consegue percecionar, nos pareça que se tratou de um depoimento descomprometido e credível).

E não foi decisivo.

Aliás, conforme decorre da fundamentação do acórdão recorrido, a parte mais relevante desse depoimento (ou melhor, do que “chegou aos ouvidos” do Tribunal desse depoimento) serviu mesmo para absolver o arguido do crime de detenção de arma proibida. 

Quanto aos crimes de violência doméstica pelos quais o mesmo foi condenado, o que se retira da fundamentação, no seu todo, da matéria de facto, é que esse depoimento não foi fator determinante para o juízo de culpabilidade que acabou por ser feito: o mesmo resultou, essencialmente, da credibilidade que o Tribunal a quo atribuiu aos depoimentos da vítima/ofendida CC  (ex-mulher do arguido) e dos dois filhos (DD e AA) de ambos (sendo o mais velho - DD - também vítima/ofendido) , em contraponto com a falta de credibilidade/consistência das declarações/versão do recorrente  que, genericamente, negou os factos que lhe eram imputados  (sendo certo que as testemunhas que este indicou e que foram inquiridas nada sabiam sobre os factos em julgamento ). 

Isto é, por um lado, não cremos que o depoimento de EE  tenha sido decisivo para a condenação do arguido; do que se consegue percecionar, retira-se que a mesma pouco sabia dos factos integradores dos crimes de violência doméstica, pelo que a condenação, certamente, ainda que sem o seu contributo,  seria a decisão do Tribunal. Em sequência, também não alcançamos como o mesmo depoimento poderia ter a importância que o recorrente lhe pretende atribuir em sede de impugnação ampla da matéria de facto, quanto aos crimes de violência doméstica, pois nunca teria a virtualidade de impor decisão diversa.»

Pensamos, assim, que nenhuma limitação de direitos ocorreu, e se o Recorrente tem algum reparo a fazer neste particular, será devido à sua própria conduta processual que surge, pelo menos, como pouco diligente.

Atento tudo o exposto, improcede o recurso nesta parte, não ocorrendo qualquer nulidade ou irregularidade suscetíveis de afetar a decisão recorrida.

(…)

            3.5. – Da incorreta determinação da pena principal e das quantias devidas a título de reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas.

Como é sabido, a alteração das penas fixadas pelo Tribunal a quo só é legítima se as mesmas se mostrarem exageradas ou desproporcionadas.

            A este propósito, afirma Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Editorial Notícias, páginas 196 e 197, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 25-09-2017 relatado pelo Exmº Juiz Desembargador, Jorge Bispo[8] - Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela determinação, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

            Ora, adiantamos desde já que pese embora a decisão em crise tenha ponderado os factos por referência aos critérios legais de escolha e dosimetria das penas, nessa operação afigura-se-nos ter fixado as penas de forma lago exagerada, tendo em conta que o arguido não tem antecedentes criminais e que, apesar da gravidade dos factos, somos frequentemente confrontados com ilícitos deste tipo com gravidade substancialmente superior, havendo que ponderar tal circunstância em termos de justiça relativa.

(…)

            III. DISPOSITIVO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência:

- Baixar as penas aplicadas ao arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alíneas a) e d), nº 2, alínea a), nº 4 e nº 5 do Código Penal, para 3 (três) anos de prisão, por cada crime;

            - Baixar a pena única resultante do cúmulo jurídico das antecedentes para 4 (quatro) anos de prisão, suspensa por igual período.

            No mais, confirma-se o douto acórdão recorrido.

                                                                       *

            Sem tributação.


            (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 10-01-2024       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (relatora)

Capitolina Fernandes Rosa (1ª Adjunta)

Teresa Coimbra (2ª Adjunta)

 (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


           





[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições que doravante sejam citadas sem outra menção.
[3] Note-se que a redação anterior, dada pelo decreto-lei nº78/87 de 17-02, não impunha tal obrigação, nem estabelecia qualquer nulidade “As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na ata quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.
[4] Prolatado no âmbito do processo nº419/11.1TAFAF.G1-A.S1, de 03-07-2014, in DR, I, nº 183, de 23-09-2014, também disponível para consulta em www.dgsi.pt
[5] Acórdão do Tribunal Constitucional nº556/03, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[6] Prolatado no âmbito do processo nº824/11.3ECLSB.L1-5; relator: Cid Geraldo, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[7] Prolatado no âmbito do processo nº981/19.0GCALM.L1-5; relator: Paulo Barreto, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[8] Acórdão disponível em www.dgsi.pt