Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
511/2002.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: RELAÇÃO DE VIZINHANÇA
RELAÇÃO JURÍDICA
COISA IMÓVEL
EXCESSIVA ONEROSIDADE
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
AGRAVAMENTO
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 1346.º E SS. DO C. CIVIL
Sumário: 1 - A relação de vizinhança supõe uma relação espacial entre imóveis, sendo sobre esta “relação espacial” que se alicerça a relação jurídica entre os titulares/proprietários (diferentes) em confronto; relação jurídica esta que é regida por regras (art. 1346.º e ss. do C. Civil), segundo as quais cada vizinho/titular pode agir livremente in suo, desde que respeite as normas/regras específicas vigentes e desde que não ponha em causa a condição natural preexistente do prédio vizinho, uma vez que, se tal acontecer, respondendo pelos factos que tenham como origem o exercício/gozo do seu direito/prédio, tem de reconstituir a situação primitiva do prédio vizinho.

2 - Obrigação de reconstituição que passa a integrar o próprio conteúdo do direito real – configura uma relação jurídica real ou propter rem – transmitindo-se com a transmissão do direito real sobre o imóvel prejudicado e sendo oponível ao titular do imóvel vizinho, ainda que a titularidade deste também tenha sido transmitida.

3 - Mas que (obrigação de reconstituição), se for anomalamente oneroso reconstituir o stato quo anterior, se satisfaz com a constituição duma situação imobiliária equivalente à que foi eliminada; e que, se tal não for possível ou for excessivamente oneroso, pode ser substituído por indemnização em dinheiro.

4 - Provando-se a ocorrência/verificação de repercussão negativa – o agravamento do escoamento das águas que naturalmente corriam para o prédio “inferior” – por causa de “obras” (aterros e muros de suporte) levadas a cabo num prédio superior, a obrigação de reconstituir, estando no prédio superior implantadas moradias (com anexos e estruturas de apoio), não pode impor a reposição do terreno do prédio superior “ao nível natural”, bastando-se com a imposição das medidas que eliminam o agravamento causado pelas obras (com a reconstituição do equilíbrio imobiliário mediante equivalente).

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A... , casada, doméstica, residente na Rua (...), Figueira da Foz, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário (hoje, comum), contra “B... Lda.”, com sede da Rua (...) Pombal, e contra C... e marido D... , residentes na Rua (...), Figueira da Foz ou em (...), Suíça, em que terminou pedindo a condenação dos réus a:

“ (…)

a) repor o terreno dos réus ao nível natural;

b) refazer o muro de vedação entre o terreno dos réus e da autora dentro dos parâmetros legais;

c) vedar o referido muro desde os alicerces até ao topo, através da colocação de tela;

d) abrir uma vala junto ao referido muro onde deverão ser colocadas manilhas de dimensão suficiente que conduzam a água que aí se acumula para o poço que já se encontra feito;

e) colocar, de forma permanente, uma bomba eléctrica que possibilite o bombeamento da água do poço para a rede pública;

f) tapar todas as fissuras existentes no muro;

g) indemnizar a autora por danos patrimoniais e não patrimoniais na quantia de € 13.225,00, acrescida dos juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento;

h) indemnizar a autora de todos os danos que lhe venham a ser causados até efectiva resolução do problema de agravamento do escoamento para o seu terreno; (…)”

Alegou, em síntese, ser dona dum prédio rústico (que identifica e com inscrição de aquisição a seu favor na Conservatória do Registo Predial) que confronta com três prédios (lotes de terreno destinados à construção urbana) dos RR., dois (os lotes B e C) da R. B... e um (o lote A) da R. C... e marido; três prédios/lotes estes em que a R. B... , no início de 2000, procedeu a aterro (superior a 2 metros de altura em alguns pontos) e à sua vedação com um muro de betão armado com altura média de 3 metros (atingindo em determinados pontos os 4 metros).

Acontece, segundo a A., que “tais obras foram realizadas sem que fosse assegurada uma conveniente drenagem das águas pluviais que se acumulam junto do muro e que posteriormente correm para o terreno da A. situado a jusante”; “provocando um agravamento significativo do escoamento das águas para o prédio da A”; até porque “no muro foram feitos diversos barbacãs, que deitam directamente sobre o prédio da A., atingindo jactos de 4 metros” e “o muro, apesar de recente, possui já inúmeras fissuras por onde também jorra água”.

Em face das constantes inundações, provocadas por tais obras, a R B... (através de acordo escrito feito com a A. em 26/02/2002) reconheceu o “problema”, comprometeu-se a solucioná-lo (executando para tal os trabalhos contantes do referido acordo – fls. 24 e 25 dos autos), mas nada fez (assim como os 2.º RR., também interpelados para o efeito).

O que casou e vem causando à A. os seguintes danos: na rede de vedação (que delimita o terreno da A.) e nos pilares de cimento que a suportavam, no valor de € 400,00; na parede dum curral, no valor de € 325,00; nas culturas, nas árvores e no pasto dos animais, o que, tudo junto, acarretou um prejuízo de € 6.500,00 (€. 3.250,00 em 2000 e de € 3.250,00 no ano de 2001); em termos emocionais e psicológicos, computando para a compensação dos danos não patrimoniais o montante de € 4.000,00; e a necessidade de recorrer a um médico psicólogo, no que despendeu cerca de € 2.500,00.

Ademais, referiu ainda, do lado dos lotes/prédios dos RR., entre o chão e o topo do muro apenas existem cerca de 30 cm de altura, o que provoca a devassa e facilita o lançamento de objectos ou detritos para o prédio da A., ao que esta se opõe.

A R. “ B... Lda.”, na sua contestação, começou por dizer, que foi ela, no desenvolvimento da sua actividade comercial, que procedeu ao loteamento que originou os lotes A, B e C referidos na PI, tendo vendido o lote A aos 2.º RR. e sendo ainda proprietária dos lotes B e C que se encontram ainda “no seu estado natural, rústico”; razão porque, segundo sustenta, é parte ilegítima, “pois os muros divisórios nada têm a ver com o loteador mas sim com a empresa construtora da habitação do lote A, fazendo parte do caderno de encargos”, “pois é alheia à construção da moradia, muros e restantes obras de drenagem da águas captadas no interior dos lotes”, esclarecendo que o acordo escrito (de 26/02/2002) referido na PI foi por lapso escrito no seu papel timbrado – quando devia ter sido em papel timbrado da T..., Lda., empresa construtora da habitação no lote A – “por o sócio gerente de ambas as empresas ser a mesma pessoa”.

Ademais, por impugnação, referiu (após insistir ser alheia à construção da moradia, muros e restantes obras) que os trabalhos executados pela Alpelsil foram correctamente executados e que a “solução” que consta do doc. de fls. 24 e 25 “foi correctamente cumprida pela Alpelsil”; que “a construção do muro ao longo da linha divisória dos prédios (…) resulta em que o prédio da A. deixou de receber águas que naturalmente não receberia se o muro não existisse”, o que “só pode trazer benefícios ao prédio da A.”.

Concluiu, após impugnar os danos invocados, pela sua absolvição da instância ou, se assim não se entender, pela sua absolvição do pedido.

Os RR. C... e marido por sua vez, na sua contestação, invocam basicamente terem dado de empreitada à “ T...s, Lda.” a construção de uma moradia bifamiliar no seu lote, tendo sido tal empresa que teve a direcção de todos os trabalhos e obras; aliás, aquando da execução das obras encontravam-se a residir na Suíça e, acrescentam, não têm conhecimentos que lhes permitam dizer se foi ou não assegurada uma conveniente drenagem das águas pluviais ou se das obras resultou algum agravamento para o prédio da A.

Concluem assim pela sua absolvição, acrescentando que, “a provar-se a existência de qualquer dano alegado pela A., deverão ser condenados solidariamente com a construtora, reconhecendo-se, porém, que tais danos não resultaram de sua conduta culposa”.

A A. respondeu, articulado em que manteve o alegado na PI; e em que, à cautela, requereu a intervenção principal provocada de “ T..., Lda.”, contra quem dirige subsidiariamente o mesmo pedido, no caso de se concluir ser esta sociedade a responsável pelas obras nos prédios em causa.

Intervenção principal provocada da “ T..., Lda.”, com sede na Rua (...) Pombal, que foi admitida, do lado passivo, por despacho de fls. 103 a 108.

Citada tal interveniente T..., veio apresentar contestação, em que confirmou ter celebrado um contrato de empreitada com os RR. C... e marido para edificar uma moradia bifamiliar, executar redes de esgotos domésticos e de águas pluviais com ligação ao colector público, arranjos exteriores e muros envolventes; o que fez “respeitando todas as regras e procedimentos construtivos e utilizando as melhores técnicas e materiais”.

Assim, acrescentou, “todas as águas que caem, se depositam ou introduzem no lote A são captadas por um conjunto de tubos que interior e subterraneamente circundam o muro divisório do lote, sendo posteriormente drenadas para um poço. As águas pluviais são seguidamente bombeadas por uma bomba eléctrica para o colector público. Por outro lado, o muro delimitador está também forrado interiormente com uma malha geotêxtil, para evitar repasses de água”; razão porque “o prédio da A. não pode ter sofrido quaisquer inundações”, tanto mais que a “solução” que consta do doc. de fls. 24 e 25 “foi pontual e escrupulosamente cumprida”.

Referiu ainda “não ter procedido a quaisquer aterros, limitando-se a proceder a uma suave movimentação de terras para regularização do lote, quando se procedeu à construção do muro”, ocasião em que, por ordem da R. B... , “construiu também (…) o restante troço do muro situado a nascente e que separa o prédio loteado do da A.”.

Concluiu, após impugnar os danos invocados, pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

Foi proferido despacho saneador – que julgou a instância totalmente regular (julgando-se improcedente, sem censura, a ilegitimidade passiva suscitada pela R. B... ), estado em que se mantém – e organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa.

Foi entretanto admitida, em decisão proferida no apenso “A”, a intervenção de M... e mulher N... e de O... e mulher P... , todos com os sinais dos autos, na qualidade de adquirentes, respectivamente, dos lotes “B” e “C”.

Instruído o processo, iniciou-se o julgamento em 15/01/2009.

No decurso do mesmo, em 18/06/2009, veio a A. requerer (a fls. 945) “a alteração da base instrutória e a alteração do pedido”, solicitando que os RR. sejam também “condenados a reparar/ressarcir por todos os danos sofridos pela A. que se relegam para execução de sentença, por resultarem da continuação de aterros nos lotes identificados na acção e da conclusão das construções no loteamento B... e por serem continuados, conforme decorre das peritagens colegiais e da inspecção judicial com a deslocação do Tribunal ao local, continuando a verificar-se os danos e prejuízos reclamados decorrentes dos defeitos dos muros, escorrências e infiltrações provenientes dos muros do loteamento e dos lotes identificados na acção, até à data da sentença e efectivo e integral cumprimento”; o que foi mandado admitir por acórdão de 28/09/2010 deste Tribunal da Relação de Coimbra (tendo, em função disso, sido ampliada a BI)

Concluiu-se o julgamento (respostas aos quesitos) em 11/06/2012, após o que foi proferida sentença, em que se concluiu do seguinte modo:

“ (…) na procedência parcial da acção (…):

Condenar os réus, solidariamente, a:

Repor o terreno dos réus ao nível natural;

Vedar o referido muro desde os alicerces até ao topo, através da colocação de tela;

Abrir uma vala junto ao referido muro onde deverão ser colocadas manilhas de dimensão suficiente que conduzam a água que aí se acumula para o poço que já se encontra feito;

Colocar, de forma permanente, uma bomba elétrica que possibilite o bombeamento da água do poço para a rede pública;

Tapar todas as fissuras existentes no muro;

No que vier a ser liquidado, para reparação/substituição da rede que delimita o prédio referido em 1) da fundamentação de facto, com 60 metros de comprimento e 1,5 metros de altura, bem como para reparação/substituição dos 4 pilares de cimento que suportavam a referida rede e para substituição/reparação da parede do curral de animais.

Absolver os réus do demais peticionado;

(…)”

Inconformados com tal decisão, interpuseram a R. C... e os RR./adquirentes O... e esposa recurso conjunto[1], visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que revogue o decidido, absolvendo os RR. “do pedido ou, quando muito, fixa[ndo] uma prestação em dinheiro, a liquidar ulteriormente, em execução, como equivalente à excessivamente onerosa reconstituição do equilíbrio imobiliário.

Terminaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

A) Devem as respostas à matéria de facto ser alteradas, dando-se como simplesmente Provado o ponto 1.º da B.I. e Não provados os pontos 3.º, 7.º 57 e 58 da mesma;

B) Diz a A., nos arts. 14 e 15 da P.I., que “Desde inícios de 2000, altura em que foi realizado o muro, que a A. se debate com as constantes inundações provocadas pelas obras realizadas pela R. B... naqueles aterros.” e que “Nunca até aquela data tinham existido inundações no terreno da A.”, mais dizendo, no art. 14 da Resposta, que “Também não poderá ser esquecido que os muros dos três lotes foram construídos em 1999";

C) Não foram tais factos impugnados e está provado nos autos que os RR. adquiriram em meados de 2000 (R. Mª de Lurdes, lote A) e agosto de 2004 (RR. O... e mulher, lote C);

D) Assim, na ausência de prova sobre quem fosse o autor material da construção dos muros de suporte, nunca poderia o Tribunal a quo concluir que a mesma se devia aos adquirentes dos lotes, dando como provado um facto materialmente impossível;

E) Dos depoimentos das testemunhas da A., H... , I... , Arnaldo Gonçalves de Lemos e Joaquim Maria Lascarim Figo (este, seu marido) resulta claro que não houve agravamento do escoamento, bem como resulta evidente que também não há qualquer prejuízo para a A., com a movimentação de terras e nivelamento do terreno e eventual e decorrente ligeiro escorrimento do muro, tudo se resumindo a uma pequena poça, a 30 ou 40 cm do muro, em local onde a A. nunca cultivou nada;

F) De tais depoimentos, bem como dos de E... , F... , G... , resulta também evidente que nos lotes do loteamento foram apenas feitos nivelamentos, com movimentação de terras dos locais mais altos para os mais baixos, e não quaisquer aterros (no sentido, estes, de acréscimo de terras ou materiais exteriores ao loteamento);

G); Consequentemente, também os pontos 3.º, 7.º, 57 e 58 da B.I., deveriam ter obtido resposta de “Não Provado”, como tal devendo agora ser alteradas, em conformidade, as respectivas respostas;

H) Ou, quando muito e quanto ao ponto 58, porque nenhuma testemunha afirmou que a água (as pequenas “poças de água”) exista durante todo o ano e independentemente das estações do ano, tudo quanto eventualmente, se poderá dar como provado será que “as pequenas quantidades de água existentes no prédio da autora e junto ao muro têm origem na chuva que cai no próprio terreno da autora e nos escorrimentos através de fissuras no muro dos lotes A, B e C”;

I) Sem prejuízo das alterações, acima preconizadas, quanto às respostas aos pontos 1.º, 3.º, 7.º, 57 e 58 da B.I., com manifesta relevância para a decisão, é destituída de suporte fáctico a conclusão da douta sentença de que em resultado da construção do indicado muro tenha sido agravado o escoamento de águas que, anteriormente a tal construção e nivelamento do solo, se fazia;

J) Tal conclusão é, mesmo, contraditória com o referido, no ponto 36) da Fundamentação de Facto, que “As águas que caem ou se introduzem no prédio referido em 2) são captadas por um conjunto de tubos que interior e subterraneamente circundam o muro divisório do prédio, sendo posteriormente drenadas para um poço, onde seguidamente são bombeadas por uma bomba eléctrica com bóia para o colector público” (resposta ao art. 47º da base instrutória).;

K) É igualmente contraditório que a Mma. Juiz considere que - num lote, rectius, em dois lotes, onde existe um sistema de captação tubular subterrâneo, circundante do dito muro divisório, que, por ação de bomba elétrica, bombeia a água que nele se introduz para o coletor público - , as escorrências que se observam no dito muro tenham vindo agravar a forma como o escoamento era realizado, quando este era, sem qualquer barreira, livre do prédio superior (o do loteamento) para o inferior (o da A.);

L) Não se entende, pois, de igual forma, nem dos autos constam factos dos quais resulte prova que possa possibilitar dar-se por adquirido ou concluir, como consta da Douta Sentença, que a movimentação de terras agravou a forma como o escoamento era realizado no terreno, anteriormente à existência do Loteamento;

M) Pelo contrário, a eliminação da inclinação dos lotes, no sentido Nascente/Poente, ocorrida com o loteamento e a construção, levou a uma suavização do escoamento;

N) E não teria efeito prático a determinação do renivelamento dos lotes, decidida na sentença, pois que isso não diminuiria o escoamento, em relação ao que se verifica atualmente, pois com ele a água não escoaria de forma diferente;

O) Acresce que não é possível, hoje, repor o nivelamento dos lotes anterior, pois que neles se encontram implantadas as moradias e as estruturas de apoio às moradias, tal como anexos e piscinas, pelo que tal implicaria, obviamente, a derrocada das moradias e de todas essas estruturas;

P) E, tendo a construção dessas moradias sido devidamente licenciada pela Câmara Municipal de Figueira da Foz, a entidade competente para esse licenciamento, a decisão constante da douta sentença, além de inútil, em termos práticos, implicaria uma injustificada imposição de custos aos Recorrentes, estando, mesmo, o Tribunal a quo a exorbitar da sua competência em razão da matéria, pois é da exclusiva competência dos Tribunais Administrativos avaliar e decidir sobre quaisquer hipotéticas falhas de licenciamento;

Q) Ainda que agravamento houvesse - o que só por hipótese de raciocínio se equaciona - o dever de reconstituição, através das prestações em que a douta sentença condenou, mostra-se excessivamente oneroso;

R) Tanto mais que, a haver algum agravamento do escoamento, a sua consequência é a mera existência de algumas pequenas poças de água no terreno da A., junto ao muro e a não mais de meio metro do mesmo, numa zona que esta nunca cultivou;

S) Ao invés, o ordenado pela sentença, implicando obras avultadíssimas, com entrada de camiões e máquinas pelos lotes adentro, partindo muros exteriores e interiores e, sobretudo, o rebaixamento do nível dos lotes, deixando as moradias como “ilhas” ou, mesmo, provocando o seu desabamento e consequente demolição, é de uma onerosidade elevadíssima, podendo destruir construções no valor de um milhão e meio ou dois milhões de Euros;

T) Há, assim, uma manifesta desproporção, uma excessiva onerosidade, equivalente a uma impossibilidade de reposição do estado anterior à realização do loteamento;

U) Uma desproporção tanto mais absurda e injusta quanto seriam os atuais proprietários dos lotes a sofrer as consequências de atos que foram praticados pelo loteador e a que foram totalmente alheios;

V) Há, assim, na douta sentença, uma errada valoração dos factos, bem como e consequentemente, uma errada aplicação do direito aos mesmos, ao impor uma reposição do terreno dos Réu ao nível natural, ao abrigo do artigo 1351, que não se pode aplicar no caso dos autos por inexistência de ato ilícito dos Réus;

W) A questão nuclear neste processo é a de saber se o equilíbrio imobiliário que se estabelecia anteriormente ao loteamento, entre prédio superior e prédio inferior, ficou, em resultado do loteamento e, concretamente, da construção de muro de vedação, comprometida e, se sim, qual a solução para a reconstituição do equilíbrio imobiliário, perspetivado sob o domínio do Direito de Vizinhança: a pura e dura “restitutio operis” ou a aplicação do “princípio dos equivalentes”;

X) Sendo certo que os proprietários do prédio superior, os aqui Réus, têm o dever de preservar o equilíbrio imobiliário, como também o de se absterem de praticar atos que o quebrem, sob pena de se constituírem obrigados na sua reconstituição, no âmbito das relações jurídicas reais ou propter rem – fator diferenciador das situações emergentes da responsabilidade civil, tal como o pedido da Autora de danos patrimoniais -, porém e tal como já se afirmou, a imposição de reconstituir não é absoluta;

Y) Citando Oliveira Ascensão, “se for anomalamente oneroso reconstituir o equilíbrio preexistente, o titular vinculado satisfaz a pretensão do vizinho mediante um equivalente; e se o novo equilíbrio for substancialmente equivalente ao anterior, de modo que nenhum interesse do vizinho possa justificar objetivamente uma solução diferente, a relação satisfaz-se com a constituição duma situação imobiliária equivalente à que foi eliminada”, mas, podendo haver uma onerosidade excessiva da reposição do equilíbrio, mesmo por equivalente - como será aqui o caso da diminuição da cota dos lotes - ,“O art. 1396 CC prevê não ser possível repor as coisas no estado anterior. Não devemos entender o "não ser possível" no sentido de uma impossibilidade absoluta: abrange a onerosidade excessiva”;

Z) assim, a douta sentença, além de errónea apreciação da matéria de facto, violou o disposto, entre outros, nos arts. 566, 1351 e 1396 do Código Civil, bem como o art. 609, n.º 2, primeira parte, do CPC.

A A. respondeu, sustentando, em síntese, que não violou a sentença recorrida as normas processuais e substantivas referidas pelos RR/recorrentes, pelo que deve ser mantida a sentença nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto

Alinhados, tanto quanto possível, lógica a cronologicamente, tendo em vista a sua imediata apreensão e compreensão globais, os factos provados são os seguintes[2]:

1) Encontra-se inscrito a favor da autora e do seu marido U..., o prédio rústico sito no (...), freguesia de (...), inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o art. 1782º e descrito na CRP da Figueira da Foz com o n.º 53283, ap. de 16.11.75, a fls. 98 do livro B-137, o qual é composto de terra de cultura, com árvores de fruto, confrontando de norte com serventia de inquilinos, de nascente com vala, do sul com V... e outros e do poente com caminho, com área de 12.955 m2 (al. A) dos factos assentes).

2) Encontra-se inscrito a favor dos réus C... e D... um lote de terreno destinado a construção urbana, designado por lote A, freguesia de (...), descrito na CRPredial da Figueira da Foz com o n.º 3657, com a área de 1.910 m2 (al. B) dos factos assentes).

3) Encontravam-se inscritos, no momento da propositura da PI, a favor da ré B... dois lotes de terreno destinados a construção urbana, designados por lote B e lote C, sitos na Rua (...), freguesia de (...), descritos na CRPredial sob os n.º 3658 e 3659, respectivamente, com as áreas de 1508 m2 e 1004 m2 (al. C) dos factos assentes).

Lotes estes que têm (nos documentos juntos ao apenso de habilitação[3]):

O Lote C inscrição de aquisição a favor de O... casado com P... , desde 27/08/2004;

O lote B inscrição de aquisição a favor de M... , casado com N... , desde 16/10/2003.

4) Os prédios referidos em 2) e 3) confrontam com o prédio referido em 1) (al. D) dos factos assentes).

5) A ré “ B... Lda.”, com sede na Rua (...) Pombal, é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto é a promoção imobiliária, compra e venda de propriedades (al. F) dos factos assentes).

6) A ré B... no desenvolvimento da sua actividade comercial adquiriu um prédio rústico na C. R. Predial da Figueira da Foz sob o art. 471 da freguesia de (...), tendo procedido ao loteamento do mesmo, em três lotes, que são os prédios referidos em 2) e 3) e nos quais se obrigou a efectuar obras relativas a águas, gás, telecomunicações, electricidade, arruamentos, saneamentos e arranjos exteriores, conforme documento de fls. 48-49 que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (al. G) dos factos assentes).

7) Os réus C... e D... obtiveram em seu nome alvarás de construção do prédio referido em 2), conforme documentos de fls. 50-51 que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (al. H) dos factos assentes).

8) Em 25.10.2000 os réus C... e D... e a interveniente T... celebraram, por escrito, um contrato para que esta realizasse a construção de uma moradia bifamiliar daqueles no prédio referido em 2) (art. 43º da base instrutória).

9) A interveniente T... realizou a construção da casa de habitação do prédio referido em 2), os muros divisórios, a rede de esgotos domésticos e águas pluviais com a ligação ao colector público, arranjos exteriores e muro envolvente (art. 46º e 30º da base instrutória).

10) A sede social da ré B... e da interveniente T... é a mesma e o sócio-gerente da ré B... e da interveniente T... é a mesma pessoa: R... (al. I) dos factos assentes).

11) A ré B... realizou pelo menos as obras de infra-estruturas até às entradas dos lotes (al. J) dos factos assentes).

12) E procedeu ao aterro nos prédios referidos em 2) e 3) (art. 3º da base instrutória).

13) Sendo os aterros superiores a 2 metros de altura em determinados pontos do terreno (art. 4º da base instrutória).

14) A construção de casas de habitação e de muros de vedação nos prédios referidos em 2) e 3) ficaram a cargo dos proprietários dos respectivos lotes, os quais para a sua execução celebraram com diversas empresas contratos de empreitada (resposta ao art. 1º da base instrutória).

15) O muro de betão armado construído para vedação dos terrenos correspondentes aos lotes A, B e C, tem do lado do prédio da autora uma altura que varia entre os 1,90 e os 3,90m (resposta aos art. 5º e 53º da base instrutória).

16) As obras de construção das moradias implantadas nos lotes A, B e C e respectivos muros de vedação foram feitos nos seguintes termos:

i. No lote A foi instalado um tubo de drenagem 0100 mmm;

ii. No lote B não existe sistema de drenagem;

iii. No lote C existe um poço sumidouro, cujo fundo se situa a 3,65m do topo superior do muro de suporte de terras. A parte superior da sapata do muro situa-se a 3,80m. No poço descarrega um tubo com diâmetro de 0100, a uma profundidade de 3,25m (relativamente ao topo superior do muro) (resposta ao art. 6º da base instrutória).

17) A construção do muro delimitador dos prédios referidos em 2) e 3) fez com que o prédio referido em 1) deixasse de receber águas que receberia naturalmente (art. 33º da base instrutória).

18) As águas acumulam-se junto ao muro do lado do prédio da autora e o agravamento do escoamento das águas para o terreno da autora deve-se à impermeabilização do lote que provoca a concentração de águas pluviais nas zonas junto de aterro ao muro e à existência de água de rega dos jardins (resposta ao art. 7º da base instrutória).

19) O muro de vedação que abrange os lotes A, B e C apresenta alguns pontos fendas que deitam directamente para o prédio da autora e pelas quais escorre água (resposta ao art. 9º da base instrutória)

20) Desde o início da construção do muro de vedação que a autora tem tido no terreno referido em 1) água em consequência das obras referidas em 11) (resposta ao art. 10º da base instrutória).

21) No prédio da autora existe água durante todo o ano, junto ao muro de vedação e independentemente das estações do ano (resposta ao art. 57º da base instrutória).

22) A água existente no prédio da autora e junto ao muro tem origem na chuva que cai no próprio terreno da autora e dos escorrimentos provenientes dos lotes A, B e C (águas pluviais e regas) (resposta ao art. 58º da base instrutória).

23) A partir do ano de 2004 mantiveram-se nos muros as “escorrências” e as infiltrações de água para o interior do prédio da autora (art. 60º da base instrutória).

24) O declive natural do terreno dos prédios referidos em 2) e 3) tinha a orientação norte-sul (resposta ao art. 31º da base instrutória).

25) Havia um desnível entre os prédios referidos em 2) e 3) e o prédio referido em 1) antes do início das obras (resposta ao art. 37º da base instrutória).

26) As águas que caem ou se introduzem no prédio referido em 2) são captadas por um conjunto de tubos que interior e subterraneamente circundam o muro divisório do prédio, sendo posteriormente drenadas para um poço, onde seguidamente são bombeadas por uma bomba eléctrica com bóia para o colector público (resposta ao art. 47º da base instrutória).

27) Nos muros dos lotes B e C, até ao ano de 2004, não tinham sido realizadas obras de drenagem (art. 59º da base instrutória).

28) A construção das moradias e piscinas nos lotes B) e C) referidos em 3) foi iniciada e concluída no decurso da presente acção (art. 49º da base instrutória).

29) Em resultado dessas situações a altura de terras foi subida em consequência de novos aterros e movimentação de terras, o que aconteceu até ao ano de 2007 (art. 50º da base instrutória).

30) Tal situação ocorreu no lote B e em consequência da construção a que corresponde a fracção B (art. 51º da base instrutória).

31) A alteração decorrente da subida de terras contribuiu para o “ensombramento” do prédio pertencente à autora, o qual passou a ter uma faixa de sombra, contígua ao muro de suporte de terras, até 10 metros para o prédio da autora (resposta ao art. 52º da base instrutória).

32) Em 26.02.2002 a autora e a ré B... (representada pelo Dr. R... ) celebraram o “Acordo” de fls. 24 e 25 que aqui se reproduz, do qual consta, na cláusula 1ª, que os outorgantes verificaram que a água proveniente das chuvas, que anteriormente escoava para o caminho público, passou a escoar directamente para o terreno referido em 1); na sua cláusula 2ª, verificaram ainda prejuízos resultantes da perda de culturas por parte da autora.

Referindo-se nas cláusulas 4.ª e 5.ª o seguinte:

4 – Nestes termos acordam ambos de sua livre vontade e como foram de resolver definitivamente o escoamento de águas para o terreno da D.ª S... que o Dr. R... executará até ao próximo dia 9 de Março do corrente ano as seguintes obras:

a) O Dr. R... compromete-se a tapar as fissuras existentes no muro implantado entre as duas propriedades com silicone;

b) Compromete-se ainda a abrir uma vala ou canalete onde colocará manilhas que façam com que a água proveniente do terreno onde se desenvolve a construção escoe directamente para um poço já construído;

c) O primeiro outorgante procederá também à colocação duma bomba eléctrica para bombear a água do poço, escoando-a para a rede de águas pluviais;

d) A segunda outorgante indicará um técnico da sua confiança que dará a solução mais adequada à resolução definitiva no que se refere aos repasses que têm existido no muro, designadamente, a colocação de tela, reforço do muro, ou outro isolante, em toda a sua extensão.

e) O primeiro outorgante após obter indicações do técnico relativas ao isolamento do muro procederá conforme indicado no prazo máximo de 10 dias;

f) O primeiro outorgante compromete-se a pagar à segunda outorgante todos os prejuízos resultantes do escoamento das águas provenientes do terreno onde se desenvolve a edificação e referentes, designadamente, a culturas perdidas pela segunda outorgante no montante de € 750,00.

5 – O primeiro outorgante compromete-se ainda a executar o passeio em frente à fazenda da segunda outorgante no prazo máximo de 60 dias” (al. E) dos factos assentes).

33) A ré B... não cumpriu o acordo celebrado com a autora não tendo construído os passeios na frente no prédio da autora nem tendo indemnizado a mesma pelos prejuízos sofridos (art. 62º da base instrutória).

34) Em consequência da construção do muro de vedação foi danificada a rede que delimita o prédio referido em 1), com 60 metros de comprimento e 1,5 metros de altura, bem como os 4 pilares de cimento que suportavam a rede (resposta ao art. 16º da base instrutória).

35) Em consequência dessa obra foi parcialmente destruída uma parede do curral de animais da autora (resposta ao art. 17º da base instrutória).

36) A qual não foi reconstruída/reparada (art. 18º e 63º da base instrutória).

37) Na época das obras referidas em 11) os réus C... e D... encontravam-se a residir na Suíça (art. 35º da base instrutória).

*

III – Fundamentação de Direito

Sendo o único recurso sob apreciação da primitiva R. C... e dos RR/adquirentes/habilitados O... e esposa está em exclusivamente em causa, naturalmente, a parte procedente da sentença recorrida.

Está pois consolidada nos autos a improcedência decretada na sentença recorrida quanto aos pedidos de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais; assim como está, com a sentença recorrida, consolidada a não violação, com o muro, do art.1360.º do C. Civil.

Centremo-nos pois sobre a parte procedente da sentença recorrida, em que, repete-se e lembra-se, foram os RR. solidariamente condenados a:

Repor o terreno dos réus ao nível natural;

Vedar o referido muro desde os alicerces até ao topo, através da colocação de tela;

Abrir uma vala junto ao referido muro onde deverão ser colocadas manilhas de dimensão suficiente que conduzam a água que aí se acumula para o poço que já se encontra feito;

Colocar, de forma permanente, uma bomba elétrica que possibilite o bombeamento da água do poço para a rede pública;

Tapar todas as fissuras existentes no muro;

No que vier a ser liquidado, para reparação/substituição da rede que delimita o prédio referido em 1) da fundamentação de facto, com 60 metros de comprimento e 1,5 metros de altura, bem como para reparação/substituição dos 4 pilares de cimento que suportavam a referida rede e para substituição/reparação da parede do curral de animais.

E começar-se-á por referir que na génese e no centro do presente litígio estão as limitações ao conteúdo dos direitos reais, decorrentes e emergentes das relações de vizinhança; após o que se explicará que a parte do litígio que envolve a A e os RR. recorrentes (assim como com os RR./habilitados/adquirentes M... e esposa) se traduz na típica pretensão real de vizinhança (dirigida, em primeira linha, à repristinação/reconstituição da situação primitiva).

Expliquemo-nos:

A contiguidade e a proximidade existente entre prédios faz com que o exercício de direitos reais sobre um deles se projecte sobre prédios vizinhos ou, com mais rigor, sobre o interesse de quem sobre eles detém direitos; daí, o falar-se de limitações impostas pelas relações de vizinhança.

Razão porque a lei estabelece limitações que impõem um dever de abstenção (como é o caso das emissões, das instalações prejudiciais, das construções e plantações e do escoamento natural de águas), limitações que supõem a necessidade de suportar uma actuação alheia (como na utilização de terreno alheio e nas obras defensivas de águas), limitações que impõem deveres especiais de diligência (com nas escavações, tapagem de prédios ou ruína de construção) e limitações que impõem um dever de colaboração (como na demarcação e reparação de parede ou muro comum).

No caso, como se sintetizou no relatório inicial, a limitação que terá sido violada é a imposta no art. 1351.º do C. Civil, ou seja, segundo a A., foi construída uma obra que se traduz num agravamento do escoamento natural das águas.

Efectivamente, A. e RR./recorrentes são donos de prédios vizinhos (a A. do prédio identificado no ponto 1 dos factos provados e os RR. recorrentes dos lotes A e C referidos nos pontos 2 e 3 dos factos provados), sendo o prédio da A. “inferior” e tendo-se procedido nos lotes A e C (assim como no lote B referido no ponto 3 dos factos provados) a aterros e à vedação de tais lotes com muros de betão, obras que, segundo a A., “foram realizadas sem que fosse assegurada uma conveniente drenagem das águas pluviais que se acumulam junto do muro e que posteriormente correm para o terreno da A. situado a jusante”, “provocando um agravamento significativo do escoamento das águas para o prédio da A”, até porque “no muro foram feitos diversos barbacãs, que deitam directamente sobre o prédio da A., atingindo jactos de 4 metros” e “o muro, apesar de recente, possui já inúmeras fissuras por onde também jorra água”.

Daí os pedidos formulados de repor o terreno dos lotes ao nível natural, de refazer o muro de vedação entre os lotes e o terreno da A., de vedar o referido muro, desde os alicerces até ao topo, através da colocação de tela, de abrir uma vala junto ao referido muro onde deverão ser colocadas manilhas de dimensão suficiente que conduzam a água que aí se acumula para o poço que já se encontra feito, de colocar, de forma permanente, uma bomba eléctrica que possibilite o bombeamento da água do poço para a rede pública e de tapar todas as fissuras existentes no muro; pedidos estes que, tendo-se considerado que a “obra” se traduziu num agravamento do escoamento natural das águas, foram, com fundamento no já referido art. 1351.º do CC, julgados, cm excepção do 2.º, integralmente procedentes (também) contra os aqui RR/recorrentes.

RR/recorrentes que, percorrendo os factos provados (assim como a alegação da própria A.), não terão tido uma intervenção directa na execução da “obra” de que resulta o agravamento do escoamento natural das águas[4]; “obra” essa que terá sido executada quer pela loteadora (a R. B... ) quer pelos empreiteiros contratados pelos proprietários/adquirentes dos lotes (como a R/interveniente T...).

E é justamente aqui que a parte do litígio que envolve a A e os RR. recorrentes (assim como com os RR./habilitados/adquirentes M... e esposa) merece, pela sua especialidade, explicação e dilucidação.

Como começámos por referir, o litígio emerge duma relação de vizinhança, que supõe uma relação espacial entre imóveis, sendo sobre esta “relação espacial” que se alicerça a relação jurídica entre os titulares/proprietários (diferentes) em confronto; relação jurídica esta que é regida por regras (art. 1346.º e ss. do C. Civil) que moldam em abstracto posições recíprocas, segundo as quais cada vizinho/titular pode agir livremente in suo, desde que respeite as normas/regras específicas vigentes e desde que não ponha em causa a condição natural preexistente do prédio vizinho, uma vez que, se o fizer, tem de reconstituir a situação primitiva do prédio vizinho, independentemente de qualquer consideração de responsabilidade civil.

É disto, desta estrita pretensão real, dirigida à repristinação/reconstituição da situação primitiva, típica da relação de vizinhança, que trata o litígio (na parte julgada procedente) entre A. e RR. recorrentes.

Ideia/princípio este, do titular/vizinho não poder ter uma actuação que quebre o equilíbrio imobiliário, que engloba todas as suas condutas – activas e omissivas – que concorram para se repercutir negativamente sobre o prédio do vizinho. “A actuação de cada titular no próprio prédio é, como princípio, livre. Logo porém que se quebre o equilíbrio imobiliário — por ter ruído o muro, se abrirem fendas no prédio vizinho, provocado o aluimento de terras, inundado… — recai sobre o agente o dever de reconstituir o equilíbrio imobiliário”[5]. Dito doutro modo, sempre que o proprietário infringe o estatuto do direito de propriedade, fica obrigado “a praticar os actos necessários a conformar a situação material com o regime fixado na lei[6].

Significa isto que esta obrigação (de preservação/reconstituição do equilíbrio imobiliário) integra o próprio conteúdo do direito real – configura uma relação jurídica real ou propter rem – pelo que, em caso de violação, a pretensão dela emergente integra-se no conteúdo do concreto direito real “lesado”, transmitindo-se com a transmissão do direito real sobre o imóvel prejudicado e sendo oponível ao titular do imóvel vizinho, ainda que a titularidade deste também tenha sido transmitida.

Por outras palavras, a obrigação (de preservação/reconstituição do equilíbrio imobiliário) não é limitada ao titular que, activa ou passivamente, os tenha provocado. “A eventual obrigação integra-se no conteúdo do direito real, acompanhando este nas vicissitudes que sobrevierem. Por isso o novo titular fica vinculado como tal, por força do direito que adquiriu. Nada lhe pode ser exigido a título de responsabilidade civil. Já a título de situação imobiliária, ou de direito propter rem, responde como o titular antecedente.” (…) “Do mesmo modo, se o prédio vizinho for alienado, quem aparece agora com título para reclamar a repristinação é o proprietário actual, e não aquele que perdeu essa qualidade.” (…)[7]”.

Sendo certo, esclarece-se ainda, que o proprietário não responde por toda e qualquer modificação no prédio vizinho desencadeada a partir do seu prédio, mas apenas pelos seus próprios factos, independentemente de qualquer consideração de culpa, e pelo factos realizados por terceiros relacionados com a utilização do prédio; ou seja, o proprietário responde por factos que tenham como origem o exercício/gozo do seu direito/prédio.

E sendo igualmente certo, chama-se especialmente à atenção, que não se pode considerar e sustentar que o proprietário está sempre, em termos absolutos, obrigado à reconstituição da situação/equilíbrio anterior; a tal propósito, vale a pena atentar nas seguintes palavras do Prof. Oliveira Ascensão[8]:

“Se for anomalamente oneroso reconstituir o equilíbrio preexistente, o titular vinculado satisfaz a pretensão do vizinho mediante um equivalente. Se o novo equilíbrio for substancialmente equivalente ao anterior, de modo que nenhum interesse do vizinho possa justificar objectivamente uma solução diferente, a relação satisfaz-se com a constituição duma situação imobiliária equivalente à que foi eliminada. Por exemplo, reconstituindo a uma cota mais baixa o desnível existente entre os dois prédios. (…)

 (…) é preciso centrar esta matéria na onerosidade excessiva. (…)

Também no respeitante ao dever de indemnizar a lei dá prevalência à reconstituição natural; mas se a reconstituição natural não for possível ou for excessivamente onerosa para o devedor, é substituída pela indemnização em dinheiro.

Não haveria nenhum motivo para tratar mais asperamente o vizinho que aquele que está sujeito a responsabilidade civil. A preservação do equilíbrio imobiliário, recorde-se, é determinada independentemente de toda a consideração de culpa. Se o interesse objectivo do vizinho se satisfaz com o equivalente, não há que sacrificar o outro titular impondo-lhe algo mais gravoso.

Temos pois como primário o dever de o titular do prédio que está na origem do desequilíbrio reconstituir a situação imobiliária preexistente. Se não for possível , deve dar vida a uma situação substancialmente equivalente.

Pode porém acontecer que também não se alcance uma situação substancialmente equivalente, portanto uma situação que valorativamente corresponda ao equilíbrio imobiliário precedente, por isso ser impossível ou ser também excessivamente oneroso.

A solução não pode deixar de ser a do art. 566/1 CC, aplicado por analogia. Se na responsabilidade civil, em casos de impossibilidade ou onerosidade excessiva, a reconstituição natural é substituída por dinheiro, seria injustificado dar um tratamento diferente ao vizinho que está na origem do desequilíbrio imobiliário. Repare-se que no caso da responsabilidade civil se abrange a responsabilidade por factos ilícitos, enquanto que na relação de vizinhança se prescinde de toda a consideração de culpa. A aplicação do art. 566/1 CC a este caso tem assim a sustentá-la uma consideração de maioria de razão.“

Isto exposto, revertendo ao objecto dos autos/recurso, resulta que para a parte do litígio (julgada procedente na sentença recorrida) que envolve a A e os RR. recorrentes (assim como os RR./habilitados/adquirentes M... e esposa) é indiferente quem fez executou a obra – aterro e muros – nos lotes A, B e C (identificados nos pontos 2 e 3 dos factos provados).

Os RR. recorrentes (assim como com os RR./habilitados/adquirentes M... e esposa) só por serem, como são, os actuais[9] donos dos lotes respondem por todas as condutas anteriores em que tenha havido repercussão negativa sobre o prédio da A.; quer essas condutas tenham sido praticadas por eles e/ou pelos anteriores proprietários/transmitentes dos lotes, quer o tenham sido directamente e/ou por intermédio de empreiteiros.

Como se explicou, a obrigação (de preservação/reconstituição do equilíbrio imobiliário) integra o próprio conteúdo do direito real – configura uma relação jurídica real ou propter rem – não fica limitada ao titular/proprietário que, activa ou passivamente directa ou indirectamente, a gerou, estando o novo titular/proprietário vinculado a tal obrigação por força do direito de propriedade que adquiriu.

É pois desnecessário – está prejudicado – proceder à reapreciação da decisão de facto dada aos quesitos 1.º e 3.º (pontos 14 e 12 deste acórdão), uma vez que, insiste-se, é indiferente, para o objecto do recurso, saber quem procedeu ao aterro e à construção dos muros de vedação e/ou das casas; quem quer que tenha sido – a B... , a T... ou outro qualquer empreiteiro – praticou condutas/obras com origem no exercício/gozo do direito de propriedade sobre os lotes, pelo que, caso tais condutas/obras hajam desencadeado um modificação negativa no prédio da A., os proprietários/titulares dos lotes, à época de tais condutas/obras, respondiam/em (pela obrigação de reconstituição) e passaram/transmitiram tal responsabilidade quando transmitiram o direito real de propriedade sobre os lotes.

Significa isto que, em relação aos RR. recorrentes (assim como em relação aos RR./habilitados/adquirentes M... e esposa), estando assente serem os mesmos os actuais proprietário/titulares dos lotes “superiores”, apenas estava/á em questão, tendo em vista a parte do litígio julgada procedente na sentença recorrida, o ocorrência/verificação da repercussão negativa, por causa das “obras”, sobre o prédio “inferior” da A. e, num segundo momento, a questão do modo de repor o equilíbrio imobiliário, de reconstituir a situação imobiliária preexistente.

Assemelha-se o acabado de referir, embora a tutela processual do art. 1351.º do C. Civil não estivesse associada à antiga acção especial de arbitramento (uma vez que se entendia que só aos direitos conferidos pelos art. 1347.º e 1350.º do CC correspondia, em termos adjectivos, a acção de arbitramento do art. 1052.º e ss. do antigo CPC), ao que em tal antigo instrumento processual se procuraria apurar e averiguar: primeiro, a existência/definição do direito (no caso, a violação do art. 1351.º/2 do C. Civil, a ocorrência/verificação da repercussão negativa, por causa das “obras”, sobre o prédio “inferior” da A.) e, depois, num segundo momento (que correspondia ao arbitramento), em que, com a imprescindível ajuda dos peritos, se fixaria o modo e as medidas a tomar[10] para repor o equilíbrio imobiliário.

Ou seja – é aqui que verdadeiramente queremos chegar – a sentença aqui a proferir (assim como hoje sucede na maior parte dos processos correspondentes às antigas acções especiais de arbitramento, entretanto findas), além de ter que definir o direito, tem (em face até do que foi pedido) de estabelecer as medidas/obras mais adequadas a efectuar e, na concretização destas, há que ter em conta o bom senso, a razoabilidade, os justos limites impostos pela boa fé (art. 334.º do C. Civil), isto é, definido o direito (a existência de obras que agravaram o escoamento), não se pode seguir, automática e acriticamente (só por tal ter sido pedido), a destruição de tais obras (desde logo por a “restitutio operis” só poder/dever acontecer se tal não for excessivamente oneroso).

Concretizando um pouco mais, ressuma dos autos (e das inúmeras fotografias ao mesmo juntas, v.g., de fls. 517, 1217,1223, 1225, 1235 e 1237) que nos lotes A, B e C estão neste momento implantadas moradias, pelo que mandar “repor o terreno de tais lotes ao nível natural” – com tudo o que isso parece significar para as construções/moradias e para as estruturas de apoio às moradias, implicando a derrocada das moradias e de todas essas estruturas – é uma solução “radical” que tem necessariamente que estar baseada num raciocínio jurídico sólido e convincente e não apenas numa mera e genérica enunciação da violação do art. 1351.º/2 do C. Civil.

Mas vamos por partes:

Quanto à existência/definição do direito da A., isto é, quanto à ocorrência/verificação de repercussão negativa, por causa das “obras”, no prédio “inferior” da A..

Foi dado como provado, a tal propósito[11], na sentença recorrida:

Que se procedeu a aterros nos lotes A, B e C, sendo os mesmos superiores a 2 metros (de altura) em determinados pontos;

Que se procedeu à construção de muros de betão armado para vedação dos lotes A, B e C, tendo os mesmos (do lado do prédio da autora) uma altura que varia entre os 1,90m e os 3,90m; tendo no lote A sido instalado um tubo de drenagem 100 mmm, não existindo nos lotes B e C sistema de drenagem;

Que a construção de tais muros fez com que o prédio da A. deixasse de receber as águas que receberia naturalmente, passando a água, devido à impermeabilização dos lotes e à existência da água de rega dos jardins, a acumular-se junto ao muro do lado do prédio da A. e a ocorrer um “agravamento” do escoamento das águas para o terreno da A.; tanto mais que os muros apresentam fendas, que deitam directamente para o prédio da A., pelas quais escorre água; e

Que, desde a construção dos muros, existe água, durante todo o ano, no terreno da A. junto ao muro de vedação.

Dirigindo-se contra parte de tal factualidade a parte restante da impugnação da decisão de facto; mais exactamente, a decisão dada aos quesitos 7.º, 57.º e 58.º (pontos 18, 21 e 22 da fundamentação de facto deste acórdão), para o que se invocam uma série de depoimentos testemunhais prestados em audiência.

Sem razão, salvo o devido respeito; uma vez que – aqui e em qualquer processo – as provas não podem ser avaliadas/analisadas criticamente do modo pretendido pelos RR./recorrentes.

Sempre que está em causa o esclarecimento de factos que envolvem e exigem conhecimentos especiais – designadamente, técnicos – e sempre que, justamente por isso, são chamadas a pronunciar-se no processo – a referir as sua percepções e a fazer as suas apreciações – pessoas que é suposto possuir tais conhecimentos (o que se lhes reconhece com a sua nomeação como peritos), as percepções e as apreciações que estas pessoas/peritos tenham produzido no processo não podem – como regra, isso é, sem fortes, consistentes e explícitas razões – ser abaladas por meros depoimentos testemunhais, mais ou menos “impressionistas”, sobre os mesmo factos.

A nomeação definitiva de peritos – o requerimento da peritagem e o cumprimento das formalidades preparatórias da peritagem – significa que estamos perante factos que suscitam e exigem uma percepção de “especialistas” e, por outro lado, que estamos perante pessoas com idoneidade e competência.

De tal modo que, sendo-se severo e rigoroso, sobre os factos por eles percepcionados e apreciados não pode/deve admitir-se produção de prova testemunhal – que, por natureza, se destina a esclarecer factos passados que as testemunhas tenham presenciado e não a fazer apreciações sobre factos (passados ou presentes).

O pragmatismo na condução da audiência – e a circunstância da distinção entre testemunha e perito, clara em teoria, não se apresentar assim tão nítida, por vezes, na prática – acaba por, compreensivelmente, permitir que se pergunte às testemunhas “tudo e mais alguma coisa” e que estas a tudo respondem, comprometendo-se em afirmações pretensamente seguras sobre factos que exigem conhecimentos técnicos complexos, sem se dar conta que, assim, com tal ligeireza afirmativa, apenas estão a revelar, abertamente, o modo interessado como se colocam perante o litígio.

Foi repetidamente permitido que fossem feitas perguntas fora do objecto/“conceito” de testemunha, perguntas que diziam respeito a factos sobre os quais os peritos já se haviam pronunciado por escrito e em esclarecimentos orais[12], porém, não é por se haver perguntado “tudo” às testemunhas que pode haver surpresa em não se encontrar e conceder “préstimo” e “valor” a parte significativa das respostas.

Não é por uma testemunha referir um certo facto que o tribunal tem que incluir tal facto na sua versão factual; a prova testemunhal, é sabido, é apreciada livremente pelo tribunal, o que significa que o tribunal não está vinculado, na sua apreciação, a quaisquer regras legais estritas; é sim recorrendo a todas as circunstâncias envolventes, a todos os detalhes, munindo-se de todo o seu sentido crítico e analítico, fazendo uso de toda a sua perspicácia e experiência, que o tribunal avalia o depoimento das testemunhas, só “validando” para a sua versão factual o que lhe merece valor e crédito.

E se é sempre assim, ainda mais o é quando estamos – como é o caso da impugnação da decisão de facto dirigida aos quesitos 7.º, 57.º e 58.º – perante factos que exigem, directa ou indirectamente, conhecimentos especiais e quando sobre os mesmos foi feita perícia e se encontra junto diversos relatórios dos peritos.

Uma vez que também a prova pericial é apreciada livremente (389.º do C. Civil), não podemos excluir a hipótese de certos e concretos testemunhos, em face da sua solidez, consistência, credibilidade e proficiência, poderem colocar em crise ou mesmo infirmarem as percepções e apreciações dos peritos.

Não é, porém, a situação mais normal; e – é o que aqui interessa enfatizar – não é o caso dos autos.

E é justamente por isto que as respostas das testemunhas – cujos excertos constam da alegação recursiva – não têm, no confronto com o que consta do relatório pericial, valor ou préstimo suficientes; tanto mais que o relatório pericial foi mais do que uma vez confirmado e esclarecido (oralmente, no início da audiência pelos 3 peritos, e novamente por escrito e oralmente na “reabertura” da mesma).

Aliás, não será despiciendo – até pela sua relevância para o que vem a seguir (para fixar o modo e as medidas/obras a determinar para repor o equilíbrio imobiliário) – deixar aqui registados os seguintes excertos das respostas dos peritos:

“ não foram realizadas obras na face interior dos muros de suporte para evitar o escoamento directo das águas para o prédio da autora, uma vez que estes não se encontram impermeabilizados permitindo a passagem de águas através das fendas/fissuras existentes em toda a extensão dos muros”

“ as fissuras podem ser tapadas/tratadas com materiais elásticos”

“ no muro existente no lote A foi instalado um dreno de tubo perfurado com o diâmetro de 100mmm envolvido em brita instalada na parte superior da sapata, situando-se em alguns pontos acima da cota do terreno da A.; também foi colocada uma manta Geotextil na parte interior do muro; a dimensão dos tubos é suficiente para a captação e/ou escoamento das águas”

“no muro dos lotes B e C não foi instalado qualquer sistema de drenagem”

“ o muro apresenta em toda a sua extensão barbacãs entretanto já tapadas”

“ as águas pluviais correm pelo terreno da A. através das fissuras existentes no muro e, em alguns pontos, pela base das sapatas”

“ a água existente no prédio da A. junto ao muro tem duas origens: a chuva que cai no próprio terreno da A.; os escorrimentos provenientes dos lotes A, B e C”

“ o aterro, a construção do muro de vedação e das moradias nos 3 lotes de terreno provocaram um agravamento do escoamento das águas para o terreno da autora”

“ o agravamento do escoamento  das águas para o terreno da A. deve-se à impermeabilização  superficial dos lotes que provoca concentração de águas pluviais nas zonas de aterro  junto ao muro e à existência de água de rega dos jardins”

“ as águas pluviais acumuladas junto ao muro divisório são bombeadas para o colector público; sendo a bomba suficiente”

“as obras de drenagem realizadas não são suficientes, faltando impermeabilizar o intradorso do muro”

Não era pois à partida acessível, com base em depoimentos testemunhais (prestados por pessoas sem especiais conhecimentos e claramente empenhadas com uma das versões), “demolir” tais conteúdos dos relatórios periciais.

Daí que as respostas dadas aos quesitos 7.º, 57.º e 58.º da base instrutória não possam deixar de ser mantidas; improcedendo assim, o que aqui se refere explicitamente, tal parte do recurso de facto.

Podemos pois afirmar, perante o que supra se alinhou/sintetizou (como tendo sido dado como provado, na sentença recorrida, a propósito da ocorrência/verificação de repercussão negativa, por causa das “obras”, no prédio “inferior” da A.), que as obras – aterros e muros de suporte – levadas a cabo nos lotes “superiores” A, B e C agravaram o escoamento das águas que naturalmente corriam para o prédio “inferior” da A.

Sob a epígrafe “escoamento natural das águas”, dispõe-se no art. 1351.º/1 do C.Civil que “os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na sua corrente”; acrescentando-se no seu n.º 2 que “nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida”.

Consagra-se em tal preceito um princípio que já remonta ao direito romano, segundo o qual as águas devem seguir o seu curso natural, sem que os utentes ou os donos dos prédios imponham a outros, através de obras do homem, alteração a esse fluxo normal; razão porque o proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas ou o tornem mais gravoso, oposição que pode chegar à destruição das obras (restitutio operis) tendentes a alterar o curso normal das águas.

Ora, é justamente isto – alteração do fluxo normal e agravamento do curso das águas – que os factos que supra se alinhou/sintetizou exprimem; os donos/titulares dos lotes A, B e C movimentaram terras e edificaram muros nos seus lotes e, com isso, o escoamento das águas, que antes era efectuado em função do desnível natural existente, passou a efectuar-se de forma diversa, com claro agravamento do ónus que antes existia para o prédio da A..

Enfim, concluindo neste ponto, por causa das “obras” realizadas nos lotes “superiores”, ocorreu/verificou-se repercussão negativa – agravamento do “escoamento natural das águas – no prédio “inferior” da A.; ou seja, a violação do art. 1351.º/2 do C. Civil por parte dos donos/titulares dos 3 lotes.

O que nos remete para o segundo momento, supra enunciado, de fixar o modo e as medidas a tomar para repor o equilíbrio imobiliário.

Indiscutivelmente, tem a A. direito (e mesmo independentemente da ocorrência de qualquer dano) a ver eliminado o agravamento causado pelas obras.

Mas, como? Através da eliminação/destruição das obras ou apenas através da eliminação do agravamento causado pelas mesmas?

Como acabámos de referir, o proprietário prejudicado pode opor-se às obras feitas noutro prédio, que desviem o curso das águas ou o tornem mais gravoso, oposição que pode chegar à destruição das obras (restitutio operis) tendentes a alterar o curso normal das águas.

Mas, uma coisa é a oposição poder chegar à destruição das obras, outra, diversa, a oposição passar sempre, pedindo-o o proprietário prejudicado, pela destruição das obras.

Importa não esquecer que os titulares dos prédios vizinhos (“superiores” ou “inferiores”, conforme o caso) não estão impedidos de fazer obras nos seus prédios – importa não esquecer que podem agir livremente in suo – pelo que do que aqui se trata é apenas e só de fazer com que tal actuação in suo se contenha e respeite a condição natural preexistente no prédio vizinho/inferior.

E o que deve exactamente ser feito para tal contenção e respeito serem repostos é algo que só em concreto, caso a caso, pode ser determinado; ou seja, conforme o caso, tanto pode ser exigível a destruição das obras que causaram o agravamento do escoamento, como podem bastar modificações/melhoramentos em tais obras (para que tal agravamento deixe de ocorrer).

É, “mutatis mautandis”, o que, citando o Prof. Oliveira Ascensão, supra se referiu, ou seja, o proprietário não está sempre obrigado à reconstituição da situação anterior; em certos casos, tem, isso sim, que se encontrar um novo/equivalente equilíbrio imobiliário.

“Se for anomalamente oneroso reconstituir o equilíbrio preexistente, o titular vinculado satisfaz a pretensão do vizinho mediante um equivalente. (…) a relação satisfaz-se com a constituição duma situação imobiliária equivalente à que foi eliminada. (…) Temos pois como primário o dever de o titular do prédio que está na origem do desequilíbrio reconstituir a situação imobiliária preexistente. Se não for possível, deve dar vida a uma situação substancialmente equivalente”

É esta última, salvo o devido respeito, a hipótese dos autos.

Sobressai dos autos (e das fotografias ao mesmo juntas) que nos lotes A, B e C estão neste momento implantadas moradias (com anexos e estruturas de apoio, como piscinas), pelo que, mandar “repor o terreno de tais lotes ao nível natural”, é, com todo o respeito, aplicar o direito sem pensar nas consequências[13], é esquecer que o direito se destina a regular situações sociais[14] e que a interpretação (art. 9.º do C. Civil) não deve cingir-se à letra da lei, devendo o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Para além da anómala onerosidade que tal “reposição” acarretaria para os donos/titulares dos lotes, de tal “reposição” não ser o único meio de conferir satisfação ao interesse objectivo da A. (consistente no não agravamento do escoamento natural das águas), sucede, insiste-se, que os donos/titulares dos lotes não estão impedidos de movimentar o terreno dos seus lotes, mas apenas impedidos de fazer movimentos de terras que não respeitem a condição natural preexistente no prédio vizinho/inferior (que agravem o escoamento natural das águas)[15].

Em conclusão, não é caso para impor aos RR. a destruição das obras (a restitutio operis), a reconstituição da situação imobiliária preexistente, como também não é caso, ao contrário do que sustentam os RR/recorrentes, de “impossibilidade” e de substituição por dinheiro da obrigação de reconstituição; o caso é de imposição das medidas tendentes à reconstituição dum equilíbrio imobiliário equivalente ao anterior.

Assim sendo e encurtando razões:

O 1.º segmento condenatório da sentença recorrida não pode manter-se.

Quanto aos 4 segmentos condenatórios seguintes, tentando concretizar – em linha com os factos provados, com o que resulta das respostas dos peritos, supra transcritas, e com o que se extrai das cláusulas 4.ª e 5.ª do doc. de fls. 25 (ponto 32 dos factos provados) – o mais possível as medidas a tomar, para repor um novo e equivalente equilíbrio imobiliário, entendemos que a confirmação de tais 4 segmentos condenatórios deve acontecer e ser redigida nos seguintes termos[16]:

Impermeabilizar devidamente com a colocação de tela a face interior (intradorso) dos muros de suporte dos lotes A, B e C (identificados nos ponto 2 e 3 dos factos provados) existentes em toda a estrema de tais lotes com o prédio da A. (identificado no ponto 1 dos factos provados).

Colocar dreno com o diâmetro de 100mmm (pelo menos) envolvido em brita, abaixo da sapata de tais muros de suporte e ao longo de toda a extensão dos muros; dreno a escoar para o poço já existente (ponto 26 dos factos deste acórdão) e donde (do poço) a água será bombeada (pela bomba eléctrica já existente, conforme ponto 26 dos factos provados) para a rede/colector público de águas pluviais.

Tapar, com materiais elásticos adequados, todas as fendas/fissuras existentes nos muros de suporte (referidos) dos lotes A, B e C

Quanto ao 6.º segmento condenatório, que se confirma, nada há a acrescentar ao referido na sentença recorrida.

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Desfecho este em que os RR./recorrentes não são em tudo devedores solidários; desfecho que, em certos termos, tem que ser estendido, às partes não recorrentes.

Como repetidamente se referiu, à parte do litígio (julgada procedente na sentença recorrida) que envolve a A e os RR. recorrentes é indiferente quem fez/executou a obra – aterro e muros – nos lotes A, B e C; os RR. recorrentes são demandados por serem, como são, os actuais[17] donos dos lotes, respondendo por todas as condutas anteriores em que tenha havido repercussão negativa sobre o prédio da A., mas, é uma evidência/decorrência, respondem apenas por todas as condutas que tenham como origem o exercício/gozo do seu próprio direito/prédio.

Por conseguinte, em relação aos 3 primeiros segmentos condenatórios deste acórdão só são responsáveis na parte respeitante ao seu prédio/lote; e, sendo assim, em face da repercussão e semelhança de raciocínio, idêntica terá que ser a responsabilização/condenação dos RR./habilitados/adquirentes M... e esposa (que não recorreram).

Por outro lado, é uma evidência que decorre dos RR. recorrentes não estarem obrigados a suportar modificações no seu prédio em que eles próprios não estão/forem condenados, a parte em que a sentença recorrida não é confirmada estende-se naturalmente a todos os RR..

Finalmente, quanto à sociedade B... , mantém-se a sua condenação, não obstante as habilitações de adquirentes ocorridas (cfr. 271.º do CPC = 263.º do NCPC), uma vez que não recorreu da sua condenação e visto que não foi apenas demandada por ser (à época) dona/titular dos Lotes B e C (mas também obrigacionalmente demandada).

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IV - Decisão

Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, confirmando-se e revogando-se a sentença recorrida; em função do que se substitui o decidido pela condenação:

1. Dos RR./recorrentes ( C... e marido e O... e esposa) e dos RR. M... e esposa a, na parte respeitante a cada um dos seus prédios/lotes, proceder aos seguintes trabalhos:

Impermeabilizar devidamente, com a colocação de tela, a face interior (intradorso) dos muros de suporte dos lotes A, B e C (identificados nos ponto 2 e 3 dos factos provados) existentes em toda a estrema de tais lotes com o prédio da A. (identificado no ponto 1 dos factos provados).

Colocar dreno com o diâmetro de 100mmm (pelo menos) envolvido em brita, abaixo da sapata de tais muros de suporte e ao longo de toda a extensão dos muros; dreno a escoar para o poço já existente (ponto 26 dos factos deste acórdão) e donde (do poço) a água será bombeada (pela bomba eléctrica já existente, conforme ponto 26 dos factos provados) para a rede/colector público de águas pluviais.

Tapar, com materiais elásticos adequados, todas as fendas/fissuras existentes nos muros de suporte (referidos) dos lotes A, B e C

2. Das RR. B... e T..., solidariamente entre si e com cada um dos 3 anteriores RR, a proceder aos trabalhos antes referidos.

3. De todos os RR., solidariamente, no que vier a ser liquidado, para reparação/substituição da rede que delimita o prédio referido em 1) da fundamentação de facto, com 60 metros de comprimento e 1,5 metros de altura, bem como para reparação/substituição dos 4 pilares de cimento que suportavam a referida rede e para substituição/reparação da parede do curral de animais.

Absolvendo-se em tudo o mais os RR..

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Custas, nesta instância, por RR/apelantes e A/apelada em partes iguais.

Coimbra, 17/03/2015

 (Barateiro Martins - Relator)

 (Arlindo Oliveira)

 (Emídio Santos)


[1] A A. também fez menção de recorrer da decisão, recurso que não foi admitido.

[2] Alinhamento em que se acrescentou a aquisição dos habilitados/adquirentes; em que se suprimiram repetições e se procurou harmonizar a redacção factual; em que se retiraram os factos respeitantes a pedidos já em definitivo decididos; e em que se transcreveu o conteúdo do documento de fls. 24/25.
[3] Documentos que são de 2005, pelo que, certamente, já nem reflectirão as inscrições existentes no presente momento.
[4] Os RR/recorrentes O... e esposa nem sequer eram, à data da entrada da PI, proprietários do lote C.
[5] Oliveira Ascensão, A preservação do equilíbrio imobiliário, pág. 17.
[6] Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 275.
[7] Oliveira Ascensão, A preservação do equilíbrio imobiliário, pág. 18; que acrescenta “que o facto de a mesma pessoa ter uma pluralidade de pretensões para satisfação do mesmo interesse não tem nada de anómalo. Anómalo seria se se pudesse satisfazer duas vezes, ao que obviamente a ordem jurídica se opõe.”
[8] A preservação do equilíbrio imobiliário, pág. 22 e 23
[9] À luz dos documentos – certidão da C. Reg. Predial – juntos aos autos.
[10] Que podiam ser e eram muitas vezes propostas e alvitradas, numa clara excepção a um estrito princípio do dispositivo, pelos próprios peritos.
[11] Em síntese, de modo coerente e harmónico.
[12] Ao fim de quase 3 anos de audiência ainda vieram prestar novos esclarecimentos escritos e orais.

[13] E a ponderação das consequências constitui ainda um momento de argumentação jurídica, pelo menos para todos os que entendem que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida.

[14] E que o aplicador do direito não pode divorciar-se das condições concretas em que procede à imediação entre a norma e a realidade que lhe subjaz.

[15] Se a movimentação de terras tiver sempre que respeitar o nível natural, então, teremos que concluir que é bastante limitada a transformação de terrenos acidentados/inclinados; o exagero da conclusão é revelador da falta de bondade da mesma.
[16] Até porque, no facto 26, se dão já como existentes o poço e a bomba eléctrica.
[17] Em face dos documentos da CRP que constam dos autos.