Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1856/21.9T8LRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO
EXECUÇÃO EM CURSO CONTRA UM DOS EX-CÔNJUGES
INTERVENÇÃO ESPONTÂNEA DO CREDOR
INCIDENTE DE COMUNICABILIDADE DA DÍVIDA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA NOS AUTOS DE INVENTÁRIO
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1688.º; 1689.º,1 E 1695.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 272.º, 1 E 3; 423.º; 651.º; 740.º, 2; 741.º; 1082.º, 2; 1083.º; 1085.º, 2, B); 1097.º, 3, D); 1133.º; 1135.º E 1327.º, 3, DO CPC
Sumário:

1. - Tendo em conta a especificidade do inventário em consequência de divórcio, direcionado e vocacionado para a liquidação integral das relações patrimoniais entre os cônjuges (incluindo passivo), é indubitável que um credor, com execução em curso contra um dos ex-cônjuges, tem legitimidade para intervir espontaneamente nos autos de inventário, no escopo da satisfação do seu direito de crédito, se a correspondente dívida for da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges.

2. - Num tal caso, estando pendente, na esfera executiva, incidente de comunicabilidade da dívida (ao ex-cônjuge não executado), ocorre motivo justificado para suspensão da instância dos autos de inventário até que se mostre definitivamente decidido tal incidente de comunicabilidade da dívida (art.º 272.º, n.ºs 1 e 3, do NCPCiv.).

3. - Com efeito, o que vier a ser decidido na partilha poderá influir na satisfação do crédito exequendo, já que tal partilha poderá determinar que os bens que haveriam de responder pela dívida venham a caber, por acordo entre os interessados, ao cônjuge não executado, com decorrente possibilidade de dissipação, antes que estivesse decidido definitivamente o incidente de comunicabilidade.

4. - Situação em que a satisfação do crédito exequendo poderia, por esse modo, ficar comprometida, se a decisão fosse no sentido da comunicabilidade da dívida – esta em muito elevado valor –, perdendo o seu efeito útil.

5. - O motivo justificado, a que alude a lei, é aquele que, sendo sério, relevante, atendível, face aos interesses legítimos em causa, aconselha a suspensão da instância, designadamente para que tais interesses resultem protegidos, tratando-se, em qualquer caso, de uma apreciação com larga margem de discricionariedade do tribunal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

Em autos de inventário para partilha do património comum dos ex-cônjuges (após divórcio) AA (cabeça de casal) e BB, ambos com os sinais dos autos,

veio, em 15/10/2021, “A... SGPS, S. A.”, também com os sinais dos autos, em intervenção espontânea – invocando a sua qualidade de credora –, apresentar, nos termos do disposto no art.º 1088.º, n.º 1, NCPCiv., reclamação à relação de bens oferecida por aquela cabeça de casal.

Para tanto, invocou que:

- a Reclamante é titular de um crédito sobre aquele BB, que ascende a vários milhões de euros, na sequência de uma ação arbitral intentada contra este, por incumprimento de um acordo parassocial celebrado aquando da reestruturação do “Grupo B...”, anteriormente detido e gerido por tal BB;

- assim, este último foi condenado, em 28/10/2020, no pagamento de € 2.500.000,00, acrescidos de dois terços dos encargos do processo de arbitragem, pagamento esse a que não procedeu, sendo que o crédito ascende ao total de € 3.270.827,64;

- em face do não pagamento por BB, foi instaurada ação executiva pela Reclamante/credora contra aquele, a qual segue a normal tramitação – tendo existido já penhora de bens comuns –, também contra a aludida AA (aqui cabeça de casal), mediante dedução de incidente de comunicabilidade da dívida, que corre termos;

- a Reclamante/credora tomou recentemente conhecimento da existência destes autos de inventário para partilha do património comum, os quais constituem uma «reiterada tentativa de BB e AA se furtarem aos seus credores», tendo aqueles omitido o processamento do inventário à luz do disposto no art.º 1135.º do NCPCiv., pelo que existe erro na forma de processo e incompetência por conexão, devendo os autos de inventário ser tramitados por apenso ao processo executivo em curso;

- a instauração deste inventário, no âmbito do art.º 1133.º do NCPCiv., pela cabeça de casal, quando sabia perfeitamente que existia já o aludido processo executivo em curso, com penhora já de bens comuns do casal e incidente de comunicabilidade da dívida, teve como motivação a fuga aos credores e a dissipação do seu património;

- tanto mais que a cabeça de casal nem sequer relacionou o crédito aludido, havendo fortes indícios de que aqueles BB e AA continuam a atuar concertadamente para prejudicar os credores, âmbito em que se insere a realização de ato cirúrgico de partilha de património, dissipando-o dos seus credores, como aconteceu com um único bem imóvel, adjudicado àquela AA, que imediatamente o «alienou» à filha de ambos CC, o que tudo mostra que estão verificados todos os requisitos da forma de processo especialíssima prevista no art.º 1135.º do NCPCiv., assim ocorrendo erro na forma de processo;

- o aludido incidente de comunicabilidade de dívida – onde se decidirá se a execução recairá sobre os bens comuns do casal ou apenas sobre os bens próprios e meação dos bens comuns do executado BB –, é imprescindível para a consolidação do passivo do casal no presente inventário, existindo ainda – para além do crédito aqui em causa – credores hipotecários e outro, perfazendo um passivo total de cerca de € 5.295.784,15, muito superior ao ativo (de si, muito sobreavaliado) –, o que justifica a suspensão da instância no inventário, nos termos do disposto no art.º 272.º, n.º 1, parte final, do NCPCiv.;

- a Reclamante é credora de BB pela aludida quantia de € 3.270.827,64, reclamando, assim, o seu crédito neste inventário, sendo que ainda nada recebeu na execução mencionada;

- é aplicável o regime de comunicabilidade previsto no art.º 1691.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., tratando-se, pois, de uma dívida comum;

- a relação de bens apresentada pela cabeça de casal não se encontra completa nem correta, seja quanto a verbas, seja quanto a avaliações, constatando-se que o ativo se encontra sobreavaliado, sendo o valor do passivo superior ao daquele;

- do passivo relacionado, não consta o crédito da Reclamante, pelo que deve ser corrigida a relação de bens.

Concluiu assim:

«a. Deverá ser declarado o erro sob a forma de processo e declarado nulo todo o processado, nos termos do artigo 193.º, n.º 2 do CPC;

b. Deverá ser declarada a incompetência do Tribunal e ordenada a remessa do processo para o tribunal competente, nos termos dos artigos 578.º e 104.º, n.º 1, alínea c) ambos do CPC;

c. Deve ser considerada suspensa a instância nos termos do artigo 272.º n.º 1 do CPC;

d. Deverá ser considerada procedente a presente reclamação e ser reconhecido o Crédito da Credora, da responsabilidade de ambos os cônjuges, no montante de EUR 3.270.827,64, passando este a constar da relação de bens;

e. Deverá ser corrigida a relação de bens nos termos explanados no Capítulo VI supra;

f. Deverá condenar a AA e o BB em litigância de má fé, numa multa exemplar, nunca inferior a EUR 50.000,00, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) a d) do CPC.».

AA (cabeça de casal) deduziu resposta, concluindo:

- pela ilegitimidade da Reclamante/credora, visto o invocado crédito corresponder a alegada condenação apenas de BB, sendo este apenas quem figura como executado na referida execução, ao que acresce que a dívida não pode ser considerada comum, mas própria daquele BB, que não era comerciante, mas administrador de sociedades, agindo por conta destas, e não em proveito comum dos cônjuges, que já se encontravam separados de facto ao tempo dos factos mencionados na sentença arbitral; termos em que o invocado crédito não deve ser relacionado no processo de inventário, não tendo a Reclamante legitimidade para deduzir a sua reclamação [por não ser interessada nos termos do disposto no art.º 1085.º, n.º 2, al.ª b), do NCPCiv.], com a consequência da respetiva rejeição, por manifesta inadmissibilidade;

- pela inexistência de erro na forma de processo, tratando-se de um processo de inventário decorrente de divórcio (art.º 1133.º do NCPCiv.), iniciado em 14/05/2021, quando a Cabeça de Casal ainda não tinha sido notificada de qualquer penhora de bem comum, inexistindo também nulidade processual;

- pela improcedência da exceção de incompetência relativa por conexão e do pedido de suspensão da instância, posto, ademais, não haver motivo justificado para tanto, apesar do incidente de comunicabilidade da dívida, visto a execução correr termos unicamente contra BB, não sendo o ex-cônjuge sujeito executado nesses autos, termos em que, a haver suspensão, essa será do processo de execução (até à partilha, nos termos do disposto no art.º 740.º, n.º 2, do NCPCiv.) e não do processo de inventário;

- pela improcedência, em qualquer caso, da reclamação de créditos deduzida, tal como da impugnação da relação de bens, para que também não tem legitimidade a Requerente, e do deduzido incidente de condenação por litigância de má-fé.

Por decisão datada de 26/01/2022, foi julgada totalmente improcedente a reclamação apresentada.

Inconformada, a Reclamante/credora recorre do assim decidido, apresentando alegação, onde formula as seguintes

Conclusões ([1]):

«A. O presente recurso é interposto da Sentença Recorrida, nos termos da qual o Tribunal a quo (i) declarou a improcedência das questões excecionais de erro na forma de processo e de incompetência do tribunal; (ii) indeferiu o pedido de suspensão da instância; (iii) indeferiu o reconhecimento do crédito da recorrida AA em montante identificado; e (iv) declarou a ilegitimidade da Recorrente para participar no Processo de Inventário.

B. A Recorrente não se pode conformar com tal decisão no que respeita à solução de direito por este adotada, impondo-se, conforme se demonstrará melhor infra, a revogação da Sentença Recorrida.

C. O presente Processo de Inventário em curso, bem como todos os atos de disposição de bens levados a cabo pelos Recorridos são-no em dissipação de garantias dos credores, entre os quais a Recorrente, Credora de um crédito no valor de EUR 3.270.827,64.

D. O próprio divórcio dos Recorridos e os atos de partilha cirúrgicos que antecedem o presente Processo de Inventário inserem-se na estratégia de atuação em prejuízo dos credores levada a cabo pelos Recorridos.

E. O Processo de Inventário em curso, ao surgir apenas após a propositura da ação executiva pela Recorrente no dia 15.12.2020, faz parte de uma estratégia intencional dos Recorridos visando perturbar a execução em curso para pagamento do crédito da Recorrente através de adjudicações estratégicas, sonegação de bens e/ou violação das regras da partilha.

F. Cumpre sublinhar que o Recorrido BB, empresário comercial da indústria cerâmica, foi condenado, em Sentença Arbitral, a pagar à ora Recorrente a quantia de EUR 2.500.000,00, a título de cláusula penal - Cláusula 19.2 do Acordo Parassocial -, pela prática de atos ilícitos concorrenciais que praticou entre os anos de 2015 a 2017, em violação do dever de não concorrência, em prejuízo das sociedades do Grupo C... e em benefício de um Grupo Paralelo de empresas familiares concorrentes.

G. Entre as empresas familiares concorrentes destaca-se a D..., tendo como beneficiários efetivos os Recorridos BB e AA e como administrador de facto o Recorrido BB que ordenou o desvio de argilas do Grupo C... a favor da D..., bem como que diversos colaboradores de várias empresas do Grupo C... prestassem trabalho à D... a expensas do Grupo C....

H. Estes ilícitos, praticados entre 2013 e 2017, foram apurados no âmbito de uma auditoria forense levada a cabo pela reputada auditora independente PricewaterhouseCoopers (PwC), tendo sido também considerados provados, em detalhe, em várias decisões dos Tribunais Estaduais já transitadas em julgado.

G. Todos os referidos desvios e proveitos advenientes dos ilícitos referidos ocorreram com proveito comum do casal ocorreram durante a pendência do matrimónio e no exercício pelo Recorrido BB de uma atividade comercial da indústria cerâmica.

H. Em plena demonstração do comportamento sistemático e fraudulento de sonegação de bens levado a cabo pelos Recorridos, o qual indicia que, através do presente Processo de Inventário, se realizará uma partilha fraudulenta, em prejuízo dos credores e, em especial, da ora Recorrente, seja através da sonegação de bens ao património comum seja em violação da regra da metade, ou outras.

I. A participação processual dos credores no Processo de Inventário é essencial em casos como o em apreço, em que a Recorrente é Credora do Recorrido BB e Autora de um incidente de comunicabilidade da referida dívida, como salvaguarda dos seus interesses creditícios, através do poder geral de sindicância da atividade do cabeça-de-casal, de reclamação da escolha ou sonegação de bens para preenchimento de cada meação, entre outros, no sentido que reconhece o Acórdão do Tribunal da relação de Guimarães, de 17.01.2013.

J. A relevância da participação processual da Recorrente no Processo de Inventário é acrescida pela sua instauração estratégica em momento posterior ao Incidente de Comunicabilidade, em fragilização das garantias fortes da procedência da comunicabilidade da dívida da Recorrente, o património conjugal, que é aqui cirurgicamente e parcialmente distribuído, em termos tais que lhe são inacessíveis e insindicáveis.

DA LEGITIMIDADE DA RECORRENTE

K. O Tribunal a quo considerou, sem fundamento, que a Reclamação de Créditos não poderia ser admitida face à falta de legitimidade da Recorrente que, na sua ótica, não é um credor do património comum.

L. Porém, o crédito da Recorrente no valor de EUR 3.270.827,64 é reconhecido por uma sentença arbitral que condenou o Recorrido BB, a qual constitui o título executivo no Processo Executivo em Curso.

M. A condenação em apreço teve por fundamento a violação da obrigação de proibição de concorrência consagrada no Acordo Parassocial pelo desvio sistemático de recursos humanos, matérias primas, oportunidades de negócio e clientela das empresas do Grupo B... para outras empresas formalmente detidas pela sua esposa e pelos seus genros, mas onde estes eram meros testas de ferro.

N. A dívida em causa, por ter sido contraída no exercício da atividade comercial e em proveito comum de ambos os cônjuges, por beneficiar as empresas familiares do casal em detrimento das várias sociedades do Grupo C..., entre 2015 e 2017, ou seja, na vigência do matrimónio, sempre será uma dívida de natureza comercial e, por isso, comum, sendo da responsabilidade de ambos os Recorridos – artigos 1691.º, n.º1, als. c) e d) do CC.

O. A isto acresce o facto de Doutrina e Jurisprudência nacionais, e em concreto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.09.2017, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.12.2018 (ambos supramencionados), considerarem que não obsta ao proveito comum do casal o caráter ilícito dos atos comerciais praticados.

P. A responsabilidade da dívida, crédito da Recorrente, em apreço é comum e resulta indubitável do trânsito em julgado da sentença arbitral que condenou o Recorrido BB e da certidão de casamento dos Recorridos, e legitima a intervenção da Recorrente na qualidade de credora no Processo de Inventário em curso.

Q. É inequívoco que os desvios perpetrados pelo Recorrido BB enriqueceram o património empresarial familiar de ambos os Recorridos, com proveito comum do casal, não tendo o Recorrido BB agido sozinho, antes sempre com o auxílio e a cumplicidade da Recorrida AA, co-autora de vários daqueles desvios.

R. Sendo, por isso, óbvia a encenação do divórcio entre os Recorridos e o intuito fraudulento do Processo de Inventário em curso aos credores, em particular, a ora Recorrente que já intentou o Processo Executivo em Curso.

S. A este propósito cumpre salientar que as sociedades do Grupo C... já se viram forçadas a mover contra o Recorrido BB um arresto dos seus bens precisamente com fundamento em hábitos de dissipação e ocultação do património do Recorrido, por através de uma empresa internacional de gestão de patrimónios e de veículos fiduciários com sede no estrangeiro, ocultar o facto de ser dono e beneficiário efetivo da D..., ter alienado dois prédios rústicos, poucos dias antes do arresto e ter dissipado, através de uma sociedade-veículo de parqueamento de imóveis, um prédio de elevado valor.

T. E igualmente, que na pendência do putativo divórcio, os Recorridos dissiparam o património conjugal dos credores, com intenção de fuga dos Recorridos – e, no global, por toda a família, estando envolvidas as filhas também – aos mesmos mediante atos cirúrgicos de suposta partilha, não restando, nem podendo restar qualquer dúvida, de que os Recorridos irão instrumentalizar o presente Processo de Inventário para prejudicarem os seus credores.

U. Face ao que se expõe, viu-se a Recorrente impelida a deduzir o Incidente de Comunicabilidade de Dívida, impulso a que presidiu o intuito de a dívida em execução no Processo Executivo em curso ser declarada comum aos Recorridos tendo sido penhorados, a favor da Recorrente, todos os bens comuns do casal, relacionados no presente Processo de Inventário, e bens próprios do Recorrido BB, devendo o Crédito da Recorrente ser deve ser relacionado no presente Processo de Inventário, na qualidade de dívida comum dos Recorridos, AA e de BB.

V. Ainda que do Incidente de Comunicabilidade se venha a concluir que o Crédito da Recorrente consubstancia uma dívida própria de BB, sempre deve ser admitida a sua relacionação no presente Processo de Inventário bem como a legitimidade da Recorrente para intervir nos presentes autos, na qualidade de credora, considerando que não há fundamento para pugnar pela insusceptibilidade de serem relacionadas dívidas próprias de apenas um dos cônjuges em sede de Processo de Inventário, como pacificamente reconhece a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, sendo disso exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17.01.2013.

W. A referida relacionação impõe-se, desde logo, em virtude da desejável liquidação definitiva das responsabilidades entre os cônjuges após o divórcio, bem como das responsabilidades destes perante terceiros e, subsidiariamente e sem se conceder, sendo a dívida própria respondem, os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns.

X. Por todo o exposto resulta manifesto terem os credores de cada um dos cônjuges todo o interesse em intervir num Processo de Inventário em que se partilham os bens comuns do casal, porquanto as garantias patrimoniais que lhes assistem dependem da efetividade da meação que ao seu devedor couber.

Y. Impõe-se a conclusão de que, qualquer que seja a natureza do Crédito, sempre à Recorrente assistirá legitimidade para intervir no Processo de Inventário, seguindo-se o processo especialíssimo de inventário que prevê a faculdade de reclamar contra a escolha dos bens que integram a meação dos bens comuns do casal.

Z. É a necessidade de evitar situações de conluio entre os dois cônjuges e de garantir uma partilha justa e equitativa de todos os bens comuns do casal, que impõe que se reconheça ao credor exequente o poder geral de sindicar a atividade do cabeça-de-casal, como reconhece e bem a jurisprudência nacional, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.01.2010 supramencionado.

DA SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA

AA. Salvo o devido respeito, não assiste também razão ao Tribunal a quo quanto à não suspensão da presente instância até decisão final transitada em julgado no Incidente de Comunicabilidade da Dívida.

BB. Sem prejuízo do já mencionado supra sobre os indícios no sentido de haver um evidente risco de fraude na partilha dos bens em prejuízo dos credores, importa salientar que o Incidente de Comunicabilidade de Dívida – que não cabe discutir nos presentes autos – afigura-se imprescindível para a consolidação do passivo dos Recorridos no presente Processo de Inventário.

CC. O presente Processo de Inventário não é o meio processual adequado para se discutir o tema da comunicabilidade da dívida, sendo-o antes o Incidente de Comunicabilidade da Dívida.

DD. Só com a decisão proferida pelo tribunal de recurso relativamente à sua admissibilidade ficará estabilizado se o Processo Executivo em Curso recairá sobre os bens comuns dos Recorridos ou apenas sobre os bens próprios e meação dos bens comuns do Recorrido BB.

EE. A decisão relativa à admissibilidade do Incidente de Comunicabilidade de Dívida é crucial para o desenrolar do próprio Processo de Inventário, considerando que dela irá resultar o escopo dos bens comuns do casal que irão responder pelo Crédito detido pela Credora.

FF. Em face do exposto, a Credora reitera que, tendo em consideração o Incidente de Comunicabilidade de Dívida, o facto de o valor constante dos ativos da relação de bens estar ostensivamente sobrevalorizado, o valor elevado do crédito da Credora para a consolidação do passivo e para que o Processo de Inventário possa ser verdadeiramente útil, deve ser decretada a suspensão da instância, nos termos do artigo 272.º, n.º 1 parte final do CPC, por haver motivo justificado para tanto.

ERRO NA FORMA DO PROCESSO

GG. O Tribunal a quo considerou que inexiste erro na forma do processo em função da causa de pedir indicada nos autos para efeitos de partilha parcial do património comum ser a da dissolução do casamento por divórcio e não a separação de meações, declinando a possibilidade da Recorrente, enquanto Credora, intervir no Processo de Inventário para efeitos de uma eventual reclamação da escolha de bens que compõem a meação de cada cônjuge.

HH. Contudo, não assiste razão ao Tribunal a quo porquanto a forma do processo não é aferida pela causa de pedir, como configurada pelo autor, mas pelo fim e pelo pedido, como bem refere JOSÉ ALBERTO DOS REIS cabendo a aplicação das normas especiais de proteção de credores, consagradas no processo especialíssimo do artigo 1135.º do CPC para os devidos efeitos de salvaguarda dos interesses creditícios da Recorrente.

II. Atenta a ratio sempre caberá uma avaliação objetiva e material do fim do processo de inventário, tendo em vista a necessidade de proteção de credores, não podendo fazer-se depender a aplicação das referidas normas da configuração do pedido ou da causa de pedir realizado pelo autor, sob pena de negação das finalidades de proteção de credores ínsitas ao processo especialíssimo.

JJ. Afigura-se, assim evidente a aplicação desta forma de processo especialíssima, a ela não se opondo a ausência de notificação da penhora dos bens comuns do casal, considerando que teve lugar a dedução de Incidente de Comunicabilidade da Dívida – só sendo aquela devida em caso de improcedência deste, não podendo os Recorridos não podem em simultâneo negar a comunicabilidade da dívida e a notificação ao cônjuge do executado da penhora dos bens comuns do casal, nos termos do artigo 740.º, n.º 1 do CPC.

KK. Negar que a forma de Processo de Inventário é a especialíssima e simultaneamente a comunicabilidade da dívida é um comportamento contraditório por parte da Recorrida AA que, no limite, traduz uma situação de fraude à lei – fraude à aplicação do artigo 1135.º do CPC, por coartar as garantias que a referida forma acautela, i.e., a salvaguarda dos interesses dos credores de manobras fraudulentas dos cônjuges que tenham em vista a subtração do seu património à satisfação das obrigações pelas quais respondem.

LL. As preocupações de tutela dos interesses dos credores acabadas de referir revestem particular acuidade no caso sub judice, atentos os fortes indícios de que os Recorridos perpetuam o comportamento concertado em prejuízo dos credores não restando dúvidas sobre a verificação dos requisitos e da ratio subjacente à forma de processo especialíssima contemplada no artigo 1135.º do CPC e à qual não obsta o facto de o divórcio ter sido encetado em momento anterior à execução ou à penhora, como bem esclarece o supramencionado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21.05.2009, supramencionado.

MM. Apesar de a referida forma de processo especialíssima aludir apenas à citação do cônjuge do executado, a referida não pode ser objeto de uma interpretação meramente literal, considerando que a lei adjectiva não abrange exclusivamente os casos de sociedade conjugal em vigor, mas também aqueles em que o executado tenha sido membro de uma tal sociedade e já o não seja por a mesma se ter dissolvido, desde que permaneça o património comum do casal em pé, por ausência de partilha, como em esclarecem Antunes Varela e Henrique Mesquita.

NN. Ora, aplicando-se as referidas normas não somente aos cônjuges propriamente ditos, mas também aos ex-cônjuges, que não tiveram o cuidado de proceder à partilha dos bens do casal, deixando-os em comum com o outro membro da sociedade conjugal, sempre se terá de concluir pela verificação de um erro na forma do processo, conforme entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 24.11.2020, como sucede no caso em apreço.

OO. Pois bem a forma do processo no presente caso, por já ter existido já «penhora de bens comuns» (n.º 1 do artigo 1135.º do CPC), é a especialíssima atenta a referida penhora e ainda o Incidente de Comunicabilidade da Dívida, tendo a Recorrida indicado a forma simples, com base no artigo 1133.º do CPC, tendo em vista a fuga aos credores e em seu prejuízo.

PP. Porém, a própria Recorrida AA ao rejeitar a comunicabilidade da dívida com fundamento na suposta ilegitimidade da Recorrente como credora do seu ex-cônjuge, e pedir a separação de bens comuns do casal, nos termos do artigo 740.º, n.º 2 do CPC, face à penhora de bens comuns, impõe que o Processo de Inventário siga a referida forma especialíssima do artigo 1135.º do CPC, bem como.

QQ. É a conduta da Recorrida, ao defender que não há comunicabilidade da dívida, mas que também não é aplicável o regime dos artigos 740.º e 1135.º do CPC, bem demonstrativa das reais intenções dos Recorridos com o presente Processo de Inventário: dissipar bens em prejuízo dos Credores.

RR. No limite, sempre a referida atuação consubstanciaria uma situação de fraude à lei, em concreto do artigo 1135.º do CPC, cabendo a sua desconsideração em garantia da aplicação da lei (artigos 21.º e 294.º do CC).

SS. Importa ainda relembrar que, em sede de oposição ao Incidente de Comunicabilidade da Dívida, a Recorrida AA invocou a suspensão da instância do Incidente de Comunicabilidade da Dívida, com fundamento nos artigos 740.º, n.º 2 e 741.º, n.º 6 do CPC, argumentação que sempre justificaria que a separação de bens naqueles contemplada deveria seguir a forma do processo especialíssimo previsto no artigo 1135.º do CPC,

TT. Por todo o exposto, é manifesto o comportamento contraditório dos Recorridos que, no Incidente de Comunicabilidade da Dívida, requerem a sua suspensão até à conclusão do presente Processo de Inventário, mas que, no presente Processo de Inventário, opõem-se à suspensão deste até decisão final transitada em julgado no Incidente de Comunicabilidade da Dívida. Tudo com a intenção ostensiva de instrumentalizar os meios processuais para conseguir fugir ao pagamento do crédito indemnizatório da Recorrente.

UU. Não se pode conceder que havendo causa prejudicial numa situação, a mesma seja negada noutra exatamente igual apenas porque assim convém aos Recorridos, cabendo a declaração do erro na forma de processo, nos termos do artigo 193.º, bem como da nulidade de todo o processado, nos termos do n.º 2 da referida norma.

VV. A referida conclusão sempre importará que a Recorrente devesse ter estado presente no Processo de Inventário – o qual deveria ter corrido por apenso - desde o início, assistindo-lhe a oportunidade de sindicar a atividade da Recorrida, AA, na qualidade de cabeça-de-casal, sob pena de ver as suas garantias enquanto credora do casal reduzidas.

DA INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL

WW. Considerou o Tribunal a quo que não existe incompetência relativa por conexão, com base no facto de a causa de pedir ser o divórcio proferido em 25.03.2019 pela Conservatória do Registo Civil ... e por o Tribunal a quo ser o tribunal “da área de residência de um dos interessados em cuja área de intervenção foi decretado o divórcio e onde se situam parte dos bens que integram o património familiar”, porém, sem razão.

XX. O presente Processo de Inventário deveria correr termos no tribunal onde se encontra a correr o Processo de Execução em Curso – i.e., no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução – juiz ... – e, por apenso ao mesmo, conforme o que dispõem as regras legais de competência por conexão.

YY. A Recorrida AA apenas deu entrada do pedido de abertura do Processo de Inventário no decurso do prazo de que a dispôs para se opor à dedução do Incidente de Comunicabilidade no início do Processo Executivo em curso, o qual como é bom de ver foi o exclusivo motivo pelo qual instaurou o presente Processo de Inventário.

ZZ. Resulta, por isso, claro que o Processo de Inventário é deles dependente, nos termos do que defende, pacificamente, a nossa Doutrina, a propósito do tema da competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, e, em concreto, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA no tratamento da matéria da suspensão da ação executiva na sequência da acionabilidade, pelo cônjuge do executado, das faculdades que lhe são atribuídas pelos artigos 740.º, n.º 2 e 741.º, n.º 6 do CPC.

AAA. A referida conclusão, seguida pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.02.2013 conduz à conclusão de que a propositura da presente ação junto do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo de Família e Menores ..., Juiz ... acarreta a preterição da competência por conexão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução, Juiz

BBB. Estamos perante uma exceção dilatória de incompetência relativa, nos termos da alínea a) do artigo 577.º do CPC, de conhecimento oficioso, por força do disposto no artigo 578.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 104.º do CPC.

CCC. Em face do exposto, deverá este excelentíssimo Tribunal revogar a Sentença Recorrida, substituindo-a por uma outra onde seja declarada a incompetência para conhecer a presente ação, ordenando a remessa do processo para o tribunal competente, isto é, para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução, juiz ....

Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, ser a Sentença Recorrida revogada e substituída por outra nos termos da qual se julgue inteiramente procedente a Reclamação de Créditos da Recorrente.

POIS SÓ ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!».

Foi junta contra-alegação de recurso, pugnando a parte recorrida pela improcedência total do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com o regime e efeito fixados no processo ([2]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, vindo a ser mantidos tais regime e efeito fixados. 

Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo fixado nos articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber:

a) Da admissibilidade da prova documental junta na fase de recurso (questão prévia);

b) Da legitimidade da Reclamante/Recorrente para intervir como credora no âmbito dos autos de inventário;

c) Da incompetência do tribunal;

d) Do erro na forma de processo;

e) Da suspensão da instância.

III – Questão prévia

Importa começar por conhecer, enquanto questão prévia (aliás, suscitada pela Recorrida, na sua contra-alegação), sobre a admissibilidade da prova documental junta na fase de recurso.

Com efeito, a Recorrente juntou, com a sua peça recursiva, um documento, tratando-se do requerimento de interposição de recurso – e respetivas motivação e conclusões – para a Relação de Lisboa, quanto à decisão, da 1.ª instância, de indeferimento do incidente de comunicabilidade de dívida, por inadmissibilidade legal.

Após o que juntou cópia do Ac. do TRL, proferido em 26/05/2022, sobre esse recurso, aresto esse que decidiu “julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e, em sua substituição, julgando improcedente a exceção da inadmissibilidade do incidente da comunicabilidade da dívida”.

Após convite do Relator, a parte recorrente esclareceu os motivos da junção tardia e veio juntar certidão daquele Ac. do TRL, não transitado em julgado, por ter sido interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ).

Foi ainda junta pela Recorrente cópia do Ac. do STJ, datado de 10/01/2023, que recaiu sobre aquele aresto da Relação e, depois, por indicação do Relator, atenta a relevância da matéria, certidão desse Ac. do STJ, com nota de trânsito em julgado.

Quer dizer, trata-se de documentos posteriores à decisão aqui recorrida, que assumem relevo para a decisão deste recurso, por desembocarem no Ac. do STJ – já transitado em julgado – que decidiu definitivamente quanto à admissibilidade (liminar) do incidente de comunicabilidade (à aqui Recorrida, AA) da dívida exequenda (cuja exequente é a aqui Recorrente), em que é executado BB (ex-cônjuge daquela), isto é, ambos os interessados no inventário e a ora Reclamante/Recorrente.

Em suma, os ditos documentos são de admitir, posto, quanto à tempestividade da junção, estar comprovado que não poderiam ter sido juntos anteriormente, designadamente em 1.ª instância (cfr. art.º 423.º do NCPCiv.).

E, quanto à pertinência/relevância, tratando-se de decisões judiciais, a desembocar no – muito recente – Ac. STJ que decidiu definitivamente quanto à admissibilidade do dito incidente de comunicabilidade da dívida, matéria de algum modo central neste recurso, atento o invocado pelas partes, é de concluir pela verificação dos pressupostos de admissibilidade da prova documental na fase de recurso (art.º 651.º do NCPCiv.).

        Pelo exposto, vai admitida a requerida junção de documentos pela Apelante, os quais ficarão, por isso, nos autos (até por anterior sinalização do Relator, quanto à junção de certidão com nota de trânsito em julgado).

IV – Fundamentação

          A) Matéria de facto

O substrato factual e a dinâmica processual a considerar são os que resultam do antecedente relatório, aqui dado como reproduzido, a que se acrescenta, apenas, o seguinte ([4]):

1. - Os interessados (AA e BB) contraíram entre si casamento em 19/09/1981, sem convenção antenupcial, o qual foi declarado dissolvido por decisão de divórcio, proferida em 25/03/2019 pela Conservatória do Registo Civil ...;

2. - A aludida AA intentou, em 14/05/2021, «INVENTÁRIO PARA PARTILHA DOS BENS COMUNS DO CASAL» contra aquele BB, «nos termos e para os efeitos da alínea d), do artigo 1082.º, n.º 2 do artigo 1083.º e artigo 1133.º, todos do Código de Processo Civil, e do artigo 1689.º, n.º 1, do Código Civil» (cfr. requerimento inicial dos autos);

3. - No requerimento de inventário, foi alegado, designadamente:

«4º

Sucede, porém, que as Partes apenas conseguiram acordar na partilha de um dos imóveis que constituía o património comum do casal, a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao terceiro andar para habitação, parte integrante do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., União das Freguesias ..., ..., ... e ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...54, da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...94 da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., conforme escritura de partilha que ora se junta como doc. 3, dando-se por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.

Para além da partilha do imóvel, foi ainda possível acordar na partilha dos bens móveis que constituíam o recheio da casa de morada de família, conforme acordo de partilha cuja cópia ora se junta como doc. 4, dando-se por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais,

Quanto aos demais bens que constituem o património comum do casal não foi possível alcançar acordo para a partilha dos mesmos.

Os bens comuns a partilhar são os constantes da relação de bens que ora se junta como doc. 5, dando-se por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais».

4. - Como resulta de certidão, com nota do trânsito em julgado, do Acórdão proferido pelo STJ em 10/01/2023, no âmbito do processo n.º 27175/20...., transitado em 26/01/2023, no incidente de comunicabilidade deduzido por A... SGPS, S. A. contra AA, ao abrigo do art.º 741.º do NCPCiv., por apenso aos autos de execução que aquela moveu contra BB, no Juízo de Execução de Lisboa (juiz ...), foi proferida, em 1.ª instância, decisão que indeferiu o mesmo (incidente de comunicabilidade de dívida), por inadmissibilidade legal.

5. - Interposto recurso dessa decisão, pela Relação de Lisboa foi proferido Acórdão que decidiu “julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido e, em sua substituição, julgando improcedente a exceção da inadmissibilidade do incidente da comunicabilidade da dívida”.

6. - Interposto, na sequência, recurso para o STJ, foi proferido aquele Ac. de 10/01/2023, pelo qual foi decidido rejeitar a revista, assim mantendo o decidido pela Relação, com o efeito de resultar admitido (liminarmente) o deduzido “incidente da comunicabilidade da dívida” ([5]).

B) Aspeto jurídico do recurso

1. - Da legitimidade da credora para intervir espontaneamente nos autos de inventário

Como visto, a Reclamante/Recorrente pretende intervir como credora no âmbito dos autos de inventário, suscitando diversas questões, para além de reclamar o seu invocado crédito, para o que considera ter legitimidade, no que é contrariada pela contraparte e pelo Tribunal a quo.

Refere este último – sinteticamente – na decisão recorrida:

«O presente inventário foi instaurado ao abrigo do disposto na alínea d), do artigo 1082.º, n.º 2 do artigo 1083.º e artigo 1133.º, todos do Código de Processo Civil, e do artigo 1689.º, n.º 1, do Código Civil, não fazendo [sentido] em nosso entender, fazer neles apelo ao artº 1135º do CPC.

De facto, os interessados contraíram entre si casamento em 19 de Setembro de 1981, sem convenção antenupcial, o qual foi declarado dissolvido por decisão de divórcio proferida em 25.03.2019 pela Conservatória do Registo Civil ....

Foi tal causa de pedir a indicada nestes autos para proceder à partilha parcial do património comum pertencente ao dissolvido casal, pelo que a tramitação aplicável é, efectivamente a seguida e competente este tribunal de família e menores da área de residência de um dos interessados, em cuja área de intervenção foi decretado o divórcio e onde se situam parte dos bens que integram o património a partilhar.

Diferente seria se, efectivamente, não obstante o divórcio, o fundamento para a propositura do processo tivesse sido a penhora de bens comuns do casal ou a insolvência de um dos interessados, na pendência de casamento, circunstância em que, efectivamente, haveria de aplicar-se o mesmo regime, mas com as particularidades contidas no artº 1135º do CPC, devendo o processo correr por apenso ao processo (judicial), onde tivesse ocorrido o facto determinante para a dita instauração.

Não sendo esse o caso, como não é, improcedem, manifestamente as invocações feitas em sentido contrário pela interveniente A..., SA., cujos pedidos correspondentes se indeferem.

(…)

Pretende a requerente que o seu crédito seja (…) reconhecido (…) em montante que identifica, passando este a constar da relação de bens.

Contudo, também aqui carece de razão.

Na verdade, o seu crédito não é sobre o património comum, que aqui se visa partilhar, mas antes, por hora, sobre um dos interessados e, eventualmente, posteriormente sobre ambos.

Tal tipo de crédito não é dívida do património e só essas, nos termos do artº 1097º, nº 3, alª d) do CPC podem ser trazidas ao inventário, mais uma vez, considerado como se considera.

Carece, pois, também aqui de fundamento a pretensão da requerente que, por isso, se indefere.

Não sendo a mencionada credora admitida a ver relacionado o seu crédito neste processo, manifestamente carece a mesma de legitimidade para neste processo, requerer a alteração da relação de bens, por outro tipo de questões ou desconformidades, outro tanto se passando coma invocação de litigância de má-fé, que, neste processo, não existem factos que nos permitam concluir verificar-se.».

Apreciando.

Resulta da factualidade apurada que o casamento entre os aludidos interessados no inventário (AA e BB) foi dissolvido por divórcio, mediante decisão proferida em 25/03/2019 pela Conservatória do Registo Civil ....

Na sequência, a aludida AA intentou, em 14/05/2021, os autos de inventário («INVENTÁRIO PARA PARTILHA DOS BENS COMUNS DO CASAL») contra aquele BB, «nos termos e para os efeitos da alínea d), do artigo 1082.º, n.º 2 do artigo 1083.º e artigo 1133.º, todos do Código de Processo Civil, e do artigo 1689.º, n.º 1, do Código Civil».

É certo que no requerimento de inventário, foi alegado no sentido de ser necessária a partilha dos bens comuns do casal, na parte em que os ex-cônjuges não conseguiram acordar na partilha, em decorrência do divórcio – alegou a Requerente do inventário que, quanto aos demais bens que constituem o património comum do casal não foi possível alcançar acordo para a partilha dos mesmos, tratando-se dos bens comuns «constantes da relação de bens que ora se junta».

Assim, tendo em conta o pedido e a causa de pedir formulados pela Requerente do inventário, este destina-se à partilha dos bens comuns do casal na sequência do divórcio anteriormente decretado, isto é, enquadra-se no âmbito do disposto no art.º 1133.º do NCPCiv., como a própria Requerente logo invocou na peça processual originária dos autos de inventário.

O que se conforma com a coeva invocação do disposto no art.º 1689.º, n.º 1, do CCiv., referente à partilha do casal e ao pagamento de dívidas ([6]).

É sabido, por outro lado, que correm termos autos de execução, movidos pela aqui Reclamante/credora contra o ora interessado BB, no Juízo de Execução de Lisboa, onde a interessada AA não é executada.

Todavia, no quadro daquela execução, foi deduzido, pela ali Exequente (ora Reclamante), incidente de comunicabilidade da dívida contra a referida AA, ao abrigo do art.º 741.º do NCPCiv., incidente esse que se mostra definitivamente admitido, mas ainda não decidido.

O que ocorre, então, por ora, nesta parte, é que se encontra admitido e a correr termos, na esfera executiva, o deduzido “incidente da comunicabilidade da dívida”, com vista a determinar se a dívida – do executado BB – é (ou não) comum, de molde a responsabilizar ambos os ex-cônjuges, caso em que (se a dívida for considerada comum) «a execução prossegue também contra o cônjuge não executado, cujos bens próprios podem ser nela subsidiariamente penhorados» (cfr. art.º 741.º, n.º 5, do NCPCiv.).

Com efeito, preceitua o art.º 1695.º, n.º 1, do CCiv. que “Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges.”.

Já no caso de a dívida não ser considerada comum «e tiverem sido penhorados bens comuns do casal, o cônjuge do executado deve (…) requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo anterior».

E o n.º 2 art.º 740.º do NCPCiv. estabelece que, «Apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha; se, por esta, os bens penhorados não couberem ao executado, podem ser penhorados outros que lhe tenham cabido, permanecendo a anterior penhora até à nova apreensão.».

Em termos de regulação substantiva, quanto à partilha e ao pagamento de dívidas, dispõe aquele art.º 1689.º do CCiv.:

«1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.

2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.» ([7]).

A este respeito, referem Pires de Lima e Antunes Varela, para o caso de divórcio, que primeiro devem ser entregues a cada um dos cônjuges os seus bens próprios. Depois, cada um deles haverá de conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos, que por esse património tenham sido efetuados, de dívidas de exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor. Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, entregando a cada um dos seus titulares a respetiva meação ([8]).

Quanto ao pagamento de dívidas/passivo (a terceiros, nas relações externas), preceitua, como visto, o n.º 2 daquele art.º 1689.º que, em primeiro lugar, obtêm pagamento as dívidas comunicáveis, até ao valor do património comum, e só depois as restantes.

Relativamente ao passivo, concorda-se com a fundamentação do Ac. TRL de 01/06/2010 ([9]), onde se sinalizou que:

«A responsabilidade dos cônjuges perante terceiros não é afectada pelo divórcio, de modo que não existindo bens comuns a partilhar, responderão pelas dívidas os bens próprios de cada cônjuge e ainda os bens que cada um vier a adquirir posteriormente ao divórcio.

O divórcio pode ainda despoletar a invocação do direito de compensação de algum dos cônjuges cujos bens próprios tenham respondido por dívidas da responsabilidade de ambos.

Apesar da inexistência de bens comuns, o facto de existirem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges basta para que se requeira a abertura de processo de inventário que possibilita a liquidação global das relações patrimoniais estabelecidas entre os cônjuges.».

E o mais recente Ac. TRL de 24/10/2017 ([10]), constando do respetivo sumário que:

«I - O inventário requerido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1326º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil destina-se, não apenas a partilhar bens, mas a pôr termo à comunhão conjugal, a qual é muito mais abrangente do que mera comunhão de bens.

II - Assim, a circunstância de o património comum dum ex-casal ser constituído apenas por dívidas, inexistindo qualquer activo, não constitui impedimento a que seja instaurado processo especial de inventário para separação das meações, inexistindo fundamento legal para restringir a aplicação do processo de inventário para partilha aos casos em que haja bens, rectius activo, a partilhar.».

Também esta Relação de Coimbra já salientou, no Ac. TRC de 06/05/2008 ([11]), que:

«I - As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento, designadamente através do divórcio.

II - Cessadas essas relações patrimoniais, procede-se à partilha dos bens do casal (artº 1689º C.Civ.) e sendo esta via judicial, será através do processo especial de inventário (…).

III - O processo de inventário em consequência de divórcio não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas também a liquidar definitivamente as responsabilidades entre eles e deles para com terceiros, o que pressupõe sempre a relacionação de todos os bens, próprios ou comuns, e também daqueles créditos.

IV - É na partilha que os cônjuges recebem os bens próprios e a sua meação no património comum, é na partilha que cada um deles confere o que deve ao património comum (artº 1689º, nº 1), e é no momento da partilha que o crédito de um deles sobre o outro, ou do património comum sobre um deles, e ainda o dos credores do património comum, se tornam exigíveis (artºs 1697º e 1695º, nº 1).

(…)» (destaque aditado).

Ainda quanto ao passivo, na vertente da legitimidade processual para intervir em inventário pendente, dispõe o art.º 1085.º, n.º 2, al.ª b), do NCPCiv., que podem intervir num processo de inventário pendente os credores da herança nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, norma geral (do capítulo «Disposições gerais») que, salvo o devido respeito, também valerá, mutatis mutandis, para o inventário destinado a partilhar bens comuns do casal [previsto nos art.ºs 1082.º, al.ª d), e 1133.º, ambos do NCPCiv.].

Nesta lógica, não surpreende que se tenha entendido, à luz da legislação processual civil de pretérito (CPCiv. revogado), que «(…) o credor-exequente tem legitimidade para reclamar da omissão de bens na relação apresentada, no processo de inventário para separação de meações, pelo cabeça de casal.

(…)

Dispõe o artº 1327º, nº 3 do CPC, aplicável ao caso, ex vi do artº 1404º, nº 3 do mesmo diploma legal que «Os credores da herança e os legatários são admitidos a intervir nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos….».

A intervenção dos credores no processo de inventário tem uma especial finalidade, sendo apenas determinada e relativa ao crédito a que têm direito e pretendem ver satisfeito ou aprovado.

«Todos eles (legatários, donatários e credores) são chamados ao processo só porque interessa à afinação da partilha dirimir certas questões que também lhes dizem respeito…. A falta de inventário não os prejudica; mas a marcha do inventário pode contender com os seus interesses e é preciso pô-los em condições de os defenderem» Simões Pereira, Processo de Inventário e Partilhas, pág. 58).

Alberto dos Reis (Processo de Inventário, Lições, pág. 125) escreveu: «Aos legatários só interessa fazer tudo quanto seja atinente ao pedido de entrega da coisa legada, e aos credores praticar só os actos necessários para a efectivação do seu direito de crédito».

Assim, o credor-exequente tem legitimidade para reclamar da omissão de bens na relação apresentada pelo cabeça de casal, no processo de inventário.» ([12]).

Na mesma senda, foi entendido, quanto à questão de «saber se as dívidas a relacionar neste processo de inventário são apenas as comuns», nos seguintes moldes:

«A afirmação contida na decisão impugnada de que «as dívidas a relacionar neste género de processo são as comuns, pois quanto às que não o sejam apenas responderão os bens próprios ou a meação», parece partir do pressuposto de que no inventário só são relacionados os bens comuns.

O inventário em consequência do divórcio tem por objecto os bens sobre que cessam as relações patrimoniais estabelecidas pelo regime de bens do casamento nos termos dos artigos 1688º e 1689º do Código Civil.

(…)

Como se vê, o inventário não se destina apenas a dividir os bens comuns dos cônjuges, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e bem assim as dívidas do casal, quer as comunicáveis, quer as não comunicáveis, o que supõe, em qualquer dos casos, a relacionação dos bens próprios de cada um.

Devem ser relacionados todos os bens do casal, sejam comuns ou próprios de qualquer dos cônjuges, visto que o inventário se destina à liquidação definitiva das responsabilidades entre os cônjuges e destes para com terceiros.

Nem outra coisa se pode entender da expressão do nº 1 do artigo 1689º «recebem os bens próprios e a sua meação no património comum». (cfr. Ac STJ, 5-7-1990: BMJ, 399º-512).» ([13]).

Em sentido contrário, considerando que as «dívidas incomunicáveis de cada um dos ex-cônjuges (…) não são objecto de relacionação no processo de inventário instaurado na sequência da acção de divórcio», pronunciou-se o Ac. TRC de 17/05/2011 ([14]), com o seguinte sumário:

«I - No âmbito do processo de inventário para separação de bens – artº 1406º do CC – são relacionáveis os direitos de crédito do património conjugal comum sobre cada um dos cônjuges (artº 1697º, nº2 do CC).

II - Acresce dever relacionar-se o passivo que onere o património comum, ou seja, o que é da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges (artºs 1691º, nºs 1 e 2, 1693º, nº 2, e 1694º, nºs 1 e 2 do CC).

III - Tratando-se de dívidas incomunicáveis de cada um dos ex-cônjuges, as mesmas não são objecto de relacionação no processo de inventário instaurado na sequência da acção de divórcio, regime que se aplica ao inventário para separação de bens por força do disposto no nº 1 do artº 1406º do CPC que remete para o artº 1404º do mesmo código.».

Ora, no quadro do caso em análise neste recurso, encontra-se em discussão, em âmbito incidental – de comunicabilidade da dívida – do processo executivo movido pela aqui Reclamante/Recorrente, se a dívida é própria do outro ex-cônjuge (executado) ou da responsabilidade de ambos (comum).

Por isso, não se tem ainda por seguro se estamos perante dívida própria do cônjuge executado ou comum (da responsabilidade de ambos), matéria que está a ser dirimida no quadro executivo.

É certo que o presente inventário não é dependência do processo executivo, tendo sido intentado de forma autónoma, mas o que aqui vier a ser decidido quanto à partilha pode influir sobre a satisfação do crédito exequendo.

Basta pensar que a partilha poderá determinar que os bens que poderiam responder pela dívida venham a caber, por acordo entre os dois interessados, ao cônjuge não executado, antes que estivesse decidido definitivamente o mérito do incidente de comunicabilidade.

Num tal caso, a satisfação do crédito exequendo poderia ficar comprometida, se se concluísse/decidisse no sentido daquela comunicabilidade da dívida.

Em suma, havendo controvérsia quanto à questão de saber se as dívidas incomunicáveis de cada um dos ex-cônjuges devem, ou não, ser objeto de relacionação no processo de inventário na sequência de divórcio, é seguro que as comunicáveis/comuns o devem ser, caso este (último) em que não parece haver margem para dúvidas de que o credor poderá (terá legitimidade para) intervir no inventário, em defesa dos seus interesses (satisfação do seu direito de crédito), podendo, nessa medida, reclamar contra a relação de bens e obter a relacionação do seu crédito.

Ora, como dito, encontrando-se em discussão, em incidente de comunicabilidade da dívida, na esfera do processo executivo, se a dívida (relativa ao crédito da Reclamante) é própria do ex-cônjuge executado ou da responsabilidade de ambos, a decisão desse incidente, se for no sentido da verificação da comunicabilidade, deixará clara a legitimidade do credor para intervir no inventário, reclamando contra a relação de bens, obtendo a relacionação do seu crédito e tomando outras posições que se mostrem relevantes para defesa do seu direito creditório. Isto, para quem entenda que só no caso de dívidas comuns o credor pode intervir no inventário.

Da decisão da questão da legitimidade para intervir espontaneamente no processo de inventário, depende, por sua vez, o conhecimento das demais questões suscitadas, com reporte à competência do tribunal, ao erro na forma de processo ([15]), à reclamação contra a relação de bens e relacionação do crédito exequendo ([16]).

2. - Da pretendida suspensão da instância de inventário

Pretende a Recorrente que se suspenda a instância nos autos de inventário, ao abrigo do disposto no art.º 272.º, n.º 1, in fine, do NCPCiv., isto é, por ocorrer motivo justificado, caso em que, a proceder a suspensão, deve o Tribunal fixar o prazo durante o qual a instância ficará suspensa (n.º 3 do mesmo art.º).

O invocado motivo, tido pela Recorrente como justificado, traduz-se na pendência daquele incidente de comunicabilidade da dívida – cujo tempo da respetiva decisão definitiva se desconhece – e no risco de desfecho da partilha em termos prejudiciais para a satisfação do crédito exequendo, de tal modo que o direito creditório – de si muito elevado –, em execução, pudesse ficar comprometido/insatisfeito ([17]).

Diversamente, a 1.ª instância entendeu assim:

«Não se afigura que, dentro do contexto supramencionado a existência de acção executiva onde é executado um dos interessados, prosseguindo por apenso a eles incidente de comunicabilidade onde se pretende estender a dívida exequenda ao outro interessado obste ao prosseguimento deste processo, onde se visa partilhar o património comum do casal outrora constituído por ambos e dissolvido por divórcio.

Efectivamente, aqui não se alienam bens em favor de terceiros, mas apenas se extingue a comunhão, passando os bens que a integravam a pertencer ao património de cada um dos elementos do extinto casal, donde na dita execução, quer ela siga quanto a um deles ou ambos, nenhum risco de perda de garantia patrimonial se corre.

Acresce que ali se pode levar a cabo a penhora do quinhão de cada um dos interessados ou de ambos no património comum, pelo que não se vislumbra qualquer risco a acautelar com a dita suspensão sendo que nenhuma norma legal a impõe ou aconselha.

Refira-se, ainda que caso exista partilha fraudulenta, como parece entender a requerente, sempre a mesma poderá lançar mão das faculdades que lhe assistem para a ver declarada nula ou anulada, o que terá que fazer em sede declarativa própria e não neste processo, com finalidades restritas e óbvias.

São termos em que e com tais fundamentos, se indefere o pedido de suspensão da instância.».

Apreciação recursiva.

O motivo justificado, a que alude a lei, é aquele que, sendo sério, relevante, atendível, face aos interesses legítimos em causa, aconselha a suspensão da instância, designadamente para que os mesmos resultem protegidos/salvaguardados, tratando-se, em qualquer caso, de uma apreciação com larga margem de discricionariedade do Julgador ([18]).

Perante o anteriormente exposto, não podendo, obviamente, dizer-se – e nem a Recorrente o diz – que a execução e os seus incidentes constituíssem causa prejudicial relativamente ao inventário em curso, entende este Tribunal ad quem que está configurado (outro) motivo justificado para a suspensão da instância nos autos de inventário.

Com efeito, estando pendente incidente de comunicabilidade da dívida, na esfera do processo executivo, onde se discute se aquela é própria do ex-cônjuge executado ou da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges, a decisão do incidente, se for no sentido da verificação da comunicabilidade, deixará clara a legitimidade do credor para intervir no inventário, com as inerentes consequências em termos de questões sob apreciação (reclamação contra a relação de bens, obtenção da relacionação do seu crédito e tomada outras posições que se mostrem relevantes para defesa do seu direito creditório).

Mas mais. O que aqui vier a ser decidido na partilha poderá influir na satisfação do crédito exequendo, já que tal partilha poderá determinar que os bens que poderiam responder pela dívida venham a caber, por acordo entre os interessados, ao cônjuge não executado, com decorrente possibilidade de dissipação (como receia a Apelante), antes que estivesse decidido definitivamente o mérito do incidente de comunicabilidade.

Num tal caso – de decisão definitiva do inventário antes da decisão definitiva do incidente de comunicabilidade –, a satisfação do crédito exequendo poderia, por esse modo, ficar comprometida, se a decisão fosse no sentido daquela comunicabilidade da dívida – esta, ademais, de muito elevado valor –, perdendo o seu efeito útil.

Deve ponderar-se que nenhum prejuízo relevante resulta para os interessados no inventário pela suspensão da instância até à decisão definitiva do incidente de comunicabilidade (já admitido e em curso), enquanto que, pelo lado da Reclamante/credora, há todo o interesse nessa suspensão, com o que se evita o risco de partilha e dissipação prejudiciais/danosas e, em termos de economia e celeridade processuais, a possível necessidade de instauração de outras ações cíveis para invalidade da partilha, «o que ter[ia] que fazer em sede declarativa própria e não neste processo (…)» (citando a decisão recorrida), contribuindo, assim, para o aumento das ações e dos recursos – de si, já em número apreciavelmente elevado (como se pode retirar até das certidões juntas aos autos) – ligados ao caso e às partes, com o inerente dispêndio de recursos/meios e multiplicação de processos/incidentes.

Em suma, na apreciação desta Relação, aplicando o disposto no art.º 272.º, n.º 1, parte final, do NCPCiv., ocorre motivo justificado para suspensão da instância nos autos de inventário até que se mostre definitivamente decidido (com trânsito em julgado) o aludido incidente de comunicabilidade da dívida ([19]).

Procede, pois, a apelação, neste âmbito, devendo ser revogada a decisão recorrida.

***
(…)

***
VI – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, revogando-se, em consequência, a decisão recorrida e determinando-se:
a) Ao abrigo do disposto no art.º 272.º, n.ºs 1, parte final, e 3, do NCPCiv., por ocorrer motivo justificado, a suspensão da instância nos autos de inventário até que se mostre definitivamente decidido (com trânsito em julgado) o incidente de comunicabilidade da dívida, em curso na esfera do processo executivo em que é exequente a aqui Reclamante e executado o interessado BB;
b) Após o que – e em função do que – se decidirá, em 1.ª instância, sobre a legitimidade da Reclamante para intervir nos autos de inventário, como credora, e demais questões ligadas a essa intervenção.
Custas da apelação pela parte recorrida, vencida no recurso (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).


Coimbra, 30/05/2023     

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

                                      

Fernando Monteiro



([1]) Que se deixam transcritas.
([2]) Com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
([3]) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Com base no que vem indicado na decisão recorrida – embora sem demarcação de uma parte fáctica –, que nesta parte não foi objeto de controvérsia, bem como em prova documental adquirida para os autos já na fase recursiva e ainda na consulta dos autos principais, no sistema Citius.
([5]) Como dito no sumário de tal aresto do STJ, «Este Acórdão [o da Relação] teve como consequência o prosseguimento da tramitação do dito incidente de comunicabilidade, não conhecendo do respectivo mérito, nem ao mesmo pondo termo (…)».
([6]) Como referido no Ac. STJ de 19/09/2019, Proc. 926/13.1TBBCL.G2.S1 (Cons. Catarina Serra), em www.dgsi.pt: «Sendo embora o património comum do casal, genericamente, qualificado como um património colectivo, não lhe corresponde uma rigorosa autonomia patrimonial. Por um lado, sendo devedores ambos os cônjuges (cfr. artigo 1691.º do CC), responde o património colectivo e, subsidiariamente, os bens próprios de cada um (em regime de solidariedade excepto no caso de separação de bens) (cfr. artigo 1695.º do CC). Por outro lado, sendo devedor apenas um dos cônjuges (cfr. artigo. 1692.º do CC) respondem os seus bens próprios e, subsidiariamente, a sua meação no património colectivo (cfr. art. 1696.º do CC). Quer dizer: para fazer face a dívidas comuns podem ser agredidos outros patrimónios e para fazer face a dívidas próprias de um dos cônjuges pode ser agredido o património colectivo. Não pode, assim, este património ser reconduzido a um “património autónomo” / “património separado” em sentido próprio».
([7]) Prescreve ainda o respetivo n.º 3 – para as relações internas – que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
([8]) Cfr. Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 322.
([9]) Proc. 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 (Rel. Abrantes Geraldes), em www.dgsi.pt.
([10]) Proc. 1589/09.4TMMLSB-A.L1-1 (Rel. Rui Vouga), também em www.dgsi.pt.
([11]) Proc. 202-E/1999.C1 (Rel. Gregório Jesus), em www.dgsi.pt, cujo sumário se cita.
([12]) Vide Ac. TRG de 17/01/2013, Proc. 456/06.8TMBRG-B.G1 (Rel. Amílcar Andrade), em www.dgsi.pt.
([13]) Assim o citado Ac. TRG de 17/01/2013, com itálico aditado.
([14]) Proc. 481/03.0TBMLD-C.C1 (Rel. Jacinto Meca), disponível em www.dgsi.pt, invocando alguma doutrina no mesmo sentido.
([15]) Todavia, parece claro, como salientado pelo Tribunal recorrido, que, tendo em conta a causa de pedir e o pedido da Requerente nos autos de inventário (decorrente de divórcio, nos termos previstos no art.º 1133.º do NCPCiv., não obstante a existência da execução, mas de forma autónoma perante esta), está verificada a competência do Tribunal e a adequação da forma de processo adotada. Questão diversa é a da defesa dos interesses do credor/exequente perante tais autos de inventário quando corre termos a execução e se questiona se a dívida é comum.
([16]) Com efeito, a entender-se que a Reclamante não tem legitimidade para intervir, nenhuma dessas questões colocadas poderia ser respondida, posto não ser admitida a sua intervenção, o que afastaria, logicamente, a prática de atos no processo e a colocação de quaisquer questões, designadamente jurídicas.
([17]) Mormente, em caso de decisão definitiva do inventário anterior à decisão definitiva do incidente de comunicabilidade e decorrente eventual dissipação patrimonial.
([18]) Cfr., quanto a tal discricionariedade, Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 315, bem como José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 553.
([19]) Em função do que o Tribunal de 1.ª instância estará na posse de todos os elementos para decidir cabalmente sobre a legitimidade de intervenção da Reclamante/credora no âmbito dos autos de inventário e demais questões suscitadas.