Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
148/20.5T8MBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE DEFESA DA PROPRIEDADE
PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INÍCIO DO CURSO DA PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MOIMENTO DA BEIRA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA D VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 498.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – O prazo de prescrição previsto no n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil, oponível ao direito de indemnização emergente de responsabilidade civil, não tem aplicação ao direito de exigir a reposição do status quo ante emergente de danos originados em imóveis resultantes da violação de direitos fundados em relações de vizinhança – como as previstas, designadamente nos artigos 1343.º (Prolongamento de edifício por terreno alheio), 1360.º (Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes), 1364.º (Janelas gradadas) ou 1365.º (Estilicídio), todos do Código Civil –, mesmo quando quantificáveis em dinheiro.

II – O lesado tem conhecimento do direito que lhe compete, para efeitos do início do prazo de prescrição – n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil –, quando tem ao seu dispor informação factual suficiente para instaurar uma ação de indemnização contra o responsável, ainda que desconheça a extensão integral do dano.

Decisão Texto Integral:
Relator: Alberto Ruço
Adjuntos: Vitor Amaral
Luís Cravo


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

(…)

*


Recorrentes …………………...AA; e

…………………………………..BB

Recorrido…………………….CC


*

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto do despacho saneador que indeferiu a exceção perentória de prescrição invocada pelos Réus, relativamente ao direito de indemnização invocado pela Autora, quer por danos patrimoniais quer por danos não patrimoniais.

Argumentou-se na decisão recorrida, em síntese, que embora já tivesse decorrido o período temporal de três anos estabelecido no artigo 498.º do Código Civil, contado desde o início dos factos causadores do dano, no caso, os factos ilícitos constituem uma infração continuada, permanente, ao direito de propriedade da Autora, o que significa que o direito da autora é violado diariamente e em cada dia ocorre um novo dano, pelo que o prazo de prescrição, neste caso, está sempre a renovar-se e daí que não se tenha esgotado.

b) É, pois, desta decisão que vem interposto recurso por parte dos Réus, cujas conclusões são as seguintes:

«a. O presente recurso de apelação tem como objeto a solução de direito plasmada no douto despacho saneador proferido nos presentes autos, mais precisamente, sempre na perspetiva da Recorrente, a aplicação incorreta das normas jurídicas que consagram e regulam o instituto da prescrição no domínio da responsabilidade civil extracontratual – art.º 498.º, n.º 1 do Código Civil;

b. Para tanto considerou o Tribunal ad quo que não se verificou a prescrição da obrigação de indemnizar a Autora, ora Recorrida, por alegados danos morais e patrimoniais, uma vez que a alegada violação do direito de propriedade configura uma infração continuada e permanente e nesta medida o prazo prescricional não se inicia;

c. Entendem os Recorrentes que a previsão da norma jurídica presente no artigo 498.º, n.º 1, para efeitos do início da contagem do prazo de prescrição aí enunciado, se mostra como preenchida quando o lesado tem conhecimento dos factos constitutivos do seu direito a ser ressarcido;

d. Diferente interpretação do aludido preceito legal, como a propugnada pelo Tribunal ad quo, para além de não ter o mínimo de respaldo na letra da lei [art.º 9.º, n.º 2 do CC], representa e conduz a uma situação de incerteza e insegurança jurídicas – direito ad aeternum;

e. Ora, os Recorrentes, não só alegaram, como demonstraram os factos que suportam a invocada exceção de prescrição, até porque os mesmos decorrem na atividade probatório do presente processo;

f. Factos impeditivos do direito – indemnização por alegados danos- que a Autora, pretende ver reconhecido nos presentes autos;

g. No dia 22 de abril de 2020 [entrada da presente ação em juízo] já tinham decorrido mais do que três anos após o conhecimento pela lesada, ora Recorrida, dos factos constitutivos do direito a ser ressarcida, uma vez que no dia 05 de janeiro de 2015, os Recorrentes foram interpelados por profissional do foro, mandatada pela Autora, ora Recorrida;

h. O Tribunal ad quo deveria ter conhecido e declarado, por provada, a exceção perentória de prescrição quanto ao direito à indemnização peticionada pela Autora, ora Recorrida, a título de danos morais e patrimoniais, por verificação do prazo prescricional, cujo início ocorreu, pelo menos, no dia 05 de janeiro de 2015;

i. Neste sentido, violou o Tribunal ad quo a interpretação conforme ao regime da prescrição da obrigação de indemnizar, estatuído nos artigos 9.º, n.º 2 e 498.º, n.º 1 do Código Civil;

j. Razão pela qual deverá ser dado provimento ao presente recurso de Apelação quanto à revogação do dispositivo judicial que considerou inexistir a prescrição do direito à indemnização a assegurar pelos Recorrentes à Recorrida, revogando-se consequentemente o douto despacho recorrido.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deverão V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, assegurar o cumprimento das normas do nosso ordenamento jurídico e, nessa medida, deve ao presente recurso ser dado provimento total, revogando-se assim a decisão judicial em crise, por, contrariamente ao doutamente decidido, verificação do preenchimento da previsão da norma jurídica respeitante à prescrição da obrigação de indemnizar.

Só, assim, Venerandos Juízes Desembargadores, se iluminará o caminho para a realização da JUSTIÇA, como é de Direito!»

c) A Autora contra-alegou e concluiu deste modo:

«a) A decisão do tribunal a quo deve ser confirmada.

b) O direito à indemnização não se encontra prescrito, pois a conduta dos réus, o ilícito e o dano persistem no tempo, até aos dias de hoje, porque a conduta dos réus é continua e permanente, dia após dia.

c) A conduta dos réus não cessou, em momento algum, para se poder fixar data a partir da qual se contaria o alegado prazo de 3 anos para intentar a acção de indemnização, atenta a causa de pedir e o pedido, que note-se não respeita apenas às aberturas como querem fazer crer os réus, limitando habilmente a causa de pedir e o pedido da autora a estas;

d) Ademais para que exista tal direito de indemnização (na p.i pedido subsidiariamente) tem de primeiramente haver decisão judicial que declare ou não o direito de propriedade da autora e existência ou não de aberturas e águas a deitar ilicitamente para a propriedade desta, bem como a violação de extremas e tal o edifício implantado no terreno da autora, ou pelo menos a obra de construção civil de ampliação do mesmo.

e) As servidões voluntarias só se constituem pela via da usucapião completado o prazo de 20 anos.

f) “ Aquele que com dolo, ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação- art.º 483  n.º 1 do cc.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, doutamente suprirão, deverá ser assegurado o cumprimento das normas do nosso ordenamento jurídico e, nessa medida, improcedente o recurso de apelação interposto pelos Réus mantendo o douto despacho recorrido, proferido pelo Tribunal a quo.

Só assim, Exmos. Venerandos Juízes Desembargadores, se iluminará o caminho para a realização da JUSTIÇA, como é de Direito!»

II. Objeto do recurso.

O presente recurso coloca apenas a questão de saber se ocorreu prescrição quanto ao direito à indemnização peticionada pela Autora, a título de danos morais e patrimoniais, por verificação do prazo prescricional, cujo início ocorreu, pelo menos, em 05 de janeiro de 2015, porquanto nesta data a autora sabia dos factos constitutivos do seu direito a ser ressarcida, tendo decorrido desde então os 3 anos prescricionais mencionados no n.º 1 do artigo 498.º, do Código Civil.

III. Fundamentação

a)   A matéria a considerar é a que consta do relatório que antecede.

b) Apreciação da questão objeto do recurso

1. No tribunal recorrido deu-se relevância à natureza ou ao modo como o facto gerador dos danos se manifesta no mundo, isto é, considerou-se que se trata de um facto permanente, de um facto que não se esgotou instantaneamente num dado momento histórico, mas sim de um facto que persiste no tempo e produz danos ao longo do tempo, de modo continuado, de modo que o lesado só tem conhecimento do direito que lhe assiste à medida que os danos se vão produzindo.

Por isso concluiu-se que não decorreram os 3 anos mencionados no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil.

2.  Antes de prosseguir cumpre saber com que tipo de factos estamos a lidar.

Na petição inicial (corrigida) foi alegado o seguinte:

«…9.º Especificamente, os réus têm a seguinte conduta, que viola o direito de propriedade da autora CC, porque deitam directamente para o prédio da referida autora não cumprindo os requisitos e distâncias legais:

a) Com a parede traseira atento o prédio dos réus, os mesmos entraram no terreno da autora CC, ao edificarem um anexo, cerca de 1,30 m de largura por 5 metros de comprimento/extensão, desrespeitando o limite/extrema ditado pelo antigo muro de xisto.

b) Na parede traseira da casa dos réus incluindo o anexo, os mesmos têm o telhado e as águas a deitar para o terreno da autora CC, sejam as vindas do telhado/beirado seja a que para aí conduzem por tubos/canos;

c) Na parte traseira do prédio da casa dos réus há um terraço/logradouro no rés-do-chão e aberturas (uma porta envidraçada no rés-do-chão, outra porta de alumínio no rés-do-chão e quatro janelas, no 1.º andar, estando duas delas que são envidraçadas localizadas sobre/em cima do anexo) que deitam directamente e sobre o prédio da autora, não respeitando a distancia de 1,50m da extrema, extrema que é ditada pelo muro antigo de pedra de xisto que lá existe e sobre o qual os réus colocaram uma fiada de bloco/tijolo com rede , nem existe sequer muro com parapeito de altura superior a 1,50m em toda a extensão desse logradouro/terraço traseiro que impeça vistas directas para o prédio da autora- ex. vi fotos juntas.

d) Na parede lateral direita, estando de frente para a casa dos réus, tem esta um terraço/varanda com várias aberturas com vidro, pelo menos sete, tipo marquise e que sita no 1.º andar, que deitam directamente para o prédio da autora CC, não respeitando a distancia de 1,50m da extrema, que era ditada pelo muro antigo de pedra de xisto que lá existia e também não existe muro ou parapeito de altura superior a 1,50m de altura em toda a sua extensão( que impeça as tais vistas directas)- ex. vi fotos juntas;

e) Na parede lateral direita, estando de frente para a casa dos réus, têm as águas a deitar diretamente para o prédio da autora CC, seja por causa dos telhados, beirados ou para aí conduzidas por tubos, canos ou obras semelhantes;

f) A parede lateral direita, estando de frente para a casa dos réus, os réus entraram no terreno da autora CC, ao ampliarem a casa, aquando a construção da garagem e do terraço/varanda tipo marquise, em cerca de 1,20 m de largura ao longo de 7,25m de comprimento/extensão.

g) Na parede frontal da casa dos réus têm antenas/parabólicas que ocupam o espaço aéreo do terreno da autora CC;

h) Na parte frontal do prédio dos réus, os réus ampliaram o logradouro (fala-se do que está ao pé das suas escadas e garagem e ao longo dessa frente do prédio), entrando no terreno da autora CC cerca de 1,35 metros de largura por 8,50m de comprimento/extensão, onde vieram a edificar uma parede de vedação com portões (um grande e outro mais pequeno) e grades que inclusive fixaram na parede dos anexos da autora CC.

i) Na sequência do exposto em h), deve o portão mais pequeno ser fechado por parede, por  os réus ali não terem qualquer acesso para o prédio da autora e o portão maior e respectiva abertura deve respeitar os limites e extremas reais (as anteriores) do prédio dos réus.

9.A a) As obras e abertura (portas, janelas, marquise, terraço, portões) descritas em 9.º, nas laterais e frente estão no e sobre o terreno da autora, transpõem e ultrapassaram a extrema, entrando no mesmo, pelo que nestas situações nenhuma distancia há entre as obras e as aberturas e o prédio da autora, ou não respeitam a distância de 1,50 da extrema, como sucede na parte traseira da casa dos réus, ficando a menos de 1,50m do muro de xisto em pedra que faz a delimitação, faltando também nas varandas/terraços/marquise/logradouros muro ou vedação fechada de altura superior a 1,50 m toda a extenção;

b) sem prescindir, para a autora poder dar as medidas exactas das obras/aberturas referidas em 9.º, sempre teria que entrar e ter acesso à casa dos réus, o que lhe está vedado, daí também o pedido de peritagem, meio de prova essencial no caso decidindo;

c) dá-se por reproduzidas as fotografias e mapas juntos;

10.º Tal conduta e obras prejudicam e causam danos à autora CC, pois além de ocuparem terreno da mesma, devassam-no e prejudicam-no nos seus direitos de proprietária, requerendo que os réus destruam tais obras, repondo o estado anterior ou então a indemnizem, em valor não inferior a 6.000,00€.

10.ºA Tem a autora danos e prejuízos patrimoniais indemnizáveis que fixa no valor mínimo de 6.000,00€, sem prejuízo de liquidação e execução de sentença, até porque tem menos área no seu prédio e tem direito a usá-la, seja para plantação seja para construção, pois que a comprou (…)

11.º As partes são familiares e a autora está emigrada e reside no estrangeiro e a existência de tais obras deixou e deixa-a triste, ansiosa, aflita, nervosa e melindrada, danos morais que merecem indemnização que se pede no valor de 1000,00€.

Termos em que, e nos melhores de direitos, sempre com o douto suprimento do tribunal, deve:

A- a) A acção ser julgada procedente e em consequência serem os réus condenados a destruir as aberturas, varandas, terraços, beirados/telhados, canos e tubos condutores de águas que deitam diretamente sobre o prédio da autora CC e a reporem os limites/extremas entre os prédios, destruindo as paredes e logradouros que edificaram e implantaram sobre a propriedade da autora CC, tudo conforme alegado em 8 e 9 supra.

b) Serem solidariamente condenados a indemnizar a autora por danos morais no valor de 1000,00€ ou no que se julgar justo por equidade, com juros de mora à taxa civil legal a contar da citação dos réus;

Em alternativa ou ainda subsidiariamente, conforme douto suprimento do tribunal:

B- a) A ser indeferido o peticionado em A) – a), serem os réus condenados a indemnizar a autora pelo terreno e direitos apropriado, no valor mínimo de 6.000,00€ ou em liquidação e execução de sentença e conforme o que se determinar em peritagem, considerando-se o proveito resultante para os réus de tal apropriação.

Os Réus BB e AA vieram dizer que a ação foi intentada em 02.04.2020 e que no dia 05 de janeiro de 2015 a A. interpelou-os por missiva postal, informando-os que a sua conduta daqueles violava o seu direito de propriedade, estabelecendo prazo admonitório para a cessação da situação antijurídica e reposição da legalidade e de que iria intentar ação judicial e que a situação implicava indemnização pela violação do seu direito de propriedade.

3. Verifica-se que a Autora alude a dois tipos de danos:

(a) Por um lado, a Autora identifica danos causados pela construção que os Réus executaram no seu prédio, com «aberturas, varandas, terraços, beirados/telhados, canos e tubos condutores de águas que deitam diretamente sobre o prédio da autora», bem como invasão do prédio da Autora e a este respeito pede a reposição dos «limites/extremas entre os prédios, destruindo as paredes e logradouros que edificaram e implantaram sobre a propriedade da autora.»

Em relação a estes danos pede a sua restauração natural ou, se isso não for concedido, uma indemnização de 6.000,00 euros.

(b) Por outro, alega danos não patrimoniais causados pelos factos que acabaram se ser referidos.

 Em relação a estes danos pede a condenação solidária dos Réus numa indemnização de 1.000,00 euros.

4. Vejamos então.

(a) Como acabou de referir-se, estamos face a dois tipos de danos.

Os danos não patrimoniais são claramente tutelados pela responsabilidade civil.

Trata-se de danos sofridos pela própria pessoa enquanto pessoa e estão previstos no artigo 496.º do Código Civil.

Quanto a estes é clara a responsabilidade civil dos Réus – artigos 483.º e 496.º, ambos do Código Civil.

(b) Relativamente aos danos causados no prédio da Autora a pretensão de tutela exercida pela Autora não se baseia na responsabilidade civil, mas sim nas relações de vizinhança entre prédios.

Como se ponderou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Setembro de 2022, proferido  o processo n.º 340/14.1T8PVZ.P1.S1 (Barateiro Martins), no qual se discutiu a indemnização relativa à «expropriação de facto» de uma parcela de terreno com 650 m2 «… quando se fala na “defesa da propriedade” (em que a indemnização devida aos AA. se incluirá) está naturalmente a aludir-se à defesa real da propriedade e não à reparação de danos causados na propriedade, os quais dão origem a “ações pessoais” em que, aí sim, o prazo prescricional do art. 498.º do C. Civil terá o seu campo de aplicação.»

Com efeito, as situações factuais relatadas nos autos, pressupondo que existem, são tuteladas pelo disposto, entre outros que possam ser convocados, nos artigos 1343.º (Prolongamento de edifício por terreno alheio), 1360.º
(Abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes), 1364.º
(Janelas gradadas) e 1365.º (Estilicídio), todos do Código Civil.

Ora, estas pretensões têm natureza real, respeitam a relações jurídicas reais e visam a reposição da situação imobiliária pré-existente.

Claro que quando não é possível repor a situação jurídica pré-existente, segue-se o outro caminho possível, que é o da devida compensação em dinheiro.

E se reposição do status quo ante não está sujeita ao prazo de prescrição do artigo 498.º do Código Civil, também não o está a respetiva indemnização.

Como referiu José de Oliveira Ascensão, «As características específicas da obrigação de preservação do equilíbrio imobiliário decorrem da lógica específica das relações de vizinhança.

Aqui, ocupa lugar primacial o prédio. Os actos das pessoas interessam enquanto estas surgem revestidas da qualidade de titulares de direitos reais; se o não estivessem, haveria relações obrigacionais como quaisquer outras.

Os titulares de direitos reais sobre imóveis estão antes de mais sujeitos ao dever de preservar o equilíbrio imobiliário. A problemática ecológica só fará — a profecia é aqui pouco arriscada — reforçar esse dever.

A pretensão de reconstituição do equilíbrio imobiliário é uma pretensão real. Está integrada no conteúdo do direito real. Tem por isso um regime diverso das pretensões meramente obrigacionais, como as emergentes da responsabilidade civil.

As relações de vizinhança são relações jurídicas reais ou propter rem, que têm um regime muito particular. Mesmo em hipótese de violação, as pretensões delas resultantes não deixam de ter natureza real e ficar integradas no conteúdo dos direitos reais em presença. Como tal, transmitem-se com a transmissão do direito real sobre o imóvel prejudicado e são oponíveis ao titular do imóvel vizinho, por mais variações que haja na titularidade deste.

 (…) Desta sua natureza deriva que, em caso de violação, passa a pertencer ao conteúdo do direito real “lesado” esta pretensão à reconstituição. Fica pois sujeita a um regime real e não ao regime das obrigações fundadas na responsabilidade civil.

Ora, isto marca uma profunda diferença de situações obrigacionais, nomeadamente das emergentes da responsabilidade civil.

Se fosse uma obrigação de ressarcir danos, seria limitada à pessoa que os tivesse provocado. Caso esta alienasse o prédio, o adquirente a nada estaria obrigado, dentro dos princípios gerais da responsabilidade civil. Isto frustraria em larga medida a prevalência do equilíbrio imobiliário que se visa» - A Preservação do Equilíbrio Imobiliário como Princípio Orientador da Relação de Vizinhança, in Estudos em Homenagem ao Professor Manuel Henrique Mesquita. Vol. I, Coimbra Editora, 2009, pág. 222/223.

Conclui-se, por conseguinte, que o outro pedido formulado com base em relações reais não está abrangido pela responsabilidade civil.

O que implica concluir que este direito de indemnização não está sujeito à prescrição estabelecida no artigo 498.º do Código Civil.

5. Continuando, agora com os danos não patrimoniais, quanto aos quais já se concluiu que é clara a sua inclusão na responsabilidade civil dos Réus – artigos 483.º e 496.º, ambos do Código Civil.

a) O n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil dispõe que «O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.»

Como referiu Antunes Varela, o segmento da norma «a contar do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito» significa «…a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu» -  Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição. Almedina, 1980, pág. 520.

O que se pretende nesta norma é fazer coincidir o início do prazo da prescrição com o momento em que o lesado tem ao seu dispor informação factual suficiente para instaurar uma ação de indemnização contra alguém.

E o lesado pode instaurar a ação quando conhece os factos e os seus prováveis autores, ainda que desconheça a extensão integral dos danos.

Nas palavras de Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, «O prazo curto de três anos foi estabelecido em atenção às dificuldades de produção de prova, sobretudo, de tipo testemunhal, as quais se vão agravando à medida que aumenta o intervalo de tempo em relação ao evento danoso» - Direito das Obrigações. Vol. I, Gestlegal, 2022, pág. 421.

Face ao disposto na norma acima transcrita, o início do prazo não corre necessariamente a partir do facto danoso (como se constata facilmente colocando em hipótese a situação de alguém que sofre um dano no seu património sem ter conhecimento dele).

Pode dizer-se que o lesado tem conhecimento do direito a ser indemnizado pelo dano quando toma conhecimento dele e nada o impede de exigir a sua reparação.

b) Sucede, porém, que o dano nem sempre é contemporâneo do facto que o causa.

Com efeito, os factos que as normas jurídicas pressupõem terem ocorrido, não têm todos a mesma configuração ou estrutura, podendo uns ser instantâneos, se começam e terminam num período curto de tempo, como a destruição de uma coisa, ou permanentes, ocupando um período de tempo mais longo.

E um facto pode ser instantâneo e produzir efeitos duradouros e suscetíveis de agravamento com o decurso do tempo, como ocorre nos danos corporais sofridos num acidente de viação, o qual provoca lesões corporais instantâneas, mas os efeitos dessas lesões prolongam-se no tempo, por semanas, meses ou anos, até alcançarem a cura.

Citando ainda Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, «… o decurso do prazo de três anos não impede o lesado de reclamar a reparação de qualquer novo dano (ou um agravamento imprevisível do dano anterior) de que só tenha conhecimento posteriormente, caso ainda não tenha decorrido o prazo de prescrição ordinária a contar do facto danoso» - Ob. Cit., pág.  423.

E temos também factos continuados que vão produzindo danos contínuos ao longo da sua duração, quando o mesmo tipo de facto se repete, sendo possível autonomiza-lo ou fatiá-lo em múltiplos factos semelhantes, salvo quanto à data, como ocorre alguém, por exemplo, ocupa ilicitamente um quarto destinado a arrendamento, não paga a renda (diária, semanal ou mensal) e impede o dono de o arrendar e receber a renda.

Basta este leque de factos para verificar que o início do prazo da prescrição não pode ser o mesmo em relação a todos os danos, pois os factos apresentam-se com naturezas muito diversificadas, pelo que a prescrição carece de se aplicar de modo também diversificado, para assegurar a necessária igualdade de tratamento quando as situações factuais são diversas umas das outras.

A este respeito, Vaz Serra pronunciou-se nestes termos:

«A razão da prescrição e curto prazo é obrigar à apreciação breve dos créditos de indemnização quando o prejudicado pode fazê-los apreciar. Portanto, se ele não conhece a extensão integral do dano, mas ela pode ser prevista com razoáveis probabilidades, podendo, por isso, o tribunal fixar uma indemnização que abranja, com essas razoáveis probabilidades, também o dano futuro, a prescrição começaria a correr, mesmo que o dano se não tivesse ainda consumado por completo. Se, pelo contrário, assim não é, como se o dano, que parecia limitado, se mostra mais tarde ter diferente amplitude (v.g, a lesão, que parecia passageira, dá lugar a um dano permanente), a prescrição só começaria a correr, relativamente a este outro dano, na data em que dele tem o prejudicado conhecimento.

Far-se-ia, portanto, distinção entre o caso de um só dano que se vai produzindo no tempo (ao lesado é causado um dano cujos efeitos se prolongam por um tempo mais ou menos longo) e pode ser desde já calculado e o de assim não ser, como se ao dano primitivo acresce um novo dano (ao lesado sobreveio mais tarde outro dano causado pelo facto ilícito).

Como distinguir praticamente estas duas hipóteses? Parece que o critério deve ser o seguinte: se o prejudicado pode calcular, com razoáveis probabilidades, o dano total, verifica-se a primeira dessas hipóteses; se não pode, verifica-se a segunda.

Se o devedor da indemnização, devendo eliminar o estado defeituoso causado pelo facto ilícito, culposamente o não faz, e a manutenção desse estado dá lugar a um novo efeito prejudicial, a prescrição, quanto a este outro efeito, só começa a correr na data em que ele é conhecido pelo prejudicado. Com efeito, este pode esperar que o responsável elimine o estado defeituoso causado pelo facto ilícito e só quando ele culposamente o não faça, resultando daí novo efeito prejudicial, haverá conhecimento do dano susceptível de o levar a exigir a respectiva indemnização» - Vaz Serra. Prescrição do Direito de Indemnização. B.M.J., 87, pág. 44/45.

Este critério ajusta-se à razão de ser da prescrição, instituto que «…tem por fundamento específico a recusa de protecção a um comportamento contrário ao direito, a negligência do titular, e ainda a necessidade de obviar, em face do decurso do tempo, à dificuldade de prova por parte do sujeito passivo da relação jurídica…» - Aníbal de Castro. A Caducidade, 2.ª ed. Livraria Petrony/1980, pág. 27/28.

Por conseguinte, quando for visível, face a determinados factos, que não há negligência do lesado no que respeita ao exercício do direito a ser indemnizado, isso também nos deve servir de critério para saber se decorreu ou não o prazo prescricional.

Assenta-se, pois, no critério de que o prazo de prescrição começa a correr no momento em que o lesado, ou qualquer cidadão comum colocado no seu lugar, está em condições de pedir indemnização pelo dano, ainda que não conheça a extensão dos danos, desde que estes sejam consequência do facto inicial.

c) Mas se o facto danoso se repetir dia após dia, causando a cada dia um novo dano, então nestes caso a prescrição contar-se-á a partir do conhecimento do direito a ser indemnizado por cada um desses danos considerados isoladamente, ainda que se insiram num continuum danoso, como é o caso de alguém que, como acima se referiu, ocupa ilicitamente um quarto que o dono arrenda ao dia e que se vê impedido dia após dia de o arrendar devido à ação quotidiana do lesante; ou de alguém que se apropria de um automóvel e o usa contra a vontade do dono causando-lhe danos.

Nestes casos, quando há uma ação humana que causa danos e a ação se prolonga no tempo, como a ocupação de uma casa, de um quarto, ou se usufrui de um bem alheio, o dano produz-se diariamente, sem cessar.

Como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de abril de 2002, no processo identificado com o n.º SJ200204180009507I (Araújo Barros) o prazo de 3 anos fixado no artigo 498, n. 1, do Código Civil só começa a contar-se a partir do momento em que o lesado tomou conhecimento da produção efectiva desses novos danos, se se tratar de um facto continuado.

Ponderou-se aí que «…os danos alegadamente sofridos pela autora não se verificaram na globalidade pelo simples facto da ocupação do prédio pelos réus em 6 de Maio de 1992. Em cada dia de ocupação um novo dano terá ocorrido. Daí que dos danos sofridos pela ocupação do prédio no dia 20 de Agosto de 1993 a autora só nessa data teve conhecimento, porque só então surgido, tal como do dano verificado pela ocupação em 21 de Agosto só houve conhecimento da autora nessa mesma data, e assim sucessivamente até à cessação da ocupação», sem prejuízo, no entanto, dos factos e respetivos danos verificados há mais de três anos, considerando a data da citação dos réus, terem prescrito» [Cfr. caso semelhante no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de julho de 2009, no processo n.º 387/08-6 (Gilberto Jorge)] – consultáveis em www.dgsi.pt

Não se compreenderia, de facto, que, nestes casos, decorridos os primeiros três anos de privação da coisa o lesante viesse invocar a prescrição para poder continuar a usar a coisa sem ter que indemnizar o proprietário.

Nestes casos, deve considerar-se que a ação humana produz continuamente um dano novo e, por isso, o lesado só tem conhecimento dele quando ele ocorre.

d) Voltando ao caso concreto dos autos.

No presente caso, os danos não patrimoniais alegados surgiram com as obras feitas com os Réus, as quais foram realizadas em 2105, e a partir deste momento a autora ficou a saber do direito que lhe competia, para efeitos do n.º 1 do artigo 498.º do Código Civil.

Quanto a este dano, o direito de indemnização está prescrito.

6. Concluindo, verifica-se que prescreveu apenas o direito de indemnização relativo aos danos não patrimoniais, cumprindo, por isso, nesta parte revogar a decisão recorrida, mantendo-se na parte restante.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

1 – Declara-se prescrito o direito de indemnização relativamente aos danos não patrimoniais.

2 – Julga-se o recurso improcedente na parte restante, mantendo-se a decisão recorrida.

3 – Custas na proporção do vencimento e decaimento, sendo o valor do vencimento dos recorrentes de 1.000,00 euros.


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Coimbra, 22 de novembro de 2022