Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
337/09.3TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 601, 610, 611 E 614 CC
Sumário: 1. O requisito da impugnação pauliana “anterioridade do crédito” afere-se pela data da constituição deste e não pelo seu vencimento.

2. O requisito “resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade”, por seu turno, não se reconduz à insolvência do devedor, mas, tão-somente, à impossibilidade prática de obtenção do crédito.

3. Em face da regra estabelecida no artigo 611.º do Código Civil, que introduz um desvio à regra geral do artigo 342.º, o credor só tem de provar o montante da dívida, cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens de igual ou maior valor.

4. Provada pelo impugnante a existência e o montante do crédito, presume-se a impossibilidade a que alude a alínea b) do artigo 610.º do Código Civil, ou o seu agravamento.

5. A procedência da impugnação pauliana acarreta a ineficácia do negócio em relação ao credor, na medida do crédito reclamado e provado, e não a sua nulidade.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

            A (…), Lda., com sede em (…), Coimbra, intentou acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra M (…) e mulher, M V  (…), residentes na (…), em Coimbra, e contra M L (…) e marido, A J (…) residentes na ..., alegando, em síntese, que:

No exercício da sua actividade comercial de compra e venda de veículos automóveis, ligeiros e pesados, da marca VOLVO e outras, novos e usados, máquinas para obras públicas e construção, peças sobressalentes e, ainda, de reparações e assistência a tais veículos, celebrou com a sociedade comercial por quotas (…) Lda., com sede na Rua dos (…) ..., que se dedica à actividade de transporte nacional e internacional de mercadorias, dois contratos de compra e venda a prestações, relativos a veículos pesados (contratos n.ºs 6/2007 e 7/2007), acordando que o pagamento do preço se realizaria mediante um pagamento inicial, um pagamento complementar e o remanescente em 60 prestações mensais, bastando a falta de um pagamento para exigibilidade imediata das prestações seguintes, com perda do benefício do prazo pelo comprador.

Para garantia do bom e pontual cumprimento integral de todas as obrigações assumidas, a referida sociedade aceitou uma letra, relativamente a cada um dos contratos, avalizada, a favor da aceitante, pelos primeiros réus e por outro casal, entregues em branco, mas com autorização de preenchimento.

A sociedade (…) Lda. deixou de liquidar, relativamente a ambos os contratos, as prestações que se venceram, inclusive, a partir de 1 de e 8 de Agosto de 2008, respectivamente.

Apesar das diligências feitas junto da devedora e dos avalistas, em vista do cumprimento, designadamente por cartas registadas de 21.11.2008, não logrou qualquer resultado, pelo que preencheu as duas letras pelos montantes em dívida, do que resulta serem os primeiros réus devedores do montante de € 154.034,38.

Por escritura de 16 de Julho de 2008, outorgada em Cartório Notarial de Lisboa, os ditos primeiros réus, que são casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, doaram à terceira ré, sua filha, casada com o quarto réu no regime da comunhão de adquiridos, com dispensa de colação e com a cláusula de incomunicabilidade, um conjunto de oito bens imóveis, reservando para si o direito de uso e habitação de um deles.

E, por escritura de 7 de Novembro de 2008, outorgada no Cartório Notarial de Fornos de Algodres, doaram à mesma ré (para integrar o património comum do casal formado por esta e pelo quarto réu), um outro bem imóvel.

O crédito já existia à data das doações e era do inteiro conhecimento dos réus, que sabiam, também, que estas causavam prejuízo à autora.

Aos réus são desconhecidos quaisquer outros bens, razão pela qual as doações a impossibilitaram, como impossibilitam, de obter a satisfação integral do seu crédito.

Concluiu, pedindo se considerassem ineficazes, em relação a si, as mencionadas doações e, bem assim, a reserva e constituição de um direito de uso e habitação a favor dos primeiros réus, podendo ela executar os prédios no património dos obrigados à restituição.

Regularmente citados, os réus contestaram, afirmando, em resumo, que:

A sociedade (…), Lda., principal devedor, apesar de declarada insolvente, dispõe de bens que podem assegurar o pagamento da dívida que assumiu.

Por outro lado, os primeiros réus não foram os únicos a assumir a posição de avalistas, pois que também (…) e mulher prestaram aval.

Os avales foram prestados de boa fé, na convicção de que os contratos iriam ser pontualmente cumpridos até ao pagamento da dívida, nunca pensando os primeiros réus que poderiam vir a ser accionados por força das obrigações daqueles decorrentes.

De resto, os actos impugnados foram praticados numa data em que o primeiro réu marido já não acompanhava os negócios da (…), Lda., sendo certo que, nessa altura, ainda não havia incumprimento ou, se havia, era deles desconhecido.

Não estão, por isso, os primeiros réus de má fé, antes tendo exercido um livre direito de disposição dos seus bens.

Sobre os veículos vendidos existia uma cláusula de reserva de propriedade, que assegurava a posição da autora e da qual esta desistiu no âmbito da insolvência da sociedade (…), Lda.

Ademais, os imóveis doados têm um valor patrimonial global de € 224.015,17 e um valor de mercado nunca inferior a € 500.000,00, pelo que a impugnação de todas as transmissões é manifestamente excessiva, devendo, nessa medida, verificar-se uma redução do pedido e ser operada uma restituição de bens na medida do interesse da autora.

Terminaram pela procedência apenas parcial da acção, com a redução do pedido na medida do interesse da autora.

A autora replicou, defendendo a improcedência da argumentação dos réus, designadamente no que se refere à excessividade ou desproporcionalidade da acção, e concluindo como na petição inicial.

No despacho saneador foram declaradas a validade e a regularidade da lide, julgada improcedente a generalidade das excepções deduzidas (que se não identificaram em concreto) e relegado para momento ulterior o conhecimento da excessividade da impugnação de todas as transmissões.

A selecção da matéria de facto (factos assentes e base instrutória) não foi alvo de reclamação.

Realizada a audiência de discussão e julgamento e fixada, sem reparos, a matéria de facto, foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e declarou ineficazes em relação à autora os actos formalizados através das escrituras públicas de 16.07.2008 e de 07.11.2008, conferindo a esta o poder de executar os imóveis doados, na medida do necessário para obter o pagamento do seu crédito.

Inconformados, os réus interpuseram recurso, que acompanharam da respectiva alegação, finalizada com 27 conclusões, que, sem grande dificuldade, se podem resumir a, apenas, 4:

            1) Não se verifica o primeiro requisito da impugnação pauliana (anterioridade do crédito), porque, à data dos actos impugnados, o mesmo não estava vencido;

            2) Também se não verifica o último requisito (impossibilidade de satisfação integral do crédito, ou o seu agravamento), porque, aquando dos actos impugnados, a devedora/avalizada estava, ainda, a laborar e existia uma cláusula de reserva de propriedade dos bens adquiridos à autora, de que esta poderia ter lançado mão, para além de que havia outros avalistas, não demandados, e de que os recorrentes tinham como pagar a dívida, se os bens doados, de que se mantém a receber os frutos, não tivessem sido arrestados;

            3) Os actos ora impugnados não causaram qualquer prejuízo à autora, pelo que não é legítimo o uso da impugnação pauliana;

            4) De qualquer modo, houve excesso de condenação, dado que o montante do prejuízo é muito inferior ao do valor dos bens.

            A autora respondeu à alegação dos réus, começando por suscitar uma questão prévia – o incumprimento pelos réus do disposto nos números 1 e 2 do artigo 685.º-A do Código de Processo Civil – e rebatendo, depois, ponto por ponto, a argumentação daqueles.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Em face das conclusões vertidas na alegação dos recorrentes, que delimitam o âmbito da impugnação, são duas as questões a requerer resolução: a verificação dos requisitos da impugnação pauliana e o excesso de condenação.

            Não poderá, no entanto, deixar de ser apreciada, e em primeiro lugar, a questão prévia do alegado incumprimento pelos apelantes do preceituado nos números 1 e 2 do artigo 685.º-A do Código de Processo Civil.

            II. A matéria de facto:

            Na sentença recorrida foram dados por assentes os seguintes factos:

I – A autora, “A (…) LDA.”, é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de veículos automóveis, ligeiros e pesados, da marca VOLVO e outras, novos e usados, máquinas para obras públicas e construção, peças sobressalentes e ainda a efectuar reparações e assistência aos veículos mencionados – alínea A) dos Factos Assentes.

II – O 1.º réu marido, M (…), foi sócio e gerente da sociedade comercial por quotas com a firma (…), LDA., com sede na Rua ... ..., que se dedica à actividade de transporte nacional e internacional de mercadorias, estando registada desde 29.05.2008 a cessação de tais funções por parte daquele pela Ap. ...., na matrícula respectiva – alínea B dos factos assentes.

III – No exercício das actividades comerciais de ambas as empresas, a autora e a (…), Lda.” celebraram, por documento particular, em 22 de Janeiro de 2007, um contrato de compra e venda denominado “contrato de compra e venda a prestações n.º 06/2007”, no qual a autora declarou vender e a sociedade (….), Lda. declarou comprar o camião Volvo, modelo FH-38 (4x2), matrícula XX, pelo preço total de venda a prestações de € 117.151,47 (cento e dezassete mil, cento e cinquenta e um euros e quarenta e sete cêntimos), IVA e IA incluídos, às taxas legais em vigor (documento n.º 1 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – alínea C dos factos assentes.

IV – Em tal data (22-01-2007), a autora e a sociedade “(…)acordaram, ainda, e, em conformidade, declararam, no citado documento, que o pagamento do preço se realizaria do seguinte modo:

a) Pagamento inicial, realizado na data da conclusão do acordo, de € 10.000,00 (dez mil euros);

b) Pagamento, em 8 de Abril de 2007, do montante de € 7.860,55 (sete mil, oitocentos e sessenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), através de cheque pós-datado, entregue aquando da subscrição do acordo;

c) O remanescente, no montante de € 99.290,92 (noventa e nove mil, duzentos e noventa euros e noventa e dois cêntimos), seria realizado em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada no valor de € 1.654,85 (mil, seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), pagáveis até ao dia 1 de cada mês a partir de 1 de Maio de 2007 e a realizar mediante transferência bancária para conta da autora (citado documento n.º 1) – alínea D dos factos assentes.

V – Foi estabelecido entre a autora e a sociedade “(…) Lda.” que, no que tangia aludido contrato n.º 6/2007 (documento 1), o local de pagamento das prestações seria a sede da autora, em Coimbra (alínea d) da cláusula 2.ª das condições especiais (in fine) do documento n.º 1 citado – alínea E) dos factos assentes.

VI – Em conformidade com o acordado com os “(…) Lda.”, a autora procedeu, em Janeiro de 2007, à entrega, a esta empresa, do camião XX – alínea F) dos factos assentes.

VII – A autora e a sociedade “(…), Lda.” estabeleceram no mencionado contrato de compra e venda a prestações n.º 6/2007 (documento n.º1) que o «Pagamento – e basta um só pagamento – que não for efectuado na data estabelecida, implicará a exigibilidade imediata das prestações seguintes, com perda do benefício do prazo pelo comprador» (cláusula 2.ª das condições gerais do dito contrato junto como documento n.º 1 – alínea G) dos factos assentes.

VIII – Para garantia do bom e pontual cumprimento integral de todas as obrigações assumidas pela sociedade “(…)Lda.”, esta empresa aceitou uma letra, avalizada a favor da aceitante pelos primeiros réus e, ainda, por (…) e (…) (documento n.º 2 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) – alínea H) dos factos assentes.

IX – O título de crédito mencionado no número anterior foi entregue em branco à autora, a qual foi autorizada, pela aludida sociedade e, ainda, pelos avalistas (entre os quais se encontram os primeiros réus), «a preenchê-la, designadamente apondo-lhe o montante que estiver em dívida à data do seu preenchimento, referente ao valor das prestações devidas e juros de mora vencidos» (documento n.º 1, citado) – alínea I) dos factos assentes.

X – Os primeiros réus subscreveram, na qualidade de avalistas, o contrato de compra e venda n.º 6/2007 e avalizaram a letra aceite pela “(…), Lda.” para garantia do cumprimento integral deste acordo – alínea J) dos factos assentes.

XI – No exercício das actividades comerciais de ambas as empresas, a autora e a (…) Lda. celebraram, por documento particular, em 22 de Janeiro de 2007, um contrato de compra e venda denominado “contrato de compra e venda a prestações n.º 07/2007”, que teve por objecto um camião Volvo, modelo FH-38 (4x2), matrícula YY... (documento n.º 3 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais – alínea L) dos factos assentes.

XII – Em tal documento, a autora declarou vender e a sociedade “K....” declarou comprar o camião Volvo, modelo FH-38 (4x2), matrícula YY..., pelo preço total da venda a prestações de € 117.151,47 (cento e dezassete mil, cento e cinquenta e um euros e quarenta e sete cêntimos), IVA e IA incluídos, às taxas legais em vigor (citado documento n.º 3) – alínea M) dos factos assentes.

XIII – Em tal data (22-01-2007), a autora e a sociedade “(…), Lda.” acordaram, ainda, e, em conformidade, declararam, no citado documento, que o pagamento do preço se realizaria do seguinte modo:

a) Pagamento inicial, realizado na data da conclusão do acordo, de € 10.000,00 (dez mil euros);

b) Pagamento, em 8 de Abril de 2007, do montante de € 7.860,55 (sete mil, oitocentos e sessenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), através de cheque pós-datado, entregue aquando da subscrição do acordo;

c) O remanescente, no montante de € 99.290,92 (noventa e nove mil, duzentos e noventa euros e noventa e dois cêntimos), seria realizado em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada no valor de € 1.654,85 (mil, seiscentos e cinquenta e quatro euros e oitenta e cinco cêntimos), pagáveis até ao dia 8 de cada mês a partir de 8 de Maio de 2007 e a realizar mediante transferência bancária para conta da autora (dito documento n.º 3 – alínea N) dos factos assentes.

XIV – Foi estabelecido entre a autora e a sociedade “(…), Lda.” que, no que tangia aludido contrato n.º 7/2007 (documento 3), o local de pagamento das prestações seria a sede da autora, em Coimbra (alínea d) da cláusula 2.ª das condições especiais (in fine) do documento n.º 3 – alínea O) dos factos assentes.

XV – Em conformidade com o acordado com “(…), Lda.”, a autora procedeu, em Janeiro de 2007, à entrega, a esta empresa, do camião YY... – alínea P) dos factos assentes.

XVI – A autora e a sociedade “(…), Lda.” estabeleceram no mencionado contrato de compra e venda a prestações n.º 7/2007 (documento n.º 3) que o «Pagamento – e basta um só pagamento – que não for efectuado na data estabelecida, implicará a exigibilidade imediata das prestações seguintes, com perda do benefício do prazo pelo comprador» (cláusula 2.ª das condições gerais do contrato junto como documento n.º 3) – alínea Q) dos factos assentes.

XVII – Para garantia do bom e pontual cumprimento integral de todas as obrigações assumidas pela sociedade “(…), Lda.”, esta empresa aceitou uma letra, avalizada a favor da aceitante pelos primeiros réus e, ainda, por (…) e (…)(documento n.º 4 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) – alínea R) dos factos assentes.

XVIII – O título de crédito mencionado no artigo anterior foi entregue em branco à autora, a qual foi autorizada, pela aludida sociedade e ainda pelos avalistas (entre os quais se encontram os primeiros réus), «a preenchê-la, designadamente apondo-lhe o montante que estiver em dívida à data do seu preenchimento, referente ao valor das prestações devidas e juros de mora vencidos» (dito documento n.º 3) – alínea S) dos factos assentes.

XIX – Os primeiros réus subscreveram, na qualidade de avalistas, o contrato de compra e venda n.º 6/2007 e avalizaram a letra aceite pela “(…), Lda.” para garantia do cumprimento integral deste acordo – alínea T) dos factos assentes.

XX – A (…), Lda. deixou de liquidar, relativamente a ambos os contratos, as prestações que se venceram, inclusive, a partir de 1 e 8 de Agosto de 2008, respectivamente – alínea U) dos factos assentes.

XXI – Atento o aludido incumprimento, a autora promoveu os contactos infra referidos junto da “(…), Lda.” e dos primeiros réus, com vista a lograr o cumprimento dos acordos, sem que, todavia, tivesse alcançado sucesso – alínea V) dos factos assentes.

XXII – Por carta registada com aviso de recepção, datada de 21.11.2008, a autora interpelou a sociedade (…), Lda. ao pagamento, comunicando a esta empresa o seguinte:

«Como é do conhecimento de V. Exas., a vossa empresa celebrou com (…) Lda., em 22 de Janeiro de 2007, os Contratos de Compra e Venda a Prestações n.º6/2007 e n.º 7/2007, referentes às viaturas da marca Volvo, modelo FH-38 (4x2), matrículasXX e YY....

Apesar dos contactos realizados pela nossa empresa, continuam ainda por pagar 8 prestações já vencidas de Agosto a Novembro do presente ano, quatro em cada Contrato, que totalizam o montante de 13.298,12 €.

Mais informamos V. Exas. que, à dívida apresentada, acresce o montante de € 69.531,29 por cada contrato, referente às 42 prestações vincendas, valor esse que, em virtude do incumprimento verificado, se encontra também vencido» (documento n.º 5 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) – alínea X) dos factos assentes.

XXIII – Na mesma missiva, a autora comunicou, ainda, à (…), Lda. que, «Face ao acima referido, são V. Exas. devedores à (…) Lda. do montante de € 76.180,35 (setenta e seis mil, cento e oitenta euros, trinta e cêntimos), por cada um dos contratos.

Assim, e em consonância com o vertido no referido Contrato, informamos V. Exas. que senão procederem ao pagamento do valor das prestações vencidas e vincendas até ao dia 2/Dezembro/2008, iremos proceder ao preenchimento e apresentação a pagamento da duas letras aceites por V. Exas. e avalizadas ao aceitante por (…) pelo montante que se encontra em dívida, com vencimento em 31/Dezembro/2008» (mesmo documento nº 5) – alínea Z) dos factos assentes.

XXIV – A autora enviou, na mesma data da missiva mencionada nos artigos anteriores (21.11.2008), carta registada com aviso de recepção aos avalistas dos contratos de compra e venda a prestações aludidos na presente petição, nomeadamente aos 1.ºs RR., na qual deu conhecimento (anexando) da carta enviada à (…), Lda.” (documentos 6 a 9 da P.I., aqui dados por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais) – alínea AA) dos factos assentes.

XXV – Entendendo que estavam verificados os requisitos para tanto, em conformidade com o estabelecido nos contratos, a autora procedeu ao preenchimento das duas letras nos seguintes termos:

- Local e data de emissão: Coimbra, 03-12-2008;

- Importância: € 77.017,19;

- Vencimento: 31-12-2008 – alínea BB) dos factos assentes.

XXVI – A sociedade “(…).” entregou um cheque pós-datado (para 28 de Novembro), para liquidação parcial da dívida em referência, que, após envio da referida missiva, veio devolvido por falta de provisão no valor de € 1.682,52 (mil, seiscentos e oitenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos) – alínea CC) dos factos assentes.

XXVII – As letras de câmbio supra mencionadas não foram pagas, nem na respectiva data de vencimento, nem posteriormente, mantendo-se a autora, não obstante as diligências por si empreendidas, desapossada das quantias tituladas por aqueles documentos – alínea DD) dos factos assentes.

XXVIII – A sociedade “(…).” foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 10-12-2008 no processo n.º 4470/08.0 TJCBR, que corre os seus termos no 1.º Juízo Cível de Coimbra (sentença publicada on-line no sítio www.tribunaisnet.mj.pt, cujo “print” se encontra junto como documento n.º 10 da P.I., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais) – alínea EE) dos factos assentes.

XXIX – O primeiro réu e a segunda ré são casados entre si no regime de comunhão geral de bens (documentos n.º 11 e 12) – alínea FF) dos factos assentes.

XXX – A terceira ré é filha do primeiro réu e da segunda ré (documentos n.º 11, pág. 3 n.º 12) – alínea GG) dos factos assentes.

XXXI – O quarto réu é casado com a terceira ré no regime de comunhão de adquiridos e, por isso, é genro do primeiro réu e da segunda ré (afim em 1.º grau, na linha recta) – alínea HH) dos factos assentes.

XXXII – Por escritura pública outorgada em 16-07-2008, no Cartório Notarial de Lisboa do Sr. Dr. Q..., o primeiro réu e a segunda ré doaram à terceira ré, sua filha, com dispensa da colação e com a cláusula de incomunicabilidade, os seguintes imóveis:

a) Fracção Autónoma designada pelas letras “AT”, correspondente ao oitavo andar esquerdo, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo x... e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º x...-AT – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0031 – 72112 - 060318 - 000481;

b) Fracção Autónoma designada pela letra “H”, correspondente à garagem n.º 19, no rés-do-chão inferior, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Santo António dos Olivais, concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo x... e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º x...-H – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0031 – 72120 - 060318 - 000481;

c) Fracção Autónoma designada pelas letras “BS”, correspondente ao terceiro andar no ângulo norte/poente da entrada A, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de São Julião, concelho de Figueira da Foz, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo y... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz na ficha n.º y...-BS – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0027 – 00174 - 060511 – 001751;

d) Fracção Autónoma designada pela letra “R”, correspondente à garagem na cave, do lado sul, a 6.ª a contar do nascente, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de São Julião, concelho de Figueira da Foz, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo y... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz na ficha n.º y...-R – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0027 – 00166 - 060511 – 001751;

e) Fracção Autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao segundo andar esquerdo, para habitação com arrumo individual na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Santa Clara, concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo z...e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º z...F – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP-0018-64521-060316-001069;

f) Fracção Autónoma designada pela letra “J”, correspondente à garagem individual com o n.º 2,na cave, sendo a 2.ª a contar do nascente, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Santa Clara, concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigoz...e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º z... – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP-0018-64513-060316-001069;

g) Fracção Autónoma designada pelas letras “BB”, correspondente ao primeiro andar centro, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Coimbra (Sé Nova), concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo w...e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º w...-BB – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0031 – 72139 - 060325 – 001322;

h) Fracção Autónoma designada pelas letras “Q”, correspondente à subcave centro, para garagem, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na freguesia de Coimbra (Sé Nova), concelho de Coimbra, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo w...e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra na ficha n.º w...-Q – documento n.º 11 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP - 0031 – 72104 - 060325 – 001322 – alínea II) dos factos assentes.

XXXIII – Na mesma escritura, os primeiros réus reservaram para si e constituíram um direito de uso e habitação da fracção autónoma designada pelas letras “AT” (aludida na alínea a) do artigo anterior) – dito documento n.º 11 e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP – 0031 – 72112 – 060318 – 000481 – alínea J) dos factos assentes.

XXXIV – As doações mencionadas na alínea anterior foram registadas através da Ap. 18, de 2008/07/18, encontrando-se, actualmente, os imóveis integralmente descritos no artigo anterior a favor da 3.ª R., à excepção da fracção autónoma designada pelas letras “AT” (alínea a) do artigo 43.º) com registo de direito de uso e habitação inscrito a favor dos 1.ºs RR. (citadas certidões) alínea LL) dos factos assentes.

XXXV – Por escritura pública outorgada em 7 de Novembro de 2008, no Cartório Notarial de Fornos de Algodres, os primeiros réus doaram à terceira ré, sua filha, para integrar o património comum do casal, o prédio urbano, composto de edifício de rés-do-chão, primeiro andar e um logradouro, sito no Ramal ou Atrás da Capela, freguesia de Chão do Soeiro, concelho de Fornos de Algodres, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo k... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Fornos de Algodres sob o n.º k...– documento n.º 12 da P.I. e certidão junta ao procedimento cautelar apenso, a que corresponde a certidão on-line com o código: GP-0013-82780-090516-000521 – alínea MM) dos factos assentes.

XXXVI – A doação aludida na alínea antecedente foi registada através da Ap. 1 de 2008/12/05, encontrando-se os imóveis referidos nos artigos anteriores, actualmente, inscritos a favor da 2.ª R.  (mesma certidão) – alínea NN) dos factos assentes.

XXXVII – Aos primeiros réus são desconhecidos quaisquer outros bens, móveis ou imóveis, e, muito menos, bens cujo valor seja suficiente para permitir o ressarcimento coercivo do crédito da A. – alínea OO) dos factos assentes.

XXXVIII – Os imóveis objecto das doações de 16 de Julho de 2008 e 7 de Novembro de 2008, aqui ajuizadas, têm o valor patrimonial global de € 224.015,17 – alínea PP) dos factos assentes.

XXXIX – À data das doações efectuadas pelos primeiros réus à terceira ré (16 de Julho de 2008 e 7 de Novembro de 2008), os primeiros réus tinham perfeito conhecimento da existência da dívida à ora autora, decorrente da celebração dos contratos de compra e venda com esta última aludidos nas alíneas C) e L) supra – resposta ao quesito 1º da Base Instrutória.

XL – À data dessas doações, nas condições em que foram operadas, os primeiros réus conheciam a situação económica difícil da sociedade “(…).” – resposta aos quesitos 2º a 4º.

XLI – Os imóveis objecto das doações de 16 de Julho de 2008 e 7 de Novembro de 2008, aqui ajuizadas e aludidos na alínea PP) supra, têm um valor de mercado não inferior a € 500.000,00, desde que se encontrem livres e desembaraçados – resposta ao quesito 9º.

III. O direito:

a) A questão prévia suscitada pela recorrida

Segundo a recorrida, os recorrentes desrespeitaram o disposto nos números 1 e 2 do Código de Processo Civil, uma vez que, e por um lado, formulou 27 conclusões e, por outro, não indicou as normas jurídicas violadas nem, muito menos, explicitou o sentido interpretativo que determinaria decisão diferente.

Concluiu que o vício impede o conhecimento do recurso, sem prejuízo, no entanto, do convite à sua correcção, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo.

Em conformidade com o n.º 1 do aludido preceito, a alegação do recorrente deve ser concluída, de forma sintética, com a indicação dos fundamentos por que é pedida a alteração da decisão.

E segundo as alíneas a) e b) do seu n.º 2, versando o recurso matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas e o sentido com que as mesmas deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.

É, por demais, evidente que a síntese é algo que está completamente afastado das conclusões do recurso. Bem no fundo, as conclusões apresentadas (27) não passam da transcrição da alegação propriamente dita, com alguma economia, apenas, de palavras.

Em rigor técnico, como, de resto, a recorrida faz notar, impor-se-ia a formulação de convite à correcção da irregularidade (n.º 3 do referido artigo 685.º-A).

A questão é que, apesar da prolixidade das conclusões, não é difícil perceber os motivos pelos quais os recorrentes pedem a alteração da sentença. A sua tese é a de que se não configuram dois dos requisitos de que depende a procedência da impugnação pauliana (concretamente, a anterioridade do crédito e a impossibilidade para o credor de obter a respectiva satisfação) e, mesmo que verificados eles, a condenação teria sido excessiva, por incidir sobre bens cujo valor quase triplica o do crédito da apelada.

E esta entendeu perfeitamente esses motivos, tanto assim que os isolou, na sua contra-alegação, e respondeu de forma a contrariar os argumentos aduzidos.

Vistas, assim, as posições das partes, julgou esta Relação preferível resumir as conclusões do recurso (que logrou reduzir a, somente, quatro), a formular convite à parte a que o fizesse, com o que se alcançou algum ganho de tempo, mas sempre sem prejuízo para quem quer que seja.

O problema está, por conseguinte, ultrapassado.

Quanto à segunda parte da questão, continua a ter razão a recorrida quando diz que os recorrentes não levaram às conclusões as normas jurídicas violadas nem o sentido com que deveriam ser interpretadas e aplicadas.

Mas, se o não fizeram aí, fizeram-mo (reconhecendo-se, embora, que de modo, porventura, muito aligeirado) no corpo da alegação, o que permitiu à apelada anotar as fragilidades da análise jurídica enformadora do recurso e opor-lhe a interpretação que tinha por mais conforme com a letra e o espírito da lei.

Afigura-se, assim, que, em termos práticos, nada se adiantaria com o convite ao completamento ou ao esclarecimento das conclusões, antes, e apenas, se protelaria no tempo o momento da decisão, com óbvias perdas para as partes e para a celeridade da justiça.

Nesta medida, se decide dar seguimento à tramitação e conhecer do recurso, prescindindo da dita formalidade.

b) Os requisitos da impugnação pauliana

A sentença, em face da matéria de facto provada, deu por verificados todos os requisitos da impugnação pauliana, em razão do que declarou a procedência da acção.

Os réus centram a discussão em torno de dois deles: a anterioridade do crédito e o agravamento da impossibilidade para o credor de obter a satisfação do mesmo.

No que àquele tange, argumentam que, apesar de o crédito existir, ele não estava vencido, o que vale dizer que é como se não existisse.

Quanto a este, desenvolvem o seguinte raciocínio: a dívida que avalizaram foi contraída por (…) Lda. a 22 de Janeiro de 2007, ao passo que as doações impugnadas tiveram lugar a 16 de Julho e a 7 de Novembro de 2008. Por outro lado, a dita sociedade só entrou em insolvência cerca de seis meses mais tarde, o que quer dizer que a recorrida poderia tê-la interpelado para proceder ao pagamento e executar o seu património. Ademais, poderia ter lançado mão de uma cláusula de reserva de propriedade dos bens adquiridos, prevista nos contratos, mas à qual renunciou no processo de insolvência da sociedade (…), Lda. Acresce que se não provou que, na altura das doações, tivessem conhecimento da existência da dívida, para além de que, se a recorrida lhes não tivesse arrestado os bens, arranjariam forma de liquidar a dívida, já que continuam a receber os frutos dos mesmos.

A recorrida contra-argumentou assim:

Relativamente ao crédito – o seu crédito venceu-se em Agosto de 2008, altura em que a sociedade (…) Lda. deixou de pagar as prestações, logo, antes da doação efectuada em segundo lugar. De qualquer modo, para efeitos do exercício da impugnação pauliana, não é o vencimento da dívida que releva, mas o momento da sua constituição.

Quanto à impossibilidade de obtenção do crédito ou ao agravamento dessa impossibilidade – há prejuízo sempre que a garantia patrimonial dos credores deixa de assegurar a satisfação dos seus créditos, situação que resulta com toda a clareza da prova produzida, a que acresce que, na impugnação pauliana, é ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto que cabe a prova de que o obrigado possui bens de igual ou maior valor.

Resumidas as posições das partes, analisemos a questão.

De acordo com o disposto no artigo 610.º do Código Civil (diploma de que serão os preceitos que venham a ser citados, sem indicação de origem), são pressupostos da impugnação pauliana:

1) A realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito e não seja de natureza pessoal;

2) Que o crédito seja anterior ao acto, ou sendo posterior, ter ele sido praticado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

3) Que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, ocorra má fé tanto do alienante como do adquirente;

4) Que do acto resulte a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade (neste sentido, os acórdãos do STJ, de 20.01.2010, de 08.10.2009 e de 12.03.2009, processos n.ºs 1282/03.1, 1360/07.8 e 09B0264, respectivamente, acessíveis em www.dgsi.pt).

Deflui do acima referido que os recorrentes questionam, tão-somente, o segundo e o quarto.

Mas sem razão, como se procurará demonstrar.

Começando pelo segundo, há que reparar que os réus aceitam expressamente a existência e a anterioridade do crédito – “(…) in casu, provada está a existência de um crédito, que os RR nunca negaram (…). E esse crédito é, efectivamente, anterior ao dos actos impugnados”, escrevem eles nas suas alegações de recurso –, o que briga, de alguma maneira, com a afirmação posterior de que “é como se não existisse”.

Existir e não existir, ao mesmo tempo, é, por assim dizer, a lógica do absurdo. O que, quando muito, poderiam alegar (e, bem vistas as coisas, é esse o sentido da sua posição) é que o crédito, apesar de realmente existente e anterior aos actos, não poderia fundamentar a impugnação, por não estar, ainda, vencido.

Só que isso esbarra com a letra e o espírito da lei, que prevê não constituir a falta de exigibilidade do direito do credor obstáculo ao exercício da impugnação (artigo 614.º, n.º 1).

Como ensina o Prof. Antunes Varela, não é necessário que o crédito já se encontre vencido, para que o credor possa reagir contra os actos de diminuição da garantia patrimonial anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto (Das Obrigações em Geral, volume II, 5.ª edição, página 448, nota 1).

A explicação do regime, idêntico, aliás, ao estabelecido para a sub-rogação no artigo 607.º do citado diploma, é dada pelo Prof. Vaz Serra: o direito do credor é já certo, podendo este ter interesse legítimo em impugnar o acto antes de vencido o seu crédito, com vista a impedir que os bens se percam ou se inutilizem as provas a produzir na acção (Responsabilidade Patrimonial, n.º 49, BMJ 75).

Ideia a que Cura Mariano adere sem hesitações (Impugnação Pauliana, pág. 151 e seguintes) e que o nosso mais alto Tribunal tem vindo a acolher pacificamente, decidindo que a anterioridade do crédito se afere pela data da sua constituição, que não pela data do vencimento (exemplificativamente, os acórdãos de 8 de Março e de 13 de Dezembro de 2007, processos 06B3277 e 07A4034, respectivamente, disponíveis no local supra mencionado).

A existência e a anterioridade do crédito (apesar de os recorrentes, repete-se, o não porem em causa) estão cristalinamente patenteadas na matéria de facto assente, mormente nos seus pontos III, VIII, X a XXII, XVII, XIX, XX XXV, XXVII, XXXII, XXXIII e XXXV, dos quais ressuma, em apertada síntese, que: no dia 22 de Janeiro de 2007, no exercício do seu comércio, a recorrida vendeu dois camiões, a prestações, a (…). Esta aceitou, nessa altura, duas letras para garantia do bom e integral cumprimento das obrigações assumidas, que os recorrentes avalizaram. Mais tarde, porém, em Julho e em Novembro de 2008, doaram os bens imóveis de que eram titulares a sua filha, reservando para si, quanto a um deles, o direito de uso e habitação. Entretanto, a partir de Agosto de 2008, a compradora deixou de liquidar as prestações, a recorrida preencheu as letras, consoante o acordado e apresentou-as a pagamento, mas nenhum obrigado quis honrar a palavra e a assinatura.

Em decorrência do regime especial a que estão submetidas as letras, caracterizado por conhecidos princípios que conduzem como que a uma compenetração do crédito com o documento (Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III, pág. 38 e seguintes), o crédito resultante, seja do aceite, seja do aval, constitui-se no momento da subscrição. A obrigação cambiária do sacado nasce com o aceite (artigo 28.º da LULL; cf. Abel Pereira Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças anotada, 6.ª edição, pág. 147) e a do avalista com a prestação do aval, que o torna responsável talqualmente a pessoa afiançada (autor e obra citados, pág. 194).

É esta a posição do Supremo Tribunal de Justiça, plasmada, por exemplo, no acórdão de 13.12.2007, antes referido, e no acórdão de 22.06.2004, processo 04Ak...6, disponível na mesma base de dados. Como neste se considerou, a letra titula o direito nela incorporado, com origem numa relação anterior ao seu próprio surgimento (a chamada relação subjacente), cuja existência revela e, consequentemente, a existência de um crédito, nascido o subjacente com a relação fundamental e o cartular, que é um crédito real e não eventual ou hipotético, com a subscrição do título.

Concluindo, o crédito da recorrida sobre os recorrentes constituiu-se em 22 de Janeiro de 2007, com a prestação de aval por parte destes, e os actos impugnados foram praticados em Julho e em Novembro de 2008, pelo que a anterioridade do crédito é manifesta, improcedendo a alegação de recurso neste particular.

Passando, agora, ao quarto pressuposto – resultar do acto a impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do crédito ou o agravamento dessa impossibilidade –, traduz-se ele, como esclarecem os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, numa diminuição dos valores patrimoniais que, nos termos do artigo 601.º, respondem pelo cumprimento da obrigação, diminuição essa que pode resultar tanto do decréscimo do activo, como do aumento do passivo, acrescentando que tal situação se resolvia, no Código Civil de w...(artigo 1033.º), na insolvência do devedor, mas que, actualmente, se reconduz à simples impossibilidade prática de obter a satisfação do crédito (Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, pág. 626).

Doutrina que o segundo deles reafirma, ao escrever que “o Código de 1966, através da nova formulação do requisito, pretendeu deliberadamente colocar ao alcance da pauliana os actos deste tipo, que, não provocando embora, em bom rigor, a insolvência do devedor, podem criar para o credor a impossibilidade de facto (real, efectiva) de satisfazer integralmente o seu crédito, através da execução forçada” (obra acima citada, pág. 447).

E que encontra pronúncia conforme no Prof. Menezes Leitão (Direito das Obrigações, II, pág. 293), em Cura Mariano (obra citada, pág. 173) e na jurisprudência do Supremo (acórdãos de 08.10.2009, acima mencionado, e de 12.07.2007, processo n.º 07A1851, em www.dgsi.pt).

Em termos práticos, a impossibilidade de satisfação do crédito afere-se através da avaliação da situação patrimonial do devedor após a prática do acto, comparando o valor das dívidas com o dos bens que lhe são conhecidos; no caso de o montante das dívidas exceder o valor dos bens, ocorrerá a lesão da garantia patrimonial do credor que justifica o recurso à impugnação pauliana (acórdão de 08.10.2009, acabado de citar).

A data do acto impugnado é, pois, a que conta para se saber se dele resultou a impossibilidade, de facto, de satisfação integral do crédito do impugnante (Prof. Antunes Varela, obra e local referidos; acórdão do STJ, de 10.07.2008, processo n.º 08A2083, em www.dgsi.pt).

Um breve olhar pela matéria de facto provada (concretamente, o ponto XXXVII) demonstra com clareza que as doações efectuadas pelos recorrentes impossibilitaram a recorrida de se fazer pagar pelo património daqueles, uma vez que lhes não são conhecidos quaisquer outros bens, móveis ou imóveis, e, muito menos, de valor bastante para satisfação do crédito; ou seja, o montante da dívida (superior a cento e cinquenta mil euros) excede em muito o valor dos bens conhecidos dos recorrentes (no caso, zero), pelo que é manifesta a verificação do pressuposto que se vem analisando.

De todo o modo, a falada impossibilidade ou o seu agravamento sempre resultariam das regras do ónus da prova estabelecidas no artigo 611.º, que abre uma excepção à regra geral firmada no artigo 342.º, n.º 1.

Em sede de impugnação pauliana, o credor tem, apenas, de provar o montante das dívidas, cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor.

Voltando ao ensino dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, “em princípio, numa acção de impugnação, devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido (cfr. art. 342.º) e, portanto, devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da alínea b) do artigo anterior. No entanto, por razões compreensíveis – dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens – o artigo atribui a este o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao das dívidas (obra citada, página 727).

A especialidade introduzida pelo artigo 611.º significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao acto impugnado, se presume a impossibilidade de realização do direito de crédito em causa ou o seu agravamento (acórdãos do STJ, de 15.06.1994, 11.05.1995, 08.11.2007, 26.02.2009 e 08.10.2009, o primeiro na CJ/STJ, Ano II, Tomo II, pág. 142, o segundo no BMJ 447, pág. 508, os dois subsequentes em www.dgsi.pt – processos n.ºs 07B3586 e 09B0347, respectivamente – e o último referido acima. 

Tendo a recorrida provado o seu crédito e não tendo os réus/recorrentes alegado, sequer, que, depois dos actos impugnados, mantiveram no seu património bens de valor bastante para garantir a totalidade da dívida, é evidente a conclusão de que as doações impossibilitaram ou agravaram, pelo menos, a satisfação do crédito reclamado por aquela.

E, assim, esvaziada fica a alegação dos recorrentes de se não verificar o requisito em causa, pelas circunstâncias de, à data dos actos impugnados, a sociedade devedora estar, ainda, a laborar, podendo o seu património ser executado, existir uma cláusula de reserva de propriedade dos bens vendidos pela recorrida e haver outros garantes da dívida.

Que nunca poderia, aliás, proceder, na medida em que todos eles – devedora, recorrentes e terceiros garantes – são solidariamente responsáveis pela dívida, na qualidade de aceitantes e avalistas da letra dada à execução (artigo 47.º da LULL), respondendo, por conseguinte, pela prestação integral, sem poder opor o benefício da divisão (artigos 512.º e 518.º).

A suficiência de bens penhoráveis tem de dizer respeito ao próprio demandado, não relevando que os outros devedores solidários continuem a dispor de património bastante para assegurar o pagamento da dívida (acórdãos do STJ, de 29.09.2993, em CJ/STJ, Ano I, Tomo III, pág. 35, de 11.05.1995, antes referido, e de 14.12.2006, processo n.º 06B3881, em www.dgsi.pt).

Como, argutamente, se observou no segundo daqueles arestos, “quando nasceu a obrigação o credor ficou a poder contar com a garantia constituída pelos patrimónios dos vários devedores solidários, a qual (…) tem de acompanhar sempre aquela obrigação. A ser de outro modo, então estava encontrada a maneira fácil de, por exemplo, o avalista de uma livrança se desvincular na prática da sua obrigação: avalizava, mas depois vendia os seus bens”.

Que foi, exactamente, o que fizeram os recorrentes, com a agravante de que se desfizeram gratuitamente dos seus bens.

Irrelevante é, por fim, o argumento dos recorrentes de que o conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sociedade devedora não os obrigava a adivinhar que ela iria insolver e, muito menos, os poderia inibir de dispor do seu património como bem lhes aprouvesse.

Independentemente de situação económica e financeira em que a devedora se encontrasse, era obrigação dos réus manter no seu património os bens necessários a assegurar o direito da credora. Por isso, avalizaram a letra.

Boa fé não é afirmá-la, é honrar os compromissos.

Em suma, configuram-se todos os requisitos da impugnação pauliana, pelo que a questão improcede.

c) O excesso de condenação

No entender dos recorrentes, teria havido excesso de condenação, pelo facto de o crédito da recorrida ser inferior a € 200.000,00 e os bens doados valerem mais de € 500.000,00.

Mas não têm, mais uma vez, razão, confundindo, como muito bem observa a recorrida, as consequências da declaração de ineficácia inerentes à impugnação pauliana com os pressupostos de decretação do arresto.

Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (artigo 616.º, n.º 1).

Diversamente do que sucedia no direito anterior, em que a acção pauliana revestia o figurino de uma acção de nulidade, com o consequente regresso dos bens alienados ao ponto de partida, hoje em dia os bens não têm de sair do património do obrigado à restituição, onde o credor poderá executá-los e praticar os referidos actos de conservação da garantia patrimonial.

Porque a acção pauliana é uma acção vincadamente pessoal, os seus efeitos medem-se pelo interesse do credor que a promove. Reparado o prejuízo causado à garantia patrimonial do seu crédito, o acto mantém a sua validade na parte restante (Prof. Antunes Varela, obra citada, pág. 454/458).

Dito de outro modo, o acto impugnado não é nulo, mas, tão-só, ineficaz em relação ao impugnante, quanto ao crédito reclamado e provado. Satisfeito este, por via da penhora, em acção executiva, dos bens necessários a tanto, subsistem a validade e a eficácia do acto no tocante aos bens não penhorados nem vendidos.

Evidentemente que a penhora tem de se conter nos limites do disposto no n.º 3 do artigo 821.º do Código de Processo Civil, que, se desrespeitado, é fundamento de oposição, como decorre da alínea a) do n.º 1 do artigo 863.º-A do mesmo diploma.

O que vale dizer que a questão colocada pelos recorrentes não faz o menor sentido, visto que a procedência da impugnação pauliana não afecta o acto impugnado em mais do que o estritamente necessário para a eliminação do prejuízo da recorrida.

Assim, o recurso improcede, também, nesta parte.

IV. Em síntese:

1) O requisito da impugnação pauliana “anterioridade do crédito” afere-se pela data da constituição deste e não pelo seu vencimento.

2) O requisito “resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade”, por seu turno, não se reconduz à insolvência do devedor, mas, tão-somente, à impossibilidade prática de obtenção do crédito.

3) Em face da regra estabelecida no artigo 611.º do Código Civil, que introduz um desvio à regra geral do artigo 342.º, o credor só tem de provar o montante da dívida, cabendo ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens de igual ou maior valor.

4) Provada pelo impugnante a existência e o montante do crédito, presume-se a impossibilidade a que alude a alínea b) do artigo 610.º do Código Civil, ou o seu agravamento.

5) A procedência da impugnação pauliana acarreta a ineficácia do negócio em relação ao credor, na medida do crédito reclamado e provado, e não a sua nulidade.

V. Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, por consequência, em confirmar a sentença apelada.

Custas pelos apelantes.


Relator: Gonçalves Ferreira
Adjuntos: Virgílio Mateus
Carvalho Martins