Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
417/08.2TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE AVENÇA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
MANDATO
REVOGAÇÃO
FORMA
Data do Acordão: 09/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA DO TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 17º DO D. L. Nº 41/84, DE 3/02; 219º E 1157º DO CC
Sumário: I – O “contrato de avença” previsto no artigo 17º do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de Julho, corresponde a um contrato de prestação de serviços.

II – A estes, na falta de regulação especial da lei aplicam-se as disposições relativas ao mandato (artigo 1157º do CC).

III – A declaração de revogação do contrato de mandato não carece de forma especial (artigo 219º do CC), valendo esta asserção para o referido contrato de avença, por o nº 5 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 41/84, não conter exigência de forma alguma para a cessação desse contrato.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 13 de Março de 2008[1], o Advogado A… (A. e neste recurso Apelante), demandou o Estado Português (R. e Apelado), representado pelo Ministério Público, invocando a celebração, em 29 de Março de 1994, com a Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Centro (DRARNC)[2] de um “contrato de avença” [o tipo de contrato previsto no artigo 17º do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, na redacção neste introduzida pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de Julho (o Diploma será doravante referido como DL 41/84)][3], com a contrapartida pecuniária mensal (desde Abril de 2002) de €2.648,73, contrato este visando a prestação de assessoria jurídica e o exercício do mandato forense por conta da entidade contratante.

            Com a transferência da DRARNC para a CCDR Centro (doravante usar-se-á o acrónimo CCDRC), cessaram, em Outubro de 2003 – infundadamente, no entendimento do A. –, os pagamentos mensais a este devidos em função desse contrato, sendo que do entendimento da permanência do mesmo, por não denúncia dele, retira o A. a conclusão, que alcandora à categoria de pedido formulado na acção, de lhe ser paga, “até que se opere validamente a denúncia do contrato de avença”, o valor de €133.248,37 (valores mensais da avença em falta, com juros e o IVA contratualmente previsto).

1.1. Contestou o R., através do Exmo. Magistrado do Ministério Público, impugnando a versão do A. no que tange à manutenção da avença posteriormente a Setembro de 2003, coincidentemente com a transferência para a CCDRC. Desde então, qualquer serviço prestado pelo A. à entidade R. terá ocorrido a título pontual, como acto individualizado, já fora do quadro da avença que existiu até ao indicado mês e ano[4], mas que foi feita cessar em 29/09/2003[5], devendo a acção – é a posição do R. – improceder.

1.2. Saneados os autos e fixados os factos já assentes e a provar ulteriormente (fls. 64/74), prosseguiu o processo para o julgamento documentado a fls. 137/142, 143/147 e 148 (com gravação dos depoimentos prestados nas correspondentes sessões), sendo que, fixados que foram os factos provados por referência à base instrutória (a fls. 150/155), foi proferida (precedida de alegações de direito das partes, apresentadas por escrito) a sentença de fls. 196/216 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso – que, na parcial procedência da acção, condenou o Estado Português – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro a pagar ao A. “[…] a quantia já líquida de €15.892,38 (com 17% de IVA incluído), a que acrescerá o montante que vier a ser liquidado como ajustado e devido pela prestação de serviços técnico-jurídicos pelo mesmo A. ao R., no contexto de solicitações individualizadas ou ocasionais ou avulsas no período após Março de 2004 sem prejuízo do que desde já resulta sob os factos XIX e XX” (transcrição do trecho da Sentença constante de fls. 216).

1.3. Inconformado, apresentou-se o A. a interpor o presente recurso, sendo ele adequadamente recebido, motivando-o a fls. 219/245, formulando aí as seguintes conclusões:
[…]
            [transcrição de fls. 245/246]

            O R. respondeu ao recurso pugnando pela confirmação da decisão.

II – Fundamentação

            2. Encetando a apreciação do recurso, tenha-se presente que o âmbito objectivo deste foi delimitado pelas conclusões transcritas no item anterior [vejam-se os artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 ambos do Código de Processo Civil (CPC)].

            Tendo presente o teor dessas conclusões, detectamos dois elementos argumentativos na crítica do Apelante à decisão do Tribunal a quo: a crítica a alguns dos factos fixados na instância precedente – correspondem eles às respostas aos quesitos 15º, 19º e 20º e ao facto indicado em XLII do elenco da Sentença –, constituindo este o primeiro fundamento do recurso (a); com ou sem a propugnada alteração dos factos referidos, discute o Apelante, visando desta feita a operação subsuntiva realizada na Sentença, no que constitui o segundo fundamento do recurso (b), quanto à asserção respeitante à cessação do contrato de avença celebrado entre o R. e o A. (discute este Apelante designadamente a suficiência da forma não escrita empregue para a cessação desse contrato).

            Delimitada que está a dupla incidência temática da apelação que se apresenta a este Tribunal de recurso, cumpre apreciar esses dois fundamentos acabados de enunciar.

            2.1. (a) (Da Questão de Facto):
 […]

            2.1.1.  2.1.1.1. (a):
[…]
 

            2.1.1.2. (a)

            […]

            2.1.1.3. (a) Interessa-nos agora, ainda no quadro da apreciação da dimensão fáctica do julgamento, a questão da alínea XLII, cujo teor se nos apresenta como decorrente da junção aos autos dos documentos de fls. 190/195[6]. Enquanto prova documental estava este elemento subtraído à integração no despacho de fixação dos factos por referência à base instrutória, não estando, porém, subtraído à possibilidade de valoração na Sentença e, neste sentido, à inclusão na parte desta peça em que são considerados globalmente todos os factos aos quais haverá que aplicar o Direito, é o que resulta do artigo 659º do CPC[7].

            Ora, neste sentido, o que se contém no item XLII é o que resulta do teor logicamente compaginado dos documentos.

            […]

            É, pois, correcta, a redacção encontrada na primeira instância para o item XLII, improcedendo a crítica do Apelante.

            2.2. (b) (Da Questão de Direito)

Fixados que estão os factos, no quadro da apreciação do anterior fundamento do recurso, consolidou-se o elenco destes indicado na Sentença e transcrito neste Acórdão no item 2.1. (a) supra. Chegamos, assim, ao segundo fundamento do recurso, importando controlar o enquadramento dado aos factos provados, designadamente a asserção respeitante à suficiência da comunicação indicada no ponto XXXV desses factos enquanto efectivação da cessação do contrato de avença.

            A questão da delegação de poderes no Vice-Presidente da CCDRC, por parte do Presidente do organismo parece-nos correctamente equacionada e resolvida na Sentença[8]. Assim, a questão subsistente reduz-se à forma “não escrita” empregue na efectivação da comunicação a fazer cessar o contrato, sessenta dias depois, como resulta da lei (v. nota 14, supra).

             Vale a este respeito a caracterização da avença como integrando uma prestação de serviços[9] e, concretamente, quando à definição do regime desta (naquilo que o DL 41/84 não regule especificamente) a extensão das disposições respeitantes ao contrato de mandato (artigo 1156º do CC)[10].

            Ora, entendendo que a regulação da lei especial, aqui representada pelo Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de Julho, se limita, no artigo 17º, nº 5, a determinar que “[o] contrato de avença, mesmo quando celebrado com cláusula de prorrogação tácita, pode ser feito cessar a todo o tempo por qualquer das partes, com aviso prévio de 60 dias e sem obrigação de indemnizar”[11], resta-nos recorrer ao regime da revogação próprio do contrato de mandato (aplica-se este aqui, como vimos, por expressa indicação remissiva do artigo 1156º do CC), constatando, coincidentemente com a Sentença, que, “[n]os termos gerais, a declaração de revogação [do contrato de mandato e da prestação de serviços] corresponde ao exercício de um direito potestativo que pode ser feito valer sem observância de forma especial (artigo 219º do CC), sendo a declaração negocial recipienda (artigo 224º do CC)”[12]. Com efeito, como também indica Manuel Januário da Costa Gomes: “[n]o que respeita […] ao mandato, a questão da forma da sua revogação parece encontrar-se resolvida no sentido da liberdade de forma, mesmo para os casos em que o contrato deva ser tido como formal ad substantiam; assim decorre da previsão de uma revogação que a lei chama tácita (artigo 1171º do CC) […]”[13].

            Vale isto por dizer, sempre confirmando o entendimento expresso na Sentença apelada, a compatibilidade da promoção da cessação do contrato aqui considerado, nos termos que emergem do item XXXV dos factos provados.

            2.3. Assente esta conclusão – e improcedendo a pretensão do Apelante de ver alterados os factos –, resta-nos expressar decisoriamente a total improcedência do recurso, deixando nota, previamente, em sumário imposto pelo artigo 713º, nº 7 do CPC, dos elementos fundamentais do antecedente percurso argumentativo:
I – O “contrato de avença” previsto no artigo 17º do Decreto-Lei nº 41/84, de 3 de Fevereiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 299/85, de 29 de Julho, corresponde a um contrato de prestação de serviços;
II – A estes, na falta de regulação especial da lei aplicam-se as disposições relativas ao mandato (artigo 1157º do CC);
III – A declaração de revogação do contrato de mandato não carece de forma especial (artigo 219º do CC), valendo esta asserção para o referido contrato de avença, por o nº 5 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 41/84, não conter exigência de forma alguma para a cessação desse contrato.

III – Decisão

            3. Assim, na total improcedência da apelação, decide-se confirmar a Sentença apelada.

            Custas do recurso pelo Apelante.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] O que vale por dizer que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (em 01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Posteriormente, através do Decreto-Lei nº 104/2003, de 23 de Maio (conforme se recolhe no item XVI dos factos, alínea P) dos factos assentes a fls. 69), a DRARNC, enquanto estrutura descentralizada da Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território, foi integrada na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR Centro). A presente acção deve, pois, considerar-se subjectivamente referida, presentemente, a esta última entidade.
[3] Corresponde este contrato ao doc. nº 1 junto com a p.i. (fls. 7/8) e, em adenda, ao doc. nº 2, junto com o mesmo articulado (fls. 9).
[4] Diz o Exmo. Magistrado contestante:
“[…]
8
Impugna-se o teor do artigo 26º [continuidade da prestação de serviço posteriormente a Setembro de 2003], pelo facto de o A., a partir de 29/09/2003, somente ter prestado o serviço pontual solicitado pelo CDCR, dado o contrato de avença não ter sido renovado, facto este que lhe foi comunicado e ele conhecia;
[…]”
                [transcrição de fls. 22]
[5] Expressa o Exmo. Magistrado do Ministério Público tal asserção, nos seguintes termos:
“[…]
17
Em 2002, a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) nº 7/2002, […], impôs que os Serviços que dispusessem de pessoal em regime de prestação de serviço, nas modalidades de tarefa e avença, deveriam justificar ao membro do Governo essas situações, de forma a proceder-se à avaliação da sua necessidade. E,
18
Tal RCM acrescentou, ainda, que as excepções que se revelassem absolutamente imprescindíveis deveriam ser propostas pelo membro do Governo responsável pela respectiva área ao Ministro das Finanças.
19
Desde a publicação da mencionada RCM, o A. foi sendo mantido ao corrente de todas as diligências feitas com vista ao cumprimento daquela mesma RCM, nomeadamente à manutenção do contrato de avença, e seus resultados;
20
Tendo-lhe sido comunicado pela Sra. Directora dos Recursos Humanos, Dra …, que o MAOT tinha autorizado, a título excepcional, e apenas para o período compreendido entre 29 de Março de 2003 e 29 de Setembro de 2003, a prorrogação do contrato de avença em causa;
21
Em Outubro de 2003, nas instalações da CCDRC, em Coimbra, o Dr…, Vice-Presidente da CCDRC, confirmou verbalmente ao ora A. que, efectivamente, cessara o seu contrato de avença, em 29/09/2003, por não renovação do mesmo.
[…]”
                [transcrição de fls. 23/24]

[6] O procedimento mais correcto teria sido que as alegações das partes (concretamente as alegações de direito) tivessem ocorrido posteriormente à junção destes documentos. Note-se, todavia, que a existência destes documentos (das situações subjacentes), fundamentalmente respeitantes à entrada da nova equipa directiva da CCDRC e aos despachos de delegação de poderes dentro desta, foram pressupostas pelas partes ao longo do julgamento. Seja como for, nas presentes alegações e contra-alegações de recurso (a primeira intervenção das partes no processo subsequentemente à junção desses documentos) ambas as partes aceitam o teor desses documentos, não impugnando o conteúdo de nenhum deles nem invocando qualquer desvalor de rito respeitante à respectiva junção. Aceitam-nos – aceitaram-nos – porque conheciam perfeitamente o seu teor.
[7] “A aplicação do direito pressupõe o apuramento de todos os factos da causa que, tidos em conta os pedidos e as excepções deduzidas, sejam relevantes para o preenchimento das previsões normativas, sejam elas de normas processuais, sejam de normas de direito material. Na anterior decisão sobre a matéria de facto […], foram dados como provados os factos cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador […]. Agora, na sentença, o juiz deve considerar, além desses, os factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção dum meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante […], independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação […]. Ao fazê-lo, o juiz examina criticamente as provas, mas de modo diferente de como fez o julgador da matéria de facto: não se trata já de fazer jogar a convicção formada pelo meio de prova, mas de verificar atentamente se existiram os factos em que se baseia a presunção legal (lato sensu) e delimitá-los com exactidão para seguidamente aplicar a norma de direito probatório. Nomeadamente, o documento, o objecto da declaração confessória e o articulado de resposta no seu conjunto hão-de ser interpretados para se determinar o âmbito concreto dos factos abrangidos pela sua força probatória” (José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 677).
[8] A delegação refere-se à gestão orçamental e à realização de despesas (fls. 194), e o Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho (Regime jurídico de realização das despesas públicas e da contratação pública), no seu artigo 62º, nº 1, refere o poder de contratar a quem pode autorizar a despesa, o que se reflecte, por decorrência lógica, ao poder de fazer cessar o contrato. Não existe fundamento, pois, para considerar retido no Presidente que delegou o poder para realizar a despesa com o contrato o poder de fazer cessar esse contrato, tratam-se, por assim dizer, das duas faces da mesma moeda. Aliás, nenhum dos intervenientes integrantes da estrutura da CDCRC, entendeu as delegações de poderes em termos distintos. 
[9] V., genericamente sobre essa caracterização, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2005 (Fernandes Cadilha), proferido no processo nº 04S3583, disponível na pesquisa por estes campos na base do ITIJ ou, directamente, através do endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a8ee5501f6efb5e480. V. também o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção, de 05/05/1998, proc. nº 43338, Adelino Lopes), publicado nos Cadernos de Justiça Administrativa, nº 11, Setembro-Outubro de 1998, pp. 50/55, com anotação de Francisco Liberal Fernandes, pp. 56/59.
[10] V. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 430; Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2ª ed., Coimbra, 2006, p. 522.
[11] E a Sentença fez incidir este regime, escrupulosamente, na circunstância de ter datado de Janeiro de 2004 o aviso prévio de cessação do contrato (v. o exacto teor da condenação no item 1.2., supra).
[12] Pedro Romano Martinez, Da Cessação…, cit., p. 541.
[13] Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Coimbra, 1989, p. 257 (v., em geral, fls. 255/257).