Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
340/09.3TBSRE.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
MÚTUO
BANCÁRIO
CLÁUSULA CONTRATUAL
OBRIGAÇÃO DE INFORMAÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 334.º DO CC
Sumário: 1. A invocação da falta de comunicação das cláusulas contratuais será abusiva se tiver havido uma conduta do aderente apta a, objectiva e justificadamente, criar no que elabora as cláusulas contratuais gerais, a confiança de que a falta de comunicação não seria suscitada.

2.Age com abuso de direito o réu mutuário que, na contestação, invoca a nulidade e a ineficácia das cláusulas contratuais do mútuo bancário, por falta de comunicação das cláusulas gerais, depois de ter visto financiada a aquisição de um veículo automóvel, de o ter utilizado na sua vida corrente desde a data da celebração do contrato e de ter pago, durante cerca de 2 anos, 21 das 72 prestações da dívida.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., SA, com sede na ..., propôs a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contra B..., residente na ..., e C..., residente em ..., pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento:

1. De 12 972,01 euros, acrescidos de 1 214,04 euros de juros vencidos até 3 de Agosto de 2009;

2. De 48,56 euros, a título de imposto de selo sobre os juros vencidos;

3. Dos juros que se vencerem desde 4 de Agosto de 2009 até integral pagamento sobre a quantia de 12 972,01 euros, à taxa anual de 15,25%;

4. Do imposto de selo, à taxa de 4%, sobre os juros.

Em abono das suas pretensões alegou, em síntese, que:
1. Concedeu aos réus crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, no montante de € 23 300,00, para aquisição de um veículo automóvel;
2. Nos termos do contrato de mútuo, a importância de 23 300,00 euros foi emprestada com juros à taxa nominal de 11,25% ao ano;
3. A importância do empréstimo, os juros, a comissão de gestão, o imposto de selo de abertura de crédito e o prémio de seguro de vida seriam pagos em 72 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 10 de Janeiro de 2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;
4. Nos termos acordados, a falta de pagamento de qualquer das prestações na data do respectivo contrato implicava o vencimento imediato de todas as demais prestações;
5. Foi acordado que, em caso de mora, sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais;
6. Os réus não pagaram a 21ª prestação (vencida em 10 de Setembro de 2008), pagaram a 22ª (vencida em 10 de Outubro de 2008) e não pagaram as seguintes;
7. Os réus entregaram ao autor o veículo;
8. O autor vendeu-o pelo preço de 11 559,80 euros, tendo ficado com o preço por conta da dívida dos réus.

Apenas a ré contestou a acção. Na sua defesa alegou que as cláusulas do contrato eram nulas ou ineficazes, pois o autor não lhe explicou previamente o conteúdo, o alcance e a implicação delas e que não foi beneficiária do contrato de mútuo; impugnou ainda os factos articulados na petição.

   O autor respondeu, dizendo que cumpriu os deveres de informação e comunicação e que a invocação da nulidade das cláusulas configurava um manifesto abuso de direito.

      O processo prosseguiu os seus termos e a final foi proferida sentença que:

a) Declarou a nulidade parcial do contrato, no que concerne às cláusulas gerais e às específicas não individualizadas contratadas pelo autor e réus[1];

b) Condenou solidariamente os réus a pagar ao autor a quantia correspondente às 51 prestações de capital vencidas e não pagas referentes ao empréstimo de 23 300,00 euros, de onde seria descontado o valor da venda do automóvel no montante de 11 559,80 euros, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, devidos à taxa legal, desde a data do último pagamento, contados sobre a quantia de capital após aquele desconto, até efectivo e integral pagamento, acrescido ainda dos valores ainda não pagos a título de imposto de selo, tudo a liquidar em sede de execução de sentença, e ainda no pagamento dos custos atinentes ao imposto de selo, sobre esta incidente, à taxa legal de 4%, indo, no mais, os réus absolvidos.

O autor não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação contra ela, tendo pedido, no final das conclusões, a substituição da sentença recorrida por acórdão que condenasse os recorridos no pedido.

Para tanto formulou as seguintes conclusões:
1. Do comportamento cumpridor dos recorridos, que durante cerca de dois anos pagaram 21 prestações em razão do contrato de mútuo em discussão nos autos, sem que alguma vez tenham esgrimido a questão da nulidade das respectivas cláusulas, o recorrente só poderia deduzir que os mesmos consideravam tais cláusulas eficazes e vinculativas e que não viriam invocar a nulidade decorrente da comunicação inadequada do clausulado do contrato como forma de se eximirem ao pagamento da totalidade das prestações que com o autor, ora recorrente, contrataram.
2. Constitui assumpção de posição contrária aos factos praticados pelos próprios recorridos a invocação da nulidade das cláusulas gerais do contrato de mútuo em causa, não obstante o reconhecimento da sua celebração, do recebimento da importância mutuada, do pagamento de 21 prestações previstas em tal acordo e, ainda, a circunstância de, quando instados para pagar as quantias em dívida em virtude do incumprimento do contrato, terem vindo os recorridos proceder à entrega do veículo ao recorrente para que este o vendesse e fizesse reverter o valor obtido com o veículo para amortização do valor das prestações então em dívida, não tendo sequer nesse momento invocado qualquer nulidade do contrato ou exigido – em congruência com a tese sustentada apenas em sede de contestação – a restituição do valor total ou parcial das 21 prestações do contrato por eles pagas.
3. A invocação da nulidade das referidas cláusulas contratuais por parte da recorrida constitui, pois, abuso de direito.
4. Ao julgar parcialmente nulo o contrato de mútuo nos autos, no que concerne às cláusulas contratuais gerais e às específicas não individualizadas, e ao absolver os réus do pedido formulado na acção, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 334º, do Código Civil.

A ré respondeu, concluindo pela improcedência do recurso, dizendo que não havia qualquer abuso de direito da recorrida e que a recorrente é que pretende receber duas vezes, apropriando-se do produto da venda do veículo e reclamando as prestações vencidas e não pagas, não operando qualquer dedução daquele valor.


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A principal questão suscitada no recurso é a de saber se a invocação da nulidade das cláusulas contratuais por parte da recorrida constitui abuso de direito.

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Factos considerados provados:
1. O Autor é uma instituição de crédito que, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com os Réus, no dia 29 de Novembro de 2006, um contrato de mútuo com o n.º ..., no âmbito do qual concedeu aos Réus um crédito directo, tendo-lhes emprestado a importância de € 23.300, com juros à taxa nominal de 11,25% ao ano, acrescida de uma comissão de gestão, do imposto de selo de abertura do crédito e do prémio do seguro de vida, conforme resulta das condições particulares do contrato constantes de fls. 11, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. Os réus utilizaram o montante que receberam para aquisição de um veículo automóvel, de marca BMW, modelo 320 D TOURING, com a matrícula ...CG....
3. A importância do empréstimo e os juros referidos em 1), bem como a comissão de gestão, o imposto de sela de abertura de crédito e o prémio do seguro de vida deveriam ser pagos na sede do autor em 72 prestações, mensais e sucessivas, no valor de € 460,41 cada, sendo a primeira com vencimento a 10/01/2007 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes.
4. No âmbito do contrato de mútuo celebrado, ficou estipulado, nas condições específicas desse contrato, que o réu B...autorizava que, para pagamento das prestações acima indicadas, bem como de outras verbas decorrentes deste contrato, a sua conta, do Banco D... com o NIB ... fosse debitada, por contrapartida de uma conta de que o A... fosse titular.
5. De acordo com as cláusulas gerais do contrato, assinadas pelos réus, constantes de fls. 12 - cujo teor se dá por integralmente reproduzido — as partes acordaram que a falta de pagamento de uma prestação implicava o vencimento imediato de todas as demais e que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada de 11,25%, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 15,25%, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento, nomeadamente uma comissão de gestão por cada prestação em mora.
6. Acontece que os réus não pagaram a 21ª, a 23ª, nem as subsequentes prestações vincendas, tendo ficado em dívida 51 prestações, no valor total de € 23 480,91.
7. Instados para pagar, vieram os réus proceder à entrega do veículo ao autor, tendo este, no dia 22 de Dezembro de 2008, vendido a viatura pelo preço de € 11 559,80, quantia esta que foi descontada no remanescente da dívida.
8. Por carta datada de 03/12/2008, registada e devidamente entregue na morada nela aposta no dia 05/12/2008, o autor informou a ré C... que o veículo identificado em 2° iria ser vendido em leilão a realizar no dia 16/12/2008, com a base de licitação de € 11 700, concedendo-lhe um prazo de cinco dias para a mesma apresentar uma melhor proposta — conforme consta da cópia da carta junta aos autos a fls. 54, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. Por carta datada de 07/01/2009, registada e devidamente entregue na morada nela aposta no dia 09/01/2009, o autor informou a ré C... que, apesar de o veículo ter sido vendido, existe ainda uma importância em dívida descriminada no mapa que anexam, concedendo-lhe um prazo adicional para proceder ao seu pagamento — conforme consta da cópia da carta e anexo juntos aos autos a fls. 57 e 58, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10. Os réus viveram em união de facto desde Junho de 2006 até Abril de 2008.
11. Na data da celebração do contrato de mútuo identificado no facto provado 1) os réus informaram o autor que tinham a sua residência na Rua ....
12. Enquanto viveram em união de facto, os réus utilizaram ambos, na sua vida corrente, o veículo identificado em 2°.
13. Quando os réus se separaram, o réu B...levou consigo a viatura identificada em 2°.
14. Na celebração do contrato, o vendedor e os réus ajustaram o negócio da compra do veículo do automóvel.
15. De seguida, o vendedor enviou ao autor uma proposta de financiamento que este aceitou.
16. Em seguida, o autor elaborou o contrato e enviou ao vendedor do automóvel dois exemplares do contrato de mútuo dos autos, com as condições específicas e as condições gerais para que os mesmos fossem assinados pelos réus.
17. A ré C... nunca contactou o autor para que este lhe prestasse qualquer esclarecimento ou dissipasse dúvidas que esta tivesse sobre o contrato celebrado.

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      Como se escreveu mais acima, a principal questão suscitada no recurso é a de saber se a invocação da nulidade das cláusulas contratuais por parte da recorria, na contestação à presente acção, constituiu abuso de direito.

O exercício de qualquer direito está sujeito a limites e restrições. É disso mesmo que dá conta o artigo 334º, do Código Civil, ao dispor que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

      Entre as hipóteses de exercício de um direito em que o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé encontra-se a conduta contraditória, ou seja, o venire contra factum proprium [cfr. neste sentido Baptista Machado, em Tutela da Confiança e Venire contra factum proprium, RLJ, ano 117º, páginas 363].

      Não é, no entanto, qualquer conduta contraditória que faz cair o seu autor sob a alçada do artigo 334º, do Código Civil.

      Socorrendo-nos da lição do autor acima citado, na RLJ, ano 118, páginas 171 e 172, para tanto é necessário, em primeiro lugar, que aquele contra quem é invocado o abuso de direito, tenha criado “uma situação objectiva de confiança”, ou seja, tenha tido uma conduta que, “objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará coerentemente, de determinada maneira”. “Para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação á criação da confiança, é preciso que ela directa ou indirectamente revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”.

Em segundo lugar, é necessário que, “com base na situação de confiança criada”, a contraparte tome “disposições ou organize planos de vida de que lhe surgirão dúvidas, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada”.

Em terceiro lugar, é necessária a “boa-fé da contraparte que confiou”.

Aproximando-nos do caso em discussão nos presentes autos, importa dizer que o abuso de direito tem sido invocado por algumas decisões jurisprudenciais precisamente para paralisar iniciativas semelhantes às da ré. Assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-06-2007, publicado em www.dgsi.pt/jtrl, decidiu que a invocação da nulidade do contrato por falta de entrega de um exemplar, ao fim de quatro anos de vigência do contrato, encontrando-se pagas 31 das 48 prestações acordadas, quando se foi chamado a honrar o compromisso assumido, constitui abuso de direito (art. 334º do Cód. Civil) e é, portanto, ilegítima”. 

Também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2009, processo n.º 1179/08.9TBPFR, publicado em www.dgsi.pt/jtrp, considerou que a invocação da nulidade de um contrato de crédito ao consumo, por não ter sido entregue ao mutuário um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura, depois de o devedor o ter cumprido durante quase dois anos e depois de ter utilizado o bem adquirido com recurso ao crédito em proveito pessoal, configurava claramente uma conduta contraditória, pois havia dado ao credor “evidentes, permanentes e sucessivos sinais de que o contrato seria cumprido; que, da sua parte nada obstava ao seu cumprimento”.

De igual forma, no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Fevereiro de 2008, processo n.º 366/05.6TBTND, publicado em www.dgsi.pt/jtrp, foi considerado como exercício abusivo de um direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o facto de, num contrato de crédito ao consumo, os mutuários terem invocado a nulidade, por falta de entrega de um exemplar do contrato, após terem pago dezassete das 48 prestações mensais por que foi repartido o reembolso do crédito.

Por seu turno, o acórdão do STJ de 07-01-2010, processo n.º 08B3798, publicado em www.dgsi.pt/jstj, citando outras decisões jurisprudenciais, considera que a invocação da falta de comunicação das cláusulas contratuais será abusiva se tiver havido uma conduta do aderente apta a, objectiva e justificadamente, criar no que elabora as cláusulas contratuais gerais, a confiança de que a falta de comunicação não seria suscitada, tornando claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram”. Escreve-se ainda no citado acórdão que, para ocorrer abuso de direito, é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil)”.

Feitas estas considerações, há que reconhecer que o caso dos autos tem fortes pontos de contacto com os apresentados anteriormente. Assim, à semelhança do que sucedeu com as situações que estavam em julgamento nos acórdãos da Relação, a mutuária invocou a falta de comunicação das cláusulas gerais depois de ter visto financiada (na íntegra) a aquisição de um veículo automóvel, depois de o utilizar na sua vida corrente conjuntamente com o réu, desde a data da celebração do contrato (29/11/2006) até Abril de 2008 (data em que deixou de viver em união de facto com o réu) e depois de ela e o réu terem pago, durante cerca de 2 anos, 21 das 72 prestações da dívida.

Há semelhança do que se entendeu nos citados acórdãos, também nós consideramos que a relação contratual entre o autor e os réus desenvolveu-se em termos coincidentes com os das relações contratuais plenamente válidas ou com os relações cujos contraentes estão convencidos da validade das suas obrigações, havendo assim fundamento para concluir que o desenvolvimento da relação contratual entre o autor e os réus era apto a criar naquele a convicção de que a ré, confrontada com a exigência do cumprimento do contrato, não iria invocar a falta de comunicação das cláusulas contratuais gerais.   

Aliás, o facto de os réus, instados a pagar as prestações em dívida, terem procedido à entrega do veículo ao autor para que este o vendesse e descontasse o preço da venda na dívida, constitui circunstância idónea a reforçar a convicção, do autor, de que a falta de comunicação não seria invocada como meio de defesa.    

      Assim, ao invocar a nulidade e a ineficácia das cláusulas contratuais, a ré violou a confiança que criou ao autor, agindo com abuso de direito.

      Daqui não se segue, no entanto, a procedência total do recurso. Vejamos.

O autor pediu a condenação dos réus no pagamento de 51 prestações, sendo que cada uma deles tinha o valor 460,41 euros, que incluía capital em dívida, juros do empréstimo, valor dos impostos devidos e prémios de apólices de seguro. A sentença rejeitou, em parte, esta pretensão, dizendo que os réus estavam obrigados a pagar 51 prestações, só que o valor de cada uma delas não era o de 460,41 euros. O valor era inferior e a apurar em sede de liquidação, pois tinha que se deduzir dele a parte dos juros remuneratórios e a parte relativa ao prémio de seguro.

Sucede que a exclusão destas duas parcelas do valor das prestações não tinha a mesma razão de ser. Assim, enquanto a exclusão dos juros remuneratórios era ditada pela doutrina fixada no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2009, publicado no D.R. n.º 86, Série I de 2009-05-05, como o atesta o seguinte trecho da sentença: “…o montante em dívida pelos réus terá que ser apurado em sede de execução de sentença, uma vez que é necessário apurar qual o valor do capital em dívida depois de descontar o valor da venda do veículo, dele se descontando os juros remuneratórios, em aplicação do determinado no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2009, de 25-03-2009…”, a exclusão do prémio de seguro foi justificada nos seguintes termos: “não é devido o montante do prémio de seguro mensal, até porque das condições específicas não resulta qual seja o seu valor”.

Segue-se daqui que a ilegitimidade da invocação da nulidade das cláusulas do mútuo determinam apenas, em matéria de valor das prestações a restituir ao autor, a revogação da sentença na parte em que excluiu do valor delas o montante do prémio de seguro.

A ilegitimidade da invocação da nulidade importa, em segundo lugar, a revogação da sentença na parte em que condenou a ré no pagamento de juros de mora, à taxa legal. Vejamos.  

O autor pediu o pagamento de juros de mora à taxa anual de 15,25% ao abrigo da alínea b), do artigo 8º das cláusulas gerais, nos termos da qual “em caso de mora e sem prejuízo do disposto no número anterior, incidirá sobre o montante em débito, e durante o tempo da mora, a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual acrescida de 4% percentuais, bem como outras despesas decorrentes do incumprimento nomeadamente uma comissão de gestão por cada prescrição em mora”.

Entendendo que o autor não se podia prevalecer desta cláusula, o tribunal a quo condenou os réus no pagamento dos juros legais, ou seja, juros à taxa anual de 4% (Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril).

Com a declaração de que foi ilegítima a invocação da nulidade das cláusulas contratuais, há que condenar a ré no pagamento de juros ao abrigo da alínea b), do artigo 8º das cláusulas gerais, ou seja, à taxa anual de 15,25%[2]


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Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso, revogando-se a sentença na parte em que determinou que se deduzisse ao valor das prestações (460,41 euros) o montante do prémio das apólices de seguro e na parte em que condenou a ré a pagar juros de mora legais. Em consequência:

1. Condena-se a ré a pagar o prémio das apólices de seguro;

2. Condena-se a ré a pagar juros de mora à taxa de 15,25%;

3. Mantém-se a parte restante da decisão.


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Custas pelo autor e pela ré na proporção do decaimento.

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Emídio Santos (Relator)
António Beça Pereira
Nunes Ribeiro

[1] Embora a recorrente não ponha directamente em causa a declaração de nulidade parcial do contrato, no que concerne às cláusulas gerais, a verdade é que a solução a que o tribunal chegou não tem cobertura na lei. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 8º, alínea a), do Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, a sanção estabelecida para a não comunicação das cláusulas contratuais não é a nulidade destas, a sanção é a exclusão delas dos contratos singulares. Excluídas as cláusulas contratuais gerais, os contratos singulares mantêm-se, sendo o regime estabelecido nas cláusulas gerais excluídas substituído pelas normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos (n.º 1, do artigo 9º, do Diploma supra citado). Os contratos singulares só serão nulos, quando não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé (n.º 2, do artigo 9º, do diploma supra citado). Por outro lado, não se entende o sentido da expressão “cláusulas específicas não individualizadas” que aparece no mesmo segmento da decisão. Considerando, no entanto, que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões e que o recorrente não põe directamente em causa a declaração da nulidade das cláusulas gerais e as “específicas não individualizadas”, não cabe a este tribunal conhecer desta questão.

[2] O autor considerou que os réus estavam em mora desde 10 de Setembro de 2008; a sentença considera que os réus estão em mora desde o último pagamento, ou seja, desde 10 de Agosto de 2007. Além de a sentença incorrer em manifesto lapso quanto à data do último pagamento, a condenação no pagamento de juros de mora a partir de uma data anterior à que foi pedida configura uma violação do princípio do pedido enunciado no artigo 661º, n.º 1, do CPC. Considerando, no entanto, que esta parte da decisão não foi impugnada, impõe-se ao tribunal acatá-la.