Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
426/06.GAALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS DE MORA
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA- BAIXO VOUGA (ALBERGARIA-A –VELHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: 494º, 496º,805º E 806º DO CC
Sumário: 1. Na fixação do montante da compensação por danos não patrimoniais em consequência de mordedura de cão a criança deve ter-se em conta a extensão, gravidade e consequência das lesões sofridas, aos incómodos daí resultantes, às intervenções cirúrgicas e aos tratamentos efectuados, às dores sentidas, tudo ponderado, sem esquecer todas as demais circunstâncias do caso.

2. Sobre o montante da compensação fixado pelos danos não patrimoniais acrescem juros de mora de responsabilidade da demandada que devem ser contabilizados à taxa legal desde a decisão ou da citação da demandada, consoante a fixação da compensação tenha sido ou não actualizada e até seu integral pagamento à demandante.

Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. E e S então menor de idade (porquanto nascida no dia 7 de Dezembro de 1991), e, por isso, devidamente representada (in casu, por sua mãe AU), após participar criminalmente contra A  factualidade alegadamente consubstanciadora da prática pelo mesmo, em autoria material e sob a forma negligente, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido através das disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.ºs 1 e 2; 15.º, alínea b) e 148.º, n.º 1, todos do Código Penal, deduziu, com data de 25 de Junho de 2009, ao abrigo do estatuído pelo artigo 71.º e segs., do Código de Processo Penal, e contra A… – Companhia de Seguros, S.A., com sede no Porto, pedido de indemnização civil, isto no intuito de obter a condenação da demandada a solver-lhe, nomeadamente para reparação dos danos não patrimoniais sobrevindos em virtude de conduta delitiva daquele A e cuja responsabilidade ela assumira, a quantia de € 45.000,00, acrescida dos juros de mora vencidos desde a data de notificação à mesma desse pedido, e vincendos, até integral pagamento, todos calculados à taxa legal.

Introduzido o feito em juízo, após normal tramitação, veio a ser proferida sentença que, além do mais por ora irrelevante, determinou a condenação da mencionada seguradora a solver à demandante, entretanto perfazendo já a maioridade, como reparação pelos apontados danos, a quantia de € 19.000,00, acrescida de juros de mora contabilizados à taxa legal estabelecida pela Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, desde a data da notificação do pedido cível (25 de Setembro de 2009) e até integral pagamento, sem prejuízo da franquia de 10% contratada entre a seguradora e o indicado A.

1.2. Desavinda tão-somente com o segmento da decisão que ponderou a aludida responsabilidade civil, interpõe recurso a dita seguradora, extraindo da motivação apresentada a seguinte ordem de conclusões:

1.2.1. Impõe-se aditar à factualidade dada como provada pela decisão recorrida, que a demandante E não tem qualquer deformação na pálpebra esquerda, sendo que do evento em causa não lhe sobrevieram quaisquer consequências permanentes.

1.2.2. Tudo considerando-se o que consta dos exames médico-legais a que foi submetida e cujos resultados constam de fls. 140/141.

1.2.3. Aliás, apenas com tal alteração da decisão sobre a matéria de facto se esclarece o vertido e descrito em (infra) 6. dos factos provados.

1.2.4. A compensação arbitrada pelo Tribunal a quo em € 19.000,00 teve em consideração o facto de as cicatrizes serem na face e uma delas na pálpebra esquerda.

1.2.5. Todavia, sem atentar à circunstância de tais cicatrizes já não serem visíveis.

1.2.6. Acresce que o montante assim arbitrado para ressarcir os danos não patrimoniais sofridos pela demandante não corresponde àquele que é alcançado pela jurisprudência mais recente.

Com efeito,

1.2.7. Para ressarcir o dano não patrimonial sofrido pela perda de um jovem, filho único, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, em 14 de Julho de 2009, adequado o valor de € 20.000, para cada um dos progenitores.

1.2.8. Em situação muito mais grave do que a presente, em 1 de Abril de 2008, o Tribunal da Relação do Porto, fixou uma compensação por danos não patrimoniais de € 20.000.

1.2.9. Nesta perspectiva, a sentença recorrida não interpretou nem aplicou devidamente o consignado pelo artigo 496.º do Código Civil.

1.2.10. Acresce que o valor do dano não patrimonial é calculado tomando o Tribunal em consideração a data de encerramento da audiência.

1.2.11. Fazer incidir sobre o montante fixado juros de mora desde a citação será fazer vencer juros uma dívida que, naquele momento, nunca corresponderia ao montante que a sentença veio a fixar.

1.2.12. Sensível a esta argumentação, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o acórdão para fixação de jurisprudência n.º 4/2002, sustentando: não é defensável a cumulatividade de juros de mora desde a citação, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil com a actualização da indemnização, na medida em que ambas as providências influenciadoras do cálculo da indemnização devida obedecem à mesma finalidade, que consiste em fazer face à erosão do valor moeda no período compreendido entre a localização no tempo do evento danoso e o da satisfação da obrigação indemnizatória.

1.2.13. Em consequência, e com fundamento nesta argumentação, fixou até a seguinte norma interpretativa: «Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto no artigo 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente) e 806.º, n.º 1, ambos do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação

Terminou pedindo que no respectivo provimento seja diminuído o montante indemnizatório arbitrado, e, ademais, apenas sobre ele se façam incidir juros moratórios contabilizados a partir da data de prolação da sentença em 1.ª instância.

1.3. Cumprido o disposto no artigo 411.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, nenhuma resposta apresentou a recorrida.

1.4. Proferido despacho admitindo a impugnação, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral adjunto ao qual foram continuados, limitou-se a apor visto, pois que em causa apenas está matéria respeitante à parte civil do processo, mostrando-se ainda as partes arredias a qualquer patrocínio seu.

1.6. No exame preliminar a que alude o n.º 6 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, consignou-se não ocorrer fundamento conducente à rejeição ou apreciação sumária do recurso, donde que colhidos os vistos devidos, devessem os autos ser continuados com submissão à presente conferência.

Urge, então, ponderar e decidir.


*

II – Fundamentação de facto.

2.1. A matéria de facto considerada como provada na decisão recorrida foi, no que concerne, a seguinte:

1. O arguido A em 14 de … de 2006, era dono de um cão de raça Rottweiler, de cor preta afogueado, nascido a 27 de Novembro de 2003, do sexo masculino, o qual se encontrava em condições não concretamente apuradas, num quintal, sito nos anexos do estabelecimento comercial denominado “K.., sito na Rua… da localidade de A… área da comarca do Baixo Vouga, Albergaria-a-Velha, da propriedade do arguido e por este explorado e sua esposa.

2. Entretanto, tal como já vinha sucedendo vezes anteriores, A, nesse dia, pelas 18h00, juntamente com a sua filha E, então menor de 16 anos de idade (nascida a 07/12/1991), deslocaram-se ao mencionado estabelecimento, o qual se encontrava aberto ao público.

3. Sendo que o arguido nesse mesmo instante se encontrava no quintal contíguo ao mencionado café, local onde também se encontrava o seu cão.

4. Sucede que no acto em que a ofendida E e sua mãe penetraram no interior, encontrando-se aí a esposa do arguido, aí surgiu o referido cão, vindo de um espaço anexo ao café, que circulava livremente, sem estar atrelado ou açaimado, sendo que a ofendida E ao aperceber-se da presença deste no interior do café, tal como já o vinha fazendo há cerca de 2 anos a essa parte, agachou-se de cócoras e começou a fazer-lhe festas.

5. Nesse acto, subitamente, e pese embora a presença da esposa do arguido, o cão atacou a ofendida E, desferindo-lhe diversas dentadas na face, mordendo-a junto ao olho esquerdo e cabeça, até que a esposa do arguido, M, conseguiu verbalmente que aquele se afastaste da ofendida, após o que aí compareceu o arguido, alertado por esta.

6. Em consequência, directa e necessária da descrita conduta do arguido, designadamente das mordeduras efectuadas pelo seu cão, sofreu E, dores e careceu de receber tratamento hospitalar, e as lesões descritas nos exames médico-legais de fls. 37 a 39, 57, 54, 60, 61, 122, 140 a 141, isto é, no crânio, cicatriz rosada na metade esquerda da região frontal, assente sobre o couro cabeludo, medindo dois centímetros de comprimento por meio centímetro de largura, cicatriz nacarada, curvilínea de concavidade lateral, na metade interna da pálpebra superior esquerda, com catorze milímetros de comprimento por um milímetro de largura depois de rectificada, retracção da metade interna do bordo palpebral superior esquerdo, tumoração mole, depressível, na linha média da pálpebra superior esquerda, com meio centímetro de diâmetro, cicatriz nacarada, pouco aparente, na região malar esquerda, com cinco milímetros de comprimento por um milímetro de largura, cicatriz nacarada, pouco aparente, na região bucal esquerda, com cinco milímetros de comprimento por um milímetro de largura, lesões que lhe demandaram, para cura, um período de 440 (quatrocentos e quarenta) dias, sendo os deles 30 primeiros dias com incapacidade para o trabalho em geral.

7. Ao agir como o descrito, deixando circular livremente o seu cão no quintal ou espaço anexo ao seu estabelecimento e no interior deste, aquando da sua abertura ao público, sem estar atrelado ou açaimado, bem sabendo que o seu cão era um animal potencialmente perigoso, quer por se tratar de um animal da espécie canina, quer pela tipologia racial, quer pelo tamanho e potência das suas mandíbulas, negligenciando o perigo do cão morder quem frequentasse o seu estabelecimento aberto ao público, como aconteceu, bem sabendo que sobre ele recaía o dever jurídico de vigiar o seu cão de molde a que o mesmo não causasse lesões na integridade física e na saúde de outras pessoas, tomando as providências adequadas a tal fim, o que alias, lhe era imposto legalmente, o arguido omitiu o dever objectivo de cuidado que, segundo as circunstâncias, lhe era exigível, se impunha que observasse e era capaz, para evitar o resultado, não tendo, contudo, representado a possibilidade de que ao proceder de tal forma viessem a resultar ferimentos e lesões no corpo de E.

8. Por norma o animal referido em 1) andava solto.

9. Em consequência do descrito 5), a E foi transportada de ambulância para os Hospitais da Universidade de Coimbra, onde foi operada de urgência.

10. Em consequência do descrito em 5) a E necessitou de re-intervenção para correcção funcional da pálpebra superior do olho esquerdo e foi intervencionada no Centro Cirúrgico de Coimbra a 28/4/2007, para tal correcção.

11. Em consequência das lesões descritas 6) a E sofreu atrozes dores.

12. A E tem ainda na memória o momento descrito em 5).

13. Até então, a E era activa, brincalhona e amiga dos animais, mas hoje em dia tem medo dos cães de grande porte.

14. No dia do ataque e nos dias, semanas e meses seguintes, a E receou pela sua integridade física.

15. Toda a situação provocou na E um desgosto e abalo moral.

(…)

17. Em 14 de Julho de 2006 a responsabilidade civil em relação ao animal descrito em 1) tinha sido transferida por A a A… – Companhia de Seguros, S.A., através da apólice n.º 0084100…

(…)

23. A demandante e a sua mãe conheciam o cão, sabiam que se tratava de um “rotwweiler”, raça conhecida por todos como potencialmente perigosa, o que não impediu a E de contactar com o animal.

(…)

31. A assinou a proposta de contrato de seguro, junta de folhas 218 a 220, na qual consta que o capital seguro é de € 50 000,00 e franquia de 10%, e não constam as cláusulas do contrato, documento junto a folhas 218 a 220, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido.

32. Em 14 de Outubro de 2009 foi emitida 2.ª via da apólice n.º 0084100.., da qual consta sob a epígrafe “condição especial 02 – Responsabilidade Civil para Cães – “4 patas” no artigo 4.1. g) o seguinte teor: «Além das exclusões absolutas e relativas referidas nas Condições Gerais do Ramo, o presente contrato também não cobre os danos: g) causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de animais de companhia», como melhor consta do documento de folhas 221 a 224, cujo teor aqui damos por integralmente reproduzido.

33. O escrito referido em 32) constituiu um formulário, com cláusulas previamente elaboradas pela seguradora, do qual não consta a assinatura, nem rubrica, de A.

2.2. Já relativamente factos não provados, foi aí considerado enquanto tal que:

1. O cão descrito em 1) circulava sem coleira.

2. A E viu a sua vida em risco e tem ainda hoje na memória o momento em que o seu corpo franzino foi quase esmagado pelo rottweiler.

3. A E ainda hoje tem pavor de todos os animais de quatro patas, vivendo momentos de profunda angústia cada vez que, por acaso, com eles se cruza, ou mesmo quando deles se fala.

4. No dia do ataque, e nos dias e semanas seguintes, a E viveu momentos de terror absoluto, receando pela sua vida.

5. A E chora amiúde, por qualquer motivo, se recorda do que lhe aconteceu, o que invariavelmente, sucede nos momentos de recolhimento que precedem o adormecer.

6. O desgosto e abalo moral descritos em 15) dos factos provados foi profundo e forte, respectivamente.

7. Toda esta situação provocou na E uma especial preocupação com a possibilidade de, no futuro, tal fobia a cães, com as suas consequências, lhe acarretar dificuldades de integração e socialização.

8. No dia e hora descritos em 1) e 2) dos factos provados, o canídeo encontrava-se num anexo contíguo ao café, fechado e ladeado por rede com cerca de um metro e meio de altura e no local estava afixada uma placa onde se lia “cuidado com o cão”.

9. A demandante entrou no café e dirigiu-se ao exterior onde se encontrava o animal, para o fazer teve que transpor três portas e entrou dentro do anexo e foi então, quando se encontrava a brincar com o cão, que este a mordeu.

10. O arguido tudo fez para evitar que o animal viesse a constituir-se num perigo para a demandante e para quem frequentasse o café.

2.3. Por fim, é do teor seguinte a motivação probatória constante da decisão sindicada:

A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados, assentou na análise das declarações do arguido, da prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento, bem como da prova pericial e documental junta aos autos, tudo conjugado com as regras da experiência comum.

Concretizando,

O arguido prestou declarações, confirmou ser dono do cão de raça rottweiler e o ataque do mesmo à E, em data que não se recorda. Porém, referiu que o ataque do cão consistiu em arranhões com a pata e não mordeduras e negou que o cão estive no interior do estabelecimento do café. Referiu que o cão estava consigo no quintal e que foi a E que foi ao encontro do cão ao quintal para brincar, como o fazia sempre, tendo, ainda, dito que par chegar do café ao quintal é preciso transpor quatro portas, o que a E fez. Disse, de igual modo, que a E conhecia o cão desde pequeno, pois que frequentava a sua casa e entrava no interior da mesma, sem qualquer restrição, não se limitando ao espaço do estabelecimento comercial do café, sendo que já a tinha advertido para o não fazer. Mais esclareceu que chamou a ambulância e ficou abalado e triste com a situação. Referiu, ainda, que o cão em causa já lhe tinha mordido e também ao no seu filho e inclusive já tinha tido ordem para abate, todavia, considerava-o manso e afável. Por último, prestou declarações quanto às suas condições económicas e sociais.

A demandante E que, não obstante assumir tal posição processual, ainda assim, prestou um depoimento absolutamente credível, pela forma natural como depôs, denotando absoluta isenção e veracidade nas suas declarações, pelo que o tribunal valorou na íntegra o seu depoimento. Assim, a E confirmou toda factualidade descrita nos pontos 2), 3), 4) e 5) do elenco dos factos provados.

A testemunha AU, mãe da demandante, confirmou a ida, juntamente com a filha, ao estabelecimento comercial do arguido e os ferimentos apresentados pela demandante. Todavia, não presenciou a agressão do cão à sua filha. De salientar que não valoramos o depoimento desta testemunha, pois não transpareceu isenção e credibilidade, antes denotando algumas contradições em relação ao depoimento da própria filha, mormente no que diz respeito aos danos sofridos pela E denotando exagero no que concerne aos danos sofridos, o que, de certo modo, é compreensível, considerando que é mãe da demandante.

Por último, no que diz respeito aos factos descritos na acusação, a testemunha M, mulher do arguido, confirmou a agressão sofrida pela demandante, todavia, referiu que foi a mesma que se dirigiu ao encontro do cão, que estava no local onde era hábito estar e que até disse à E para não se dirigir ao cão, para não o incomodar, porque estava muito calor. Negou que o ataque tivesse ocorrido no interior do estabelecimento comercial do café.

Ora, da audiência de julgamento, resultaram assim duas versões contraditórias sobre o local da ocorrência dos factos e bem assim quanto ao modo de ataque do cão, se por mordedura ou por arranhão com a pata.

No que concerne ao local da ocorrência dos factos, apesar das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha M, acreditamos, em detrimento de tais declarações, no depoimento prestado pela ofendida E, porque, tal como referimos supra, apesar de assumir a posição de demandante, prestou um depoimento absolutamente sincero e credível, e sem contradições e, acima de tudo, denotando absoluto conhecimento dos factos.

No que diz respeito ao modo de ataque do cão, mais uma vez, valoramos o depoimento sincero da demandante E que confirmou que se baixou de cócoras para fazer festas ao cão e que ele a atacou, mordendo-a no olho e na cabeça do lado esquerdo e a empurrou com as patas para trás. Ao que acresce que analisadas as lesões apresentadas pela Eva Alexandra e descritas no auto de exame de folhas 37 a 39, 57, 54, 60, 61, 122 e 140 a 141, se retira que as mesmas são compatíveis com mordeduras, embora sem grande violência – considerando a potencialidade das mandíbulas de um cão da raça do em causa nos presentes autos –, e não simples arranhões com a pata.

Assim, foi com base no depoimento da E conjugado com o teor dos autos de exame periciais juntos aos autos que demos como provada a factualidade dos pontos 1) a 5) e 8) e 23) do elenco dos factos provados e, por sua vez, consideramos não provada a matéria dos pontos 8) a 11) dos factos não provados.

Valoramos o teor do autos de exame periciais de folhas 37 a 39, 57, 54, 60, 61, 122 e 140 a 141, conjugados com o depoimento da E para dar como provada a matéria referente às lesões apresentadas pela demandante e descritas no ponto 6).

A factualidade do ponto 1) e 24) resultou provada em face das declarações prestadas pelo arguido, que admitiu a mesma. De igual modo, o arguido admitiu que no dia dos factos o cão não tinha trela, nem estava açaimado, mas tinha coleira, o que foi confirmado pelo depoimento da E

A factualidade descrita no ponto 7) resultou provada em face do depoimento da E com base no qual se deu como provada a factualidade dos pontos 1) a 5), tudo conjugado com as regras da experiência comum, considerando a raça do animal em questão.

A matéria de facto descrita em 9) foi considerada provada com base no depoimento da E, confirmada pelo depoimento credível da testemunha V e G, tio e pai, respectivamente, da demandante, que confirmaram tal matéria. O que, de igual modo, decorre do teor de folhas 26, informação clínica prestada pelos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Valoramos, ainda, o teor de folhas 172 a 176, confirmado que foi pelo depoimento da testemunha G, pelo que na ausência de outra prova capaz de afastar a credibilidade a conferir a tais documentos, demos como provada a factualidade do ponto para dar como provada a factualidade dos pontos 10) e 16).

Atendemos, de igual modo, ao teor dos documentos de folhas 26 e 178 para dar como provada a factualidade descrita nos pontos 18), 19) e 20) do elenco dos factos provados.

A factualidade dos pontos 11) a 15) resultou provada em face dos depoimentos credíveis testemunhas V e G, pessoas próximas à demandante e, deste modo, com conhecimento de tal factualidade, conjugados com o próprio depoimento da demandante e bem assim com as regras da experiência comum, tendo presente as lesões apresentadas pela mesma, as intervenções cirúrgicas a que foi submetida e bem assim a factualidade ocorrida.

De mencionar que não valoramos os depoimentos das testemunhas D e Maria MC, porque prestaram depoimentos que deixaram transparecer exagero e até mesmo contradições com o depoimento da própria ofendida, pelo que não denotaram isenção.

Atendemos ao teor de folhas 218 a 224, referente à proposta de seguro de responsabilidade civil, 2.ª via da apólice e condições especiais, conjugado com o depoimento da testemunha J, mediador de seguro, para dar como provada a factualidade referente ao contrato de seguro. Na verdade, esta testemunha, apesar de ter prestado um depoimento titubeante, demonstrando falhas de memória (compreensíveis considerando o tempo entretanto decorrido desde a data do início do contrato), admitiu que mediou o contrato de seguro em causa entre o arguido e a A… e referiu, de forma peremptória, que o arguido apenas assinou a proposta de folhas 218 a 220. Mais referiu que pensa que as cláusulas gerais do contrato foram enviadas posteriormente pelo correio, juntamente com o primeiro recibo, procedimento habitual na altura. Referiu, ainda, que deu conhecimento ao arguido das coberturas e exclusões principais do contrato de responsabilidade civil em causa, nomeadamente que o cão não podia andar na via pública sem o açaimo e sem trela e os cuidados que devia ter. Ora, nesta parte, o seu depoimento não mereceu a nossa credibilidade, pois que não foi um depoimento consolidado e uniforme, deixando transparecer uma preocupação em relatar ao tribunal que comunicou a exclusão de responsabilidade em discussão nos presentes autos, não tendo feito qualquer referência às demais exclusões do contrato, tendo até denotado que, nem sequer as conhecia em concreto, pelo que perante tal depoimento e não ausência de outros elementos de prova quanto ao concreto modo de celebração do contrato de seguro em causa, o tribunal não ficou convencido que esta testemunha comunicou na íntegra e de modo adequado as cláusulas do contrato, por forma a que o arguido tivesse conhecimento completo e efectivo das mesmas. Ao que acresce que, nem sequer lhe foi apresentado, no momento da celebração do contrato, qualquer escrito no qual constassem tais cláusulas.

A testemunha AM confirmou a existência do contrato de seguro, titulado pela apólice junta aos autos.

(…)

No que concerne aos factos não provados, os mesmos resultaram da ausência de mobilização probatória capaz de convencer o tribunal da sua efectiva verificação ou ter-se provado factualidade diversa.

De mencionar que em relação à factualidade dos pontos 2) a 7) do elenco dos factos não provados, apesar de as testemunhas AU D e MC terem, em suma, feito referência a tal matéria, não valoramos tais depoimentos, tal como referido supra, por os mesmos não transparecerem isenção e por conseguinte não serem absolutamente credíveis.


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III – Fundamentação de Direito.

3.1. Como corolário do carácter disponível do direito ao recurso, é admissível a sua limitação a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, de forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas[1].

Situação comum e tipificada como tal a que resulta da consagração legal da autonomia da parte cível da sentença quando tramitada em conjunto[2] com a parte criminal[3].

Por outro lado, sabe-se, o âmbito do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação[4].

Tudo sem que se olvide do dever de conhecimento oficioso de determinadas questões, como sejam os vícios plasmados nas diversas alíneas do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ou das nulidades como tal taxadas no seu n.º 3[5].

In casu, tudo assim ponderado, e porque nenhuma destas últimas questões se vislumbra interceder, vendo-se as conclusões da recorrente, temos que a questão decidenda se reconduz a 1) ponderarmos se deve diminuir-se para montante menos elevado o quantitativo indemnizatório arbitrado a título de danos não patrimoniais, 2) bem como se deve ser alterada a data a partir da qual se contabilizarão os juros moratórios sobre ele incidentes, até seu integral pagamento à demandante.

Isto porquanto, e desde logo, sequer se mostra controvertida pela própria recorrente, ou, inclusive, legalmente questionável, como decorre da sentença recorrida, a constituição da recorrente seguradora na obrigação de ressarcir a lesada.

Parcas e breves considerações balizarão a concreta apreciação das questões suscitadas.

Com efeito:

2.2. De acordo com o estatuído pelo artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil [CC], «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.»

Gravidade que «há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em consideração as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos.

Por outro lado, a gravidade tem de ser apreciada em função da tutela do direito. O dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.»[6]

Ainda de relembrar, a propósito, o n.º 3, 1.ª parte, do apontado artigo 496.º, em cujos termos:

«O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º; (…).»

O quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser apurado, sempre, segundo critérios de equidade, «atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, etc.»[7].

Donde resulta que, no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista. É que, não obstante visar reparar, «de algum modo, mais do que indemnizar», também se não alheia da ideia de reprovar ou castigar, «no plano civilístico e com os meios do direito privado, a conduta do agente.»[8]

A dificuldade de «quantificar» os danos não patrimoniais não pode servir de entrave à fixação de uma indemnização que procura ser justa, correndo o risco, embora de ser algo aleatória, tanto mais que, neste campo, repete-se, assume particular relevância a vertente equidade.

Na verdade, aqui, mais do que nunca, encontramo-nos na incerteza inerente a um imprescindível juízo de equidade. Nos danos não patrimoniais, a «grandeza do dano» é insusceptível de medida exacta. Só pode ser alvo de «determinação indiciária fundada em critérios de normalidade», uma vez que o seu padrão é «constituído por algo de qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação»[9].

Mais do que o reconhecimento dos direitos aludidos, impera aqui, assim, a dificuldade no cálculo da indemnização a arbitrar, em concreto.

E, o apelo à equidade, só encontra justificação pela busca da solução justa no caso a decidir; a equidade estará, então, limitada sempre pelos imperativos de justiça real (a justiça adequada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal.

A mais recente Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem vindo a lembrar a necessidade de neste tipo de indemnizações serem abandonadas as indemnizações miserabilistas, devendo antes assumir um alcance significativo e não meramente simbólico[10].

2.3. Relativamente aos juros em causa regem os artigos 806.º e 805.º do Código Civil, cujo regime, quanto ao que agora nos importa, é o seguinte[11]:

Na obrigação pecuniária, a indemnização por mora, corresponde aos juros a contar da data da constituição em mora;

Quanto a esta, ou a obrigação provém de facto ilícito ou não provém;

Se provém, ou o crédito é líquido ou não é;

Se é líquido, a mora tem lugar desde a data dos factos geradores dos danos e começam a vencer-se juros;

Se não é, começam estes a vencer-se desde a liquidação (parte final do n.º 3, ao remeter para a parte inicial deste mesmo n.º 3) ou, não tendo esta tido lugar antes da citação, com esta.

Mas, quanto à fixação de indemnizações, pode dar-se o caso de os montantes encontrados já o terem sido, tendo em conta o valor da moeda ao tempo da decisão que os contém. É até o mais frequente, porquanto, não exige um retorno a valores anteriores que só complicaria uma fixação que já não é simples.

Então, se a actualização tiver tido lugar, há que atentar no Assento n.º 4/2002[12], agora com valor de Acórdão Uniformizador.

Na verdade, acaso se contassem juros, o titular do direito à indemnização beneficiaria duma duplicação relativamente ao tempo que mediou entre a citação e a sentença. Acumularia juros e actualização monetária o que é inaceitável[13].

2.4. Na posse destes considerando, revertamos ao caso concreto.

A recorrente rebela-se contra a parte da sentença recorrida que fixou o quantitativo devido pelos danos não patrimoniais sobrevindos à lesada por virtude da mordedura provocada pelo cão de que o arguido era dono[14].

Tal peça processual, após ponderar do regime legal convocável, precisou com critério os elementos a ponderar para tanto, quando escreveu:

“Assim, no caso em apreço, importa atender ao número de dias de doença sofridos pela demandante (quatrocentos e quarenta), o facto de ter recebido tratamento médico e ter sido submetida a intervenções cirúrgicas. Importa, ainda, considerar a parte do corpo em que foi lesionada.

De igual modo, importa ter presente as cicatrizes que sofreu, sendo uma delas curvilínea de concavidade lateral, que apresenta retracção da metade interna do bordo palpebral superior esquerdo, tumoração mole depressível, na linha média da pálpebra superior esquerda.

Ao que acresce que a demandante sofreu dores, ainda tem na memória o sucedido, receou pela sua integridade física e sofreu desgosto e abalo moral.

Importa, ainda, considerar que a demandante conhecia o canídeo em causa.

Por outro lado, e no que concerne ao grau de culpa do agente, temos que considerar que a culpa foi negligente.

Consequentemente, atendendo ao tipo, extensão, gravidade e consequência das lesões sofridas, aos incómodos daí resultantes, às intervenções cirúrgicas e aos tratamentos efectuados, às dores sentidas, tudo ponderado, sem esquecer todas as demais circunstâncias do caso, afigura-se justa e equitativa atribuir à demandante a quantia de (…), a título de compensação pelos danos não patrimoniais.”

Porém, com a recorrente já todavia pensamos que o quantum encontrado se mostra ligeiramente inflacionado.

Na verdade, e pese embora não nos devamos ater a montantes miserabilistas, igualmente a relatividade dos casos da vida impõe algum equilíbrio entre as prestações a fixar.

Dizemo-lo em linha com a recorrente quando apela aos valores comummente fixados, por exemplo, para indemnização da perda do direito à vida.

Neste circunspecto, e sem menosprezo dos danos sofridos pela ofendida, com o subjectivismo que também a operação reclamada sempre manifestamente comporta, afigura-se-nos mais conforme aos critérios norteadores do cálculo em causa, fixar o montante devido parta reparação dos danos não patrimoniais em € 15.000,00.

2.5. Assim como procede a primeira das pretensões da recorrente, igualmente colherá a segunda que colocou para nossa ponderação.

Na verdade, procedendo-se ao cálculo actualizado da indemnização a atribuir à demandante, para salvaguarda de um seu injusto locupletamento à custa da demandada, será por referência à sentença de 1.ª instância que se contabilizarão, pelas razões acima explicitadas, os juros moratórios, à taxa legal, por esta devidos àquela.


*

IV – Decisão.

São razões pelas quais, e na procedência do recurso interposto, se decide:

- Fixar em € 15.000,00 (quinze mil euros) o montante indemnizatório devido pela demandada à demandante, para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pela última em consequência dos factos dos autos.

- Se determina que sobre tal quantia incidam juros de mora de responsabilidade da demandada, contabilizados à taxa legal, desde a data da sentença da 1.ª instância, e até seu integral pagamento à demandante.

Sem custas, atenta a não dedução de oposição pela recorrida.

Notifique.


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BRÍZIDA MARTINS (RELATOR)
ORLANDO GONÇALVES


[1] Ut artigo 403.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
[2] Por força do princípio da adesão consagrado no mencionado artigo 71.º do mesmo diploma.
[3] Cfr., ainda, mesmo artigo 403.º, mas seu n.º 2, alínea b).
[4] Vd., ainda, artigo 412.º, n.º 1, do citado diploma adjectivo penal.
[5] Ac. n.º 7/95, do STJ, em interpretação obrigatória.

[6] Cfr., Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., pág. 606.
[7] A. Varela, ob. cit., págs. 607/8.
[8] Ibidem.
[9] Cfr., Leite Campos, in A indemnização do Dano da Morte, pág. 12.

[10] Exemplificativamente, cfr. o Acórdão do STJ, de 25 de Março de 2004, in CJ, Acs. STJ, Ano XII, Tomo I, págs. 140/5.
[11] Cfr., v.g., o Acórdão do mesmo Tribunal, de 9 de Setembro de 2009, in processo n.º 2.572/07.0 TBTVD.L1, acessível no sítio www.dgsi.pt.
[12] Publicado no Diário da República, I.ª Série, de 27.6.2002.
[13] Cfr., neste sentido, no referido sítio, os Ac.s do STJ de 22.10.2009, in proc. n.º 3138/06.7 TBMTS.P1.S1; de 17.12.2009, in proc. n.º 197/2002/G1.S1; de 7.1.2010, in proc. n.º 5095/04.5 TBVNG. P1.S1, e, de 20.1.2010, in proc. n.º 380/1991.P2.S1.
[14] Como nota, apenas, precisa-se a desconsideração das três primeiras conclusões da seguradora, pois que pretendendo impugnar parte do acervo fáctico acolhido o fez por forma processual manifestamente arredia ao regime legal aplicável.