Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
568/03.0TAACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
EXTINÇÃO
SUSPENSÃO DA PENA
Data do Acordão: 10/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 214º,4 CPP
Sumário: 1. O espírito do legislador, evidenciado pela estrutura gramatical do nº 4 do artº 214º do CPP, sistematização e teleologia das penas (principais e de substituição) previstas no nosso sistema jurídico-penal (cfr. artigos 41.º e ss.), aponta inequivocamente no sentido de a condenação em prisão se reportar a pena de prisão efectiva aplicada por sentença transitada em julgado.
2. Sendo a suspensão da execução da pena uma pena autónoma, não deixaria o legislador, se a pretendesse contemplar, de se lhe referir no n.º 4 do artigo 214.º do Código de Processo Penal;
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. No processo comum (tribunal colectivo) n.º 568/03.0TAACB, a correr termos no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, a arguida M..., devidamente identificada nos autos, interpôs recurso do despacho judicial de fls. 213/214 (correspondentes a fls. 4284/4285 do processo principal), que lhe indeferiu a requerida devolução da caução por si prestada, através de depósito, no valor de € 10.000,00.
*
2. Concluiu a motivação do recurso nos seguintes termos (transcrição):
1.ª – A arguida foi sujeita à medida de coacção de obrigação de prestar uma caução no valor de 10.000 Euros, por depósito.
2.ª – Por decisão, já transitada em julgado, a arguida foi então condenada numa pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
3.ª – Não lhe foi devolvida a quantia caucionada.
4.ª – O artigo 214.º, n.º 4, foi inserido no Código de Processo Penal na revisão de 1998.
5.ª – A sua introdução deveu-se a um aperfeiçoamento do regime já estabelecido para a extinção das medidas de coacção.
6.ª – Concebeu então o legislador uma solução em que visa o indivíduo não se eximir da acção da justiça nos casos de execução de penas de prisão efectivas.
7.ª – A interpretação histórica do artigo leva-nos a concluir que estamos perante uma excepção ao n.º 1 do artigo 214.º que contempla uma situação muito específica.
8.ª – O legislador criou uma excepção como o n.º 4 porque concebeu no seu pensamento uma situação de fragilidade na aplicação do n.º 1 do artigo.
9.ª – Fazer uma aplicação do n.º 4 a uma situação de suspensão de pena é ir ainda mais longe do que o legislador foi e quis ir.
10.ª – Fora as excepções previstas, as medidas de coacção extinguem-se, no caso concreto, com o trânsito em julgado, segundo o artigo 214.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.
11.ª – Ademais, a suspensão da execução de uma pena tem regime próprio estabelecido no artigo 56.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
12.ª – Institutos estes consagrados de forma diferente para uma aplicação distinta.
13.ª – Assim, já a sentença transitou em julgado e a situação em concreto não é alvo de excepções legais.
14.ª – Encontra-se então já extinta a medida de coacção, devendo o valor caucionado ser restituído.
Normas violadas:
Artigo 214.º do Código de Processo Penal.
Nestes termos e demais de direito, deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência, revogar-se o douto despacho recorrido e substituir-se por outro que ordene a restituição dos 10.000,00€ caucionados como medida de coacção, dada a sua extinção.
*
3. Em resposta, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso.
*
 4. Nesta Relação, o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto manifestou-se em igual sentido.
*
5. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, o recorrente exerceu o seu direito de resposta, renovando o teor da motivação do recurso.
*
6. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação:

1. Delimitação do objecto do recurso e poderes cognitivos do Tribunal ad quem:

Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

No caso sub-judice, a questão submetida à consideração deste tribunal consiste em saber se o despacho recorrido, ao denegar a solicitada devolução do valor caucionado à recorrente, violou o disposto no artigo 214.º do Código de Processo Penal.


*

2. Elementos relevantes à decisão:

a) No âmbito dos presentes autos, em fase de inquérito, por despacho judicial de 27 de Janeiro de 2004, foi imposta à arguida/recorrente M..., para além de outras medidas de coacção, a obrigação de prestação de caução, no valor de € 10.000, através de depósito;

b) Por acórdão de 18-07-08, do Círculo Judicial de Alcobaça, confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado em 01-07-2009, a arguida/recorrente M...foi condenada: (i) pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal (redacção vigente à data dos factos) e presentemente pelo n.º 1 do artigo 169.º do mesmo diploma (redacção decorrente da Lei n.º 59/2007, de 04/09), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; (ii) pela prática, em co-autoria, de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 2.º, n.º 1, al. a), do DL n.º 325/95, de 2/12, na redacção resultante da Lei n.º 10/2002, de 11-02 (redacção vigente à data dos factos e mais favorável), na pena de 3 anos de prisão; (iii) na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, cuja execução se declarou suspensa, pelo período correspondente à referida pena (4 anos), sendo essa suspensão acompanhada de regime de prova;

c) Em 17-07-2009, a arguida/recorrente requereu ao tribunal de 1.ª instância a devolução da caução prestada, no referido valor de 10.000 €;

d) Proferiu então o tribunal a quo o despacho recorrido, do seguinte teor:

«Fls. 4261: A arguida M... vem requerer a devolução da caução por si prestada.

O Ministério Público pronunciou-se no sentido de se manter a caução prestada nos autos.

Cumpre apreciar e decidir.

Por acórdão proferido nestes autos e transitado em julgado, foi a arguida M... condenada na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, sujeita a regime de prova.

Por despacho proferido nos autos foi aplicada à arguida a medida de coacção de obrigação de prestar caução no valor de € 10.000,00, por meio de depósito.

Nos termos do disposto no artigo 214.º, nºs 1 e 4, do Código de Processo Penal:

1. As medidas de coacção extinguem-se de imediato:

a) Com o arquivamento do inquérito;

b) Com a prolação do despacho de não pronúncia;

c) Com a prolação do despacho que rejeitar a acusação, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º;

d) Com a sentença absolutória, mesmo que dela tenha sido interposto recurso; ou

e) Com o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Por sua vez, dispõe o n.º 4 que se a medida de coacção for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena.

Na verdade, daqui decorre que, tratando-se da medida de coacção de caução, e tendo sido aplicada ao arguido pena de prisão, aquela não se extingue com o trânsito em julgado da sentença condenatória, mas apenas com o início da execução da pena de prisão.

No caso dos autos é certo que foi aplicada à arguida uma pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de quatro anos, período esse que ainda não decorreu.

Isto quer dizer que, e enquanto não decorrer o período de suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto no artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, que prevê que a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, a suspensão da execução da pena pode ser revogada, o que implica que a arguida pode vir a cumprir a pena de prisão que lhe foi aplicada.

Assim, e enquanto a pena de prisão não for declarada extinta, pelo decurso do período da suspensão da sua execução, pode sempre verificar-se o cumprimento da pena de prisão.

Como a caução subsiste até ao início do cumprimento da pena de prisão, e sendo possível ainda ocorrer a revogação da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos sobreditos, e a arguida ainda vir a cumprir a pena de prisão, entende-se ser de manter a medida de coacção de caução, pois o seu propósito é o de permitir a declaração de quebra da caução se a arguida se furtar ao cumprimento da pena.

Pelo exposto, importa indeferir o requerido, mantendo-se a medida de coacção aplicada nos autos (artigo 214.º, n.º 4, do CPP)».

*
3. Do mérito do recurso:
Em causa está a interpretação normativa da disposição consagrada no n.º 4 do artigo 214.º do Código de Processo Penal, a qual, como já referenciado no despacho recorrido, supra transcrito, é do seguinte teor: «Se a medida de coacção for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena».
Na exegese vertida no despacho recorrido, a previsão da citada norma é extensível à suspensão da execução da pena de prisão, enquanto na visão assumida no recurso o artigo apenas é aplicável às penas de prisão efectivas.
Afigura-se-nos que o sentido e alcance da norma confere razão ao recorrente.
É o que procuraremos demonstrar de seguida.
Como é sabido, a caução, prevista no artigo 197.º do Código de Processo Penal, é uma medida de coacção que consiste na garantia patrimonial imposta ao arguido para prevenir o cumprimento dos seus deveres processuais, em termos que do incumprimento desses deveres resulta a quebra da caução, revertendo o seu valor para o Estado.
A caução-crime pode revestir duas modalidades: a caução enquanto medida de coacção, com a finalidade acima referida, e a caução económica, prevista no artigo 227.º do CPP, destinada a acautelar o pagamento, sucessivo, das multas, taxa de justiça, custas do processo e as indemnizações por perdas e danos em que o arguido/demandado possa vir a ser condenado.
No caso evidenciado nos autos, está em causa a primeira das sobreditas modalidades de caução.
Fazendo uma resenha histórica das situações determinantes da extinção da caução, dispunha o corpo do arguido 274.º Código de Processo de 1929, na redacção introduzida pelo DL n.º 185/72, de 31-05, na parte ora tida por relevante, que essa medida de coacção subsistia enquanto não transitasse em julgado o despacho que mandasse arquivar o processo ou a sentença absolutória, ou enquanto não começasse a executar-se a sentença condenatória.
Em anotação ao artigo, sob a epígrafe “subsistência ou insubsistência da caução prestado por réu condenado em pena suspensa”, anotava Maia Gonçalves[1]: «Entende-se dominantemente que a caução carcerária subsiste até ao momento em que transita a sentença que condena o réu em pena suspensa.
Se a suspensão ficar condicionada ao pagamento de indemnização em determinado prazo, deve entender-se que a caução subsiste até ao pagamento da indemnização, ou até ao início do cumprimento da pena, se a indemnização não for paga».
Esse entendimento era alicerçado em diversa corrente doutrinária e jurisprudencial da época, citada na referenciada obra.
O novo Código de Processo Penal, instituído pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17-02, procedeu a profundas alterações no quadro de extinção das medidas de coacção, como se colhe do disposto no artigo 214.º, consagrando que a cessação dessas medidas, para além do caso referenciado no n.º 2 do preceito, se verificava nos seguintes casos:
a) Com o arquivamento do inquérito, se não fosse requerida abertura da instrução;
b) Com o trânsito em julgado do despacho de não pronúncia;
c) Com o trânsito em julgado do despacho que rejeitasse a acusação, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a);
d) Com a sentença absolutória, mesma que dela tivesse sido interposto recurso; ou
e) Com o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Com a revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 59/98, de 25-05, foi aditado ao artigo 214.º um novo número (4), com a redacção já acima citada, que de novo se reproduz: «Se a medida de coacção for a de caução e o arguido vier a ser condenado em prisão, aquela só se extingue com o início da execução da pena», o qual não sofreu alteração com a reforma da Lei 48/2007, de 29-08.
Como esclarece Paulo Pinto de Albuquerque[2], «a lei n.º 59/98, de 25.08, consagrou uma anomalia: a caução subsiste mesmo depois do trânsito em julgado da sentença condenatória em pena de prisão, até ao início da execução da pena. O propósito é o de permitir a declaração de quebra da caução se o arguido se furtar ao cumprimento da pena, tendo-se entendido em 1998 que a declaração de contumácia do arguido era insuficiente».
*
 Passando ao núcleo essencial da questão, o espírito do legislador, evidenciado pela estrutura gramatical do preceito em análise, sistematização e teleologia das penas (principais e de substituição) previstas no nosso sistema jurídico-penal (cfr. artigos 41.º e ss.), aponta inequivocamente no sentido de a condenação em prisão prevista no n.º 4 do artigo 214.º do CPP se reportar a pena de prisão efectiva aplicada por sentença transitada em julgado.
A suspensão da execução da prisão (pena que ora importa considerar, por ter sido a aplicada no âmbito do processo) é uma “verdadeira pena”, dotada, como tal, de um conteúdo autónomo de censura, medido à luz dos critérios gerais de determinação da pena – que não mero «instituto especial de execução da pena de prisão» ou, ainda menos, «medida de pura terapêutica social». E, deste ponto de vista, não pode deixar de dar-se razão à concepção vazada no CP (…), segundo a qual substituir a execução de uma pena de prisão traduz-se sempre em aplicar, na vez desta, uma outra pena[3].
Referindo-se ainda à suspensão da execução da prisão no nosso ordenamento jurídico-penal, na vigência da versão original do Código Penal de 1982, acentua  Figueiredo Dias que a suspensão da execução da pena «não representa um simples incidente, ou mesmo só uma modificação da execução da pena, mas uma pena áutonoma e portanto, na sua acepção mais estrita e exigente, uma pena de substituição»[4].
Do ponto vista dogmático, nenhuma alteração se registou com as revisões sucessivamente introduzidas ao Código Penal, continuando a execução da pena de prisão a ser definida como uma verdadeira pena, aplicada na sentença condenatória, substituindo a pena de prisão, enquanto pena principal, concretamente determinada.
Seguindo de muito perto o que ficou escrito no Acórdão da Relação de Évora de 10-07-2007[5], podemos concluir pela qualificação da pena suspensão como verdadeira pena, atendendo, em síntese, às seguintes razões:
1. A pena de suspensão da execução da pena de prisão ou pena suspensa é uma pena de substituição do ponto de vista dogmático, pois é necessariamente aplicada na sentença condenatória em substituição da execução da pena de prisão concretamente determinada, de acordo com critérios gerais estabelecidos na parte geral do C. Penal (vide artigos 50.º e ss.);
2. A pena suspensa tem o seu próprio campo de aplicação, determinado na lei, e um conteúdo político-criminal próprio, ainda que complexo;
3. A pena suspensa dispõe de conteúdo e regime individualizados, os quais representam razoável complexidade e diversidade, podendo assumir várias modalidades (suspensão simples, suspensão sujeita a condições, suspensão com regime de prova – artigos 50.º a 53.º do CP);
4. Respeitando à questão da determinação da sanção (cfr. arts. 369.º e 371.º, do CPP), como as demais penas de substituição, a aplicação da pena suspensa implica a sua escolha e a determinação concreta, quer do período de suspensão, quer da modalidade adequada ao caso concreto, decisão que deve ser fundamentada – cfr. arts. 50.º, n.º 4, do CP e 375.º, n.º 1, do CPP;
5. O capítulo II do título III do Livro X do CPP dedicado às Execuções, regula a execução da pena suspensa em diversos aspectos o que, para além do mais, sempre representaria um argumento de ordem literal a favor da consideração da pena suspensa como pena autónoma.
Em síntese conclusiva:
- Sendo a suspensão da execução da pena uma pena autónoma, não deixaria o legislador, se a pretendesse contemplar, nos termos e para os efeitos em debate, de se lhe referir no n.º 4 do artigo 214.º do Código de Processo Penal;
- Porque a pena que in casu prevalece, decorrente da condenação, é a suspensão da execução da pena de prisão, e não pena de prisão (efectiva), não subsiste impedimento legal, mormente o invocado no despacho recorrido, que obste à entrega à condenada M... da caução por esta prestada no âmbito dos presentes autos.
Procede, pelo exposto, o recurso.
*
III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, determinando que o mesmo seja substituído por outro que determine a entrega à arguida/requerente do valor (€ 10.000) da caução prestada.  
Sem tributação.
*
[Processado e revisto pelo relator, o primeiro signatário (artigo 94.º, n.º 2, do CPP)]
Coimbra, 27 de Outubro de 2010

…………………………………………….
(Alberto Mira)

…………………………………………….
(Elisa Sales)


  


[1] In Código de Processo Penal, Anotado e Comentado, 4.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra -1980, pág. 372.
[2] In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pág. 568.
[3] Comentário do Professor Figueiredo Dias ao artigo 47.º do ProjPG de 1963 do CP, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 90. 
[4] Idem, págs. 329/339.
[5] Proc. n.º 912/2007; Relator: Sr. Desembargador João Latas.