Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1255/11.0TBVNO-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MARINHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Data do Acordão: 01/31/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: OURÉM 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 235, 236, 239 CIRE
Sumário: 1.- No âmbito da exclusão constante do ponto i) da al. b) do n.º 3 do art. 239.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo.

2. - O montante a definir tem natureza aberta, cabendo ao julgador fixá-lo.

3. - O legislador considerou dever impor um «tecto» a este montante, de dimensão claramente baixa e apontando para uma necessária compressão do estilo de vida e redução de dispêndios.

4. - Tal limite máximo pode ser ultrapassado pelo juiz mas sempre sob a obrigação de fundamentar essa opção.

5. O critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos).

6. Nessa fixação, o juiz atenderá não só às necessidades básicas do devedor mas também do seu agregado familiar.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
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I. RELATÓRIO                  
M (…),  e E (…), ambos com os elementos identificativos constantes dos autos, vieram requerer a declaração da sua insolvência tendo, concomitantemente, apresentado pedido de exoneração do passivo restante.
Alegaram, para este último efeito, que:
«88. Os Requerentes pretendem beneficiar da exoneração do passivo restante nos termos do artigo 254.° e da ai. a) do n.º 2 do art. 23.° do ClRE,
89. Pois não beneficiaram da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência nem foram condenados por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.° a 229.° do Código - Cfr. Certidões de Registo Criminal dos requerentes que se junta como doc. 10 e 11.
90. Sempre tiveram um comportamento pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé para com os seus credores.
91. Sempre tiveram perspectivas sérias de melhorias da sua situação económica tal como descreve nos artigos precedentes.
92. Até à presente data, sempre cumpriram, com rigor, a generalidade das suas obrigações.
93. Data em que deixaram de cumprir com alguns dos credores pois, quanto às demais obrigações, encontram-se cumpridas.
94. E só não o conseguem continuar a cumprir na generalidade pelos motivos supra referidos.
95. Não se abstiveram de se apresentarem à insolvência nos seis meses seguintes à verificação de estarem impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações.
96. Não praticaram atos que tenham contribuído ou agravado a sua situação de insolvência ou prejuízo para os credores.
97. No entanto é crucial que os requerentes mantenham a sua estabilidade emocional e psicológica precisando de manter a continuidade da satisfação das necessidades básicas da sua vida, e desempenhar um papel ativo na sociedade e prover pelo seu bem-estar e futuro, pelo que requere que lhes seja concedida a exoneração dos  créditos sobre a insolvência.
98. Para o efeito, e no âmbito do mesmo, vão precisar de se sustentar minimamente, requerendo que sejam considerados e deduzidos ao rendimento disponível os seguintes montantes mensais que consideram mínimos para uma vida condigna:
DESPESAS
Renda da casa (valor médio de renda de uma casa modesta) - 350,00€; Despesas com eletricidade - 30,00€;
Despesas com água - 5,52€;
Despesas com gás - 25,00€;
Despesas com telefone, televisão e telemóveis – 160,00€;
Despesas com alimentação dos requerentes - 500,00€
Despesas com farmácia e consultas dos requerentes - 80,00€;
Despesas com vestuário e calçado dos Requerentes - 100,00€
Subsídio de alimentação englobado no seu ordenado - 105,00€
Despesas correntes de manutenção da casa habitação – 100,00€
Quota devida à Ordem dos farmacêuticos - 18,60€
TOTAL: 1.474,12 Euros
- Cfr. doc. 12 que se junta para os devidos e legais efeitos.
99. Encontram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a exoneração do passivo restante, não se verificando nenhuma das condições previstas no Artigo 238.° do ClRE, para que o pedido de exoneração seja indeferido liminarmente.
100. Nos termos do art. 236°, n" 3, os Requerentes declaram expressamente que preenchem todos os requisitos e obrigam-se a observar todas as condições de que a exoneração do passivo restante depende, nomeadamente, as previstas nos Artigos 237° a 239.° do ClRE.»
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente e declarou a insolvência dos Requerentes.
Na Assembleia de credores, o credor presente, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Leiria, C.R.L., votou desfavoravelmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Foi proferida decisão judicial relativa a tal pretensão, com o seguinte teor, na parte que interessa à presente impugnação judicial:
«Pelo exposto, profere-se despacho inicial de admissão do pedido de exoneração do passivo restante,
- determinando-se que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que os insolventes venham a auferir se considera cedido ao administrador judicial, desde já nomeado fiduciário, mais decidindo integrar o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham aos insolventes a qualquer título, com exclusão do valor dos rendimentos directamente auferidos pelos insolventes até ao montante de um salário mínimo nacional que em cada momento vigorar e por cada um dos insolventes;»

É desta decisão que vem o presente recurso interposto peles Requerente que, em sede de alegações, formularam as seguintes conclusões:
«a) Vêm o presente recurso interposto do Douto Despacho proferida nos autos supra referidos, que declarou nos termos do art." 239 n.º 3 do ClRE, excluído do rendimento disponível, o valor equivalente a um salário mínimo nacional para cada um dos Requerentes.
b) Os apelantes requereram a sua insolvência.
c) Tal como alegado e provado na petição inicial, o agregado familiar dos Insolventes é composto por 3 elementos (os próprios e um filho maior de idade).
d) Formularam, também, o pedido de exoneração do passivo restante.
e) No âmbito do processo em epígrafe, foi proferido despacho liminar de admissão do pedido de exoneração do passivo restante cfr doc n.º 1.
f) Ocorre que, a título de cessão de rendimento disponível entendeu o Tribunal a quo determinar o valor mensal para o agregado familiar de um salário mínimo nacional para cada um dos Insolventes (2 x 485,00 € na data de hoje).
g) o que, salvo o devido respeito, se afigura como um valor nitidamente diminuto tendo em consideração a sua situação o seu enquadramento familiar.
h) Ocorre que, decorrido o incidente de liquidação do activo e encerrado o processo terão os insolventes que arrendar uma habitação e suportar, obviamente, o valor de renda da mesma (atente-se para o facto do valor médio de uma casa em Ourém com dois quartos perfazer cerca de 350,00 € a 450,00 €/mês).
i) Ainda que os insolventes consigam arrendar uma casa por 400,00 € / mensais, se derem cumprimento à decisão do Tribunal a quo ficarão com cerca de 485,00 € + 85,00 € mês para suportar todas as suas despesas (luz, água, gás, alimentação, transportes, despesas de saúde e vestuário de um agregado composto por 3 elementos).
j) O que se afigura manifestamente diminuto, e que, desde logo, colocará em causa a garantia de uma vida condigna dos ora apelantes.
k) A figura da exoneração do passivo restante, apesar de controversa, é clara "Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao encerramento deste ... ".
I) Para isso, terão os insolventes que ceder, nos termos do art." 239 n.? 3 b) do ClRE todos os rendimentos que advenham a qualquer título com exclusão (i) - O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
m) Tal mecanismo (exoneração do passivo restante) foi criado não para que os credores vejam satisfeitos a totalidade dos seus créditos no período da cessão de rendimento disponível, mas sim para possibilitar às pessoas singulares (mediante o preenchimento de determinados requisitos que indicam que a sua insolvência é fortuita, sem culpa dos insolventes no seu sobre endividamento e correspondente falência) uma vida digna durante aquele período com um objectivo final de exoneração dos créditos não pagos nesses 60 meses.
n) Não se trata, portanto, de satisfação dos créditos mas sim da criação de um mecanismo de protecção das pessoas singulares que de facto viram a sua vida ser devastada (nomeadamente com a liquidação de todos os seus bens) e que não tiveram outra alternativa que não a sua apresentação à insolvência.
o) Considerando o valor determinado pelo Tribunal a quo (dois ordenados mínimos nacionais), a sua aplicação ao caso em concreto empurraria os Apelante para uma situação em tudo semelhante à que viveram na data anterior à sua apresentação de insolvência, ou seja, evidentes dificuldades de sobrevivência.
p) Na petição inicial, os Requerentes no artigo 98 indicaram e provaram como despesas mensais o total de 1.474,12 €, - cfr doc n.2.
q) Não veio nenhum credor impugnar o montante indicado pelos devedores na petição inicial.
r) Nem tão pouco os documentos juntos pelos Requerentes.
s) Pelo que, só por manifesto erro na apreciação da matéria de facto, nomeadamente com a prova documental junta pelos Apelantes, se poderá fixar aquela quantia excluída do rendimento disponível.
t) A figura jurídica da exoneração do passivo restante justifica, efectivamente, um maior rigor e controlo em relação aos gastos dos insolventes contudo quando é aplicada deve ter que ser calculada em relação a cada situação em concreto.
u) A não consideração desses factos em concreto subverteria toda a instituição da exoneração do passivo restante que, quer-se, justa e equitativa.
v) Atendendo aos documentos juntos ao processo quando requeridos pelo Tribunal, deveria o tribunal a quo ter considerado os valores que neles constavam, pois uma vez mais, diga-se, não foram impugnados pelos credores.
w) E que não respeita o espírito da lei, nomeadamente o art.º 239 do CIRE quando refere no n." 3 b) i) "O sustento minimamente do devedor ... ".»
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Concluíram dever ser dado provimento à apelação e parcialmente revogado o despacho criticado, «substituindo-se o mesmo por outro que fixe o montante a ceder a titulo de cessão de rendimento disponível em tudo aquilo que exceda os 1.474,12 € mensais».
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É a seguinte a questão a avaliar:
· Face às despesas indicadas pelos Recorrentes no requerimento inicial e dadas como demonstradas, deve ser fixada como excluída do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, nos termos do n.º 2 do art. 239.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas – CIRE –, a quantia de 1.474,12 €?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 713.º do Código de Processo Civil, remete-se, aqui, no que respeita à matéria de facto, para os termos da referida sentença do Tribunal de 1.ª instância.
Fundamentação de Direito
Na fundamentação, não foi incluída qualquer explicação incidente sobre as razões da opção pelos montantes fixados.
Esta omissão do Tribunal «a quo» não permite o controlo da sua motivação.
Cumpre, assim, com autonomia da decisão recorrida, tecer as considerações que se passam a enunciar.
No domínio que interessa a estes autos, estatui o CIRE (nos n.ºs 2 e 3 do art. 239.º) que:
«2 - O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.
3  - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
ii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.»

É esta a norma a interpretar.
Insere-se a mesma num novo contexto normativo, assim enunciado no n.º 45 do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março:
“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre  nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.”
Quis-se, neste âmbito, em coerência com o ideário humanista, de tutela dos direitos individuais e por referência à culturalmente enraizada noção cristã de «redenção», fazer algo de semelhante ao que se vem tentando realizar no domínio penal: preparar para a reinserção, criar condições para uma nova oportunidade, para um recomeço ou, na linha do jargão anglo-saxónico comummente aceite, até pelo legislador, permitir um «começo limpo» ou «fresco», isto é, um verdadeiro reinício «em branco».
Claro está que, como o diploma em apreço consagrou e se deve sublinhar, «fresh start» nada tem a ver com «fat start», ou seja, o recomeço deverá ocorrer alijadas que sejam as «gorduras» económicas, os gastos desnecessários, o supérfluo, o consumo que está para além da manutenção de padrões básicos de vida.
É assim, também, porque o devedor relapso e insolvente não pode pretender que sejam os credores os únicos a «sofrer» com a sua conduta pouco rigorosa na gestão dos cabedais próprios ou os principais lesados. Aliás, se sacrifícios houver que pedir, eles deverão estar do lado dos insolventes e não dos credores, tendencialmente alheios às condições geradoras da insolvência que, como sabemos, são de vária etiologia, mas se encontram, normalmente, relacionadas com as acções e omissões daquele que deve.
Com estas noções sustentando a criação normativa, o CIRE viabilizou, pois, no seu artigo 235.º, a possibilidade de o insolvente pessoa singular ser exonerado do passivo remanescente. Fê-lo enunciando o seguinte princípio geral:
«Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo».
Para que esta oportunidade e verdadeira benesse seja concedida, necessário se torna, porém, que se concretizem os requisitos e condições enunciados nos art.s 237.º e 238.º do encadeado normativo sob referência.
Resulta da norma invocada em primeiro lugar o mecanismo central de concretização do benefício.
Segundo ela, nos cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, «id est», no designado «período da cessão», o rendimento disponível ou líquido do devedor é cedido a um cidadão inscrito na lista oficial de administradores da insolvência, denominado, para os efeitos do CIRE, de «fiduciário», que garanta a adequada gestão patrimonial e atribuição do devido destino às quantias apuradas.
Na economia do preceito, são «rendimento disponível» todos os proventos que advenham ao devedor, com exclusão, no que nos interessa no seio desta impugnação judicial, do «que seja razoavelmente necessário para» o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», «não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional».
Extrai-se daqui que:
a) Não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo;
b) O montante a definir tem natureza aberta, cabendo ao julgador fixá-lo;
c) O legislador considerou dever impor um «tecto» a este montante, de dimensão claramente baixa e apontando para uma necessária compressão do estilo de vida e redução de dispêndios;
d) Tal limite máximo pode ser ultrapassado pelo juiz mas sempre sob a obrigação de fundamentar essa opção;
e) O critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos);
f) Nessa fixação, o juiz atenderá não só às necessidades básicas do devedor mas também do seu agregado familiar.
Assentes estas noções orientadoras importa, também, apontar alguns conceitos relevantes emergentes da jurisprudência nacional.
Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.05.2010 – processo n.º 469/09.8T2AVR-C.C1, in http://www.dgsi.pt – patenteou-se que:
«A exoneração do passivo restante corresponde, pois, à concessão de benefício aos insolventes, pessoas singulares, traduzido num perdão de dívidas, exonerando-os dos seus débitos com a perda, para os credores, dos seus correspectivos créditos.
Pelo que devem ser balanceados os interesses destes credores, que vêm perder parte dos seus créditos, com o benefício que o devedor vai obter, salvaguardado um valor equilibrado para o devedor ter um sustento minimamente digno.»   
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.11.2011, ibidem, processo n.º 1311/11.5TBPDL-B.L1-1, patenteava-se que:
«i)  O total de 3 salários mínimos referido no art. 239º, n.º3, al.b) i), constitui, salvo decisão devidamente fundamentada, o limite máximo a excluir dos rendimentos auferidos pelo devedor e que este deve entregar ao fiduciário;
ii)   O montante a excluir, nos termos referido supra deve ser o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e respectivo agregado familiar, cabendo ao juiz a tarefa de, caso a caso e atentas as circunstâncias específicas de cada devedor, concretizar este limite.»
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto – Apelação nº  1292/10.2TJPRT-D.P1 – 2ª Sec., datado de 10.05.2011, publicado no mesmo local – afirmava-se que:
«I - A exoneração do passivo restante não pode ser vista como a possibilidade de o insolvente se libertar, quase automaticamente, da responsabilidade de satisfazer as obrigações para com os seus credores durante o período de cessão
II - O maior rigor na execução do seu orçamento familiar, sem quebra do que se considera o sustento minimamente digno do seu agregado, e a afectação do rendimento disponível resultante dessa execução, por muito pouco que seja, para a satisfação das obrigações para com os credores, constituem as condições para que, no termo desse período de cinco anos, o insolvente se veja completamente libertado das dívidas ainda pendentes de pagamento.»
É fundamental esta menção ao maior rigor na execução orçamental – aliás a exemplo do que ocorre com os Países em tempos de crises e riscos de impossibilidade de suportar o crescimento da dívida soberana. Ao contrário do que parece subjazer à impugnação, o processo de insolvência não serve para melhorar a vida dos devedores; apenas para lhes dar uma nova oportunidade.
Que dizer, face a estes elementos, do que emerge dos autos?
Bom, em primeiro lugar, que os Recorrentes, não podem, de forma alguma, esperar obter, através do presente recurso, um padrão de vida semelhante ao que tinham anteriormente nem que este Tribunal lhes atribua um valor correspondente aos seus dispêndios em tempos de normalidade, como se os sacrifícios se destinassem aos seus credores e o «fresh start» correspondesse a exercício de um direito a uma vida sem sobressaltos apesar de não terem honrado os seus compromissos. Está, antes, em causa a mera manutenção das suas bases de subsistência que preencham o seu direito à vida e à dignidade enquanto seres humanos. Não basta, pois, para manterem um padrão semelhante ao que tinham anteriormente, subscreverem em conjunto uma lista de despesas, como fizeram com o documento que juntaram ao seu requerimento inicial sob o n.º 12.
O seu agregado familiar integra um filho maior que não se demonstrou que não possa contribuir para o custeio das despesas domésticas.
Os dispêndios constantes de tal requerimento não são todos atendíveis à luz do apontado critério; não o são o de 500 euros com alimentação já daí se deverá excluir a quantia de 105 euros auferida a título de subsídio de alimentação. Não o é, também, o referente à manutenção da habitação e não é atribuível valor tão elevado relativo a telefone televisão e telemóvel, face aos custos de mercado, devendo tal quantia global ser reduzida a não mais de 90 euros.
Não está demonstrada a necessidade, no presente momento, do pagamento de uma renda de casa, sendo que tal quantia só deverá ser atribuída, mediante revisão do quantitativo fixado, quando os Recorrentes demonstrarem ter arrendado uma habitação e tornarem patente o respectivo custo. A sua atribuição imediata constituiria injusto locupletamento, num momento em que apenas calculam um eventual custo futuro.
Deverão, ainda, ser reduzidas a metade as despesas com calçado e vestuário face ao carácter de mero custeio da sobrevivência do montante em apreço e à durabilidade destes bens.
Estes valores, somados, apontam para um montante inferior ao fixado pelo Tribunal (485 Euros a cada Requerente), ou seja 780,52 Euros para ambos, pelo que não peca por escassez a atribuição do valor correspondente a um salário mínimo nacional a cada  devedor, antes lhes dá margem para fazer face a alguma despesa imprevista, tudo sem prejuízo de se vir a atender à eventual vinculação futura a um contrato de arrendamento cuja celebração e conteúdo patentearão com o necessário rigor.
Nada há, pois, a alterar na decisão criticada.
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Sumário:
No âmbito da exclusão constante do ponto i) da al. b) do n.º 3 do art. 239.º do  Código da Insolvência e Recuperação de Empresas:
a) Não existe qualquer correspondência directa entre o valor a retirar do rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e o montante global das despesas por aquele indicadas – a não ser assim, o legislador diria que o valor a fixar deveria corresponder ao montante global das despesas apresentadas e não fixaria um valor máximo;
b) O montante a definir tem natureza aberta, cabendo ao julgador fixá-lo;
c) O legislador considerou dever impor um «tecto» a este montante, de dimensão claramente baixa e apontando para uma necessária compressão do estilo de vida e redução de dispêndios;
d) Tal limite máximo pode ser ultrapassado pelo juiz mas sempre sob a obrigação de fundamentar essa opção;
e) O critério a usar pelo julgador é o da dignidade da pessoa humana o que, numa abordagem liminar ou de enquadramento, se pode associar à dimensão dos gastos necessários à subsistência e custeio de necessidades primárias (e não assente em referências grupais ou padrões de consumo próprios da classe social antes integrada, nível de vida correspondente a uma específica formação profissional ou actividade ou hábitos de vida pretéritos);
f) Nessa fixação, o juiz atenderá não só às necessidades básicas do devedor mas também do seu agregado familiar.
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III. DECISÃO
Pelo exposto julgamos a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmamos a decisão posta em crise.
Custas pelos Apelantes.
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Carlos Marinho ( Relator )
Alberto Ruço
Judite Pires