Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
909/09.6TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CALVÁRIO ANTUNES
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
PARTICIPAÇÃO DO ACIDENTE
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO CRIMINAL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 256.º, N.º 1, AL. D) CP
Sumário: O cidadão que, após um acidente de trânsito, informa o militar da Guarda Nacional Republicana, que era ele quem conduzia o veículo, no momento do embate, fazendo-o constar da participação do acidente, quando, na verdade, o condutor era outra pessoa não habilitada a conduzir, não comete o crime de falsificação de documento.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:
1. O Ministério Público deduziu acusação em processo comum com intervenção do Tribuna Singular, contra o arguido
EF..., residente na Rua …, ...,
Imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso real de um crime de falsificação p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 255.º, alínea a) e 256.º, n.º 1, alínea b), na redacção dada pelo artigo 1.º, do Dec.-Lei nº. 48/95, de 15 de Março, ou atento o disposto no artigo 2.º, n.º 4, daquele código na redacção que lhe foi introduzida pelo artigo 1.º, da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do Cód. Penal e dois crimes de favorecimento pessoal, p. e p. pelo artigo 367.º, n.º 1, do Código Penal.
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Realizado o julgamento foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a acusação e, em consequência,
a) Condena-se o arguido EF... pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 b) do Código Penal, na actual redacção do Código Penal, pelo art. 256º/1 d), na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros);
b) condena-se o arguido EF... pela prática de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.º/1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros)
c) Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), no valor global de € 1 250 (mil, duzentos e cinquenta euros);
d) vai o arguido condenada no pagamento das custas do processo (artigos 513.º e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e 85º, n.º 1, al. b), do Código das Custas Judiciais), que compreendem:
. 3 (três) UC de taxa de justiça (art.ºs 513.º do Código de Processo Penal, e 74.º, 82.º, n.º 1, e 85.º, n.º 1, alínea b), do Código das Custas Judiciais), reduzida a metade por via da confissão, a que acresce, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 423/91, de 30/10, o valor correspondente a 1% sobre a taxa de justiça fixada, que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais;
. procuradoria em ¼ da taxa de justiça a favor do S.S.M.J. (art.ºs 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e 74.º, n.º 1, 89.º, n.º 1, alínea g), e 95.º, n.ºs 1 e 2 do Código das Custas Judiciais);
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Absolve-se o arguido do mais de que vinha acusado.
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2. Não concordando com a decisão o arguido interpôs o presente recurso, formulando nas respectivas motivações, as seguintes (transcritas) conclusões:

“1ª- Pela douta sentença proferida nos autos à margem identificados, o Mmº. Juiz a quo julgou parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Mº. Pº., e, em consequência: condenou o arguido pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artº. 256°, n.º 1, al. b), do Código Penal, na actual redacção do Código Penal, pelo artº. 256º, n.º1, al. d), na pena de € 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), e pela prática de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art°. 367º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros); em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), no valor global de € 1 250 (mil duzentos e cinquenta euros).

2ª- A identificação do arguido à autoridade não constitui crime de falsificação de documento, pelo que o mesmo deve ser absolvido deste crime.

3ª- Pois, a função de apresentação de documentos, na sequência da elaboração da participação do acidente, não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto (condução), mas tão só a de fornecer um principio de investigação ao respeito, e por isso o condutor que se identifica falsamente e faz com que a autoridade policial escreva na participação uma identificação falsa não comete nenhum crime de falsificação de documento.

4ª- Ao condenar o arguido pelo crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº. 256°, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, (actual alínea d), na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09), o Mmº. Juiz fez uma interpretação errada daquele dispositivo legal, fazendo-o abranger realidades que caem fora do seu âmbito normativo-intencional de aplicação.

5ª- Com efeito, salvo o devido respeito, os factos imputados ao ora recorrente não se podem subsumir à norma do citado art.º 256°, n.º 1, al. b) (actual alínea d), da versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09), pelo que não devia o arguido ser condenado pela prática de tal crime.

6ª- Caso assim se não entenda, sempre ressalvando, o devido respeito e melhor opinião, a pena de multa fixada ao arguido, mostra-se exagerada, devendo ser antes aplicada a pena pouco acima do mínimo legal, atendendo a todos os factos e circunstâncias verificadas e, os critérios plasmados no art°. 71°, do Código Penal.

7ª- Por erro de interpretação e/ou aplicação, não se mostram correctamente observados e, por isso violados, os ditames legais aplicáveis, mormente os artºs. 71° e 256°, n.º1, d) do Cód. Penal.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, com o que se fará a necessária e costumada
JUSTIÇA! ”
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3. Nos termos do artº 413 do C.P.P., veio o Ministério Publico responder, a fls. 133/138, pugnar pela improcedência do recurso, onde conclui (por transcrição):

1. Realizado Julgamento, foi proferida sentença que condenou o arguido EF... pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 b) do Código Penal, na actual redacção do Código Penal, pelo art. 256º/1 d) e na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros); pela prática de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.º/1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros).
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), no valor global de € I 250 (mil, duzentos e cinquenta euros).

2. Inconformado, recorre o arguido defendendo, sinteticamente, que a identificação do arguido à autoridade não constitui crime de falsificação de documento, pois a função de apresentação de documentos, na sequência da participação do acidente, não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto (condução), mas tão só a de fornecer um princípio de investigação, e por isso o condutor que se identifica falsamente e faz com que a autoridade policial escreva na participação uma identificação falsa não comete o crime de falsificação de documento.

Refere ainda o arguido que, a existir condenação, a pena de multa deve ser fixada pouco acima do mínimo legal.

3. Quanto ao não preenchimento do tipo legal de falsificação de documento:
Só existiria razão ao arguido caso a sua declaração dissesse respeito ao modo de produção do acidente, caso em que estaria a fornecer uma versão do mesmo que necessitaria de confirmação em sede de investigação. Neste caso, se a versão do acidente fornecida pelo arguido não fosse a prevalecente, poderia a sua declaração incorporada no auto não constituir a prática de qualquer crime.
No entanto, estamos perante uma declaração que contende com a identidade do condutor do veículo. O arguido declarou ao OPC que era o condutor do veículo, facultou ao agente de autoridade todos os seus elementos de identidade, bem como os elementos relativos à sua carta de condução de modo que aquele elaborasse a participação do acidente em seu nome, apesar de saber que o documento assim elaborado passaria a conter informação falsa, o que sabia e queria.
Deste modo, entende-se, como se entendeu na sentença, que os factos praticados pelo arguido realizam o tipo legal de falsificação de documento.

4. Quanto à determinação concreta da medida da pena de multa:
- a pena fixada pelo Tribunal surge como justa e adequada, desconhecendo-se os fundamentos que o arguido pretende invocar para justificar determinação inferior da medida concreta da pena.

5. Termos em que deve o recurso improceder.

V. Exªs, porém, melhor apreciarão, fazendo, como sempre JUSTIÇA.”
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4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora Geral Adjunta, no seu douto parecer, quando da vista a que se refere o art. 416.º do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
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5. Notificado, então, o arguido, nos termos e para os efeitos consignados no artº 417º, n.º 2, do C. P. Penal, o mesmo não respondeu.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se a conferência, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

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II. Fundamentação.
1. Delimitação dos poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso:

É hoje entendimento pacífico que as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Por isso, temos, como

Questões a decidir:
a) Apreciar se o arguido devia ser absolvido, do crime de falsificação de documento, que lhe era imputado, por não se verificarem os elementos do tipo, face aos factos provados.
b) Da medida da pena.
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2. Na sentença recorrida foram dados como provados e não provados os seguintes factos (por transcrição):

2.1. Matéria de facto provada.
Mostram-se provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. No dia 18 de Dezembro de 2006, na Rua …, o arguido informou o militar da Guarda Nacional Republicana, JS..., que era ele quem conduzia o veículo de matrícula … que, momentos antes, tinha embatido em IP....
2. O que sabia ser falso.
3. Pois, como bem sabia, o condutor do veículo era um indivíduo conhecido por JV..., que não possuía carta de condução.
4. Assim, obstou, desde logo, à elaboração de auto de notícia contra o efectivo condutor do veículo, pelos factos que integravam a prática do crime de condução de veículo sem estar legalmente habilitado
5. E, desse modo, impediu o conhecimento pelas autoridades da prática de um crime pelo indicado JV...,
6. E que contra o mesmo fosse deduzida acusação, com a consequente sujeição a julgamento.
7. Ao assumir-se como condutor do veículo, facultou ao agente de autoridade todos os seus elementos de identidade, bem como os elementos relativos à sua carta de condução, de modo a que aquele elaborasse a participação do acidente, em seu nome,
8. Apesar de saber que o documento assim elaborado passaria a conter informação falsa.
9. Por isso, aquele militar elaborou a participação de acidente de viação, fazendo constar no local referente à identificação do condutor do veículo:
«Nome: EF...
Naturalidade: França
Estado: Divorciado
10. Mais tarde, em sede de inquérito, no âmbito do NUIPC 90/06.2GELRA, ao ser constituído e interrogado, como arguido, por ter direccionado o veículo ao IP... embatido e, de seguida, ter projectado aquele contra a parede junto ao portão de acesso à garagem da residência do mesma, assim lhe provocando várias lesões, designadamente contusão do ombro direito, contusão cervico-dorsal, ferida incisa do cotovelo direito, edema da articulação tíbio – társica direita, fractura do maléolo tibial, que foram causa directa e necessária de 60 dias de doença, todos com afectação da sua capacidade para o trabalho geral e profissional e por, ao utilizar o veículo para provocar as lesões, de forma livre, consciente e voluntária, ter querido potenciar a ocorrência das mesmas, a sua extensão e intensidade,
10. Afirmou, mais uma vez, ser ele quem conduzia o veículo, no momento do embate.
11. Daí que contra ele tenha sido deduzida acusação por aqueles factos,
12. Tendo-lhe sido imputado, em autoria material, a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 146.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. h), do Cód. Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º, do Dec-Lei nº. 48/95, de 15 de Março, ou atento o disposto no artigo 2.º, n.º 4, daquele código na redacção que lhe foi introduzida pelo artigo 1.º, da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 145, n.º 1, al. a), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. i), do Código Penal.
13. Com a descrita actuação quis, ainda, impedir que se determinasse a identidade do condutor do veículo e, desse modo, obstar que contra o mesmo fosse deduzida acusação e a sujeição a julgamento, pela prática dos factos denunciados por IP....
14. Agiu sempre consciente, livre e deliberadamente,
15. Com perfeito conhecimento de que as suas condutas eram proibidas,
16. Com o propósito, ainda, de prejudicar o Estado no seu interesse relativo à confiança subjacente à declaração de acidente elaborada pela autoridade policial e de beneficiar o indivíduo conhecido por JV...
17. E ludibriar, como ludibriou, as autoridades.
18. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais.
19. O arguido aufere cerca de € 517, paga de renda de casa € 350 e aí reside com a sua companheira.
20. É ajudado economicamente pelos seus pais.

2.2. Factos não provados.
Com interesse para a decisão a proferir, não se provou:
1. Que o arguido tivesse a intenção de prejudicar IP....

2.3. Fundamentação da matéria de facto.
O tribunal alicerçou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida, livremente apreciada e segundo as regras da experiência comum, designadamente:
Nas declarações conjugadas de JS..., militar da GNR e participante do auto de notícia de fls. 6 e 7, tendo elaborado tal documento com base nas declarações do arguido, que se identificou perante si como sendo o condutor do veículo interveniente no acidente de viação e de IP… e MP..., ambos com conhecimento directo sobre os factos que depuseram, afirmando de forma categórica, segura e com claro conhecimento de causa que o condutor do veículo, no momento do acidente, não era o arguido, mas sim JV..., o qual não tinha carta de condução à data da prática dos factos.
Com efeito, estas testemunhas foram peremptórias, convincentes e, sobretudo, isentas, quando relataram ao tribunal os factos sobre os quais tiveram um conhecimento directo.
No mais, relevou o Certificado de Registo Criminal do arguido de fls. 74, quanto aos seus (inexistentes) antecedentes criminais e na certidão de fls. 1 a 31 junto aos autos.
Relativamente às condições económicas e pessoais do arguido, teve-se em conta as declarações do próprio, que o Tribunal reputou de fidedignas.
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Relativamente ao facto dado como não provado, tal ficou a dever-se à ausência de prova de que o arguido tivesse como escopo prejudicar IP… não se inferindo da matéria considerada tal objectivo, mas tão só o de beneficiar JV....”
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3. APRECIANDO.

O arguido vinha acusado de ter praticado um crime de falsificação de documento, p. e p. no art. 256 n.º 1 a) e de dois crimes de favorecimento pessoal, p. e p. pelo artigo 367.º, n.º 1, do Código Penal.
A final, veio o arguido a ser condenada, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 b) do Código Penal, na actual redacção do Código Penal, pelo art. 256º/1 d), na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros) e pela prática de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.º/1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), sendo-o em cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenado na pena única de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), no valor global de € 1 250 (mil, duzentos e cinquenta euros).
O arguido veio defender, neste recurso, por um lado que os factos imputados ao mesmo não se podem subsumir à norma do citado art.º 256°, n.º 1, al. b) (actual alínea d), da versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09), pelo que não devia o arguido ser condenado pela prática de tal crime e por outro que a medida das penas se deveria fixar no seus limites mínimos.
Vejamos.
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3.1. Dos alegados erros de julgamento em sede de matéria de direito.
O recorrente veio apresentar, a sua discordância quanto á sua condenação, alegando que, “A identificação do arguido à autoridade não constitui crime de falsificação de documento, pelo que o mesmo deve ser absolvido deste crime. Pois, a função de apresentação de documentos, na sequência da elaboração da participação do acidente, não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto (condução), mas tão só a de fornecer um principio de investigação ao respeito, e por isso o condutor que se identifica falsamente e faz com que a autoridade policial escreva na participação uma identificação falsa não comete nenhum crime de falsificação de documento.”, pelo que o tribunal “a quo” “Ao condenar o arguido pelo crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº. 256°, n.º 1, al. b), do Cód. Penal, (actual alínea d), na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04/09), o Mmº. Juiz fez uma interpretação errada daquele dispositivo legal, fazendo-o abranger realidades que caem fora do seu âmbito normativo-intencional de aplicação.”
Do acima exposto parece resultar que o recorrente, no essencial não concorda com a qualificação jurídica que o tribunal “a quo” fez dos factos dados como provados, relativamente ao crime de falsificação de documento, nem concorda com a medida da(s) pena(s), mas conforma-se com a factualidade apurada.
Vejamos então, se assiste razão ao recorrente.
Segundo o disposto no artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal, comete o crime de falsificação de documento:
“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Daí concluir-se que comete o crime de falsificação de documento, quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso.
Importa, assim, apurar se verifica ou não a falsificação de documento.
O bem jurídico protegido com a criminalização da falsificação de documento é a respectiva fé pública: pretende-se salvaguardar o sentimento geral de confiança que devem revestir os documentos.
Numa evolução mais recente, a doutrina tem vindo a entender que o bem jurídico do crime de falsificação de documento é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que se respeita à prova documental Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, 1999, 41 e seguintes..
Falsificação de documentos é uma falsificação da declaração incorporada no documento, podendo assumir a forma de uma falsificação material ou una falsificação ideológica.
Na material, o documento não é genuíno, na ideológica o documento é verídico. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material.
Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa fórmula, com a preocupação de dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.
Na intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora una declaração falsa, una declaração escrita, integrada no documento.
Por seu turno, na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um beneficio (neste sentido vidé, Helena Moniz “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667” e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-05-2009, Processo: 457/07.9TASCD.C1, Relator: DR. JORGE DIAS e de 07-02-2007,Nº 1540/05.0TAAVR.C1, Relator: DR. ESTEVES MARQUES, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, Processo: 1289/06.7TAVCT.G1, Relator: TERESA BALTAZAR, in www.dgsi.pt).
De facto o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, terminologia associada à existência de um dolo específico enquanto particular intenção do agente, definida pelo tipo, quando da realização do mesmo, para além da mera existência de um dolo genérico, como mero conhecimento e vontade de realização do tipo.
Necessariamente integrado como elemento do tipo, no caso concreto essa especial intenção concretiza-se na fórmula legal “com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”).
E a intenção de obter benefício ou causar prejuízo não tem que ser contemporânea desse benefício ou prejuízo. Estes podem ocorrer no futuro (casos mais frequentes) mas podem ter já ocorrido e a falsificação terá então o papel de intenção de manutenção do benefício ou prejuízo.
Ora no caso dos autos, esse benefício consistiria em ilibar o verdadeiro condutor do veículo causador de um acidente de toda e qualquer responsabilidade para com terceiro, bem como colocava em crise o poder do Estado de exercer a acção penal sobre o dito condutor que não teria carta de condução.
No plano objectivo, o crime de falsificação comporta diversas modalidades de conduta: a) fabricar documento falso; b) falsificar ou alterar documento; c) abusar de assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso; d) fazer constar falsamente facto juridicamente relevante; e, por fim, e) usar documento falso (nos termos anteriores) fabricado ou falsificado por outra pessoa Helena Moniz, Comentário conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 682..
Em causa está a modalidade de falsificação referida na terceira das supracitadas alíneas, ou seja o “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante”.
Na verdade, como bem se refere na sentença recorrida, “……. encontra-se dado como provado que o arguido assumiu-se como condutor do veículo, facultando ao agente de autoridade todos os seus elementos de identidade, bem como os elementos relativos à sua carta de condução de modo que aquele elaborasse a participação do acidente em seu nome, apesar de saber que o documento assim elaborado passaria a conter informação falsa.
Com a descrita actuação, o arguido agiu com o propósito de prejudicar o Estado no seu interesse relativo à confiança subjacente à declaração do acidente elaborado pela autoridade policial.”
Destes autos resulta que é incontroverso que o arguido, no dia 18 de Dezembro de 2006, na Rua …, informou o militar da Guarda Nacional Republicana, JS..., que era ele quem conduzia o veículo de matrícula … que, momentos antes, tinha embatido em IP..., o que sabia ser falso. Assim, ao assumir-se como condutor do veículo, facultou ao agente de autoridade todos os seus elementos de identidade, bem como os elementos relativos à sua carta de condução, de modo a que aquele elaborasse a participação do acidente, em seu nome, obstando, desde logo, à elaboração de auto de notícia contra o efectivo condutor do veículo, pelos factos que integravam a prática do crime de condução de veículo sem estar legalmente habilitado, bem sabendo o arguido que o condutor do veículo era um indivíduo conhecido por JV..., que não possuía carta de condução.
A questão fundamental para se optar pela existência ou não de crime de falsificação é ao fim e ao cabo o determinar se o arguido fez ou não “…constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” e se isso ocorreu em documento, no sentido que lhe é dado pelo artº 255, nº 1 do C.Penal, ou seja apurar se a declaração em questão, apresentada pelo arguido à entidade policial, integra o conceito de documento definido para fins penais.
Vejamos então.
Conforme consta do art. 255º, “Para efeito do disposto no presente capítulo, considera-se: a) Documento: a declaração corporizada num escrito (...) que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer á generalidade das pessoas ou a um cero círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
Como refere HELENA MONIZ (Comentário Conimbricense, p. 667) “Documento, para efeito do direito penal, não é o material que corporiza a declaração mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação)….”).
Documento é pois a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova e, como resulta do enunciado do art. 255º, a declaração, além de corporizada em documento, deve ser idónea para provar facto jurídico relevante.
Ora, a falsidade existe, mesmo que o facto não seja dos que o documento tem por finalidade certificar ou autenticar, ou dos que não são essenciais para a validade do documento, bastando que seja juridicamente relevante; ou seja, o documento apresenta-se genuíno ou materialmente verdadeiro, só que o seu conteúdo intelectual não corresponde à versão, uma vez que nele foi inserido, aquando da sua feitura um facto que não é real.
No caso, não há dúvida que estamos perante uma declaração do arguido que foi escrita na participação do acidente, de fls. 6 e 7 destes autos, da qual consta que o arguido era o condutor do veículo, por declaração do próprio, sendo certo que tal não correspondia á verdade.
Porém é ainda necessário que “a mentira” inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que “a declaração corporizada em escrito …”, seja “…… idónea para provar facto juridicamente relevante….”, como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256, nº 1 al. d) do C.Penal.
Será que, no caso concreto, consubstanciará tal documento um facto juridicamente relevante?
Adiantaremos desde já que somos de opinião de que não.
Na verdade, podemos concluir que estamos perante um documento (participação do acidente) que contém uma declaração do arguido que não corresponde á realidade ou seja existe, por parte do arguido, uma narração de facto falso, que consta em ele afirmar que era o condutor do veículo, o que não era verdadeiro.
Contudo, o que sucedeu foi que em virtude de declaração falsa do arguido, ficou a constar da participação do acidente que era ele o condutor do veículo e não outro (aquele que efectivamente conduzia o veículo). Isto é, o arguido informou o militar da GNR que era ele o condutor do veículo que embateu numa pessoa (IP...), induzindo-o em erro. O agente tomou nota dessa informação e, mais tarde, ao elaborar a participação tomou em consideração as informações colhidas no local, designadamente a prestada pelo arguido.
Acontece que a "participação do acidente" não constitui auto de notícia, pois o agente não presenciou esse facto, cfr. artº 170° do CE.
A participação de um acidente elaborada pelas autoridades policiais é um documento autêntico e faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo respectivo agente da autoridade, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções do mesmo. Os meros juízos pessoais por ele emitidos e as informações obtidas de terceiros só valem como elementos sujeitos a livre apreciação.
Ou seja, o documento elaborado pelo militar da GNR com base nas declarações falsas só por si não é idóneo a prática de qualquer infracção.
Como observa Helena Moniz, "Comentário"..., pág. 683, seguindo o rumo indicado por F. Dias, "Actas", 1993, pág. 298, a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica.
Ou seja com tal “declaração “ do arguido à autoridade não constitui crime de falsificação de documento, pois a função de apresentação de documentos, na sequência da participação do acidente, não é a de assegurar ou certificar, ela própria, a autoria do facto (condução), mas tão só a de fornecer um princípio de investigação.
Assim, a atitude do arguido ao referir que era ele que conduzia, embora seja um facto falso relevante, porque levou a uma determinada actividade policial errada, certamente com custos, não é juridicamente relevante para a falsificação, na medida em que por si e autonomamente, não constitui, modifica ou extingue qualquer relação jurídica, pois não é idónea para provar facto juridicamente relevante. (neste mesmo sentido, vide, Ac. do TRP, de 18/6/2003, in CJ, ano XXVII, Tomo III, pag 224)
Não há, por isso falsificação de documento. O que se verifica é, sim, uma falsidade na declaração
Em conclusão, a conduta do arguido não preenche os elementos típicos do crime de falsificação de que se encontra acusado, pelo que nesta parte o recurso procederá, indo o arguido absolvido da prática do crime de falsificação de documento.
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3.2. Quanto à medida da pena.

Parece o recorrente insurgir-se contra a pena imposta. Pelo menos isso afirma de forma genérica na sua conclusão 6ª. Mas não se consegue perceber qual a razão do recorrente.
De qualquer forma sempre se afirmará que o tribunal recorrido bem andou na fixação da pena concreta.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo art. 367.º/1 do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros). A tal crime corresponde uma pena de prisão até 3 anos ou de 10 a 360 dias de multa (artigos 367° n° 1 e 47°, nº1 do C.P.).
No caso ora em recurso foi dada preferência pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade, ou seja, o tribunal “a quo”, optou pela aplicação de pena de multa, com o que o arguido está de acordo, pelo que iremos apenas analisar a questão do quantum da pena de multa.
Como se sabe, a todo o crime corresponde uma reacção penal, pela qual a comunidade expressa o seu juízo de desvalor sobre os factos e a conduta realizada pelo arguido, partindo-se para o efeito do respectivo tipo legal.
Ora, tendo em conta os critérios da sua determinação, a pena deve ser aferida em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.
Assim e retomando os critérios para a determinação concreta da pena, temos, duas regras centrais: a primeira consiste em ter presente que a culpa é o fundamento para a concretização da pena; a segunda, é de que deverá ter-se em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido na sociedade e a necessidade desta se defender do mesmo, mantendo a confiança da comunidade na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.
Perante isto, podemos dizer que nesta acção a pena serve primacialmente, por um lado, para a retribuição justa do ilícito e da culpa (função retributiva), contribuindo ainda, por outro lado e ao mesmo nível, para a reinserção social do arguido, procurando não prejudicar a sua situação social mais do que estritamente necessário (função preventiva especial positiva) – como aludia Kohlrausch “Na determinação da pena o tribunal deve considerar principalmente que meios são necessários para que o réu leve de novo uma vida ordenada e conforme a lei” (vide “Mitt IKV Neue Folge”, t. 3, p. 7, citado por H.-H. Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, Vol. II, p. 1195).
Ou ainda, como refere Figueiredo Dias (Consequências Jurídicas do Crime, pág. 227 e seg) a propósito da questão da medida da pena, a finalidade da aplicação desta reside primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível na reinserção do agente na comunidade. A determinação da medida da pena é, assim, a conjugação da expectativa da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida que se consubstancia com a ideia de prevenção geral positiva e as exigências derivadas da inserção social e reintegração do agente na comunidade.
Tal conjugação terá como parâmetro a culpa que constitui um limite máximo que não pode ser ultrapassado.
Para a determinação da medida concreta da pena há que fazer apelo aos critérios definidos pelos artigos 71º e 47º, n.º 1 do Código Penal, nos termos dos quais, tal medida será encontrada dentro da moldura penal abstractamente aplicável, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Atendendo à materialidade considerada provada, são os seguintes os factores que relevam para a medida da pena:
- Execução do facto
O arguido, actuou com consciência da ilicitude do seu acto e plena liberdade de decisão e com intenção de causar prejuízos ao Estado impedindo o mesmo de actuar contra o autor de um ilícito, conhecendo a ilicitude de tal comportamento e querendo-o.
Assim, contra o recorrente milita o grau de ilicitude da conduta deste arguido e o modo (de mediana gravidade) na execução dos factos, na preparação e execução dos mesmos, bem evidenciado no factualismo provado, bem como o tipo de personalidade manifestado nos factos e a culpa manifestada na execução dos mesmos (uma conduta que persistiu no tempo), sendo o seu dolo directo (modalidade mais gravosa do dolo).
Considerando ainda, a conduta anterior ao facto e posterior a este (a ausência de antecedentes criminais) artigo 71.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal.
A seu favor joga apenas a sua integração social.
Assim, compulsando a materialidade considerada provada e tendo em conta os factores enunciados e o disposto no citado artigo 71º, entendemos ser de manter a pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros) de multa, para o crime de favorecimento pessoal, que é o que está em causa, pois a mesma parece-nos ajustada
Como relativamente ao outro crime por que vem condenado o arguido, o mesmo agora irá absolvido, nada mais a dizer.
Assim sendo julga-se improcedente, nesta parte, o recurso.
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III – Decisão.

Posto o que precede, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, relativamente ao recurso interposto pelo arguido, em julgar parcialmente provido o mesmo, alterando, parcialmente, a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido EF..., da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 b) do Código Penal, na actual redacção do Código Penal, pelo art. 256º/1 d).
No mais mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas.
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Calvário Antunes (Relator)
Mouraz Lopes