Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
459/20.0T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
DECISÃO PRÉVIA
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JL CÍVEL DE COIMBRA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 942º DO NCPC.
Sumário: I – A decisão de mérito sobre a (prévia) obrigação de prestar contas, numa ação de prestação de contas, só deve ter lugar, sem mais, após os articulados se for uma questão exclusivamente de direito.

II – Deve ser qualificada como prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, declarar sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº3, 1ª parte, do n.C.P.Civil).

III – O direito à prova, sendo uma das dimensões em que se concretiza o direito a um processo equitativo, significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

Decisão Texto Integral:           




     Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

               1 – RELATÓRIO

R..., com residência na Rua ..., propôs a presente ação especial de prestação de contas, contra J..., com residência na Rua ..., pedindo que o Réu preste contas da sua administração sobre os bens do seu falecido pai, com todas as consequências legais.

Para tanto alegou, em síntese, que:

- Autor e Réu são irmãos.

- São filhos e únicos descendentes de M..., falecida no estado civil de casada, em 13 de outubro de 2004, e de J..., falecido no estado civil de viúvo, em 17 de agosto de 2016.

- por ocasião do óbito de M..., correu termos no então Cartório Notarial de ..., o processo de inventário aberto por óbito da mãe do Autor e do Réu, sob o n.º ...

- Nesse processo de inventário, no dia 3 de junho de 2016 teve lugar a conferência de interessados, na qual estiveram presentes autor e réu, este último intervindo por si e como procurador do pai, J...,

- No referido dia 3 de junho de 2016, Autor e Réu lograram obter acordo quanto à partilha por óbito da sua mãe, pelo que, determinados os quinhões de cada um dos interessados, o Autor pagou tornas ao Réu, por si e na qualidade de procurador de seu pai, no valor de, respetivamente, €7.500,00 e €30.000,00;

- Nesse mesmo dia e na referida diligência, Autor e Réu decidiram excluir da partilha por óbito de sua mãe, algumas verbas dos bens relacionados, designadamente, as verbas nos um, dois e três que, sumariamente, se referiam a depósitos bancários existentes à data do óbito da falecida mãe destes.

- Por ocasião dessa mesma exclusão, que refletia um valor de cerca de €23.000,00, firmaram um acordo, titulado, “Acordo de Vontades”, através do qual o Réu admitia receber, por conta do processo de inventário n.º 1472/15, a quantia de € 23.000,00 (vinte e três mil euros), a qual se destinava a “fazer face às despesas tidas com o seu progenitor”, ficando o A. desobrigado, a partir da data da outorga do referido acordo, de contribuir, a que título fosse, de prestar alimentos ao pai até se esgotar a referida quantia da qual o Réu ficou, a par dos já aludidos €30.000,00, fiel depositário.

- entre a data da conferência de interessados realizada a 3 de junho de 2016 e o falecimento do pai do Autor e Réu decorreram 75 dias.

- está pendente processo de inventário por óbito de J..., atualmente a correr termos no Cartório Notarial de ..., sob o processo n.º ....

- O Réu, notificado para prestar as declarações de Cabeça de Casal e Compromisso de Honra, o que teve lugar em 19 de dezembro de 2016, disse, expressamente que, por morte do seu pai, inexistiam quaisquer bens a partilhar.

- J... esteve, nesse período, aos cuidados do Réu que terá dado ao dinheiro destino que se desconhece,

- em sede do processo de inventário n.º ... o Réu afirmou que fez seu dinheiro que recebeu por conta e no interesse de seu pai.

- o falecido pai do Autor e Réu auferia uma pensão de reforma por velhice cujo valor se desconhece por ora.

- Pretende, assim, o Autor que o Réu discrimine nos presentes autos, através de conta corrente, as contas referentes aos bens pertença da herança aberta por óbito de J..., desde o dia 3 de junho de 2016, data em que recebeu a quantia de € 53.000,00, por conta e no interesse de seu pai J....

- Uma vez que o Réu, administrando bens alheios – do dia 3 de julho de 2016 até ao dia da morte de seu pai, em 17 de agosto de 2016, e depois disso, como cabeça de casal em Cabeça de Casal é obrigado a prestar contas, quer como administrador de bens alheios, quer como cabeça de casal, tudo conforme o disposto no artigo 2093.º, n.º 1 do Código Civil, pretendendo o Requerente que aquele preste contas da sua administração.

                                                                          *

Regularmente citado, o R. contestou, invocando, além do mais, a exceção de erro na forma de processo, considerando a pendência de inventário notarial, que impõe que o interessado que pretenda a prestação de contas pelo cabeça de casal terá de o requerer como incidente no processo de inventário notarial.

Respondeu o A., pugnando pela inexistência de erro na forma do processo e pela obrigação do R. prestar contas.

Quanto ao erro na forma do processo, invocou que: encontra-se suspenso no Cartório Notarial a cargo da Sr.ª Dr.ª ... o processo de inventário n.º ..., em que o aqui autor assume a posição de requerente/interessado e o réu a de cabeça de casal; por decisão de 23 de março de 2019 proferida no âmbito do processo de inventário n.º ..., a Sr.ª Notária absteve-se de decidir o incidente da reclamação apresentada pelo autor, remetendo as partes para os meios judiciais comuns, e determinado a suspensão do processo de inventário até que ocorra decisão judicial sobre a existência ou não de bens a partilhar; o aqui autor propôs, por apenso ao referido processo de inventário, a devida ação de prestação de contas; por decisão de 14 de junho de 2019, a Sr.ª Notária indeferiu liminarmente a ação de prestação de contas, com fundamento na incompetência absoluta do Cartório Notarial para tramitar a ação de prestação de contas – artigos 576.º, n.º 1, artigo 577.º, alínea a) e artigo 96.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e artigos 3.º e 45.º do RJPI; o art. 947.º do Cód. do Proc. Civil dispõe que “As contas a prestar por representantes legais de incapazes, pelo cabeça de casal e por administrador ou depositário judicialmente nomeados são prestadas por dependência do processo em que a nomeação haja sido feita”; a norma acabada de citar deve ser entendida apenas relativamente à dependência dos processos de inventário que ainda corressem em Tribunal à data da entrada em vigor do novo Cód. do Proc. Civil, pois que nos inventários a correr nos Cartórios, ao notário não foi atribuída essa competência para a tramitação da ação de prestação de contas, pois, os Cartórios Notariais apenas têm competência para tramitar o incidente do artigo 45.º e não a ação judicial de prestação de contas prevista e regulamentada nos artigos 941.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Quanto à contestação da obrigação de prestar contas, invocou o A. que o próprio Réu não enjeita ter recebido, por conta e no interesse de seu pai, as tornas que o Autor lhe pagou no âmbito do processo de inventário n.º ..., no dia 3 de junho de 2016, por si e na qualidade de procurador do seu pai, no valor de, respetivamente, €7.500,00 e €30.000,00; tal pagamento foi efetuado por meio de cheque com o n.º ... sacado sobre o Banco B..., no valor de €37.500,00, entregue em mão ao R.; o próprio Réu confessa que o pai esteve acamado um largo período antes de falecer (cfr. art. 20.º da contestação); é por demais evidente que o dinheiro que o A. lhe entregou e que pertencia ao pai de ambos, no valor de €30.000,00, não podia ter sido por este gasto; se o pai do autor e réu não tinha conta bancária à data do falecimento, o réu terá de esclarecer em que conta bancária depositou o cheque n.º ... sacado sobre o Banco B..., no valor de €37.500,00 que lhe foi entregue, comprovar o destino que deu à quantia de €30.000,00 que pertencia ao seu pai e ainda, informar como é que procedia ao levantamento/depósito/movimento da pensão de aposentação do seu falecido pai; quanto à verba de €23.000,00, o Réu diz que nunca a recebeu, sem prejuízo de, por documento particular de 3 de junho de 2016, cujas assinaturas do Autor e do Réu foram notarialmente reconhecidas, assumir que tal quantia existia e que lhe havia sido entregue/atribuída no âmbito do processo de Inventário n.º ...; não há dúvida que o R. recebeu, em representação do falecido pai de A. e R., a quantia de €53.000,00, que intenta sonegar do outro herdeiro, o aqui A.

A obrigação de prestar contas emerge da posição de procurador/administrador que ocupou, encontrando-se a obrigação do R. legalmente prevista nos arts. 1161.º/d) e 2093.º do Cód. Civil, e ainda, no art. 941.º do Cód. do Proc. Civil.

                                                                          *

Na imediata sequência foi proferida SENTENÇA, desdobrada numa dupla decisão:

- quanto à prestação de contas exigida ao Réu ora recorrido na qualidade de cabeça de casal [ou seja, no período compreendido entre a data da abertura da sucessão e o presente], considerou que o Tribunal era materialmente incompetente, pelo que absolveu o Réu/recorrido da instância;

- relativamente à administração do Réu/recorrido no período compreendido entre o dia 3 de junho de 2016 e a data da abertura da sucessão, uma vez que «(…) do texto da procuração não resulta que os poderes conferidos ao R. deveriam ser exercidos no interesse do mandante, inviabilizando que seja possível concluir que aqueles poderes foram concedidos como meio de permitir a execução de um mandato. (…) Não pode, pois, concluir-se no sentido da verificação dessa obrigação do réu prestar contas, razão pela qual se concluí pela inexistência dessa obrigação», veio a julgar improcedente a ação proposta pelo A./recorrente, absolvendo o Réu/recorrido do pedido,

                                                                          *

               Inconformado com este segundo segmento da decisão, apresentou o Autor recurso de apelação do mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«A) A obrigação de prestar contas pode resultar da lei, de negócio jurídico, e até, do princípio geral da boa fé que impõe expressamente essa obrigação.

B) No caso dos autos, existem elementos suficientemente esclarecedores que conduzem a concluir que a procuração outorgada pelo pai de recorrente e recorrido, conferiu a este um mandato com representação.

C) A alegação do recorrido em sede de contestação, designadamente, nos arts. 20.º e 22.º da sua contestação, não deixa qualquer margem para dúvidas, sendo que o próprio texto da procuração mencionada o recorrido como mandante.

D) Ao ignorar todos estes elementos, o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 5.º, n.º 1, als. a) e b) do Cód. do Proc. Civil, e ainda, o disposto na al. d) do art. 1161.º do Cód. Civil.

E) Ainda que assim se não entendesse, e porque a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva, já o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte, existindo dúvida razoável sobre o destino que deu em relação a bens alheios, a obrigação do recorrido prestar contas encontraria fundamento na obrigação de informação prevista no art. 573º do C.C, normativo que o tribunal a quo, identicamente, violou, a par do princípio da tutela jurisdicional efetiva.

F) Ainda que tudo isto naufragasse, o concreto circunstancialismo em que o recorrido recebeu importâncias em nome do seu pai, e face ao facto deste último, acamado durante largo período antes da sua morte, que veio a ocorrer 75 dias após o recorrido ter recebido quantias deste, impõe que o recorrido seja obrigado a prestar contas, no limite, a abrigo do princípio geral da boa fé, princípio que o tribunal a quo ignorou e violou.

Termos em que,

requer a V. Ex.as se dignem conferir provimento ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que determine a obrigação do recorrido de prestar contas da administração sobre o valor de €53.000,00 pertencente ao seu falecido pai, desde o dia 3 de junho de 2016 até ao dia 17 de agosto de 2016.

                                                                                        *

               O Réu/recorrido apresentou as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes “conclusões”:

...

               A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando oportunamente pela sua subida devidamente instruído.

               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo A./recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

               - desacerto da decisão recorrida que declarou improcedente a pretensão do A. relativa a prestação de contas da administração pelo R. entre 03.06.2016 e 17.08.2016 [fundamentada em não ter sido alegada nem provada relação contratual de mandato mas a prática pelo falecido pai das partes de mero ato unilateral de procuração atribuindo poderes de representação ao R.].

               3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em consideração para a decisão são essencialmente os que decorrem do relatório supra.

               4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

               Recorde-se que o Autor/recorrente instaurou a presente ação de prestação de contas contra o Réu seu irmão [com referência a valores monetários da titularidade do progenitor de ambos entretanto falecido [J…], que teriam sido administrados pelo Réu], sustentada, em síntese, na circunstância do Réu, munido de uma procuração que o pai de ambos conferiu àquele, datada de 30 de maio de 2016, ter recebido no âmbito do processo de inventário n.º ..., aberto por óbito da mãe de ambos, a quantia de € 30.000,00 na qualidade de procurador do seu pai, e ainda, pelo facto de, na conferência de interessados no âmbito do processo de inventário n.º ... que ocorreu a 3 de junho de 2016 [no Cartório Notarial da Sr.ª Notária, Dr.ª ...], ambos terem excluído da partilha por óbito de sua mãe diversas verbas que se identificavam com depósitos bancários, e consequentemente o recorrido admitiu receber, por conta desse processo de inventário, por ocasião dessa mesma exclusão [firmando um acordo titulado por “Acordo de Vontades”], a quantia de €23.000,00, a qual se destinava a “fazer face às despesas tidas com o seu progenitor”, ficando o Autor ora recorrente desobrigado, a partir da data da outorga do referido acordo, de contribuir, a que título fosse, de prestar alimentos ao pai até se esgotar a referida quantia de € 23.000,00, sucedendo que entre a data do recebimento da quantia de € 30.000,00 e da quantia de € 23.000,00, em 3 de junho de 2016, e a data do óbito do pai de ambos [em 17.08.2016], decorreram apenas 75 dias, período durante o qual o pai se encontrou aos cuidados do Réu [acamado que estava], gerindo o Réu os valores monetários do pai, onde igualmente se englobava uma pensão de reforma por velhice auferida mensalmente, donde «deve prestar contas do destino que deu aos € 53.000,00 (cinquenta e três mil euros) e a quaisquer outras quantias que se venha a apurar existirem à data do decesso de J…».

               Na sua decisão que declarou improcedente a ação proposta pelo Autor ora recorrente, absolvendo o R./recorrido do pedido, em relação à administração do recorrido no período compreendido entre o dia 3 de junho de 2016 e a data da abertura da sucessão, a Exma. Juíza a quo, distinguindo e autonomizando os conceitos normativos de mandato e procuração, entendeu que, pelo facto de não ter sido alegada uma relação de mandato, a mera detenção da procuração, e a prática de atos ao abrigo desta, não gerava em si mesmo qualquer obrigação do recorrido prestar contas da sua administração por causa e ao abrigo da procuração.

Será então que ocorreu o desacerto na decisão recorrida?

Cremos bem que sim – e releve-se o juízo antecipatório! – como se vai passar a explicitar.

E isso pela determinante e decisiva razão que a decisão recorrida olvidou parte da causa de pedir apresentada pelo Autor, desconsiderando o que para este efeito mais relevava, a saber, que o Autor havia alegado ter o Réu realizado atos de administração de bens/valores monetários do falecido no período de 75 dias que decorreu entre o dia em que teve lugar a conferência de interessados e o decesso deste último.

Este circunstancialismo factual foi expressamente alegado nos arts. 21º a 24º da p.i..

Por sua vez, o Réu, na sua contestação, começou por impugnar globalmente esse factualismo (cf. arts. 15º e 16º da contestação), mas depois reconheceu que o pai esteve acamado durante um largo período antes de falecer (cf. art. 20º da contestação), para finalizar sublinhando que carecia de fundamento fáctico e legal o pedido de prestação de contas, designadamente quanto ao período anterior ao falecimento do pai, na medida em que «o Réu não detinha na sua posse bens alheios, prestou contas ao pai depois de ter recebido as tornas e era este que administrava o seu dinheiro» (cf. art. 22º da contestação).

De referir que no articulado de Resposta, o Autor reiterou que o Réu havia recebido em mão no dia da aludida conferência de interessados um cheque no valor de €37.500,00, sendo por demais evidente que tendo o pai de ambos estado acamado um largo período antes de falecer, não poderia ter o próprio gasto o montante de €30.000,00 a si pertencente, cumprindo então ao Réu comprovar o destino que deu a esta quantia [designadamente não tendo o pai alegadamente conta bancária, em que conta bancária é que o dito cheque foi depositado] e bem assim «informar como é que procedia ao levantamento/depósito/movimento/ da pensão de aposentação do seu falecido pai» (cf. arts. 14º a 16º deste articulado).

Face a este conspecto factual, após os articulados outra não podia ter sido a conclusão senão a de que o Réu havia suscitado a questão prévia de que não estava obrigado a prestar contas, questão essa de direito substancial – quer com a alegação de que no período em que cuidou do seu falecido pai [acamado que estava] não tinha existido qualquer relação jurídica entre ele e o falecido por virtude da qual estivesse obrigado a prestar contas, quer com a alegação de que já tinha prestado essas contas ao pai relativamente às tornas destinadas ao mesmo que havia recebido.

Ora, como é bom de ver, todo este factualismo – quer o alegado pelo A., quer pelo Réu – subsistia controvertido, pelo que carecia de decisão judicial a dita questão prévia [e prejudicial].

Mais concretamente, sendo a questão de facto e de direito, carecia de ser decidida pelo juiz, mas apenas depois de “produzidas as provas necessárias”.

Este é o comando legal expressamente constante do nº 3 do art. 943º do n.C.P.Civil, onde literalmente se preceitua pela seguinte forma:

«3 - Se o réu contestar a obrigação de prestar contas, o autor pode responder e, produzidas as provas necessárias, o juiz profere imediatamente decisão, aplicando-se o disposto nos artigos 294.º e 295.º; se, porém, findos os articulados, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, manda seguir os termos subsequentes do processo comum adequados ao valor da causa.»

E, discorrendo sobre essa situação, isto é, relativamente à predita questão prévia, já nos foi doutamente ensinado no quadro do Código de Processo Civil de 1939, mas face a um quadro normativo e dogmático perfeitamente equiparável ao que nos rege no nosso atual Código de Processo Civil que, quando a questão é de direito e de facto, o seguinte[2]:

«O réu nega a existência da relação jurídica em que o autor se apoia e ao mesmo tempo alega, subsidiariamente, que, se tal relação fosse exacta, dela não resultaria a obrigação de prestar contas, ou afirma que já prestou contas ao autor ou ao seu legítimo antecessor.

Põem-se então questões de facto; e para as derimir pode o juiz ter necessidade de mandar proceder a quaisquer averiguações ou diligências. Realizadas elas, segue-se o julgamento da questão prévia.»

Dito de outra forma: a factualidade ainda controvertida obrigava ao prosseguimento dos autos para produção de provas.

E nem se argumente – como esteve subjacente à opção em que se traduziu a decisão recorrida – que no caso vertente os autos já forneciam suficientes elementos para uma decisão conscienciosa sobre a predita questão prévia, designadamente por a questão ser de puro direito.

Em nosso entender claramente não o era, pois que a decisão estava necessária e insofismavelmente dependente de questões de facto.

Desde logo porque, quanto ao recebimento das tornas, em nosso entender, se encontrava alegada – e subsistia controvertida – a existência de uma relação de mandato, isto porque verdadeiramente não é o fim para que procuração foi emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador que relevam, mas mais verdadeiramente os atos realizados, que justificam a prestação de contas.[3]

Com efeito, «é perante a gestão que a atribuição de poderes postula que se julga a obrigação do procurador de prestar contas ao representado».[4]

Ora se assim é, subsistindo controvertido se o Réu prestou ou não contas oportunamente ao falecido relativamente ao montante das tornas destinadas a este último – sendo a resposta positiva, à partida, aferida pela efetiva entrega e/ou disponibilização material do respetivo montante (€ 30.000.00) ao mesmo – naturalmente que uma resposta definitiva e concludente sobre tal estava dependente de produção de prova.

Depois, quanto à alegação de que o Réu realizou (ou não) atos de administração de bens/valores monetários do falecido no período de 75 dias que decorreu entre o dia em que teve lugar a conferência de interessados e o decesso deste último, a conclusão parece-nos que estaria necessariamente dependente da prova a fazer sobre a titularidade (ou não) pelo J... de conta bancária e modo como a geria, bem assim sobre a capacidade e vontade de administrar ele próprio os seus valores monetários, pensão de aposentação incluída.

De referir que nos parece prevalecente o entendimento de que a obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte»[5].

Na mesma linha de entendimento, foi sublinhado que «Pode formular-se este princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses.»[6]

 Face a este conspecto, atente-se agora no que já foi sustentado, com paralelismo [face ao conhecimento no despacho saneador], a este propósito «O juiz pode, imediatamente após o fim dos articulados, conhecer do mérito da causa se a apreciação do pedido for independente do apuramento de factos (pura questão de direito), se toda a matéria de facto necessária se encontrar provada por confissão ou por documento, se os factos controvertidos forem indiferentes para o conhecimento ou se os factos controvertidos só admitirem prova documental e a parte tiver sido notificada para os juntar.»[7]

O que, revertendo ao caso presente, nos conduz à conclusão de que o estado do processo ajuizado não permitia, sem produção das “provas necessárias”, a apreciação e decisão sobre a predita questão prévia, como se a mesma fosse uma questão exclusivamente de direito.

Donde, o não ter sido efetiva e materialmente possibilitado a produção de prova, objetivamente necessária, traduz uma errada apreciação e avaliação do estado dos autos, isto é, reconduz-se a uma precipitação da decisão, ou seja, à prolação da decisão sem estarem ainda reunidos os elementos que o consentiriam.

Isto porque se o juiz conhece de imediato das questões que lhe é permitido e imposto conhecer, sem se verificar alguma das circunstâncias que lhe consentiriam fazê-lo nessa fase do processo, incorre em erro de avaliação dos pressupostos da decisão.

Mas o que é que esse erro de avaliação dos pressupostos da decisão implica?

Que enfermando a decisão, por via disso, de erro de julgamento a mesma não é nula mas errada e como tal pode e deve ser revogada.

Na verdade, «o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. […] Em nítida obediência aos princípios da celeridade e da economia processuais, a lei quer que o mérito da causa seja arrumado logo no saneador. Mas não sacrificou a esses princípios outras exigências também axiologicamente relevantes. O mérito da causa será julgado no despacho saneador tão-somente se a questão puder ser decidida nesse momento, ou seja se essa apreciação, segundo as vários enquadramentos jurídicos possíveis do seu objecto, não demandar a produção de mais provas e, portanto, poder, com inteira justificação, ser antecipada para o despacho saneador».[8]

Acresce, em todo o caso, que também sempre seria de dar procedência a outro argumento recursivo deduzido neste enquadramento – a da violação do princípio do acesso à tutela jurisdicional efetiva, no caso de ser sufragado o entendimento do Tribunal a quo, a saber, considerar sem mais improcedente a pretensão do Autor ora recorrente de ver reconhecida e declarada a obrigação de prestação de contas por parte do Réu, assim violando materialmente o direito de informação por parte do Autor na circunstância [isto no pressuposto de que a ação de prestação de contas é uma das formas do exercício do direito de informação], mais concretamente, ao postergar a produção de prova pela parte onerada com a correspondente prova.

Senão vejamos.

A consagração, no nº 4 do artigo 20º, da Constituição da Republica Portuguesa, do direito a um processo equitativo, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova[9] uma das dimensões em que aquele se concretiza. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão.

«O direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras»[10].

Nesta linha de entendimento, o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova.

Assim, já foi doutamente sustentado a este propósito que «as partes devem, pois, ter a oportunidade de demonstrar os fatos que servem de fundamento para as respetivas pretensões e defesas, sob pena de não conseguirem influenciar o órgão julgador no julgamento da causa. A noção de direito à prova aumenta as possibilidades das partes influenciarem na formação do convencimento do juiz, ampliando as suas chaces de obter uma decisão favorável aos seus interesses. Assim, as partes têm liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais»[11].

Situação que, como visto, não ocorreu no caso vertente!

O que tudo serve para dizer que a situação carecia de ser aprofundada, tendo sido prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, ter sido declarada sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº 3, 1ª parte, do n.C.P.Civil).

Nestes termos procedendo o recurso, com a revogação do segmento da sentença recorrida, para permitir que se proceda ao prévio e necessário apuramento de factualidade a tal necessária, e sem a qual não pode ter lugar uma decisão conscienciosa.

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A decisão de mérito sobre a (prévia) obrigação de prestar contas, numa  ação de prestação de contas, só deve ter lugar sem mais após os articulados se for uma questão exclusivamente de direito.

II – Deve ser qualificada como prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, declarar sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de  prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº3, 1ª parte, do n.C.P.Civil).

III – O direito à prova, sendo uma das dimensões em que se concretiza o direito a um processo equitativo, significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, na procedência do recurso, em revogar o segmento da decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que, no quadro do disposto no art. 942º, nº3, 1ª parte, do n.C.P.Civil, em ordem à (prévia) decisão sobre a obrigação de prestar contas, determine a produção das provas necessárias.

Custas pelo vencido a final.

                                                                                                       Coimbra, 11 de Maio de 2021

                                                                  Luís Filipe Cravo

                     Fernando Monteiro

                     Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Ana Vieira

[2] Assim por ALBERTO DOS REIS, in “Processos Especiais”, vol. I, Reimpressão, Coimbra, 1982, a págs. 326.
[3] Neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 09.02.2006, proferido no proc. nº 05B4061, acessível em www.dgsi.pt/jstj
[4] Cf. o acórdão do STJ de 04/07/95, no Proc. 87454 da 1ª secção, com sumário acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim VAZ SERRA, in “Scientia Iuridica”, vol. XVIII, a págs. 115, aliás, doutamente citado nas alegações recursivas.
[6] Citámos agora novamente ALBERTO DOS REIS, in obra e local referidos na antecedente nota [3], ora a págs. 303; no mesmo sentido, no acórdão do STJ citado na precedente nota [4], foi sublinhado que «Ora, a obrigação de prestação de contas existe, umas vezes, porque a própria lei o impõe (v. g. no Código Civil, os arts. 1161º, al. d) - quanto ao mandatário - e 2093º - relativamente ao cabeça de casal) enquanto noutras o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte.».
[7] Assim pelo acórdão do T. Rel. do Porto de 07.12.2018, proferido no proc. nº 3022/16.6T8OAZ-Q.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[8] Citámos agora o acórdão do T. Rel. do Porto de 05.12.2016, proferido no proc. n.º 406/14.8TBMAI.P1, também ele acessível em www.dgsi.pt/jtrp; no mesmo sentido, o acórdão do mesmo T. Rel. do Porto de 24.02.2015, proferido no proc. n.º 3767/13.2TBVFR.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrp; na doutrina, LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., Livª Almedina, 2017, a págs. 659.
[9] Habitualmente deduzido do disposto no art. 6º, nº3, al. d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
[10] Citámos agora o acórdão do Tribunal Constitucional de 11.11.2008, relatado por Carlos Fernando Cadilha, acessível em www.pgdlisboa.pt; entendimento similar tem vindo a ser definido pela demais  jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respetivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
[11] Vide EDUARDO CAMBI, “O direito à prova no Processo Civil”, in Revista da Faculdade de Direito UFRP, v34, 2000, disponível na net – http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/1836/1532.