Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1104/12.2T2AVR.P1.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: MAPA JUDICIÁRIO
REFORMA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO – AVEIRO – 1ª SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECLARAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA
Legislação Nacional: LEI Nº 62/2013, DE 26/08 (LOSJ); ARTS 103º E 104º, Nº 6 DO ROSJ (DEC. LEI Nº 49/2014, DE 27 DE MARÇO).
Sumário: I – No quadro da implementação da chamada Reforma do Mapa Judiciário, decorrente da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) e do Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março (ROSJ), os Tribunais da Relação devem assumir a continuidade, até à decisão final, dos processos que em 01/09/2014 (data da implementação dessa Reforma) se encontrem pendentes nesse Tribunal da Relação, nos termos dos artigos 103º e 104º, nº 6 do ROSJ, independentemente de o Tribunal de Primeira instância de origem do recurso ter ficado a pertencer, no novo mapa, a outro Tribunal da Relação.

II – A pendência de um processo num Tribunal da Relação pressupõe que, independentemente do acto de interposição do recurso (praticado na primeira instância) esse recurso já tenha sido distribuído no Tribunal da Relação em 01/09/2014, por ser esse elemento (a pendência no Tribunal) o considerado relevante como factor indutor da manutenção da competência de um Tribunal da Relação pelo artigo 103º do ROSJ, conjugado com o nº 6 do artigo 104º do mesmo Diploma.

III – Assim, um processo no qual, em 01/09/2014, havia sido interposto recurso para a Relação, mas que ainda não fora enviado (distribuído) a um Tribunal da Relação que no novo mapa havia perdido a competência para aquela localização territorial, tal processo deve subir em recurso ao Tribunal da Relação correspondente à comarca de primeira instância no novo mapa judiciário.

IV – Os artigos 103º e 104º, nº 6 do ROSJ configuram normas de direito transitório – regras de aplicação da lei no tempo – cuja incidência de base territorial descaracteriza o conflito gerado por decisões antagónicas de Tribunais no mesmo processo como questão de competência territorial que adquira, por via de uma primeira decisão transitada, o carácter definitivo previsto no artigo 105º, nº 2 do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

            1. Em 24/05/2012 foi proposta na Comarca do Baixo Vouga – Aveiro – Juízo de Grande Instância Cível, a acção declarativa na qual se gerou o presente recurso, sendo Autor J… e Ré a seguradora V…, S.A. e ambos Apelantes (trata-se de acção assente em imputação delitual a um segurado da R., visando a obtenção desta de uma indemnização global líquida de €678.558,50).

            Foi tal acção julgada pela Sentença proferida em 20/06/2014, da qual apelaram, sucessivamente, o A., em 14/07/2014, e a R., em 24/09/2014[1]. Recursos estes admitidos pelo despacho de fls. 848, proferido em 10/12/2014, que determinou a subida dos autos ao Tribunal da Relação do Porto.

            1.1. E foi o que sucedeu – e entramos assim no trecho processual relevante para a questão de competência tratada neste Acórdão –, por via do termo de remessa de fls. 849, o qual atesta o envio dos autos ao Tribunal da Relação do Porto em 15/01/2015, aí chegando em 20/01/2015, sendo nesse mesmo dia distribuídos, como resulta do termo de apresentação e exame constante de fls. 850.

            1.2. Nesse Tribunal, conclusos que foram os autos ao Exmo. Desembargador Relator, proferiu este Magistrado o despacho de fls. 851/853 (em 28/01/2015), declarando esse Tribunal da Relação “[…] incompetente em razão do território, para conhecer dos recursos apresentados nestes autos e competente, para o efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra” (transcrição de fls. 853). Foi este despacho notificado às partes, transitando em julgado.

            1.2.1. Sem transcrever aqui esse despacho – e esperando não estar a atraiçoar o entendimento do Exmo. Colega quanto à afirmação da competência desta Relação para apreciação dos recursos aqui em causa –, diremos assentar o entendimento aí expresso na consideração do artigo 103º do ROSJ como referido (destinado) exclusivamente aos processos que em 01/09/2014 já pendiam num determinado Tribunal da Relação, defendendo-se inexistir norma especial (que não seria, portanto, esse artigo 103º) referida aos processos que nessa data, em 01/09/2014, pendessem na primeira instância, “[…] mas cuja jurisdição  iria passar para os tribunais da relação na sequência de recursos já interpostos ou a interpor”.

Existiria, assim, uma lacuna referida à alocação aos Tribunais da Relação dos processos nas condições acabadas de citar, que deveria ser integrada através de analogia, aqui estabelecida com o artigo 38 da LOSJ[2]. Esta norma, analogicamente transposta para a instância de recurso, significaria que esta se iniciaria com a apresentação do recurso (do requerimento de interposição e motivação), sendo essa incidência circunstancial que deveria ser referida ao dia 01/09/2014, para efeito de determinação do tribunal de recurso competente. Foi assim que, existindo neste caso um recurso já interposto em 14/07/2014 (o do A., cfr. fls. 765), e outro em 24/09/2014 (o da R., cfr. fls. 766), o Exmo. Colega da Relação do Porto entendeu que a primeira data (a interposição do primeiro dos recursos) capturaria a competência deste Tribunal da Relação de Coimbra, como instância de recurso correspondente à Comarca do Baixo Vouga antes da extinção desta, antes de 01/09/2014.

Crendo nós haver descrito com exactidão a posição da Relação do Porto, cumpre-nos expor, de seguida, o entendimento desta formação do Tribunal da Relação de Coimbra quanto à questão da competência para apreciação dos recursos em causa nesta acção, em função dos dados de tempo e demais circunstancias expostos ao longo deste item 1., em função, como não podia deixar de ser, da interpretação que fazemos das disposições convocadas pelas apontadas circunstâncias.

2. Na tomada de posição desta Relação de Coimbra confluem duas questões com relevância para a aceitação ou recusa da competência que o Exmo. Colega da Relação do Porto nos atribuiu.

(a) Em primeiro lugar, haverá que definir a competência dos Tribunais da Relação, relativamente aos processos já existentes em 01/09/2014, face às incidências decorrentes da entrada em vigor da Reforma do Mapa Judiciário (evento que definimos na nota 3 supra por referência aos dois Diplomas que o protagonizaram, a LOSJ e o ROSJ, entrados em vigor, precisamente, em 01/09/2014). A incidência dessa Reforma que aqui nos interpela – e estamos a descrever o caso concreto – prende-se com a determinação da segunda instância de destino de processos pendentes na primeira instância em 01/09/2014, em que tenha já sido interposto recurso mas ainda não tenha ocorrido a remessa do processo ao Tribunal da Relação, quando na organização anterior à LOSJ este Tribunal (a Relação) era diferente do (da) resultante da nova organização judiciária entretanto introduzida.

(b) Em segundo lugar, entendendo esta formação diversamente do Exmo. Colega da Relação do Porto, suscita-se a questão de saber se o conflito assim gerado – aparentemente um conflito negativo de incompetência territorial (rectius, incompetência relativa) entre Tribunais da Relação – é processualmente possível, em função do que dispõe o nº 2 do artigo 105º do CPC. Trata-se de saber, pois, se a decisão proferida na Relação do Porto não bloqueia a suscitação de um conflito, por fixar definitivamente a competência deste Tribunal da Relação de Coimbra

2.1. (a) Abordando a primeira questão, dando aqui por adquiridas as incidências temporais do processo acima indicadas – as quais, aliás, ninguém discute –, centrar-nos-emos na questão da interpretação do artigo 103º do ROSJ, enquanto disposição que entendemos assumir a natureza de norma de direito transitório atinente à Reforma do Mapa Judiciário, expressamente referida à competência dos Tribunais da Relação.

Tenha-se presente que nesta Reforma, no que diz respeito à alocação de competência territorial aos diversos Tribunais da Relação, a Comarca de Aveiro pertence à área atribuída ao Tribunal da Relação do Porto (cfr. o artigo 4º, nº 2 e mapa II anexo ao ROSJ), só sendo equacionável que um processo suba em recurso da Comarca de Aveiro ao Tribunal da Relação de Coimbra[3] em função da incidência de alguma regra de direito transitório competencial que se extraia do ROSJ, em função das específicas incidências temporais dessa instância de recurso.

Interessa-nos a este respeito, pois, e desde logo, o artigo 103º do ROSJ, sendo relevante a compreensão compaginada deste com o subsequente artigo 104º do mesmo Diploma regulamentar:
Artigo 103º
Fixação de competência
A competência dos atuais tribunais da Relação mantém-se para os processos neles pendentes.

            Não se discutindo resultar desta norma que os processos que já estavam pendentes (em 01/09/2014) num determinado Tribunal da Relação aí devem permanecer, perdurando a competência desse Tribunal, até ao julgamento do recurso respectivo, mesmo que o Tribunal de origem desse recurso (o Tribunal sucessor deste na nova organização judiciária) tivesse deixado, por via do Novo Mapa Judiciário, de integrar a área desse Tribunal da Relação, não se discutindo isto, dizíamos, já se discute – e é o cerne da discussão aqui introduzida pela Relação do Porto – se desta mesma norma não resulta também o complemento lógico implícito que aqui expressamos nos seguintes termos: a competência das Relações não é tocada pelas alterações do novo mapa relativamente aos processos pendentes na segunda instância, valendo isto por dizer que os processos existentes na primeira instância, que não estiverem pendentes no Tribunal da Relação em 01/09/2014, sobem em recurso ao Tribunal da Relação que, segundo o novo mapa, venha a corresponder àquele Tribunal de primeira instância. Ou seja, dizendo o mesmo de forma diversa, tomando-se por base o conceito de pendência do processo num determinado Tribunal da Relação, faz-se descaso do acto de interposição do recurso para o efeito de fixação de competência em causa no artigo 103º do ROSJ, o mesmo sucedendo, como veremos, no nº 6 do subsequente artigo 104º.

É esta asserção complementar que importa testar nesta tomada de posição.

            2.1.1. (a) Começando pela definição do conceito de pendência de um processo num Tribunal da Relação, não vemos alternativa consistente à recondução do termo inicial dessa pendência ao acto de distribuição no Tribunal de recurso, como refere Salvador da Costa, anotando o artigo 103º do ROSJ: “[a…] pendência de processos nos tribunais da Relação deve ser entendida no sentido de posterioridade à data em que neles foram distribuídos ao respectivo relator, nos termos do proémio do nº 1 do artigo 652º do CPC[4].

            Assente que assim é – que os processos pendentes nos Tribunais da Relação eram os processos aí já distribuídos em 01/09/2014 –, interessa agora referenciar a norma de direito transitório de âmbito mais geral que o ROSJ reporta às alterações da competência com incidência territorial. Detectamos essa norma com vocação de generalidade no artigo 104º do ROSJ:
Artigo 104º
Transição de processos pendentes
1 – Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local.
2 - Os processos pendentes nas atuais varas cíveis, varas com competência mista cível e criminal e juízos de grande instância cível das comarcas piloto, independentemente do valor, transitam igualmente para as secções de competência especializada das instâncias centrais referidas no número anterior.

3 - Transitam para os tribunais de competência territorial alargada, à data da instalação dos novos tribunais, os processos pendentes nos atuais tribunais de competência especializada que lhes correspondam.
4 - Os processos pendentes nos atuais tribunais e juízos de competência especializada das comarcas piloto, não incluídos no número anterior, transitam, dentro do mesmo município, à data da instalação dos novos tribunais, para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as regras de competência material.
5 - Os processos pendentes nas atuais comarcas, não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respetivas instâncias locais.
6 - Os processos objeto de interposição de recurso jurisdicional que se encontrem pendentes nas instâncias superiores, à data da instalação dos novos tribunais, transitam, após decisão, para as secções ou tribunais competentes, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, sem prejuízo do previsto no n.º 2.
7 - Os processos em que o Ministério Público é titular, pendentes nos atuais tribunais, departamentos de investigação e ação penal ou serviços do Ministério Público, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para os departamentos ou serviços do Ministério Público que lhes correspondam.
(destaque acrescentado).

            É óbvia a conexão lógica – uma complementaridade que actua paredes-meias com a redundância no que aos Tribunais da Relação diz respeito – entre o nº 6 deste artigo 104º e o artigo 103º antes mencionado. Com efeito, em função da projecção futura da competência dos Tribunais da Relação para julgamento dos recursos nos processos neles pendentes, mesmo quando oriundos de primeiras instâncias entretanto subtraídas pela Reforma à área de competência territorial desse Tribunal da Relação (como diz o artigo 103º), em função disto, dizíamos, reafirma-se que estes processos só transitam para o Tribunal (de primeira instância) correspondente no novo mapa “[…] após decisão […]”. Ou seja – e isto, no artigo 104º, nº 6, vale para os processos pendentes nas Relações, no Supremo Tribunal de Justiça e no Tribunal Constitucional[5] –, os processos em fase de recurso, os processos pendentes nas instâncias superiores, só transitam para os novos Tribunais de base criados pela Reforma após trânsito em julgado da decisão proferida em recurso. É, pois, inteiramente consistente o entendimento – cremos mesmo ser o único consistente – de Salvador da Costa anotando este nº 6 do artigo 104º do ROSJ:
“[…]
Os processos a que este normativo se reporta [o nº 6] são os que, à data do início do funcionamento dos novos tribunais, estejam em fase de recurso distribuído nos tribunais da Relação, no Supremo Tribunal de Justiça, para o pleno das secções cíveis ou para o Tribunal Constitucional.
Não se trata, pois, da fase de recurso, que começa logo que seja interposto, nos tribunais de primeira instância, nas Relações ou no Supremo Tribunal de Justiça.
[…]
Em suma, os processos que, à data do início do funcionamento dos novos tribunais, estejam em fase de recurso, distribuídos nas Relações, no Supremo Tribunal de Justiça ou no Tribunal Constitucional, devem ser remetidos, após o trânsito em julgado da decisão final, às secções ou tribunais competentes, conforme as novas regras de competência material e territorial […].
[…]”[6] (sublinhado acrescentado).

            Corresponde a interpretação jurídica a uma actividade intelectual, respeitando esta à determinação da mensagem normativa que emerge de determinado texto legal, devendo concretizar-se numa reconstituição, a partir do texto – e estamos a parafrasear o artigo 9º, nº 1 do Código Civil –, do pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias de elaboração da lei e as condições específicas da sua aplicação.

            Neste caso, na compreensão (na interpretação) do texto do artigo 103º do ROSJ é significativa a utilização da expressão “processos […] pendentes”, cujo sentido é claro no referenciar de uma situação e não de um acto processual isolado: sinaliza a pendência um estado, uma situação na dinâmica processual, que aqui se caracteriza por um determinado processo estar no Tribunal da Relação; não sinaliza (o processo estar pendente) um acto concreto definidor de uma determinada situação processual como seja o acto de interposição do recurso. E, enfim, a compreensão do texto com este sentido é reforçada – em nosso entender é mesmo cabalmente esclarecida – quando o nº 6 do artigo 104º do ROSJ, complementarmente ao artigo 103º, distingue claramente, na construção da sua previsão, a “interposição de recurso” em determinado processo da pendência deste no Tribunal superior (“[o]s processos objecto de interposição de recurso […] que se encontrem pendentes nas instâncias superiores, à data da instalação dos novos tribunais […]”). O elemento relevante na construção, por via da previsão, da estatuição da norma (essa estatuição corresponde a ficar o processo na instância superior até à decisão final) corresponde, nos processos em que foi interposto recurso, à situação de estar o processo pendente no Tribunal superior, sendo que a pendência se alcança pela consideração do acto de distribuição do processo (do recurso) nesse Tribunal (trecho inicial do artigo 652º, nº 1 do CPC), não pela interposição de recurso, acto que ocorre, no que a um recurso para a Relação diz respeito, durante a pendência deste em primeira instância.

            2.1.2. (a) Vale este entendimento, pois, nos casos de mudança do Tribunal da Relação competente, pela consideração de que um processo, como aqui sucede, com um recurso interposto antes de 01/09/2014, mas ainda não enviado ao Tribunal da Relação, não compete territorialmente ao Tribunal da Relação que lhe correspondia na orgânica judiciária anterior à Reforma do Mapa Judiciário, devendo ser remetido, quando esse envio ocorra posteriormente a 01/09/2014 – como aqui sucedeu –, ao Tribunal da Relação que corresponda ao Tribunal de primeira instância na nova orgânica judiciária.

            Cremos ter sido este o propósito claro do legislador quanto ao regime transitório de implementação do Novo Mapa Judiciário nos Tribunais da Relação (os únicos Tribunais superiores onde ocorreram mudanças de competência territorial), sendo evidente a pretensão de subtracção da instância de recurso, assinalada pela pendência nela dos recursos em 01/09/2014, à extensa movimentação de processos decorrente da extinção dos Tribunais de primeira instância com a correspondente criação de novos Tribunais.

            Assim sendo, entendido o artigo 103º do ROSJ com o sentido antes exposto, carece este Tribunal da Relação de Coimbra de competência territorial para apreciação dos recursos interpostos nestes autos, os quais no dia 01/09/2014 não estavam pendentes nesta Relação. Com efeito, compete o julgamento destes recursos ao Tribunal da Relação do Porto, dado corresponderem a processo de Tribunal integrado na área de competência dessa Relação.

            A afirmação no contexto deste Acórdão da incompetência do Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação dos recursos interpostos nestes autos passa, todavia, pelo esclarecimento adicional da questão acima enunciada em segundo lugar no item 2.

            2.2. (b) Trata-se agora de determinar, expressando a Relação do Porto a respectiva declaração de incompetência como em razão do território, se a situação configurada corresponde proprio sensu a um caso de incompetência relativa (v. o artigo 102º do CPC), que inibiria este Tribunal da Relação de Coimbra de decidir diversamente essa mesma questão, por o trânsito em julgado da decisão da Relação do Porto ter resolvido definitivamente a correspondente questão de competência, como resulta do artigo 105º, nº 2 do CPC.

            Tenha-se presente que à incidência territorial da questão aqui colocada se sobrepõe totalmente, descaracterizando-a como mera questão de competência territorial, a circunstância de estarem em causa, fundamentalmente, regras de direito transitório, problemas de aplicação da lei no tempo – é esse o sentido dos artigos 103º e 104º do ROSJ –, especificamente estabelecidos pelo legislador no quadro geral da implementação da Reforma do Mapa Judiciário. Este descreve-se fielmente como transformação estrutural profunda da organização dos Tribunais à escala nacional – envolvendo todo o país e todos os processos existentes –, cuja magnitude implicou a definição de regras específicas de direito transitório quanto à alocação dos processos às novas estruturas criadas, num quadro com importantes reflexos nos Tribunais da Relação e nas instâncias de recurso já formadas nestes, em função de uma divisão territorial que se alterou significativamente e em função dos processos pendentes na instância de recurso estarem como que retirados, ao tempo da implementação do mapa, da movimentação induzida por essa implementação. Poderia o legislador ter equacionado outra solução, mandando regressar os processos ao (novo) Tribunal de base, distribuindo-os depois pelos competentes Tribunais de recurso, mas essa opção – uma opção que se prefiguraria como bem pouco eficiente – acrescentaria importantes elementos de perturbação numa movimentação processual que, reduzida tão-somente à circulação de processos pendentes em primeira instância, já de si apresentou (apresenta) consideráveis problemas práticos.

            Foi neste quadro que o legislador decidiu subtrair a essa amplíssima movimentação os processos já existentes nos Tribunais de recurso, com especial ênfase para os Tribunais da Relação, os únicos Tribunais de recurso directamente afectados pelas transformações da base territorial. Com efeito, tratou-se no caso dos Tribunais da Relação – e é esse o sentido do artigo 103º do ROSJ conjugado com o artigo 104º, nº 6 do mesmo Diploma –, enquanto solução mais pragmática e, por isso, directamente visada, de bloquear a retrospectividade (retroactividade imprópria ou inautêntica) da nova reforma às instâncias de recurso já formadas (aos processos já pendentes) num Tribunal de recurso que, em função do novo mapa, perderia – perderia, não fora a norma de direito transitório – competência para alguns dos processos nele efectivamente existentes, rectius, pendentes.

            Esta singularidade da questão de aplicação da lei no tempo induzida pelo artigo 103º, conjugado com o artigo 104º, nº 6 ambos do ROSJ, descaracteriza totalmente a natureza de questão de competência territorial das decisões jurisdicionais envolvendo estas regras, conduzindo à necessidade de afastar essas questões do quadro do nº 2 do artigo 105º do CPC[7], admitindo que a interpretação dessas regras possa originar decisões antagónicas dentro do mesmo processo quanto à competência, envolvendo Tribunais diferentes, e que estas decisões possam originar conflitos de competência e, em função disso, ser objecto de resolução de conflito de competência nos termos dos artigos 110º, nº 2 e 111º, nº 1 do CPC.

            Pressupõe esta visão da situação que aqui se configura uma interpretação assente numa redução teleológica[8], com o sentido de restrição do âmbito literal do artigo 105º, nº 2 do CPC, assente na consideração de que o legislador ao estabelecer o carácter inatacável (a definitividade) das (primeiras) decisões respeitantes à incompetência relativa de base territorial não visou – desde logo por imprevisão da situação aqui em causa – regular situações de aplicação da lei no tempo, concretamente com o sentido assumido pelas regras estabelecidas nos artigos 103º e 104º do ROSJ[9].

            É em função disto que declararemos este Tribunal da Relação incompetente em razão do território para apreciação dos presentes recursos, que aqui não pendiam em 01/09/2014 e que respeitam a Tribunal recorrido integrante da área territorial do Tribunal da Relação do Porto, não do Tribunal da Relação de Coimbra.

            2.3. Sumário elaborado pelo relator:
I – No quadro da implementação da chamada Reforma do Mapa Judiciário, decorrente da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) e do Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março (ROSJ), os Tribunais da Relação devem assumir a continuidade, até à decisão final, dos processos que em 01/09/2014 (data da implementação dessa Reforma) se encontrem pendentes nesse Tribunal da Relação, nos termos dos artigos 103º e 104º, nº 6 do ROSJ, independentemente de o Tribunal de Primeira instância de origem do recurso ter ficado a pertencer, no novo mapa, a outro Tribunal da Relação;
II – A pendência de um processo num Tribunal da Relação pressupõe que, independentemente do acto de interposição do recurso (praticado na primeira instância) esse recurso já tenha sido distribuído no Tribunal da Relação em 01/09/2014, por ser esse elemento (a pendência no Tribunal) o considerado relevante como factor indutor da manutenção da competência de um Tribunal da Relação pelo artigo 103º do ROSJ, conjugado com o nº 6 do artigo 104º do mesmo Diploma;
III – Assim, um processo no qual, em 01/09/2014, havia sido interposto recurso para a Relação, mas que ainda não fora enviado (distribuído) a um Tribunal da Relação que no novo mapa havia perdido a competência para aquela localização territorial, tal processo deve subir em recurso ao Tribunal da Relação correspondente à comarca de primeira instância no novo mapa judiciário;
IV – Os artigos 103º e 104º, nº 6 do ROSJ configuram normas de direito transitório – regras de aplicação da lei no tempo – cuja incidência de base territorial descaracteriza o conflito gerado por decisões antagónicas de Tribunais no mesmo processo como questão de competência territorial que adquira, por via de uma primeira decisão transitada, o carácter definitivo previsto no artigo 105º, nº 2 do CPC.

            3. Face a tudo o que se expôs, declara-se a incompetência de base territorial, por via dos artigos 103º e 104º, nº 6 do ROSJ, do Tribunal da Relação de Coimbra para o julgamento dos presentes recursos, determinando-se a remessa do processo, após trânsito desta decisão, sem prejuízo do disposto no artigo 111º do CPC, ao Tribunal da Relação do Porto.

            Sem custas.

            Notifique.

            Tribunal da Relação de Coimbra, 17/03/2015

J. A. Teles Pereira (Relator)

Manuel Capelo

Luís Falcão de Magalhães (com declaração de voto)

Declaração de voto:

Voto o Acórdão, com que estou em plena concordância, com o esclarecimento de que revi a minha posição quanto à subsunção de casos como o presente ao regime preclusivo previsto no artº 105º, nº 2, do novo Código de Processo Civil, esclarecendo também - pois o meu silêncio sobre essa questão, apesar de o Acórdão não a abordar, nem o dever fazer, poderia dar azo a interpretações que colocaria em causa posições que já assumi noutros processos -, entender, também, que a pendência num Tribunal da Relação, em 01/09/2014, de um recurso de um determinado processo, (seja recurso que subiu nos autos principais, seja recurso que subiu em separado), cristaliza nesse Tribunal, “ex vi” do artº 103º do ROFTJ, a competência para apreciar os recursos que respeitem a esse processo, quer sejam interpostos posteriormente a essa data, quer hajam sido interpostos anteriormente a ela, mas com subida diferida para momento posterior.

Coimbra, 17/3/2015

Luís José Falcão de Magalhães


[1] No seu percurso em primeira instância, o processo transitou, entre estes dois recursos (depois de interposto o primeiro e antes de interposto o segundo), da Comarca do Baixo Vouga, entretanto extinta, para a Comarca de Aveiro, entretanto criada. Tudo isto como decorrência da entrada em vigor, em 01/09/2014, da chamada Reforma do Mapa Judiciário, decorrente da edição da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto – LOSJ) e, posteriormente, do Regulamento da Organização do Sistema Judiciário (Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março – ROSJ).
A data da entrada em vigor desta Reforma – 1 de Setembro de 2014 – resulta da conjugação dos artigos 188º, nº 1 da LOSJ e 118º, nº 1 do ROSJ.
[2] Que dispõe:
Artigo 38º
Fixação da competência
1 – A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.
[3] Por no passado – rectius, antes de 01/09/2014 – esta Relação (Coimbra) ter sido a instância de recurso de parte significativa do que é hoje a Comarca de Aveiro, então protagonizada pela agora extinta Comarca do Baixo Vouga.
[4] Regulamento da Organização do Sistema Judiciário e Funcionamento dos Tribunais Judiciais anotado, Coimbra, 2014, p. 183.
[5] Estes, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional, estão fora da previsão do artigo 103º, pela simples evidência – e apenas o dizemos aqui para sublinhar essa evidência – de nenhum destes Tribunais sofrer, como é óbvio pela sua própria natureza, alterações de… “competência territorial”.
[6] Regulamento da Organização do Sistema Judiciário e Funcionamento dos Tribunais Judiciais…, cit. p. 189/190.
[7] Numa situação diversa, mas que teve na base a mesma questão de inadequação das regras processuais existentes (aparentemente aplicáveis), quanto a questões de competência, face a modificações de fundo da orgânica judiciária, podemos convocar um exemplo, que já é história. Referimo-nos à diferenciação orgânica do Tribunal de Círculo (a criação dos Tribunais de Círculo enquanto estruturas autónomas) introduzida no início dos anos 90 (através das alterações à LOTJ introduzidas pela Lei nº 24/92, de 20 de Agosto, reforma depois abandonada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro). Colocou-se então, a respeito da infracção das regras de repartição de competências entre os tribunais de comarca e de círculo (repartição assente fundamentalmente no valor da causa) a questão da inadequação das regras do CPC sobre a incompetência em razão do valor, da hierarquia ou da matéria. Central na dilucidação desta polémica foi, então, um texto de Carlos Lopes do Rego (Natureza da Competência do Tribunal de Círculo na Actual Organização Judiciária, ed. Do CEJ, Lisboa 1991/92) no qual se demonstrava a inadequação das regras existentes sobre incompetência, concretamente das que conduziam ao regime da incompetência relativa, para abordar, sem norma específica de direito transitório, questões decorrentes de alterações profundas da orgânica judiciária. Propunha o Autor, nesse enquadramento, a criação pelo intérprete de uma norma combinando os aspectos centrais das várias incompetências que se mostrassem adequados à programação da vontade do legislador com essa reforma. Aqui – e este corresponde ao argumento de analogia com essa experiência passada –, o legislador programou expressamente a transição profunda que introduziu na orgânica judiciária, através de normas especiais cuja actuação visa, precisamente, afastar a incidência de um regime geral pensado para outras situações. É precisamente esta abordagem que aqui propugnamos.  
[8] “[Qualificamos] de lacuna «oculta» o caso em que uma regra legal, contra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida no texto legal. A integração de uma tal lacuna efectua-se acrescentando a restrição que é requerida em conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão de sentido da lei, falamos de uma «redução teleológica»” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa da 6ª ed. alemã por José Lamego, 5º ed., Lisboa, 2009, pp. 555/556).
[9] Sublinhamos a existência de um precedente fortemente persuasivo na Decisão (que cremos inédita) do Exmo. Vice-Presidente do STJ, Conselheiro Salazar Casanova, de 23/02/2015, proferida no conflito de competência no processo nº 923/11.1T2ETR.C1.S1, numa situação idêntica a esta, envolvendo os mesmos Tribunais da Relação. No mesmo sentido, e como precedente que aqui assumimos como persuasivo, a decisão sumária desta Relação de 03/11/2014 (Luís Filipe Cravo), proferida no processo nº 3912/13.8YIPRT.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/627ef22559762d8480257daa0038c17.
“[…]

1.- O art.103 do ROFTJ ( DL nº 49/2014 de 27/3) dispõe que “ a competência dos actuais tribunais da Relação mantém-se para os processos neles pendentes”.

2.- Por força do argumento a contraio sensu, essa competência não se mantém ou existe para um recurso que dê entrada na secretaria do Tribunal da Relação a partir do dia 1 de Setembro de 2014.
[…]”.