Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO
IMPUGNAÇÃO
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
REGISTO PREDIAL
Data do Acordão: 05/24/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.4 Nº2 CPC, 291, 342, 343 Nº1 CC, 17, 116 CRP
Sumário: 1. Quando dois compossuidores fazem um acordo entre eles de divisão do prédio e um deles passa a ocupar uma das metades do mesmo, deixa, a partir daí, de se poder falar de posse exercida como comproprietários.

2. A impugnação de escritura de justificação notarial corresponde a uma acção de simples apreciação negativa de um direito, cabendo aos réus, nessa parte, o ónus da prova dos factos que alegaram na dita escritura. E isso mesmo que o prédio já esteja registado a favor deles (aqui por força do AUJ 1/2008).

3. Não pode ser ordenado o cancelamento dos registos a favor de terceiros, feitos antes de registada a acção sem que, pelo menos, esses terceiros sejam parte na acção.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra os juízes abaixo assinados:

              M (…)e marido, C (…) residentes em França, intentaram em 12/06/2002 contra A (…) e marido, CA (…), residentes na Meda, a presente acção pedindo: que se declare que a) o lote de terreno identificado no art. 5 da petição inicial é propriedade comum e em partes iguais dos autores e réus e, b), a ineficácia da escritura de justificação notarial celebrada pelos réus em 28/06/1989 quanto à produção de efeitos e definição de direitos; a condenação dos réus c) a destruírem a parte nascente da casa de modo a recuarem 2 m para poente; e d) o anexo que construíram na parte traseira da casa e em consequência a reporem o terreno no estado em que se achava antes; e que se decrete e) a ineficácia de qualquer registo do prédio justificado.

              Alegam, para tanto, em síntese, que por morte da mãe da autora e da ré, um prédio urbano ficou para o pai de ambas; este, em 1971, dividiu-o em 6 partes que deu verbalmente aos filhos; em 1974, depois da morte do pai, todos os seus herdeiros acordaram que o lote de terreno identificado no art. 5 da pi (= lote 5), com uma área total de 370 m2, ficasse em comum para a autora e para a ré; por volta de 1984/1985, os réus ergueram uma construção na parte da frente desse lote, com o conhecimento e autorização dos autores; autores e réus combinaram uma linha divisória no lote 5; a partir de 1989 os réus iniciaram diligências para registar o “seu” terreno, que incluíram uma carta para os autores, dizendo que ajudariam depois os autores a registar o deles na parte traseira e pedindo-lhes uma procuração para o efeito, o que os autores outorgaram; a construção dos réus terminou com a parede nascente 2 m para lá da linha divisória combinada; em 28/06/1989, os réus outorgaram uma escritura de justificação notarial em que se afirmaram donos exclusivos de um terreno que englobava o lote 5 e o lote de 150 m2 que tinha cabido ao irmão (…); acrescentam que nunca os autores e os réus dividiram e demarcaram o lote 5 em termos de qualquer deles poder afirmar uma posse exclusiva sobre parte determinada; desde 1974 que o prédio sempre foi possuído como terreno comum por autores e réus, à vista de todos, sem interrupção alguma e sem oposição de terceiros e na convicção de serem seus donos em comum e partes iguais; invocam, por tudo isto, que autores e réus adquiriram, por usucapião, a compropriedade do lote 5; em 1998 os réus, com oposição dos autores, muraram o terreno (lote 5 mais lote do irmão) e disseram que o terreno era todo dos réus, tendo feito um anexo na parte traseira do terreno.

              Os réus contestaram, misturando impugnação com excepções, que não identificam, dizendo, em síntese, que o lote 5, atribuído em comum para autora e ré [e que admitem ter sido possuído em comum por ambas desde 1974, como donas em comum e partes iguais], ficou somente com uma área de 305 m2 depois da abertura da rua e que daqui… resultou a divisão desse lote em duas parcelas, ficando uma, de 150 m2, para os autores e outra, de 155 m2, para os réus, esta a acrescer à parcela cedida pelo irmão (JC)...; esta parcela do irmão tinha 176 m2 em vez dos 150 m2 que constam da declaração de venda, venda esta que, apesar de ter a data de 17/12/1990, tinha sido acordada logo após a partilha por morte da mãe [partilha que ocorreu em 1964 – data em que a ré tinha 10 anos…]; a escritura de justificação [do terreno com 520 m2 = lote 5 + lote do irmão J (…) + 39 m2 cedidos pela CM] foi outorgada para resolver a questão do registo, com o acordo com os autores e estando os réus legitimados pela procuração dos autores [apesar de acima terem dito que os autores logo em 1989 procuraram anular a escritura…], mas os réus continuam dispostos a fazer o necessário para que a parte sobrante do lote dos autores seja registada em nome dos autores; a casa dos réus não foi para além da linha divisória acordada com os autores [mas mais à frente – para o pedido reconvencional - admitem que sim]; a parte dos réus ainda tem mais 39 m2 cedidos pela CM da Meda aquando do alinhamento da rua [o que dá 370 m2…]; os réus apenas muraram a sua parte do lote, tendo colocado uma rede provisória no restante terreno para evitar a passagem de pessoas e animais; o anexo foi construído na parte que tinha sido o lote do irmão J (…). E reconvencionam o direito a adquirir, ao abrigo do art. 1343º do CC, a parte do terreno que dizem ser dos autores ocupada com a sua casa, pagando os réus aos autores o preço de mercado que tal parte tenha. Concluem pela improcedência da acção.

              Os autores replicaram, impugnando os factos alegados como excepção (entre o mais explicando que a procuração a que aludiram nunca tinha sido enviada aos réus, por receio de virem a ser prejudicados) e base da reconvenção.

              Depois do julgamento foi proferida sentença julgando acção e reconvenção não provadas e improcedentes e absolvendo os réus e os autores dos pedidos.

              Os autores interpuseram recurso desta sentença – para seja revogada e substituída por outra que julgue procedentes os pedidos formulados sob a), b) e e) -, terminando as suas alegações com conclusões que, em síntese, se traduzem no seguinte:
         i) Os factos constantes de Q) – admitidos por acordo (arts. 22 da contestação e 37 a 39 da petição) - são suficientes para decidir que o lote 5 pertence, por ter sido adquirido por usucapião, aos autores e aos réus, em compropriedade;
         ii) A área deste lote 5 deve ser a que foi dada como provada (pela perícia; e esta área é maior do que a que foi alegada);
         iii) Os factos constantes de Q) não deviam ter sido juntos aos factos constantes de P), como o fez a sentença, por a matéria das duas alíneas nada terem a ver uma com a outra;
         iv) Da resposta aos quesitos não decorre que a propriedade do lote 5 não seja dos autores e dos réus, até porque das testemunhas ouvidas, todas dos réus, nada de útil resultou, como o reconhece a própria fundamentação da decisão da matéria de facto; de resto, estavam já assentes factos relacionados com a posse, pelo que não havia quesitos sobre a mesma;
         v) Face à admissão, pelos réus, de que o lote 5 era comum, o que eles vieram dizer sobre a escritura de justificação – arts. 19 e 20 da contestação e factos assentes sobre I) a M) – permite concluir que o que foi dito nessa escritura não corresponde à verdade, pelo que o pedido correspondente à escritura não pode deixar de ser considerado procedente (isto mesmo considerando que as declara-ções da escritura visam o lote 5 (compropriedade entre autores e réus) e o talhão adjacente que os mesmos réus vieram mais tarde a comprar ao irmão J (…));
         vi) Ao desconsiderar os factos sob Q), a sentença pôs em causa os valores da segurança e da coerência jurídica da actividade jurisdicional, a favor de uma autêntica álea processual (e substan-tiva), violando diversos comandos processuais, como sejam, os arts. 513º (relativamente à prova dos factos controvertidos e dos necessitados dela); 653º/2 (relativamente à declaração dos que se consideram provados); e 659º (acatamento dos factos admitidos por acordo), em suma, que vinculam à observância da ‘matéria assente’ e investigação dos quesitos da ‘base instrutória’, impedin-do a reapreciação daquela, ocorrência que, traduzindo uma adesão a um entendimento sem base processual, indicia erro de julga-mento;
         vii) Ao considerar que a prova testemunhal não tinha valor e que só lhe restava, ‘com segurança’, atender à matéria assente e depois decidindo contra o que resultava dos factos assentes, a sentença cometeu a nulidade prevista no art. 668/1c) do CPC;
         viii) A conclusão da sentença de que se produziu prova oposta sobre a propriedade do prédio em causa está errada.

              Os réus não contra-alegaram.

                                                                 *

              Questões que importa solucionar: se os factos provados são sufici-entes para dar procedência ao pedido a) (usucapião da compropriedade) e nesse caso se a área do lote 5 deve ser a que foi apurada no decurso do processo; se o que consta dos factos provados devia levar à procedência do pedido b) (ineficácia da escritura); se a sentença desconsiderou factos assentes e se com isso violou as normas processuais invocadas pelos recorrentes; se existe contradição entre os fundamentos da sentença e a sua decisão, ou seja, uma das nulidades do art. 668 do CPC.

                                                                 *

              Factos provados [os sob alíneas vêm dos factos assentes e os sob nºs. vêm da resposta aos quesitos]:
         A) A autora e a ré são filhas de F (…)
         B) No tribunal judicial da Meda correu termos uns autos de inventário obrigatório, tendo o cabeça de casal F (…)declarado no respectivo auto de declarações de cabeça de casal "que a inventariada se chamava L (…), era sua esposa e faleceu no dia 11/12/1963.”
         C) Nesse inventário foi adjudicado a F (…) o imóvel relacionado sob a verba n° 8 descrito como sendo "uma casa térrea, sita no Q..., limite da freguesia de Meda, confrontando do nascente com ..., do poente com Dr. ..., do norte com caminho e do sul com ...".
         D) Por volta de 1971, F (…) dividiu o prédio referido em C) e seu logradouro em seis talhões, que deu verbalmente aos filhos.
         E) À autora ficou a caber um talhão que se verificou situar num local onde passaria uma rua projectada pela Câmara.
         F) Nos primeiros meses de 1974 - e para acerto de partilhas - todos os herdeiros acordaram que o lote do canto, na confluência da Rua do (P)...com a Rua (X)..., que confronta a nascente com Rua n° (Y)..., a norte com Rua do (P)..., a poente com Rua (X)... e a sul com lote do (JC)..., ficava, em comum, para a autora e para a ré.
         G) Os anos passaram sem que autores e réus dessem destino ao terreno.
         H) Até que, em determinada altura, em parte desse terreno comum, os réus ergueram uma construção, em blocos, de 4 paredes e placa (a que os réus chamavam garagem) com conhecimento e autorização dos autores.
         I) Em Janeiro de 1989, a ré escreveu pelo seu punho uma carta que enviou para os autores em França, cujo teor é o seguinte: [...] que pois deves estranhar esta minha carta mas era para te pedir um favor que bem o podes fazer se quiseres pois já não há voltas que não demos por causa de legalizar a garagem e a única [hipótese qu]e nos dão agora é dar como o pai deixou só aquilo e que vós todos concordais que seja para mim pois os outros todos estão de acordo pois mesmo se conseguimos tenho que pa[gar] a multa desde que o pai morreu o tanto por ano e a contribuição dos últimos cinco anos pelo menos mas é se conseguir agora se tu quiseres posso pôr também o teu terreno e depois logo que esteja resolvido faço-te uma escritura do teu porque agora nem que queiras fazer obras não podes fazer como está porque agora quando se vai pedir a licença pedem o registo do terreno pois o (JC)...quer que ponha o dele e depois faço-lhe a escritura mas para isso preciso de uma procuração vossa e outra da (F)... [nome porque é conhecida a irmã (F)...] que também já lho pedi só para dizer que foi o que o pai deixou e que concordais que seja para mim mas tem que vir em nome de um herdeiro seja ele no nome de quem quiseres mas pedia-te por favor e por alma dos nossos pais que ma fizesses logo que fosse possível para ver se conseguia alguma coisa para ver se fazia a minha casa caso não consiga vou-me daqui para fora que nem a garagem quero ver [nunca] mais pois se for preciso pago aquilo que gostares (...)"
         J) No dia 17/02/1989, compareceram no Consulado de Portugal em Nogent-Sur-Marne os autores, e por eles foi dito que constituíam seu bastante procurador A (…)a quem conferiam plenos poderes para proceder ao registo de um terreno com casa em construção sito no bairro do Q..., freguesia e concelho da Meda, terreno esse que fazia parte da herança deixada por seus sogros e pais respectivamente, F (…) e esposa L (…) a sua cunhada e irmã A (…); outorgar e assinar as necessárias escrituras e requerer quaisquer registos nas respectivas Conservatórias do Registo Predial, quer provisórios, quer definitivos, seus averbamentos e cancelamentos, podendo também representá-los junto das competentes Repartições de Finanças e Câmaras Municipais, praticando, requerendo e assinando tudo quanto necessário seja ao indicado fim ".
         L) Aos autores foi dito pelos réus, quando aqueles vinham a Portugal nas férias de Verão, que "quando quisessem os ajudavam no que fosse preciso para fazerem as escrituras ".
         M) Durante a construção da casa, até à sua conclusão em Agosto de 1995, os réus diziam que o terreno traseiro à casa ficava para os autores, e que "os ajudavam no que fosse preciso para fazer a escritura.
         N) Consta da folha 21 uma declaração do seguinte teor: Eu, J (…), casado, residente em Meda, declaro que vendi 150 m2, de terreno, sito no Bairro do Q..., na Rua (X)..., ao Sr. CP..., pela quantia de 180.000$.
         O) Nessa declaração foi posta a data de 17/12/1990, tendo sido apostas as assinaturas de J (…) e CA (…)
         P) No dia 28/06/1989, os réus deslocaram-se ao Cartório Notarial de Penedono e, perante três testemunhas que confir-maram as declarações por aqueles prestadas, outorgaram uma escritura de justificação na qualidade de 1ºs outorgantes com o seguinte teor: declaram [os 1ºs outorgantes] que carecem de título que comprove a sua legitimidade para livremente disporem do objecto desta acção, recorrem a justificação do direito de propriedade sobre o mesmo, invocando as razões seguintes: há cerca de 26 anos, por óbito da mãe dela, justificante, foi aberta a sucessão a herança de que fazia parte integrante um terreno destinado a construção com área de 520 m2 sito no Bairro do Q..., em Meda, que confina de norte e poente com ruas públicas, de sul com FA..., de nascente com EA..., omisso na matriz e no registo predial, a que atribuem o valor de 200.000$. Que por razões que desconhecem esse terreno não foi partilhado em processo de inventário que então correu seus termos, não obstante ter sido adjudicado à herdeira justificante para preen-cher o seu quinhão hereditário, aquando do acordo de partilha verbalmente celebrado. Que o bem sempre, desde então, foi considerado coisa sua e assim entrou no património que levou para o casamento. Que por toda a população da freguesia é considerado coisa própria dela, inclusivamente pelas entida-des públicas como a Câmara Municipal que ao necessitar de alinhar as ruas que circundam o terreno lhe solicitou a autorização necessária. Que por possuir o terreno há mais de 20 anos de forma pública, pacífica e contínua considera ter adquirido o direito a que se arroga por usucapião.
         Q) Desde 1974 que o prédio referido em F) é possuído por autores e réus, à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de terceiros, como se de coisa própria se tratasse, em comum e partes iguais.
         R) Em 1994 e 1995, autores e réus chegaram a negociar a aquisição, por parte destes, do terreno identificado em F), devendo os réus entregarem aos autores o valor corresponden-te a metade do terreno.
         S) Encontrava-se inscrito na matriz predial urbana, freguesia de Meda, concelho de Meda, sob o artigo 1521, um prédio sito no Bairro do Q..., composto por um lote de terreno para construção com a área de 520 m2, a confrontar a norte e poente com ruas públicas, sul com FA... e nascente com EA..., inscrito a favor de CA (…) [dessa inscrição consta que foi eliminado e passou para o artigo (W)... – acrescento deste acórdão do TRC, ao abrigo do disposto nos arts. 659/3, 712/1a) e 713/2, todos do CPC]
         T) Encontra-se inscrito na matriz predial urbana, fregue-sia de Meda, concelho de Meda, sob o artigo (W)..., um imóvel sito no Bairro do Q..., composto por casa de r/c que serve de garagem, 1° andar e águas furtadas com 5 assoalhadas, com área coberta de 138 m2, e um logradouro com área de 382 m2, a confrontar a norte e poente com rua pública, sul com FA... e nascente com EA..., inscrito a favor de CP....
         U) Faz fls. 50 dos autos uma "Memória Descritiva” apre-sentada na Câmara Municipal da Meda, referente ao levanta-mento topográfico e divisão em parcelas de um terreno sito no (BN)... em Meda, cujo teor é o seguinte: O presente le-vantamento foi executado com um aparelho WildT16. A me-dição do terreno foi executada empregando um planímetro sendo efectuadas três medições distintas, assim temos: 1ª me-dição: 761 m2; 2ª medição: 758 m2; 3ª medição: 756,40 m2. Média das três medições: 761 + 758 + 756,40 : 3 = 758,46 m2.
         U’) Procedeu-se em seguida à divisão do terreno em parcelas assim temos: Parcela n° 1: 176 m2; Parcela n° 2: 150 m2; Parcela n° 3: 155 m2; Terreno a ceder à Câmara Municipal de Meda para abertura de rua: 277,5 m2.
         V) O documento referido em U) está datado de 19/11/1982, e abaixo da palavra “o técnico", foi aposta a assinatura de (…).
         X) Os autores tiveram conhecimento da escritura de justificação referida em P) por terem visto os respectivos editais, dirigindo-se com o irmão J (…) ao cartório de Penedono a fim de obter a anulação dessa escritura.
         1. O talhão em causa tem uma área de cerca de 418 m2.
         5 = 24. A construção referida em H) foi efectuada em momento temporal que não foi possível fixar.
         7 = 29. Os autores tiveram conhecimento da realização de uma escritura em momento temporal que não foi possível fixar.
         12. Para além da construção, o resto do terreno está ocupado, ademais com plantações e pertences.
         13. Excluindo a construção, na parte sobrante do terreno não é viável realizar qualquer edificação destinada a habitação.
         14 e 15. Para o talhão a que se alude em E) obter-se-ia, com referência a Junho de 2002, o valor de 9.200€, considerando o produto da sua área pelo valor unitário de 22€ o m2. E, com referência ao ano de 1990, o valor de 5.536€.
         31. A escritura referida em P) menciona um terreno com 520 m2 quando, no terreno, está um talhão com pouco mais de 575 m2.
         34. Aquando do realinhamento da rua, a Câmara Municipal de Meda cedeu aos réus uma área de 39 m2.
         35. Há rede colocada em parte do talhão em causa.
         36. O anexo construído pelos réus assenta, em parte, fora do talhão a que se alude em N).

               Factos provados do modo como será referido a propósito de cada um deles e tomados em consideração ao abrigo dos arts. 659/3, 712/1a) e 713/2, todos do CPC:
         Z) O prédio inscrito na matriz sob o artigo (W)... (tal como o antigo artigo 1521), da freguesia e concelho da Meda, está descrito na respectiva conservatória do registo predial com o nº. 00606/171189, primeiro como lote de terreno para construção urbana com 520 m2 e agora como casa para habitação de rés-do-chão, 1º andar e águas furtadas, com 138 m2 de superfície coberta e 382 m2 de superfície descoberta, confrontando do norte e poente com ruas públicas, sul antes com FA... e agora com rua, nascente com EA..., tendo sido registada a aquisição a favor dos réus por usucapião em 17/11/1989.
         ZA) Sobre este prédio foi registada em 22/12/1992 uma hipoteca a favor da CGD, outra em 18/04/1994 e uma terceira em 19/06/1997. Em 24/03/2003 foi registada esta acção, mas, no que respeita ao pedido a), apenas relativamente a 370 m2 dele (provado pelo registo de fls. 77 a 79).
         ZB) A construção referida em H) foi iniciada, pelo menos, em 1985 (admitido por acordo: os autores diziam, no art. 12 da pi, ter sido em 1984/1985 [embora com erro de contas, pois que também diziam, em 2002, que tinha sido há 15 anos] e os réus diziam, em 2002, nos arts. 9 e 14 da contestação, ter sido há 18 anos, ou seja, 1984, pelo que há um mínimo denominador comum sobre a data de 1985, ao abrigo dos arts. 659/3, 712/1a) e 713/2, todos do CPC; a admissão por acordo prevalece sobre respostas negativas a quesitos formulados sobre matéria que estava admitida por acordo).
         ZC) Autores e réus acordaram, antes de Janeiro de 1989, na divisão do lote 5, por um linha divisória (admitido por acordo face ao escrito no art. 23 da pi e art. 14 da contestação).

                                                                 *  

              A fundamentação da sentença é a seguinte:
         “Todo o conjunto de pedidos apresentados pelos autores na presente acção tem subjacente um historial de transmissões, divisões, doações, partilhas, toda uma panóplia de actos que os próprios autores reconhecem terem sido praticados sem recurso a quaisquer formalidades, quando não mesmo com a concomitante realização de actos formais cujo texto não reflectia o que as próprias pessoas pretendiam, mas que eram – esses actos formais – tidos como necessários para a observância das pretendidas finalidades. O que ocorre nestes casos – como aqui se verificou – é que, quando surge o desentendimento entre os familiares, é a confusão e não o esclarecimento que brota por detrás da cortina de fumo que os próprios interessados adensaram.
         Esclarecendo: no artigo 5º d[a petição inicial], identifica-se um talhão com uma área de 370 m2, que confronta com três ruas e com um outro beneficiário do negócio primordial; a final, pede-se a declaração de que esse talhão é propriedade comum de autores e réus. Da prova produzida – inclusivamente da prova apresentada pelos autores – não é isso o que decorre, antes que os restantes intervenientes na partilha sustentam a propriedade comum de todos eles, não só autores e réus, sendo que alguns dos interessados aceitam que possa ser pertencente aos réus unicamente. Não pode, assim, por falta de provas, produzir-se a declaração que os autores pretendem.
         De acordo com o disposto no art. 342º/1 do CC, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Assim, invocando que o talhão em causa – a respeito do qual teria versado uma escritura, por sobre o qual teria sido edificada parte de uma habitação – seria propriedade em comum de autores e réus, impunha-se, aos autores, que provassem  os factos constitutivos desses direitos, a saber, a propriedade em comum da superfície de terra em causa. Não o tendo logrado, mais não resta do que decidir em desconformidade com esta pretensão dos autores, bem como com as outras que, dela derivadas, não obtiveram prova correspondente.
                                          I


Quanto ao pedido de declaração de compropriedade

               Tendo em conta a transcrição dos três §§ da fundamentação de direito da sentença (embora os dois primeiros correspondam a um único na sentença), feita imediatamente acima, vê-se que a sentença decide com base aparentemente em três argumentos, cada um deles em cada um dos §§ que antecedem:

               Um é o de que, para se atingir o fim visado pelos actos que os autores alegam era necessário que esses actos tivessem determinadas formas e não têm.

               Ou seja, resume-se à sugestão de que para adquirir a compropriedade de um imóvel são necessários documentos.

               Esquece-se que a forma de aquisição invocada pelos autores é a usucapião, que nada tem a ver com documentos…

                                                                 *

               O segundo é o de que da prova produzida não decorre que o lote 5 seja compropriedade dos autores e dos réus.

               Mas depois, não se invocam os factos provados - ao contrário do que seria de esperar, pois que uma sentença decide com base nos factos provados -, mas sim elementos de prova, mais concretamente prova testemunhal, que, no despacho que respondeu aos quesitos, se tinha desvalorizado e dito não ter qualquer valor.

               O que corresponde a um erro, pelo que procede, nesta medida,  a conclusão viii), apesar da imprecisão da sua formulação (pois que não é bem isso que a sentença diz).

                                                                 *

               O terceiro é o de que eram os autores que tinham que provar os factos constitutivos da compropriedade que invocavam e não os provaram.

               Quanto a isto dizem os autores: os factos sob Q) são suficientes para concluir que o lote 5 é compropriedade dos autores e réus, adquirido por usucapião.

               E são-no, de facto, mas apenas isoladamente considerados.

               Ou seja, se se considerasse apenas como provado que desde 1974 [até hoje…] o lote 5 é possuído por autores e réus, à vista de toda a gente, sem interrupções e sem oposição de terceiros, como se de coisa própria se tratasse, em comum e partes iguais, então, tendo em conta o disposto nos arts. 1251, 1252/2, 1261, 1262, 1263, 1287 e 1296, todos do CC (que levam à aquisição por usucapião de um imóvel, no caso de uma situação de facto reiterada e pública, prolongada por mais de 20 anos, que, como decorre do facto F), não foi tomada com violência), poder-se-ia concluir que os autores tinham demonstrado a aquisição da compropriedade por usucapião.

                                                                 *

               Mas a verdade é que existem outros factos a considerar:

               Pois que, pelo menos em 1985 os réus começaram a erguer uma construção em parte do lote 5 (facto H).

               E sabe-se que o fizeram com autorização dos autores (facto H), parte final).

               Ora, esta autorização, como o revelam a carta I) [em que a ré fala “do meu” e do “teu terreno”] e a procuração J) [em que se vê que a autora aceita que as coisas são com a ré o diz, isto é, em que há “o meu” e “o teu” – e isto independentemente de a autora ter ou não enviado a procuração à ré] , é a concretização do acordo de divisão do lote 5 referido em ZC).

               Assim sendo, quando os réus começam a construir a casa numa parte concretizada do lote 5, fazem-no, com a autorização/acordo dos autores, passando a ser possuidores exclusivos dessa parte do lote 5. Aqui não é necessária a inversão do título da posse (arts. 1265, 1291 e 1406/2, todos do CC), dada a existência deste acordo.

               E tendo-se iniciado essa posse pelo menos em 1985, não se pode dizer que os autores e os réus tenham continuado a estar na posse de todo o lote 5, como comproprietários do mesmo.

               Pelo que, ao fim e ao cabo, a sentença estava correcta, na apreciação deste pedido: é que, de facto, os autores não conseguiram provar os factos constitutivos do seu direito de aquisição, por usucapião, da compropriedade do lote 5.

               E com isto tudo se demonstra que a sentença não decidiu contra os factos assentes, nem em contradição com os seus fundamentos, pelo que não se verifica a nulidade invocada na conclusão vii).

                                                                 *

               Note-se que mesmo que os autores não aceitassem que se desse como provado que o acordo de divisão antecedeu a autorização de construção, ou que esta é a concretização do acordo de divisão, a verdade é que, de qualquer modo, o acordo de divisão (do qual são os próprios autores os primeiros a falar) existe pelo menos antes da carta de Janeiro de 1989, pelo que, pelo menos desde então. já não se podia falar de uma posse de todo o lote 5, pelos autores, convictos de que eram comproprietários (pelo que os autores não poderiam ter adquirido a compropriedade do lote 5 por usucapião, já que desde os primeiros meses de 1974 até antes de Janeiro de 1989 não se completaram os 15 anos exigíveis…).

               E o argumento da autora seria mero pró-forma, pois que apesar da referência à autorização constar do art. 12 da petição inicial e o acordo de divisão ser referido no art. 23 da petição inicial, é nítido, na lógica da petição inicial que o acordo de divisão é anterior à autorização e que a casa é construída na sequência de tal acordo.

                                                                 *

               Tudo isto traduz a história dos factos que decorre claramente da versão dos autores e dos réus: morte da mãe, => prédio para o pai, => doação do prédio pelo pai aos filhos, => acordo de partilha pelos filhos nos primeiros meses de 1974, => acordo de divisão antes de 1985 (frente para a ré, traseira para a autora), => começo da construção da casa da ré pelo menos em 1985 na parte da frente, => carta da ré e procuração da autora, ambas de 1989, em que se revela tal acordo… 

               E tendo tudo isto presente, vê-se que o que consta de L) e M) está perfeitamente na lógica disto tudo.

               Os factos U) a V) também podem ser lidos no mesmo sentido, mas aqui os autores podem responder, com acerto, que não há qualquer prova da ligação de tais factos com os autores ou prova suficiente de que tais factos digam inequivocamente respeito ao lote 5 e ao lote do irmão (JC)...… (embora tudo indicie que sim…).

               O facto R) é o único que se pode ler em sentido contrário a tudo isto, mas no fundo retrata só uma forma de autores e réus tentarem resolver a situação criada e uma forma de a descrever. Outra forma de ler o aí descrito seria dizer que os réus comprariam a parte/metade dos autores por metade do valor total do lote 5, o que faria reentrar o facto na lógica dos restantes e, principalmente, da petição inicial. 

                                                                 *

               Esclareça-se, finalmente, que:

               - a divisão amigável referida em ZC) só por si não tem qualquer valor jurídico: essa divisão só podia ser feita, amigavelmente, através de uma escritura pública (arts. 875 e 1413 do CC).

               - a solução encontrada é uma solução por via negativa: diz-se que “tendo-se iniciado essa posse [dos réus] pelo menos em 1985, não se pode dizer que os autores e os réus tenham continuado a estar na posse de todo o lote 5, como comproprietários do mesmo.” Com isto não se está a afirmar que os réus tenham adquirido a propriedade da sua parte e que por isso os autores não sejam comproprietários. Não se está afirmar isso, porque os réus nem alegavam os factos necessários, nem formulavam o respectivo pedido. O único pedido que existe (nesta parte) é o dos autores e por isso só este estava em causa. É quanto a este que este acórdão se está a pronunciar no sentido de dizer que não há factos provados que possam conduzir à conclusão jurídica de que os autores são comproprietários, com os réus, do lote 5.

                                                                 *

               Em suma, vê-se que a conclusão i) do recurso não é correcta; a conclusão ii) fica prejudicada; o que consta da conclusão iii) é irrelevante, por não ter sido esta junção que levou à decisão recorrida, tanto que neste acórdão se separou desde o início tais alíneas sem que tal implicasse diferente solução; o que consta da conclusão iv) é certo mas é irrelevante.

                                                                 *

               Quanto à conclusão vi), os autores não têm razão e nem sequer se pode dizer que a sentença tenha desconsiderado os factos sob Q). Mas a conclusão pode ser aproveitada para agora criticar este acórdão, pois que ele está a dar como provados outros factos que ainda não constavam da sentença, nem logicamente, do despacho de condensação (factos assentes / base instrutória).

               Mas esta crítica não teria razão de ser, já que o tribunal de recurso tem, tal como o tribunal da 1ª instância, para resolver as questões que lhe sejam postas, que ter em conta todos os factos que estão admitidos por acordo, ou provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, mesmo que não constem do despacho de condensação, e isso precisamente por força das normas já citadas acima e especialmente por força da norma do art. 713/2 do CPC, que remete, entre o mais, para o art. 659 do CPC, que tem o nº. 3 que diz precisamente isso (ao que se crê neste sentido Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, 2ª edição, Coimbra Editora, vol. 2º, 2008, págs. 677 e 3º vol., tomo 1, 2008, págs. 123, 128 e 129).

               Por outro lado, como tem sido dito uniformemente desde há muito, não fazem caso julgado as peças com os factos assentes e a base instrutória, mesmo que tenham sido objecto de reclamação (Lebre de Freitas e outros, CPC anotado, 2ª edição, Coimbra Editora, vol. 2º, 2008, págs. 412 e segs, entre outras).

               Assim, principalmente por força da norma do art. 659/3 do CPC, a parte nunca pode partir do princípio de que, face à forma como foram elaborados os factos assentes e a base instrutória, não terá que provar tal ou tal facto, ou que tal e tal facto não poderá vir a ser dado como provado na sentença. Pois que o pode ser, face a uma análise crítica mais aprofundada feita na decisão final (art. 659/3, parte final, do CPC) com um melhor conhecimento da causa….

                                                                 II

               Quanto ao pedido b), isto é, quanto ao pedido relativo à escritura de justificação.

               A sentença julga-o improcedente apenas com base nas considerações de que é uma questão derivada da anterior e de que não obteve prova correspondente.

               Quanto à consideração da “falta de prova”:

               A conclusão v) do recurso dos autores demonstra que não é assim: a contestação dos réus é só por si prova mais do que suficiente de que o que eles declararam na escritura não corresponde à verdade.

               Quanto à consideração da “derivação”:

               Quando os autores se afirmam comproprietários do lote 5, com os réus, eles estão a invocar um direito e por isso o ónus da prova dos factos constitutivos desse direito cabe-lhes a eles (art. 342/1 do CC). A prova deste direito, por incompatível (uma coisa não pode ser de duas pessoas e simultaneamente ser só de uma…) com o direito de propriedade, único, dos réus sobre o lote 5, levaria à procedência, também, da impugnação da escritura de justificação notarial em que os réus diziam o contrário.

               Mas não tendo os autores conseguido provar o direito de compropriedade sobre o lote 5, a parte da acção respeitante à impugnação daquela escritura de justificação notarial ganha autonomia.

               Por que é que o facto de os autores não conseguirem provar que o lote 5 era compropriedade de autores e réus, implicaria que o lote 5 era só dos réus e que o modo de aquisição invocado por estes era verdadeiro, quando os próprios réus dizem que escritura diz respeito à parte que é dos autores e que as coisas não se passaram como dela consta? 

               As acções em que se impugnam escrituras de justificação notarial são típicas acções de simples apreciação negativa.

              A acção em causa nestes autos, na parte em que os autores põem em causa o direito de que os réus se diziam titulares, era também uma acção de simples apreciação negativa [art. 4/2a) do CPC -  para além de muitos outros, vejam-se os acórdãos da Rel. de Coimbra de 14/4/93, publicado na CJ.93.2.32, da Rel. do Porto de 2/4/87, na CJ.87.2.226, de 23/2/93, na CJ.93.2.183, de 17/6/93, na CJ.93.3.231/232, e de 10/2/94, na CJ.94.I.232, e do STJ de 26/4/94, na CJ.94.STJ.2.68 e de 15/6/94, na CJ.94.STJ.2.140; veja-se ainda, sobre as acções de simples apreciação negativa e distribuição do ónus da prova no seu âmbito, Castro Mendes, no seu Direito Processual Civil, AAFDL, 1977/78, vol. I, págs. 277/283]: com ela está-se a impug-nar, com uso do processo comum declarativo (assim teria de ser por força do disposto no nº. 2 do art. 460 do CPC, visto que não há qualquer processo especial de im­pugnação de escrituras de justificação notarial - veja-se, já agora, as anota­ções de Lopes de Figueiredo, no seu Código do Notariado, antigo, Almedi­na, 1991, págs. 334/335), o conteúdo de uma escritura pública por falsidade das declarações que lhe subjazem e que se traduzem num arrogo, por parte dos réus da propriedade exclusiva de um dado prédio.

              O prof. Castro Mendes diz que este tipo de acções, de simples apre-ciação negativa (Direito Processual Civil, AAFDL, 1977/78, vol. I, págs. 277/283, especi­almente págs. 280/283), podem ser vistas como uma acção normal, com objecto determinado e causa de pedir, ou seja, fundamento possível, igual-mente determinado, da relação ou facto negado pelo autor, fundamento esse cuja inexistência ou ineficácia o autor alega e deve provar. Ou como uma acção peculiar, em que o autor se pode limitar a negar certa relação (possi-velmente até determinada em abstracto), não invocando qualquer funda-mento – antes empurrando para o réu o ónus de precisar o que impugna nessa negação e o seu fundamento.

              E depois faz a distinção entre aqueles casos que o réu previamente se arrogue injustificadamente de certo direito e os casos em que não há uma prévia arrogância da parte do réu.

              Nos casos em que há arrogo, compete ao autor a alegação e prova da arrogância do réu e ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (art. 343/1 do Código Civil). Neste caso estamos perante uma acção “do tipo a que os antigos chamavam provocatio ad agendum (ou acção de jactância ou de provocação): coloca outra pessoa (mas sibi imputet, pela sua arrogância) em situação semelhante à do autor, com o ónus e risco de fundamentar o seu direito”.

              Nos casos em que não há uma prévia arrogância da parte do réu, cabe ao autor alegar e provar o fundamento possível, determinado, da relação ou facto por si negado, bem como a inexistência ou ineficácia desse fundamento.

              Antunes Varela, no seu Manual de Processo Civil, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, começando por esclarecer que a admissibilidade das ac­ções de simples apreciação negativa “dependerá da existência de um inte­resse processual na sua propositura, mas não de se ter o réu arrogado a titu­laridade do direito que o autor pretende negar, ao invés do que, primo cons­pectu, se poderia depreender do disposto no art. 343/1 do CC” (pág. 20 nota 2, 2º§), acrescenta mais à frente (págs. 460/461) que nos casos em que é o réu quem, antes de a acção ser proposta, alardeia a existência do direito ou do facto, cuja inexistência o autor pretende seja declarada, a solução aceite pela lei (art. 343/1 do CC) não é a de competir ao autor o ónus de provar o facto constitutivo da sua pretensão sob pena da acção vir a ser julgada im­procedente; antes a lei, movida pela ideia de ser, por via de regra, mais fácil provar a existência dum direito ou dum facto (apontando para determinada causa específica de um ou outro) do que demonstrar a sua inexistência (eliminando todas as causas possíveis da sua produção) converteu, no que se refere ao onus probandi, estas acções em verdadeiras provocationes ad agendum.

              Anselmo de Castro depois de esclarecer que “a interposição da ac­ção de mera apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciado num estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou a ne­gociabilidade da própria relação jurídica” (pág. 117), acrescen­ta mais à frente (págs. 122/125) que “as acções de declaração negativa apresentam a particularidade de o réu poder vir a ser colocado na necessidade de ir a juízo demonstrar a existência dum direito em altura que lhe não seja propícia, quando não disponha, de momento, dos elementos bastantes para a sua prova”, mas mesmo assim não é ao autor que cabe a prova da inexistência do direito ou facto em questão, é ao réu que cabe o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito (“caberá ao réu a prova da existência do direito que o autor lhe nega”), cabendo ao autor, se o réu fizer essa prova, demonstrar os factos impeditivos, modificativos ou extinti­vos do direito invocado pelo réu e a mais disso de provar o interesse em agir. E esclarece que não devem impressionar as dificuldades em que venha a ser colocado quem se arrogou o direito, “uma vez que foi precisamente ele que tomou essa atitude cujas consequências lhe caberá arrostar.”

              Quanto aos argumentos a favor da desnecessidade do pressuposto processual do interesse em agir, Anselmo de Castro explica que o nº. 2 do art. 662 do CPC, que apenas inverte o ónus das custas nas acções que se se peça a condenação em prestação ainda não vencida, refere-se tão só às acções de condenação e não de simples apreciação e apenas rege para as situações em que o autor dá como vencida a obrigação embora injustificadamente, e nesse sentido aponta, a contrario, o nº. 2 do art. 472 do CPC. Por outro lado, diz, a prescindir-se do interesse em agir graves inconvenientes resultariam para os particulares, como para os próprios tribunais: - para os particulares porque ver-se-iam facilmente e sem motivo demandados como réus, e postos, portanto, na necessidade de ser defenderem; para os tribunais, uma vez que, recusada a necessidade do interesse em agir, poder-se-iam multiplicar as causas sem verdadeira razão de ser. A simples condenação em custas não constitui motivo inibitório suficiente para obviar a estes inconvenientes. Eles apenas serão afastados se fizermos funcionar o interesse em agir como pressuposto processual (págs. 120 e 121).

              Lebre de Freitas (Introdução ao processo civil. Conceito e princí-pios gerais. À Luz do código revisto. Coimbra Editora, 1996, págs. 27 e 28 e nota 27) explica que: “[…a]  questão da exigibilidade do interesse em agir, como pressuposto processual, tem sido posta sobretudo no domínio da acção declarativa de simples apreciação, para a qual os defensores do pressuposto exigem que se verifique uma situação de incerteza objectiva-mente grave, de molde a justificar a intervenção judicial […] não bastando nunca uma incerteza subjectiva independente da ocorrência de factos que possam afectar o interesse material do autor”. Depois, entre o mais, lembra que nas acções de condenação o interesse processual está in re ipsa quando o autor afirme que o seu direito foi violado. E mais à frente: “A ideia de que a falta de interesse processual só é invocável pelo réu […] não colhe: a exi-gência do interesse processual baseia-se fundamentalmente na necessidade de não sobrecarregar os tribunais com acções inúteis, razão de ordem públi-ca que justifica o seu conhecimento oficioso, imposto, aliás, pelo art. 495; a própria falta de um conflito de interesses na base do processo […], tradu-zindo-se em falta de interesse processual e podendo dar azo a acções injus-tificadas contra incertos, não pode deixar de ser oficiosamente conhecida. Poder-se-á, pois, concluir que a exigência do interesse processual só entre nós se poderá pôr […] enquanto exigência dum interesse sério para o recur-so a juízo, mas independentemente da espécie de acção que se venha a propor”.

              E ainda mais à frente (nota 27 da pág. 29) esclarece: “[…a] acção de simples apreciação dum direito não visa, por definição, tutelar um direito (do autor), mas negar a existência dum direito do réu. Implicando a exigência do interesse processual […] que o direito (negado) do réu seja contrário a um direito incompatível do autor ou tenha como correlativo um dever destes para com o réu, a negação da tutela do direito concreto do réu pode ainda ser reconduzida à ideia da tutela dum direito, concreto ou abstracto (à liberdade de auto-vinculação) do autor.”

              Quanto ao ónus da prova esclarece (págs. 33 e 34): “Normalmente, ao autor (e ao réu reconvinte) caberá provar os factos constitutivos e ao réu (e ao autor reconvindo) os factos impeditivos, modificativos e extintivos, sem prejuízo de ao autor caber ainda a prova dos factos que impeçam, modifiquem ou extinguem os efeitos que o réu alegue; mas nas acções de simples apreciação negativa dá-se o inverso (art. 343/1 do CC).

              Na Acção declarativa comum à luz do Código revisto, Coimbra Editora, 2000, págs. 37 e 38: explica: “[…o] autor há-de indicar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integran-tes do facto cuja existência ou inexistência afirma, os quais constituem a causa de pedir (art. 498-4), que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido, embora pela natureza das coisas, essa indicação não tenha, nas acções de simples apreciação negativa da existência dum direito (não na acção de simples apreciação negativa da existência dum facto jurídico, que, como tal, tem de ser individualizado […] mas já pode não […] conter [a individua-lização] a pretensão da inexistência do direito real) o mesmo rigor que naquelas em que o autor afirma a existência dum seu direito (cabe ao réu, nestas acções, a prova dos factos constitutivos do seu direito [art. 343-1 do CC] bem como a sua alegação [art. 502-2], pelo que, sem prejuízo da dedução, sempre possível, da reconvenção […] a acção de simples apreciação se mantém, até à contestação, aberta a todos os eventuais factos constitutivos do direito do réu. Assim, ao autor mais não é exigível, ao propor a acção, do que a alegação dos factos, do seu conhecimento, que o réu afirma como consti-tutivos do seu direito, ou, no limite, do que a individualização do direito que o réu se arroga sem dizer porquê. Antes do CC de 1966 era discutido se […] cabia ao autor alegar e demonstrar a inexistência do direito, isto é, provar a inexistência dos factos de que ele derivaria […] ou se, ao invés […] cabia ao réu alegar e provar os factos constitutivos do seu direito. O art. 343/1 do CC resolveu a questão nestes sentido, mais próximo da configuração da velha provocatio ad agendum (juízo de provocação ou de jactância) […]. A jurisprudência passou então a enunciar a causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa como constituída pela inexistência do direito que o réu se arroga e pelos “factos materiais cometidos pelo réu, susceptíveis de objectivar uma incerteza prejudicial para o autor devido a essa arrogância”, só destes tendo o autor o ónus da prova […]. A exigência do estado de incerteza gerado pelas afirmações do réu, ou por outros factos igualmente graves e susceptíveis de justificar a intervenção judicial, é manifestação do pressuposto processual ou interesse em agir, mas o conteúdo dessas afirmações, em si, ou esses outros factos (actuações conformes com a existência do direito do réu […]), constituem sob a forma negativa, a causa de pedir neste tipo de acções, isto é, os factos dos quais tanto quanto o autor sabe, o réu retira a afirmação do seu direito ou uma prática conforme com a sua existência, ainda quanto para tanto sejam manifestamente insuficientes […]”.

              Remédio Marques também exige o interesse em agir como pressuposto processual (Acção declarativa à luz do código revisto, Coimbra Editora, 2007, págs. 86 a 89).

              Até aqui existe pois uma posição unânime da doutrina: nas acções de simples apreciação negativa em que o réu se arrogue um certo direito, cabe-lhe a ele a prova dos factos constitutivos desse direito. E uma quase unanimidade quanto à exigência do interesse em agir como pressuposto processual, interesse em agir que não se confunde com a necessidade de demonstração da existência do direito do autor.

              Existem, no entanto, vozes doutrinais discordantes, quais sejam, a de Teixeira de Sousa (As Par­tes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex, 1995, págs. 114/116, 220/221 e 260/261; veja-se também, do mesmo autor, as págs. 30/33 do In­teresse Processual na Acção Declarativa, 1989, AAFDL), que acompanha Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, vol. III, 3ª edição, reimpressão de 1981, Coimbra Editora, págs. 288/291) e é acompanhado por Oliveira Ascensão (Tribunal competente; acção de simples apreciação negativa respeitante a sentença estrangeira violadora da ordem pública in­ternacional portuguesa, publicado na CJ.85.4.21/31, especialmente 2ª coluna da pág. 27).

              Para Teixeira de Sousa só quando o réu deduzisse um pedido reconvencional é que teria de provar os alegados factos constitutivos do direito que se arroga; caso não seja deduzido pedido reconvencional, incumbiria ao autor, como em qualquer outra acção, provar os factos invocados como causa de pedir, constituída pelos factos impeditivos ou extintivos do direito alegado pelo réu ou pelos factos dos quais o autor retira a inexistência da­quele direito.

              Diz taxativamente o referido autor (págs. 260/261):

              “Se o autor propõe uma acção de apreciação negativa (art. 4°, n° 2, al. a)), cabe-lhe a prova da inexistência ou do facto impeditivo, modificati­vo ou extintivo da situação jurídica (que é a causa de pedir dessa acção) e somente perante esta prova se devolve à contraparte a prova do facto consti­tutivo dessa situação (arts 342°, nº 2, e 343°, nº 1, CC). Esta solução para o ónus da prova nas acções de apreciação negativa decorre da vigência na­quelas acções, como, aliás, em todas as demais, do ónus de alegação da causa de pedir [arts 467°/1c) e 193º/2a); cfr. STJ - 4/I/1979, BMJ. 283, 136], o que, dada a correspondência, em regra, entre o ónus da alegação e o ónus da prova, significa que é essa a factualidade que deve ser provada pelo autor. Ao réu só cabe o ónus da prova dos factos constitutivos da situação jurídica negada pelo autor se essa parte pretender que, sendo a acção julgada improcedente, se reconheça a prova da existên­cia da situação jurídica (e não apenas a falta de prova da inexistência dessa situação), devendo para tal formular o correspondente pedido reconvencio­nal (art. 274, nº 1). Se o autor da acção de apreciação negativa não prova o facto impeditivo, modificativo ou extintivo que alega como causa de pedir e o réu não prova o facto constitutivo, a acção é julgada improcedente (art. 516°). Mas neste caso só fica decidida a falta de prova da inexistência da situação jurídica (e não a prova da existência dessa situação) pelo que o autor pode propor uma outra acção com fundamento num outro facto im­peditivo, modificativo ou extintivo da situação negada”.

              E antes (pág. 220) tinha deixado expressamente dito que a atribui­ção ao réu do ónus da prova dos factos constitutivos (art. 343/1 do CC) não significa que o autor fique isento da prova da inexistência da situação jurí­dica.

              No mesmo sentido, vai Remédio Marques, obra citada, págs. 89 a 91.

              Manuel de Andrade é também posto ao lado destes autores, citando-se o seu Noções Elementares de Processo Civil, 5ª edição, Coimbra Edito­ra, pág. 205 ou 2ª edição pág. 204; no entanto, a edição actualizada por Herculano Esteves, de 1979, da Coimbra Editora, pág. 205, diz-se expres­samente o seguinte: “nas acções de simples apreciação negativa [...] o ónus probatório compete ao réu, a ele incumbindo a prova da existência do direi­to que se arroga, e não ao autor a prova da não-existência do mesmo direito. Conquanto nos pareça não ser esta a melhor solução, o artigo 343/1 do CC não admite doutrina diferente” e em nota adverte que “a improcedência destas acções faz caso julgado (material) no sentido da existência do direito que o autor pretendia negar; esta solução, que reputámos correcta ainda quando a improcedência da acção não equivalia à prova da existência do direito, não pode suscitar agora qualquer dúvida, pois que a improcedência resulta da prova efectiva do direito”.

              Posto isto, e ao menos nas acções de simples apreciação negativa de um direito de que o réu se arrogue, opta-se pela primeira posição, entendendo-se que esta segunda posição esquece que: no caso do arrogo pelo réu de um dado direito, existe actualmente norma legal expressa a impor o ónus da prova dos factos constitutivos do direito invocado ao réu (art. 343/1 do CC); a causa de pedir do autor se basta com a invocação da arrogância por parte do réu e com a invocação de um interesse em agir; não demonstra que a lei tenha querido afastar os antigos juízos de jactância; e seria praticamente impossível o autor fazer prova da in­verificação de todos e qualquer um dos modos de aquisição do direito invo­cado (no caso dos direitos reais, todos aqueles referidos expressa e implicitamente no art. 1316º do CC).

              Para mais, o exemplo que esta última posição dá (na versão de Remédio Marques, pág. 90), não convence: se o réu anda por aí a alardear que o autor lhe deve 100 e este diz que nunca teve qualquer tipo de relação com o réu que desse origem àquele suposto crédito, não pode ser exigido ao autor que alegue e prove qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito, porque eles não existem…

              Concluindo: segue-se a posição da primeira corrente doutrinal, impondo ao réu o ónus da prova dos fac­tos constitutivos do direito de que se arrogou e ao autor a demonstração do arrogo e do interesse em agir (que não é o mesmo que a demonstração do direito incompatível com o do réu…, embora, como é evidente, esta inclua aquela).

                                                                 *

              Aplicado ao domínio das acções de impugnação de escrituras de justificação notarial, dir-se-á que há da parte dos réus outorgantes das escri-turas uma óbvia arrogância da titularidade de um certo direito, com a alega-ção de um fundamento preciso, pelo que lhes compete produzir a prova dos factos constitutivos dos direitos que se arrogavam (art. 343/1 do CC).

              Dos acórdãos acima citados, o da Relação do Porto de 2/4/87, publicado na CJ.87.II.226/229, vai neste sentido: “era ao réu a quem competia provar os factos constitutivos, por si alegados, do seu direito de propriedade sobre o prédio em apreço, isto é, que tinha adquirido por usucapião o dito prédio”; o acórdão da Relação do Porto, de 17/6/93, publicado na CJ.93.3.231/232, conclui também “que incidia sobre os réus o ónus de provarem que tinham efectivamente adquirido por usuca­pião o prédio em causa; ora, como nada provaram têm de sofrer a conse­quência da procedência da acção”; o da Relação do Porto de 14/2/94, publicado na CJ.94.I.232/234 segue o anterior; o acórdão do STJ de 26/4/94, publicado na CJ.STJ.94.II.68, con­firma o da Relação do Porto de 17/6/93 e tem o mesmo entendimento quanto ao ónus da prova.

              A posição doutrinal minoritária tem ainda menos aplicação ao caso dos autos, isto é aos casos de impugnação de escritura de justificação notarial em que da parte dos réus existe não só a arrogância de um direito mas também do modo de aquisição desse direito.

              No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos: do TRC, nº. de documento (esta referência entende-se sempre feita à base de dados da DSIC/ITIJ na internet) 2766/04, de 16/11/2004: a acção de impugnação da escritura de justificação notarial é de simples apreciação negativa, cabendo ao réu fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado na escritura de justificação, demonstrando a consonância com a realidade de tudo aquilo que nesse instrumento alegou; do TRP de 13/10/2005, nº 0533037: trata-se, como foi entendido na decisão recorrida, sem contestação, de uma acção de simples apreciação negativa, cuja estrutura nuclear assenta na regra do art. 343/1 do CC, recaindo sobre o réu o ónus da prova da propriedade justificada; do STJ, nº. 03B3843, de 24/6/2004 (lavrada escritura de justificação notarial de prédio omisso no registo, tendente, por consequência, à sua primeira inscrição e ao início do trato sucessivo, nos termos dos artigos 116/1, do CRP, e 89/1, do CN, o procedimento judicial comum de impugnação previsto no art. 101 deste último corpo de leis, através do qual a autora visou obter a declaração de que os réus justificantes não são titulares do direito que se arrogam na escritura [...], deve ser qualificado na espécie das acções de simples apreciação negativa [art. 4/1a), do CPC]; incumbia consequentemente aos réus o ónus da prova dos factos constitutivos do direito de propriedade sobre a parcela que se arrogaram na escritura (art. 343/1 do CC) e à autora, por seu lado, a prova dos respectivos factos impeditivos, modificativos ou extintivos (cfr. o 502/2 do CPC); e do TRP, nº. 0422498, de 9/11/2004, a acção de anulação ou nulidade da escritura de justificação notarial deve qualificar-se como de simples apreciação negativa [...] cabendo, em princípio, ao réu justificante a prova dos factos do direito justificado – ver art. 343/1; do TRC, nº. 775/02, de 23/4/2002: a acção de impugnação da escritura de justificação é sempre uma acção de declaração negativa, tenha ou não sido efectuado o registo. É sempre o justificante que tem o ónus de alegar e provar que é ele o titular do direito impugnado. Bem como os mais antigos, do STJ de 3/3/1998, publicado na CJ.STJ.98.I.114 e segs: tendo sido a ré quem afirmou na escritura de justificação notarial a aquisição por usucapião do seu direito de propriedade, cabe-lhe a prova dos factos constitutivos desse direito; e de 19/3/2002, publicado na CJ.STJ.2002, pág. 148 e segs. Vejam-se ainda os acórdãos do STJ, com o nº. de documento nº. 04B4796 de 3/3/2005, e 03B2066, de 3/7/2003. Bem como o acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência citado abaixo no qual não existe um único voto a discutir esta questão e, por último, o ac. do STJ de 07/04/2011 (569/04.0TCSNT.L1.S1): 1. Numa acção de impugnação de escritura de justificação notarial, tendo os réus nela afirmado terem adquirido por usucapião o direito de propriedade sobre o imóvel justificado, que registaram depois, com base em tal escritura, a seu favor, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu arrogado direito, sem poderem, para tal, gozar da presunção advinda do registo, que, em regra, lhes seria concedida pelo art. 7.º do Código do Registo Predial (acórdão do STJ, para uniformização de jurisprudência, nº 1/08, publicado no DR I S, de 31/3/2008).

              Concluindo: segue-se a posição da 1ª corrente doutrinal, tal como a quase unanimidade da jurisprudência, impondo aos réus o ónus da prova dos factos constitutivos (usucapião) do direito de que se arrogaram através da celebração da escritura notarial de justificação em causa.                   

              Os réus teriam assim de alegar e provar tudo aquilo que tinham dito na escritura de justificação notarial.

              Como não o fizeram - aliás nem o podiam fazer, pois que logo na contestação diziam o suficiente para logo se poder concluir que a escritura não correspondia à verdade - , a impugnação tinha de proceder.

                                                                 III

                                             Do registo da aquisição

              Este registo levanta duas questões.

              Uma a nível da anterior questão: saber qual o reflexo da sua existência na impugnação da escritura (cuja solução já está indiciada pelos últimos acórdãos citados).

              Outra a nível da questão do pedido de ineficácia do registo.

                                                                 *

              Quanto à primeira:

              Os réus não invocam na contestação, mas podiam-no fazer, a questão da presunção derivada do registo do lote 5 a seu favor, facto dado como provado em Z) (embora este prédio englobe mais terreno que o lote 5, como já se viu…).

              É que parte da jurisprudência entendia que o facto de o prédio ter sido registado antes da propositura da acção, por esta ter sido posta para além do prazo de 30 dias previsto no Código do Notariado (de 1995: arts. 86, 87 e 101), ou por os autores não terem providenciado atempadamente pela comunicação ao notário prevista nesses artigos, levava a que os réus se pudessem prevalecer da presunção derivada de tal registo (por força do art. 7 do Código do Registo Predial).

              Por exemplo, no acórdão da Relação do Porto de 2/4/87, publicado na CJ.87.II.226/229, diz-se que embora nestas acções o ónus da prova se reparta do modo já visto, a situação se inverte no caso de o réu ter conseguido o registo do prédio a seu favor - a acção terá de deixar de ser de simples apreciação negativa e o ónus da prova passa a competir ao autor.  No mesmo sentido, seguem os acórdãos do STJ de 19/3/2002, publicado na CJ.2002.I.148, do STJ de 3/7/2003, proferido no processo n.º 03B2066 e do TRP nº. 0422498 de 9/11/2004.

              Em sentido contrário, isto é, no sentido de que ao réu justificante não aproveitava a presunção derivada do registo, porquanto, tendo tal registo sido lavrado com base na escritura de justificação, uma vez posta em causa com a propositura da acção de impugnação esse registo deixava de poder operar, ia outra jurisprudência.

              Por exemplo, os acórdãos da Relação do Porto de 23/3/93, publicado na CJ.93.II.183/184; do STJ de 3/3/98, publicado na CJ.STJ.98.I.116, onde também se diz “como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação notarial, agora impugnada, e precisamente por que o foi, não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é esse mesmo direito cuja existência se pretende apurar nesta acção"; do TRC de 26/6/2000, publicado na CJ.2000.III.35/37; do TRC, nº. 775/02: se o registo for lavrado com base numa escritura de justificação, apenas vale para efeitos da inscrição da aquisição na CRP se não vier a ser impugnada. Esse registo não constitui presunção de que o direito existe, sempre que seja impugnado em qualquer acção em que se pretenda apurar da sua existência. A acção de impugnação da escritura de justificação é sempre uma acção de declaração negativa, tenha ou não sido efectuado o registo. É sempre o justificante que tem o ónus de alegar e provar que é ele o titular do direito impugnado. Os réus têm o ónus de alegar e provar o direito impugnado para que o registo se mantenha. Quanto aos autores só pode declarar-se que o direito lhes pertence se provarem que são eles os titulares; e do TRC, nº 2766/04; do STJ, nº. 03B3843 de 24/6/2004 (o termo de 30 dias referido no art. 101 do CN não [...] transporta [...] qualquer virtualidade conformadora da natureza e estrutura da acção de impugnação, pelo que o seu decurso não produz a inversão do ónus da prova cometido ao réu no n.º 1 do art. 343.

              A favor da primeira solução poder-se-ia dizer que não se vê qual a razão para afastar a presunção decorrente do registo. Qual é a segurança jurídica que o registo predial pode oferecer a terceiros se, sem qualquer norma que o diga, se afasta a presunção por ele concedida?

              Como diz o acórdão do STJ de 19/3/2002, a presunção do art. 7 do CRP não se coaduna com a imposição, ao réu, do ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, já que impor esse ónus ao réu, que é um titular inscrito, equivale a negar aquela. A afirmação simultânea dessa presunção e desse ónus equivale à sua recíproca exclusão, por isso sendo inconciliáveis. Ou, como escreve o acórdão do STJ de 3/7/2003, o art. 343/1 do CC, que carrega sobre o réu o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, cede sempre que o mesmo réu tiver à mão o registo predial da justificação (a inscrição) e, com ele, invoque a presunção prevista e prescrita no dito art. 7 do CRP.

              Mas a questão foi entretanto resolvida em sentido contrário pelo ac. do STJ de 4/12/2007, acórdão de uniformização de jurisprudência no sentido por último visto: “na acção de impugnação de escritura de justificação notarial, prevista nos arts. 116/1 do CRP e 89 e 101 do CNotariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do art. 7 do CRP”.

              Acórdão que, apesar dos votos de vencido anexos, e da anotação contrária de José Alberto Vieira, nos Cadernos de Direito Privado, nº. 24, de Outubro/Dezembro de 2008, págs. 21 e segs, bem como do estudo de Mónica Jardim, A Evolução Histórica da Justificação de Direitos de Particulares para Fins do Registo Predial e a Figura da Justificação na Actualidade, salvo erro de 10/09/2010, publicado no CENOR [= Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, nº 85 (Maio de 2011), esp. págs. 525 a 529], tem de ser seguido até que haja novas e ponderosas razões que o ponham em causa.

              Pelo que em nada aproveita aos réus a presunção decorrente do registo do “prédio” a seu favor.

                                                                IV


Do pedido de declaração de ineficácia da escritura:

              Diz-se acima que a impugnação da escritura tem que proceder, dando-se procedência à conclusão v).

              Fala-se de impugnação porque é disso que se trata: art. 101 do Código do Notariado.

              E a consequência é a nulidade do registo [art 16b) do CRP [referem-se os artigos na versão do CRP decorrente do Dec. Lei 323/2001 de 17/12, por ser essa a versão em vigor à data dos factos; mas a redacção actual não tem divergências significativas – as várias, 28, versões do CRP foram consultadas no sítio da PGD de Lisboa -], por baseado em título insuficiente para a prova legal do facto registado.

              Mas, dada esta base, fala-se na ineficácia da escritura (nesse sentido, vai aliás o ac. de uniformização de jurisprudência citado acima, afastando a qualificação de nulidade da escritura).

              Assim é correcto o pedido e deve ser considerado procedente.

                                                                 V

              Do pedido de que se decrete a ineficácia de qualquer registo do prédio justificado.

              Note-se, antes de mais, que se trata de uma nulidade do registo e não de uma ineficácia do mesmo, como decorre do art. 16b) do CRP.

              Depois diga-se que a jurisprudência tem entendido, ou ao abrigo do art. 17º/2 do CRP ou ao abrigo do art. 291º/2 do CC, que o terceiro, de boa fé, que adquiriu, a título oneroso, direitos de um alienante registado, merece ser protegido contra os efeitos da declaração de nulidade do registo do facto aquisitivo constante da escritura de justificação.

              Assim, por exemplo, o ac. do TRL de 28/01/2010 (1268/03.6TBSCR.L1-2 - aplica ao caso o art. 291 do CC; neste caso, os autores intentaram a acção também contra o banco que tinha a seu favor uma hipoteca registada); o ac. do TRP de 03/11/2010 (445/09.0TBVRL.P1 – aplica os arts. 291º do CC e o 271º do CPC); o ac. do TRE de 21/10/2004 (1370/04-3 – aplica ao caso o art. 291º do CC) e o ac. do STJ de 14/06/2005 (05A1316) que confirma este do TRE (embora entendendo que era aplicável o disposto no art. 17º/2 do CRP e não o disposto no art. 291 do CC – contra esta parte deste acórdão do STJ, entendendo-se que “está subentendida na norma [do art. 291 do CC] a exigência do registo prévio do alienante, como condição da sua aplicação; ou seja, que o registo do direito do alienante é um requisito implícito no art. 291º do CC, veja-se a posição de Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, págs. 368 e segs; José Alberto Vieira, Negócios Jurídicos, Coimbra Editora, 2006, págs. 111 a 114; José Alberto Vieira, A nova..., espec. págs. 100 e 101; e Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Junho de 2010, pág. 315).

              No entanto, contra a aplicação quer do art. 17º/2  do CRP quer do art. 291 do CC, veja-se o estudo citado de Mónica Jardim, citado acima, esp. págs. 522 a 525, com base no seu entendimento de que o art. 291 do CC não protege os terceiros em face da inexistência, mas apenas, perante a nulidade ou a anulabilidade e de que o art. 17 do CRP apenas protege os terceiros perante vícios estritamente registais, já não perante vícios registais que decorram ou sejam consequência de um vício substantivo. No mesmo sentido, vai Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo, A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Almedina, Junho de 2010, págs. 713 a 746, no essencial com base na ideia de que “o registo, na sua função de resolução de conflitos ou condição de oponibilidade, não protege o terceiro adquirente, se ele adquirir de um sujeito que nunca foi proprietário do bem.” (pág. 332).

              Sem fazer esta restrição na aplicação do art. 17º/2 do CRP, veja-se José Alberto Vieira, A nova obrigatoriedade de registar, o seu impacto sobre a aquisição de direitos reais sobre coisas imóveis e a segurança no comércio jurídico imobiliário, Estudos em Homenagem a Sérvulo Correia, ed. da FDUL, Coimbra Editora, 2010, vol. III, espec. págs 100 e 101 (tendo em conta a hipótese configurada pelo autor), para além de Menezes Cordeiro e Isabel Pereira Mendes, citados por Maria Clara Sottomayor (aceitando-se esta posição, o ac. do TRL de 28/01/2010, referido acima, não teria razão em não aplicar a norma do art. 17º/2 do CRP, a pretexto de que o conceito de terceiros para efeitos de registo predial, isto é, do art. 5º/4 do CRP, já que o conceito de terceiro do art. 17º/2 do CRP é um conceito de terceiro registal, independente daquele, como explica Quirino Soares, artigo citado acima; no sentido de que a concepção de terceiro abraçada pelo art. 5º/4 do CRP vale apenas para a hipótese de “dupla disposição” e de que o conceito de terceiro relevante para efeitos de protecção registal tem uma extensão maior do que a que resulta do art. 5º, nºs 1 e 4, do CRP, veja-se também José Alberto Vieira, obra e local citados).

              Seja como for daqueles acórdãos decorre pelo menos a necessidade da intervenção dos terceiros com registos inscritos a seu favor, numa acção destinada a declarar a nulidade ou ineficácia dos respectivos registos.

              Ou seja, sempre o terceiro teria o direito de discutir a nulidade ou ineficácia do registo do acto (usucapião referida na escritura de justificação) em que se basearam os seus negócios posteriormente registados e os pressupostos de facto de tais consequências e sem isso a acção não faz caso julgado contra ele, nem os registos dos seus direitos podem ser declarados nulos ou ineficazes, nem que mais não fosse por aplicação do disposto no art. 271/3 do CPC.

              Um terceiro não pode ver postos em causa os seus direitos (com os seus registos a serem declarados nulos por arrastamento da declaração de nulidade do registo da aquisição por usucapião…) numa sentença / acórdão proferido numa acção em que não foi demandado.

              Por isso, no caso, este TRC não pode fazer mais nada do que declarar a ineficácia da escritura de justificação celebrada pelos réus em 28/06/1989 e é apenas isso que pode ser levado ao registo deste acórdão, sem que esta declaração e registo possam prejudicar os registos já existentes a favor de terceiro de que este tribunal tem conhecimento.

              Quanto a eventuais registos posteriores ao registo desta acção, o reflexo desta declaração de ineficácia terá que ser apreciado caso a caso e perante as circunstâncias concretas, designadamente tendo em conta a eventual caducidade do registo desta acção e a data daqueles, não sendo objecto possível desta acção nem deste acórdão (tendo-se também em conta o disposto no art. 271 do CPC).

                                                                 *

              Sumário:

              I. Quando dois compossuidores fazem um acordo entre eles de divisão do prédio e um deles passa a ocupar uma das metades do mesmo, deixa, a partir daí, de se poder falar de posse exercida como comproprietários.

              II. A impugnação de escritura de justificação notarial corresponde a uma acção de simples apreciação negativa de um direito, cabendo aos réus, nessa parte, o ónus da prova dos factos que alegaram na dita escritura. E isso mesmo que  o prédio já esteja registado a favor deles (aqui por força do AUJ 1/2008).

              III. Não pode ser ordenado o cancelamento dos registos a favor de tercei-ros, feitos antes de registada a acção sem que, pelo menos, esses terceiros sejam parte na acção.

                                                                 *

              Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso quanto ao pedido a) [não se declarando, pois, a compropriedade, por autores e réus, do lote 5], mas procedente quanto ao pedido b) e, parcialmente, quanto ao pedido f), declarando-se, por isso, a ineficácia da escritura de justificação notarial celebrada pelos réus em 28/06/1989, quanto à aquisição pelos réus, por usucapião, do terreno de 520 m2 aí em causa, declarando nulo o respectivo registo, sem prejuízo, no entanto, das três hipotecas que se encontravam registadas antes do registo da acção.

              Custas, quer da acção quer do recurso, em partes iguais por autores e réus.

              Se e quando transitar este acórdão, o tribunal deve promover o registo deste acórdão.

             


              Pedro Martins ( Relator )
              Virgílio Mateus
              António Carvalho Martins