Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1876/09.1TBPMS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
CÔNJUGE SOBREVIVO
PARTILHA
NULIDADE
Data do Acordão: 11/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 2103.º, N.º 1, DO CC
Sumário: Porque o encabeçamento pelo cônjuge sobrevivo no direito de habitação da casa de morada de família é facultativo, a falta de referência a tal direito numa escritura de partilha de prédio que serviu de habitação ao casal, não a faz incorrer em nulidade.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


            1. Relatório
            A... intentou, no 1.º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Porto de Mós, acção de reivindicação com forma de processo sumário contra B..., pedindo a condenação desta a reconhecer o direito de propriedade sobre prédio urbano que lhe foi adjudicado por escritura de partilha a que se procedeu por óbito de sua mãe e onde foi herdeiro juntamente com seu pai, que posteriormente casou em 2.ºs núpcias com a Ré, bem como proceder à sua restituição.
            Na contestação, a Ré, impugnou e deduziu reconvenção formulando 3 pedidos:
            1. Declaração de nulidade da escritura de partilha do imóvel;
2. Reconhecimento do direito de uso e habitação desse prédio a favor da Ré;
3. Condenação no pagamento da importância de € 15.000,00 a título de benfeitorias.
            Fundamentou o 1.º pedido em duas ordens de razões:
            a) – A escritura transferiu a propriedade do imóvel para o reconvindo, mas olvidou o direito de uso e habitação a favor do pai do A., que tinha direito a ser encabeçado no uso e habitação da casa de morada de família, nos termos do art.º 2103.º-A do CC e que aí deveria ter sido consignado;
            b) – O Pai do A. dispôs da totalidade do prédio a favor deste quando poderia dispor somente de ¼ e, dispondo da sua meação, a partilha excedeu a sua função jurídica, pelo que é nulo e, assim, essa meação, porque entretanto falecido, terá que ser objecto de partilha pelos herdeiros do pai do A., ou seja, pela Ré, pela filha desta e do pai do A. e pelo A.
            No despacho saneador afigurou-se possível conhecer parcialmente do mérito da reconvenção quanto àquele 1.º pedido, de declaração de nulidade da partilha, o que foi feito, no sentido da improcedência dessa parte da reconvenção e consequente absolvição do A. reconvindo desse pedido.
            Inconformada, recorreu a Ré, apresentando alegações que finalizou com as seguintes conclusões:
            a) – A recorrente contraiu casamento a 25.8.96 com C... no regime da comunhão adquiridos;
            b) – A recorrente e o cônjuge coabitaram e fixaram residência no prédio urbano pertença do anterior casal formado pelo cônjuge e pela falecida mãe do A. e adjudicado a este em escritura de partilha;
            c) – A recorrente continuou a viver no prédio urbano afecto à sua casa de morada de família;
            d) – A escritura de partilha de fls. 32 considerou omisso o facto de o cônjuge da recorrente residir no prédio urbano e, em consequência, nos termos do art.º 285.º do CC a referida escritura de partilha enferma de nulidade, que a recorrente invoca, por omissão da menção da referida habitação do mesmo, sendo tal facto relevante que a escritura olvidou;
            e) – Nos termos dos art.ºs 36.º, n.º 2 e 67.º, n.º 2, da CRP a recorrente tem direito à protecção constitucional do direito de habitação.
            Não foi apresentada resposta.
            Dispensados os vistos, cumpre decidir, sendo questão a apreciar:
            - Se a escritura de partilha de fls. 32 enferma de alguma nulidade, por preterição do direito de uso e habitação a favor do aí herdeiro (e meeiro) pai do A.
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            2. Fundamentação
            2.1 De facto
            A decisão recorrida ateve-se aos seguintes factos provados:
            a) - Por escritura pública de partilha, lavrada no dia 09.02.1995, no Cartório Notarial de Batalha, no dia 09.02.1995, a fls. 63 a 64 verso, do livro 151-B, C..., viúvo, e o autor, declararam:
            “Que são eles os únicos interessados na partilha dos bens deixados por óbito de D..., residente que foi no referido ..., e que faleceu no estado de casada com o primeiro outorgante, como consta da escritura de habilitação lavrada hoje, neste Cartório, a folhas sessenta e duas, deste mesmo livro.
            Que da herança apenas faz parte o seguinte prédio, ao qual atribuem o valor que tem na matriz:
            - Uma casa de habitação de rés-do-chão, com três divisões, cozinha e casa de banho, com a superfície coberta, de noventa metros quadrados e logradouro com duzentos e doze metros quadrados, sito no ..., freguesia e concelho da Batalha, omisso na Conservatória do Registo Predial da Batalha, a confrontar do norte com serventia, do sul com ..., do nascente com ... e do poente com ..., inscrito na matriz predial urbana no artigo x ..., com o valor patrimonial de trezentos e oitenta e dois mil e quinhentos escudos.
            Que ao primeiro outorgante, como meeiro e herdeiro, pertence o valor de duzentos e oitenta e seis mil, oitocentos e setenta e cinco escudos, e ao segundo outorgante pertence o valor de noventa e cinco mil, seiscentos e vinte e cinco escudos.
            Que este prédio é adjudicado na totalidade ao herdeiro A..., no valor indicado de trezentos e oitenta e dois mil e quinhentos escudos, pelo que excede o seu direito na importância de duzentos e oitenta e seis mil oitocentos e setenta e cinco escudos.
            Disse o primeiro outorgante que recebeu o seu direito, em dinheiro, do que dá quitação.
            Assim o outorgaram.”;
            b) - Com base na aludida escritura de partilha, o autor, em 19.03.1996, procedeu à inscrição na Conservatória do Registo Predial da Batalha do sobredito imóvel em seu favor;
            c) - Encontrando-se hoje o dito prédio aí inscrito a seu favor;
            d) - No dia 25.8.1996 C...e a ré contraíram casamento católico;
            e) - Desse casamento nasceu, em 31.8.1998, E...;
            f) - O referido C...faleceu em 3.5.2008.
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            2.2. De direito
            Com é sabido e resulta da conjugação do disposto nos art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do CPC, são as conclusões das alegações do recurso que delimitam o âmbito deste, pelo que a questão que vem submetida a este tribunal é somente a que foi enunciada, ou seja, se a escritura de partilha da herança aberta por morte da mãe do A., onde este foi herdeiro com seu pai, ex-cônjuge e onde foi adjudicado àquele o único bem, o prédio urbano que constituiu a casa de morada de família, enferma de nulidade por haver omitido ser essa a habitação do cônjuge meeiro, cujo direito de uso e habitação lhe assiste (art.ºs 1486.º e 1487.º, do CC) e no qual deve ser encabeçada (art.º 2103.º-A do CC), como é desiderato constitucional.
            Antes de mais, convém precisar que o mérito do despacho saneador - sentença incidiu apenas sobre o pedido reconvencional além expresso, sob n.º 1 (nulidade da escritura por não ter atendido ao direito de uso e habitação do cônjuge meeiro sobrevivo), e não sobre o 2.º pedido, isto é, reconhecimento do direito de uso e habitação, sobre o que foi organizada a base instrutória (art.º 29.º) para sobre tal matéria incidir posterior julgamento.
            Convocando aqui as pertinentes normas jurídicas, dispõe o art.º 4184.º, n.º 1, do CC que o direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família e o n.º 2 que, quando este direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação.
            Tais direitos constituem-se e extinguem-se pelos mesmos modos que o usufruto, à excepção da usucapião, ou seja, mediante contrato, testamento ou disposição da lei (art.º 1485.º, alín. b) do art.º 1293.º e art.º 1440.º, do CC).
            Quanto à fixação das necessidades pessoais do morador, são elas fixadas segundo a sua condição social e o âmbito da família do morador é circunscrito ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos solteiros e outros parentes alimentandos e pessoas conviventes ao serviço do titular do direito ou ao serviço de pessoas determinadas (art.ºs 1486.º e 1487.º, do CC).
            O art.º 2103.º, n.º 1, do CC preceitua que “o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respectivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver”.
            Trata-se de um direito de preferência (atribuição preferencial) que, como resulta do preceito, deve ser exercido no momento crucial da partilha com vista à continuidade do convívio familiar ou manutenção do lar conjugal.[1]
            Trata-se de uma faculdade jurídica que pode ou não ser exercida, dependendo da livre vontade do cônjuge sobrevivo que, no caso, entendeu não dever exercer.
            O art.º 4.º, n.º 1, do Código do Notariado dispõe que “compete, em geral, ao notário redigir o instrumento público conforme a vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance” e o n.º 2 do art.º 42.º que “a terminologia a utilizar pelo notário na redacção dos autos é aquela que, em linguagem jurídica, melhor traduza a vontade das partes, manifestada nas suas instruções dadas verbalmente ou através de apontamentos escritos, devendo evitar-se a inserção nos documentos de menções supérfluas ou redundantes”.
            Ora, da matéria de facto alegada não resulta que, em vida, a falecida houvesse acordado com o cônjuge sobrevivo a constituição do direito de habitação, nem que tal dispôs por testamento, nem que, como vimos, a mesma decorra da lei já que o cônjuge sobrevivo não usou do direito de nele ser encabeçado e cuja obrigatoriedade houvesse que atender-se na partilha.
            Daí o acerto da decisão recorrida quando concluiu que, não decorrendo da lei a constituição obrigatória do direito de habitação sobre o imóvel partilhado, nem os outorgantes na partilha expressando tal interesse, não havia a ele que atender na respectiva escritura de partilha que, assim, não enferma de qualquer nulidade ou outro tipo de invalidade.
            Quanto à validade da partilha propriamente dita, é questão que só incidentalmente as alegações de recurso põem em causa quando a recorrente, enquanto cônjuge sobrevivo, se arroga ao encabeçamento do direito de habitação ou usufruto da casa de morada de família, nos termos do cit. art.º 2103.º-A.
            Carece também de razão nessa vertente.
            A adjudicação da totalidade do prédio ao herdeiro filho (a alternativa seria a compropriedade, indivisível que se presume ser o imóvel) mediante o pagamento não só do quinhão hereditário do cônjuge marido, seu pai, (em tornas), como da meação, insere-se no âmbito da autonomia privada que primacialmente regula o direito das obrigações e dos contratos e que se impõe seja respeitada, sendo que, por outro lado, as operações respeitam as normas legais reguladoras da partilha (art.ºs 2132.º, 2133.º, n.º 1, alín. a) e 2139, n.º 1, do CC).
            O acervo hereditário que haveria de constitui a herança do entretanto falecido marido da Ré era a quantia recebida de tornas e do valor da sua meação (e já não a meação sobre o imóvel), mas se não recebida tal quantia (como aventa a recorrente na contestação), isto é, se não corresponde à verdade o recebimento que oportunamente declarou na escritura, é matéria que extravasa o presente processo e cujo remédio e recorrente deve buscar noutra sede.
            Uma última palavra para a invocação da protecção constitucional do direito à habitação da recorrente, que remete para normas que aparentemente nada têm que ver com tal direito (art.ºs 36.º, n.º 2 e 67.º, n.º 2, da CRP):
            - É apodíctico que o direito à habitação é não apenas um direito individual como um direito das famílias e tem a matriz constitucional de direito social (art.º 65.º da CRP).
            Todavia, a recorrente não invoca propriamente a inconstitucionalidade de nenhuma norma que o tribunal a quo houvesse aplicado.
            E porque oficiosamente nenhuma se vislumbra que possa padecer de tal vício, nada há a conhecer nesse âmbito.
            Em suma, soçobram as conclusões recursivas.
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            3. Sumariando
            - Porque o encabeçamento pelo cônjuge sobrevivo no direito de habitação da casa de morada de família é facultativo, a falta de referência a tal direito numa escritura de partilha de prédio que serviu de habitação ao casal, não a faz incorrer em nulidade.
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            4. Decisão
            Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
            Custas pela apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza.
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Francisco Caetano (Relator)

António Magalhães

 Ferreira Lopes


[1] Pires de Lima e Antunes Varela, “Cód. Civil, Anot.”, IV, pág. 168.