Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3181/19.6T8LRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: REJEIÇÃO DE SEGUNDA PERÍCIA
RECORRIBILIDADE
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA
Legislação Nacional: ARTIGOS 485.º; 487.º, 1; 488.º; 489.º; 644.º, 2, D), H) E 3; 652.º; 653.º; 655.º E 656.º, DO CPC
Sumário: 1. - O requerimento de 2.ª perícia – que foi rejeitado na 1.ª instância – constitui um incidente no quadro da prova pericial anterior (a 1.ª perícia), já admitida e realizada (mas a ser prolongada, sobre os mesmos factos, com vista a infirmar os dados periciais já obtidos), visando-se, funcionalmente, abalar/controlar o seu valor probatório, e não um novo/autónomo meio de prova pericial.
2. - Da decisão de indeferimento de requerimento de 2.ª perícia não cabe recurso de apelação autónoma, apenas sendo admissível recurso nos moldes dos n.ºs 3 e 4 do art.º 644.º do NCPCiv..
Decisão Texto Integral:

***
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por despacho do relator – datado de 10/10/2023 (com Ref. 11019200) –, proferido ao abrigo do disposto nos art.ºs 652.º, n.º 1, al.ª b), e 655.º, n.º 1, ambos do NCPCiv., foi decidido, por não ser admissível o recurso interposto como apelação autónoma, não conhecer do seu objeto, julgando-se o mesmo findo, nos seguintes termos:

I - No anterior despacho do relator – datado de 15-09-2023, com ref. 10984995 –, de que ocorreu notificação, fez-se consignar o seguinte:

«1. - Compulsados estes autos de recurso em separado, constata-se o seguinte:

a) A prova pericial, oportunamente requerida, foi admitida, com objeto fixado, pelo que teve lugar a perícia inicialmente requerida, com obtenção de relatório pericial colegial;

b) Realizada, assim, tal perícia, do respetivo relatório pericial foi deduzida reclamação, razão pela qual houve decorrentes esclarecimentos periciais;

c) Notificada dos esclarecimentos periciais, a parte ora R./Recorrente, continuando a não se conformar, pediu a realização de segunda perícia;

d) Esta veio a ser rejeitada;

e) Por isso, tal R. recorre da não admissão da pretendida segunda perícia, fazendo-o ao abrigo da norma da al.ª d) do n.º 2 do art.º 644.º do NCPCiv. – “rejeição de meio de prova”;

f) O recurso foi admitido com esse fundamento legal: rejeição de meio de prova, no âmbito do art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv.;

g) Daí o regime recursivo fixado na 1.ª instância: «(…) admito o recurso interposto pela Ré A..., S. A. (com a actual denominação social de B..., S. A.), que é de apelação, a subir imediatamente em separado e com efeito meramente devolutivo – cfr. artigos 641.º, 644.º, n.º 2, al. d), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1, do CPC.» (itálico aditado).

Mas – cabe perguntar – constituirá a rejeição da segunda perícia a não admissão de um meio autónomo de prova? Ou estaremos ainda no âmbito/decurso de prova pericial já admitida, implicando a rejeição da apelação autónoma (por o recurso dever ser interposto apenas a final)?

2. - Dispõe aquele art.º 644.º, n.º 2, al.ªs d) e h), do NCPCiv., que:

“Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:

(…)

d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;

(…)

h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;”.

3. - Ora, perante este dispositivo legal, deve, então, colocar-se a questão da tempestividade do recurso, se ele devia subir imediatamente (e em separado) ou, nos termos do n.º 3 do mesmo art.º 644.º (conjugado com o n.º 1), se poderia/deveria a decisão proferida ser impugnada (apenas) “no recurso que venha a ser interposto” da decisão “que ponha termo à causa”.

4. - Na verdade, não parece – prima facie – que, in casu, estejamos perante rejeição de algum meio de prova, no caso a prova pericial.

Esta, uma vez (inicialmente) requerida, foi admitida e produzida (os peritos nomeados efetuaram a perícia e entregaram o respetivo relatório pericial, com todos os complementos sobre esclarecimentos periciais que lhes foram determinados).

Assim, tal prova pericial, numa perspetiva global, em vez de rejeitada, foi admitida e produzida (já realizada, ao menos em parte), conclusão que – parece – não será invalidada pelo facto de a dita R., inconformada com o resultado da perícia efetuada, agora pretender, incidentalmente, no mesmo âmbito, uma segunda perícia ([1]).

Esta pretensão, neste contexto processual e probatório, não passará de um incidente no quadro da prova pericial já admitida e realizada, visando-se, no fundo, abalar/controlar o seu valor probatório.

A esta luz, pois, o despacho recorrido constitui decisão respeitante a incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial já admitida e produzida.

5. - E também não parece – embora nada tenha sido argumentado a respeito nos autos – que estejamos perante decisão (a impugnada) cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil, no sentido de uma inutilidade absoluta/irreversível ([2]).

Deste modo – seguindo o mesmo Autor –, «não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado» ([3]).

Aderindo a este entendimento, cabe concluir que parece de perspetivar que a eventual procedência recursória futura da impugnação da R. terá um impacto inutilizador limitado ao processado dos autos, podendo levar à inutilização da sentença final a proferir, mas não impedirá que, a final, se faça valer no processo a sua pretensão probatória, se para tal houver fundamento.

Assim, o risco de inutilização corre relativamente ao processado subsequente, podendo estender-se à sentença, mas não parece poder afetar, na sua substância, a decisão final do pleito.

Se, pois, a R. vier a recorrer a final da decisão ora em questão e vier a ser-lhe dada razão, tal apenas terá repercussões processuais, implicando a anulação da sentença – e da audiência final – para realização da pretendida segunda perícia, a que se seguirá repetição da audiência e nova sentença, sem contender com os direitos e posições substantivos das partes.

Nunca ocorreria, por isso, nesta perspetiva, absoluta inutilidade da impugnação com o recurso da decisão final.

Parece, pois, que o recurso interposto será intempestivo, devendo ser interposto, sendo o caso, ulteriormente, nos termos aplicáveis do disposto nos n.ºs 3 e 1 do art.º 644.º do NCPCiv..

6. - De acrescentar ainda, quanto à perspetiva normativa convocada no recurso – aquela que importa considerar –, que está em causa uma discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, ou seja, à perícia já realizada (a primeira perícia) – cfr. art.º 487.º, n.º 1, do NCPCiv. –, visando-se apenas a averiguação dos mesmos factos, com vista a corrigir a eventual inexatidão dos resultados do dito relatório pericial oferecido (n.º 3 do mesmo art.º), com aplicação das mesmas regras/disposições que valem para a primeira perícia (art.º 488.º do mesmo Cód.).

Por isso, nenhuma das duas perícias invalida a outra, sendo ambas livremente apreciadas pelo tribunal, podendo, em rigor, dizer-se que:

«IV - A segunda perícia não é uma nova perícia. A segunda perícia, dado que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta, é, simplesmente, a repetição da primeira (…).

V - O que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados. Parte-se do princípio que o primeiro perito ou os primeiros peritos viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia é que se lança mão da segunda.

VI - No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (artº 389º do Código Civil).» ([4]).

Ora, se a «segunda perícia não é uma nova perícia», mas, por averiguar «dos mesmos factos» e se destinar à «correcção da eventual inexactidão dos resultados» da primeira, «é, simplesmente, a repetição» desta, não poderá dizer-se – assim parece – que estamos perante um diverso meio de prova, mas apenas perante o prolongamento/prosseguimento, incidental, da prova pericial já iniciada.

Tratar-se-á, com efeito, de um incidente no decurso da prova pericial inicialmente admitida e até já produzida, suscitado no encadeamento da perícia anteriormente realizada, desta funcionalmente dependente, por exclusivamente direcionado, dentro do mesmo âmbito fáctico (ou objeto probatório), à dita correção da eventual inexatidão dos resultados do relatório pericial já obtido e com que a parte requerente da segunda perícia não concorda.

Tal como o pedido de esclarecimentos na veste de reclamação contra o relatório pericial (cfr. art.º 485.º do NCPCiv.), não dá início a um novo meio de prova (os esclarecimentos/complementos dos peritos), por se estar perante um incidente suscitado no quadro da produção da prova (pericial) já admitida, a ela funcionalizado e sem extravasar o seu âmbito, também a segunda perícia não assume a autonomia correspondente a um diverso meio de prova.

Funcionalizada perante o requerimento de prova pericial inicialmente apresentado, versando sobre os mesmos factos, sujeita às mesmas regras e destinada, somente, a responder à discordância de uma das partes perante o relatório pericial já produzido, em termos de levar à correção eventual de alguma inexatidão de resultados, em causa está apenas, na segunda perícia, controlar os resultados e o valor probatório da primeira.

Por isso, nesta perspetiva, tudo não passará, assim, de um incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial inicialmente requerida, já não se tratando de admitir ou rejeitar o meio de prova – aquela prova pericial sobre aqueles factos –, mas de controlar o seu valor probatório, vistos os resultados do relatório já obtido.

Não ocorrerá, pois, uma nova perícia – a segunda perícia não é um novo meio de prova –, mas a repetição da anterior/primeira, no quadro da prova pericial inicialmente requerida e admitida, termos em que não parece, salvo o devido respeito, poder enquadrar-se o caso na hipótese normativa da rejeição de um meio de prova, a que alude o art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., o que afasta a possibilidade de recurso de apelação autónoma.

Como exposto na fundamentação do Ac. TRC de 27-09-2016 ([5]):

«Comece por dizer-se, em abstracto, que o procedimento probatório da prova pericial comporta quatro fases distintas, a saber: a da sua proposição, a da sua admissão, a da sua preparação (fixação do objecto da perícia) e a da sua produção e assunção - A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pp. 584 a 586».

Ora, in casu, o objeto da perícia resultou fixado/estabelecido aquando da preparação da prova pericial – fixado para a primeira perícia, a que tem de conformar-se a segunda perícia –, o que significa que a fase da preparação do procedimento probatório de toda esta prova pericial já ocorreu.

Na fase da produção e assunção, houve reclamação e decorrentes esclarecimentos periciais, na sequência do que, ainda inconformada uma das partes (R.), foi requerida a segunda perícia, e não uma nova perícia, isto é, uma repetição, incidental, da primeira perícia, com sujeição ao mesmo fixado objeto e no intuito, apenas, de corrigir/alterar os resultados desta.

Neste sentido se pronunciou o Ac. TRP de 04-11-2019, Proc. 701/17.4T8MAI.P1 (Rel.         José Eusébio Almeida), disponível em www.dgsi.pt, rejeitando a possibilidade de interposição de recurso de apelação autónoma da decisão de não admissão de segunda perícia, podendo ler-se no respetivo sumário:

«I - O indeferimento da realização de uma 2.ª perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação.

II - Assim, o despacho que não admite a 2.ª perícia não é passível de recurso autónomo.».

7. - E nem a decisão que admita o recurso vincula o Tribunal superior [cfr. art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs a) e b), e 653.º e seg., todos do dito NCPCiv.], devendo o relator proceder ao exame preliminar do processo, apreciando, nesse âmbito, se alguma circunstância obsta ao conhecimento do objeto recursivo (vide art.º 655.º do Cód. aludido).

Haverá, então, previamente, ante a possibilidade de não admissão do recurso, de ser observado o contraditório [ditos art.ºs 652.º, n.º 1, al.ª b), e 655.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.].

8. - Face ao exposto, determina-se, antes de mais, o cumprimento, em 10 dias, do preceito daquele art.º 655.º, n.º 1, a fim de as partes poderem tomar posição.

Notifique.».

II - Só a parte recorrente veio tomar posição (cfr. peça processual de 02/10/2023), continuando a pugnar pela admissibilidade da pretendida 2.ª perícia e do recurso, com subida imediata (apelação autónoma), da decisão que rejeitou tal perícia.

III - Apreciando.

Cabe dizer, antes de mais, que está em causa no recurso apenas a decisão recorrida, que se pronunciou, como visto, no sentido do indeferimento da realização de 2.ª perícia, requerida pela R. após realização da (1.ª) perícia.

Não podendo, pois, olvidar-se que já foi realizada a dita 1.ª perícia, cujo relatório consta dos autos (como meio de prova pericial), perante o qual, com ele não se conformando a parte, é pretendida 2.ª perícia, sobre a mesma matéria e para contrariar a 1.ª, importa então reiterar o já sinalizado no anterior despacho para observância do contraditório.

Assim, se, como ali visto, e agora se reitera, se a 2.ª perícia «não é uma nova perícia», mas, por averiguar «dos mesmos factos» e se destinar à «correcção da eventual inexactidão dos resultados» da primeira, «é, simplesmente, a repetição» desta, não poderá dizer-se que estejamos perante um diverso meio de prova, mas – apenas – perante o prolongamento/prosseguimento, incidental, da prova pericial já iniciada e produzida.

Trata-se, então – salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento –, de um incidente no decurso da prova pericial inicialmente admitida e até já produzida, suscitado no encadeamento da perícia anteriormente realizada, desta funcionalmente dependente, por exclusivamente direcionado, dentro do mesmo âmbito fáctico (ou objeto probatório), à dita correção da eventual inexatidão dos resultados do relatório pericial já obtido e com que a parte requerente da segunda perícia não concorda.

Tal como o pedido de esclarecimentos na veste de reclamação contra o relatório pericial (cfr. art.º 485.º do NCPCiv.), não dá início a um novo meio de prova (os esclarecimentos/complementos dos peritos), por se estar perante um incidente suscitado no quadro da produção da prova (pericial) já admitida, a ela funcionalizado e sem extravasar o seu âmbito, também a segunda perícia não assume a autonomia correspondente a um diverso meio de prova.

Funcionalizada perante o requerimento de prova pericial inicialmente apresentado, versando sobre os mesmos factos, sujeita às mesmas regras e destinada, somente, a responder à discordância de uma das partes perante o relatório pericial já produzido, em termos de levar à correção eventual de alguma inexatidão de resultados, em causa está apenas, na 2.ª perícia, controlar os resultados e o valor probatório da primeira.

Por isso, tudo não passa de um incidente suscitado no âmbito da produção da prova pericial inicialmente requerida (em curso), já não se tratando de admitir ou rejeitar o meio de prova – aquela prova pericial sobre aqueles factos –, mas de controlar o seu valor probatório, vistos os resultados do relatório já obtido.

Não ocorre, pois, uma nova perícia – a 2.ª perícia não é um novo meio de prova –, mas a repetição da anterior/primeira, no quadro da prova pericial inicialmente requerida e admitida, termos em que não poderá enquadrar-se o caso na hipótese normativa da rejeição de um meio de prova, a que alude o art.º 644.º, n.º 2, al.ª d), do NCPCiv., o que afasta a possibilidade de recurso de apelação autónoma.

Neste mesmo sentido se pronunciou o mencionado Ac. TRP de 04-11-2019 ([6]), rejeitando a possibilidade de interposição de recurso de apelação autónoma da decisão de não admissão de segunda perícia, em cujo sumário pode ler-se: «I - O indeferimento da realização de uma 2.ª perícia não constitui a rejeição de um meio de prova, no sentido em que o artigo 644, n.º 2, alínea d) do CPC admite apelação. // II - Assim, o despacho que não admite a 2.ª perícia não é passível de recurso autónomo.».

E, como resulta da fundamentação deste aresto do TRP:

«14 – Importa fazer notar que a razão de ser do recurso autónomo não esclarece que decisões devam ser objeto do mesmo: são coisas distintas. Aliás, se o fundamento do recurso autónomo definisse a extensão da sua admissibilidade, não vemos que decisões – com a finalidade de se afastar o risco de anulação do processo – poderiam deixar de o admitir.

15 - No mais, mantemos as razões que foram avançadas na decisão singular, ou seja “entendemos que a segunda perícia não é um meio de prova no sentido da previsão do preceito que admite a recorribilidade imediata e autónoma. A razão de ser desta recorribilidade não se estende a todas as vicissitudes da prova (como entendemos ser a segunda perícia ou a contradita, por exemplo), nem a clareza da lei – referindo-se, apenas mas significativamente, à admissão e rejeição -, aceitará essa interpretação alargada. O que está em causa é sempre a admissão ou rejeição de um meio de prova. No caso, do meio de prova, prova pericial. A prova pericial constitui o Capítulo IV do Título V (Da Instrução do Processo) do Código de Processo Civil e o Capítulo seguinte é outro meio de prova, A Inspeção Judicial. As diversas secções daquele Capítulo IV (Designação de peritos, Proposição e objeto da prova pericial, Realização da perícia e Segunda perícia) não são autónomos ou diferentes meios de prova: esta é e sempre continua a ser a Prova Pericial.».

A parte recorrente esgrime no sentido de a decisão de rejeição de uma 2.ª perícia corresponder «à pronúncia relativa a um meio probatório», tratando-se «de um novo meio probatório, cujo resultado sobrevive no processo de forma autónoma e independentemente da 1.ª perícia», ambas, assim, «meios de prova processualmente previstos e admissíveis, e com igual força, valor e dignidade probatória».

Todavia, não pode, como dito, aceitar-se esta perspetiva, uma vez que consideramos, diversamente, que se trata de um prolongamento incidental da prova pericial já iniciada (com a 1.ª perícia) e ainda em curso, isto é, já admitida e produzida.

Assim, o meio probatório – prova pericial sobre aqueles concretos factos – já foi objeto de admissão, estando apenas agora em causa, dentro do mesmo objeto probatório, a rejeição de um seu incidente/prolongamento.

Ou seja, a pretensão probatória de realização de 2.ª perícia não é dotada de autonomia perante a prova pericial já admitida e em curso, razão pela qual não pode falar-se de rejeição de um autónomo meio de prova.

Refere-se ainda a parte recorrente aos «efeitos negativos que poderiam produzir-se ao nível da tramitação processual ou da estabilidade das decisões que põem termo ao processo. Com efeito, a sujeição de tais decisões a impugnação diferida para o recurso da decisão final potenciaria o risco de anulação do processado, para ponderação ou não ponderação do meio de prova rejeitado», sendo «por demais ostensiva a conveniência da recorribilidade autónoma e imediata da decisão de não admissão de tal meio probatório, sob pena de inutilização do processado», tanto mais que versa a perícia sobre matéria «absolutamente crucial neste processo».

Sobre esta linha de argumentação apenas cabe agora reiterar o que foi dito no despacho anterior do relator, no sentido de:

- a eventual procedência recursória futura da impugnação da R. ter um impacto inutilizador limitado ao processado dos autos, podendo levar à inutilização da sentença final a proferir, mas não impedir que, a final, se faça valer no processo a sua pretensão probatória, se para tal houver fundamento;

- o risco de inutilização correr relativamente ao processado subsequente, podendo estender-se à sentença, mas não poder afetar, na sua substância, a decisão final do pleito.

Assim, se a R. vier a recorrer a final da decisão ora em questão e vier a ser-lhe dada razão, tal apenas terá repercussões processuais, implicando a anulação da sentença – e, em parte, da audiência final – para realização da pretendida 2.ª perícia, a que se seguirá repetição, nesta parte, da audiência e nova sentença, sem contender com os direitos e posições substantivos das partes. Nunca ocorreria, por isso, absoluta inutilidade da impugnação com o recurso da decisão final. E, como bem se vislumbra, o efeito invalidante seria parcial/limitado.

Pelo que resta repetir, tendo em conta a arquitetura do nosso sistema recursório, tal como adotado pelo legislador atual, que a pretensão rejeitada, neste contexto processual e probatório pericial, constitui um incidente suscitado no quadro da prova pericial anterior, já admitida e realizada – mas a dever, segundo se pretende, ser prolongada, sobre os mesmos factos, com vista a infirmar os dados periciais já obtidos –, visando-se, então, abalar/controlar o seu valor probatório.

Não se trata – reitera-se – de autónomo meio de prova, cuja rejeição desencadeasse a aplicação do preceito da al.ª d) do n.º 2 do art.º 644.º do NCPCiv., mas ainda de “incidente suscitado no âmbito da produção da prova” já produzida ou em produção, nos antípodas, pois, da rejeição do meio de prova (a prova pericial que havia sido requerida, admitida e produzida).

Não quer isto dizer que a decisão proferida não seja recorrível, mas apenas que não é suscetível de apelação autónoma, devendo ser impugnada, sendo o caso, a final, no recurso que venha a ser interposto da sentença dos autos (n.º 3 do dito art.º 644.º) ou nos moldes do n.º 4 deste dispositivo legal.

Termos em que o recurso interposto não é admissível como apelação autónoma, o que obriga à sua rejeição, no caso, ao seu não conhecimento pela Relação [art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs b) e h), e 655.º, n.º 1, ambos do NCPCiv.].

                                               ***

IV - Concluindo:

(…).

                                               ***

V - Decisão.

Pelo exposto, e decidindo, não sendo admissível o recurso interposto como apelação autónoma, não se conhece do seu objeto, julgando-se, por isso, o mesmo findo.

Custas pela parte Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em montante equivalente ao mínimo legal.

Notifique..

                                               ***

II - Discordando do assim decidido, vem a R./Recorrente reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria do despacho proferido ([7]) recaia acórdão deste Tribunal da Relação, concluindo, nesta ótica, pela colegial formulação de distinta pronúncia decisória, por entender que ocorre, como vem reiterando, «recorribilidade autónoma e imediata da decisão de não admissão de tal meio probatório» (a 2.ª perícia rejeitada).

Não foi deduzida qualquer resposta à reclamação.

                                              ***

III - Apreciando

Não tem razão – salvo sempre o devido respeito – a parte Reclamante/ Recorrente.

A qual vem oferecer as seguintes linhas de argumentação:

a) O «recurso de Apelação, por si interposto não podia, por manifesta falta de fundamento e viabilidade legal, ser alvo de uma decisão de natureza singular, com a qual, além do mais, se discorda em absoluto»;

b) A «Decisão Singular, não poderá manter-se, na medida em que consubstancia uma solução que viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis, afigurando-se como injusta e não rigorosa»;

c) «Não há, por outro lado, nenhum dispositivo e/ou norma legal que atribua um significado ou valor probatório menor à 2.ª perícia. Muito pelo contrário!»;

d) Âmbito em que «a Ré/Recorrente reitera e dá aqui por integralmente reproduzido o teor das alegações de recurso apresentadas nos presentes autos requerendo a V. Ex.ª que o recurso, por si, interposto seja admitido e apreciado nos termos legais».

Vejamos, então.

1. - A parte ora Reclamante começa por suscitar questão que se prende com invocada impossibilidade, “por manifesta falta de fundamento e viabilidade legal”, de prolação de uma decisão de natureza singular.

Ao assim verter nos autos, labora no erróneo pressuposto – salvo sempre o respeito devido – de ter o relator proferido uma decisão sumária, em julgamento de pendor singular.

Com efeito, parece essa parte confundir duas situações decisórias que são claramente distintas.

Por um lado, a decisão sumária/liminar do objeto do recurso, a que alude a norma do art.º 656.º do NCPCiv., a ser proferida pelo relator, desde que entenda que a questão a decidir (a objeto de recurso, constituindo a matéria/substância do mesmo) é simples ou que o recurso é manifestamente infundado.

Trata-se, pois, do conhecimento do mérito do recurso, em decisão sumária (proferida, singularmente, pelo relator), o que pressupõe a admissão de tal recurso, com formulação de um subsequente juízo sobre a (im)procedência do mesmo.

Por outro lado, de forma inelutavelmente distinta, a decisão sobre a existência de algum obstáculo ao conhecimento do recurso, no caso de o relator entender que não pode conhecer-se do respetivo objeto, situação a que alude a normação conjugada dos art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs b) e h), e 655.º, ambos do NCPCiv., decisão essa a ser, também, proferida pelo relator, mas que assume a forma de um despacho, e não de uma “decisão sumária” (a que alude o já mencionado art.º 656.º).

Assim, só para estas decisões sumárias colhem aplicação as hipóteses da previsão normativa desse art.º 656.º, designadamente a simplicidade da questão recursiva a decidir.

Não fazendo, pois, qualquer sentido pretender que sejam aplicáveis ao despacho de não conhecimento do objeto do recurso, por aqui não se entrar, manifestamente, no conhecimento do seu objeto e do seu mérito.

Em suma, tendo o despacho reclamado incidido sobre a dimensão de inadmissibilidade e não conhecimento do recurso – o que afastava, logicamente, qualquer conhecimento do objeto recursivo (a matéria sobre que se pronunciou a decisão recorrida, de rejeição de 2.ª perícia) –, não faz qualquer sentido, sem quebra do respeito devido, invocar que tal análise, na estrita esfera em que operada, «apenas poderá ser realizada, com o necessário rigor e profundidade, se for efectuada de forma colegial, como é o procedimento que se adequa e garante o cumprimento das formalidades recursais exigidas».

2. – Invoca depois a Reclamante que a solução encontrada viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis, «afigurando-se como injusta e não rigorosa», sem, porém, explicitar, desde logo, que preceitos serão esses e que princípios foram, assim, desconsiderados e, ainda, qual a dimensão normativa que foi (indevidamente) postergada.

E acrescenta não haver «nenhum dispositivo e/ou norma legal que atribua um significado ou valor probatório menor à 2.ª perícia», por comparação à primeira.

Ao assim esgrimir, entra já no valor probatório das perícias, âmbito em que, obviamente, não penetrou a decisão reclamada, de não conhecimento do objeto do recurso.

E jamais se disse, nessa decisão (ou em despacho anterior), que a 2.ª perícia valesse menos – ou mais, em abstrato, em termos probatórios – que a 1.ª perícia, posto o art.º 489.º do NCPCiv. ser claro no sentido de uma perícia não invalidar a outra, sendo ambas livremente apreciadas pelo tribunal, que pode conferir maior peso probatório, no momento decisório próprio, a qualquer delas.

Aliás, como poderia o relator formular um tal juízo de valia probatória, se entendeu nem sequer conhecer do objeto do recurso?

O que se nota é que a Recorrente/Reclamante continua a confundir os planos ([8]), ignorando que o relator, simplesmente, entendeu não se poder conhecer do objeto do recurso, por inadmissibilidade legal de apelação autónoma de decisão de rejeição de 2.ª perícia.

3. - No mais, a Reclamante limita-se a remeter – ou reproduzir – os argumentos já anteriormente por si expostos e que foram objeto de detida (e detalhada) análise no despacho sob reclamação.

Com efeito, veio agora reiterar e dar «por integralmente reproduzido o teor das alegações de recurso» e o demais já oferecido quanto à questão da admissibilidade de apelação autónoma.

E, assim sendo, nessa parte resta a esta Relação, do mesmo modo, remeter para a fundamentação do despacho reclamado, como atrás reproduzido, o qual não merece censura, subscrevendo-se integralmente a análise jurídica ali levada a cabo, que se mantém de pé, tal como a solução jurídica a que, em conformidade, ali se chegou (a do não conhecimento do objeto do recurso, por inadmissibilidade legal de apelação autónoma, esfera decisória essa que se encontrava no quadro das competências do relator, atenta a sua função estabelecida nos art.ºs 652.º e 655.º do NCPCiv.).

Sem prejuízo, pois, de toda a demais argumentação vertida a respeito na decisão sob reclamação, para cuja fundamentação se remete, terá a deduzida reclamação de improceder.

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(…)

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V - Decisão

Termos em que se decide, em Conferência, indeferir a reclamação, mantendo, no seu preciso teor, a decisão em apreço do relator, no sentido da inadmissibilidade do recurso interposto como apelação autónoma, com a consequência de não se conhecer do seu objeto, julgando-se, por isso, o mesmo findo.

Custas pela Reclamante/Apelante.

Coimbra, 13/12/2023

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral

José Fonte Ramos

Luís Cravo


([1]) Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 155, estão «excluídas outras decisões respeitantes a incidentes suscitados no âmbito da produção da prova (…), pois que em nenhum deles se trata de “admitir” ou “rejeitar” meios de prova, antes de controlar o seu valor probatório».
([2]) Cfr. Abrantes Geraldes, op. cit., ps. 159-160.
([3]) Idem, op. cit., p. 160.
([4]) Cfr. Ac. TRC de 24-04-2012, Proc. 4857/07.6TBVIS.C1 (Rel. Henrique Antunes), disponível em www.dgsi.pt (cujo sumário se citou, com itálico aditado).
([5]) Proc. 26/11.9TBMDA-A.C1 (Rel. Jorge Loureiro), em www.dgsi.pt.
([6]) Proc. 701/17.4T8MAI.P1 (Rel.  José Eusébio Almeida), disponível em www.dgsi.pt.
([7]) A Recorrente/Reclamante chama-lhe “Decisão Singular”.
([8]) Agora já o plano da (in)admissibilidade recursiva, por um lado, e o da valia/força probatória, por outro, sabido que o da força e valoração probatória não está minimamente em causa [nem no âmbito, que aqui importa, da (in)admissibilidade da apelação autónoma, nem sequer no âmbito, em que não se entra, da (in)admissibilidade de 2.ª perícia no caso, muito menos no da valoração probatória, em concreto, de uma 1.ª e uma 2.ª perícias].