Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
252/06.2TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: AVAL
PROVEITO COMUM DO CASAL
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1691.º, N.º 1, AL. C) DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Sendo a relação causal ou subjacente ao aval de mero favor e gratuita, não importa para o cônjuge não subscritor um qualquer proveito, porque a esse acto não correspondem contraprestações, mas tão só responsabilidades para quem se obrigou.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A...., ...., com domicílio profissional na ......, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra B...., ...., com última residência conhecida na ...., e contra C....., ....., residente na ....., pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe, solidariamente, a importância de 31.001,07 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 31 de Janeiro de 2005 até efectivo e integral pagamento (liquidando os vencidos em 2.847,55 €)

Alegou, para tal, que os RR. – casados um com o outro, em 16/07/89, sob o regime da comunhão de adquiridos, e divorciados por sentença de 20/06/05 – foram, desde 28/02/02, os únicos sócios da “D...., Lda.”; a quem o A., no exercício da sua actividade comercial, forneceu, entre Novembro de 2002 e 30/03/04, diversos equipamentos de hotelaria; razão pela qual, para o pagamento de parte de tais equipamentos, recebeu e é portador duma letra de câmbio no valor de 31.001,07 €, aceite pela sociedade “ D..., Lda.”e avalizada pelo réu B....

Mais alegou que os RR., enquanto únicos sócios da “ D..., Lda.”, beneficiavam dos proventos resultantes da exploração do referido restaurante, sendo com as receitas e lucros gerados pela exploração do mesmo que faziam face aos encargos normais do seu agregado familiar; razão pela qual – concluiu – a dívida (aval) do réu B.... foi contraída em proveito comum do casal e dentro dos limites dos seus poderes de administração.

Apenas a R. C...contestou, impugnando a conclusão final do A. e aduzindo factos com vista a infirmar tal “proveito comum”.

Concluiu pela sua absolvição.

Foi proferido despacho saneador, organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, após o que o Exmo. Juiz proferiu a seguinte sentença:

“ (…) julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) condena-se o réu B... a pagar ao autor a quantia de 31.001,07 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 31 de Janeiro de 2005 até efectivo e integral pagamento, e

b) Absolve-se a ré C... do pedido.

(…)”

Inconformado com tal decisão, interpôs o A. recurso de apelação, visando a sua revogação e a sua substituição por decisão que julgue a acção totalmente procedente e que condene ambos os RR. solidariamente.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

I - Ao ter absolvido a ré C.... do pedido formulado pelo autor, o Tribunal a quo fez uma errónea qualificação jurídica dos factos dados como provados, quer no que tange à interpretação das normas jurídicas aplicáveis, quer, outrossim, no que respeita à própria operação de subsunção dos factos ao direito;

II - Resultou, para além do mais, demonstrado o que consta (…) dos Factos Provados vertidos na sentença recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos;

III - A dívida titulada pela letra de câmbio foi contraída pela sociedade comercial de que os réus eram os únicos sócios — sociedade essa, portanto, de cariz eminentemente familiar – na constância do casamento destes, destinando-se a mesma ao pagamento do preço de equipamentos adquiridos para o estabelecimento de restaurante explorado por aquela sociedade, tendo a aludida dívida sido avalizada pelo réu marido;

IV - Aquando da subscrição (aceite e aval) da letra de câmbio, agiu o réu B.... na qualidade de administrador e dentro dos limites dos seus poderes de administração, o que, aliás, nem sequer foi posto em causa na primeira instância;

V - A questão de apurar o proveito comum – o qual não se presume, com excepção dos casos previstos na lei – apresenta-se como uma questão mista ou complexa, envolvendo uma questão de facto e outra de direito, consistindo a primeira em averiguar o destino dado ao dinheiro ou bens representados pela dívida, tratando a segunda da valoração sobre se, perante o destino apurado, a dívida foi contraída em proveito comum, preenchendo assim o conceito legal;

VI - Tal proveito afere-se, não pelo resultado, mas pela aplicação da dívida, ou seja, pelo fim visado pelo devedor que a contraiu, sendo certo que, se este fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum do casal, ainda que dessa aplicação tenha resultado prejuízo;

VII - O interesse comum do casal pode não ser só um interesse material ou económico, mas também um interesse moral ou intelectual;

VIII - Não basta para que uma dívida se considere aplicada em proveito comum do casal, a intenção subjectiva do agente, exigindo-se também uma intenção objectiva desse proveito, ou seja, é necessário que a dívida se possa considerar aplicada em proveito comum aos olhos de uma pessoa média e, portanto, à luz de regras de experiência e das probabilidades normais;

IX - No caso vertente, é inequívoco que a dívida foi contraída pelo réu marido com vista à exploração do negócio de restauração do casal, exploração essa feita por intermédio de uma sociedade comercial de cariz familiar, da qual ambos eram os únicos sócios;

X - Em face das circunstâncias do caso em apreço e tendo em conta a perspectiva do homem médio, impõe-se concluir que, objectivamente, a controvertida dívida foi contraída pelo réu marido com vista à prossecução, ainda que de forma mediata ou reflexa, dos interesses empresariais comuns do casal e, por via disso, em proveito comum deste;

XI - Na esteira do decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no seu Acórdão de 02/07/1998, Processo n° 549/98, deve entender-se que é «contraída em proveito comum do casal uma dívida resultante de aceite de letra pelo marido para viabilização de uma empresa de que a mulher também é sócia»;

XII — A sentença sob censura violou, designadamente, o preceituado no artigo 1691°, n° 1, alínea c) do Código Civil.

A R. C...respondeu, terminando as suas contra-alegações sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma substantiva, designadamente, as referidas pelo recorrente, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos apurados – cronologicamente alinhados – com relevo para a apreciação do recurso:

A) O autor é legítimo possuidor de uma letra de câmbio, no valor de 31.001,07 €, emitida na ..., em 30-03-04, com vencimento em 31-01-05, aceite pela sociedade “O D... Lda. e avalizada pelo réu B....

B) A sociedade “ O D... Lda” explorava com fins lucrativos o estabelecimento comercial denominado restaurante D...., sito na ....

C) Tal letra de câmbio foi aceite e avalizada para pagamento parcial de equipamentos hoteleiros adquiridos para o restaurante explorado pela sociedade “D.... Lda.”

D) Na Conservatória do Registo Comercial da ..., sob o n.º .../20020228 encontra-se matriculada a sociedade “O D... Lda.”, sendo sócios B... e C..., tendo sido designado gerente, o sócio B.....

E) A sociedade “O D... Lda.” foi declarada insolvente, por sentença datada de 23-09-05, pelo meio dia, proferida nos autos de processo n.º 1826/05 do 3.º Juízo do Tribunal da ....

F) No assento de casamento n.º ... da Conservatória de Registo Civil da ... encontra-se registado o casamento, em 16/07/1989, de B... com C.....; casamento efectuado sem convenção antenupcial (e no regime da comunhão de adquiridos).

G) Tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 20/06/05, transitada em 26/09/05, proferida nos autos de divórcio n.º 84/05 do Tribunal do ....

H) A ré é enfermeira no Centro Hospitalar ....

I) Aufere o salário mensal de 1.157,37 €.


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III – Fundamentação de Direito

Está em causa, no presente recurso, a questão de saber se é da responsabilidade de ambos os cônjuges – e por conseguinte da responsabilidade da R/apelada C...– a obrigação cambiária contraída pelo R. B...ao avalizar a letra referida em A) dos factos provados.

Questão que a sentença recorrida decidiu em sentido negativo; razão pela qual condenou tão só o R. António[1].

Decisão com que o A. não se conforma, sustentando, em síntese, que os factos provados preenchem a hipótese prevista no art. 1691.º, n.º 1, c), do C. Civil, isto é, que estamos, em face dos factos provados, perante uma “dívida contraída na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração”; razão pela qual é de responsabilidade de ambos os RR., à época cônjuges.

Que dizer?

À época da constituição da dívida (30/03/2004), assim como à época do seu vencimento (31/01/2005), eram os RR. casados um com o outro (o divórcio transitou em 26/09/95[2]) no regime da comunhão de adquiridos.

Estamos pois, indiscutivelmente, perante uma dívida contraída na constância do casamento por um dos cônjuges.

E estamos também, vale a pena referi-lo, perante uma dívida contraída pelo cônjuge que estava designado como gerente duma sociedade (“ D... Lda.”) de que ambos eram os únicos sócios.

Circunstância esta que levou a sentença recorrida a colocar como hipótese, que a seguir afastou, a aplicação da alínea d) do n.º 1 do art. 1691.º – em que se diz que são comuns “as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio”.

Efectivamente, quando o art. 13.º, n.º 1, do C. Comercial exige, para a aquisição da qualidade de comerciante em nome individual, a prática de actos de comércio e que se faça deste profissão, isso significa, entre outras coisas, que não basta a prática de actos de comércio isolados ou ocasionais (sendo indispensável a prática regular, habitual, sistemática, de actos de comércio) e/ou que não basta a prática de quaisquer actos de comércio (ficando excluídos os actos subjectivos, os actos acessórios, os actos formalmente comerciais e os actos abstractos, exigindo-se, para a atribuição da qualidade de comerciante, a prática, sistemática e regular de actos de comércio objectivos, absolutos, substancialmente comerciais e causais), sendo igualmente indispensável que a profissão de comerciante seja exercida de modo pessoal, independente e autónomo, isto é, em nome próprio e sem subordinação a outrem.

Daí que, em relação aos membros dos órgãos de administração das sociedades comerciais (aos gerentes nas sociedade por quotas e aos administradores das sociedades anónimas) – que indiscutivelmente praticam actos de comércio – não haja a aquisição da qualidade de comerciante, porque os actos de comércio por eles praticados se reportam e inserem na esfera jurídica do representado (que será o comerciante) e não deles próprios, meros representantes

Isto é, todos os actos que o R. B...praticou como gerente da sociedade (“ D... Lda.”) não o fez em nome e por conta própria, mas sim da sociedade que geria e representava; e, assim, é inquestionável a conclusão, contida na sentença recorrida, de o não considerar como comerciante e de afastar a aplicação da citada alínea d) do n.º 1 do art. 1691.º do C. Civil.

Dito isto – corroborada tal conclusão – centremo-nos na questão directamente suscitada no recurso, respeitante à alínea c) do n.º 1, do art. 1691.º do C. Civil.

Questão que, começar-se-á por referir, suscita há décadas algumas dúvidas interpretativas.

Começou-se por discutir, no domínio do C. de Seabra, se para se falar em aplicação da dívida em proveito comum dos cônjuges se devia olhar aos resultados efectivos da contracção da dívida ou se, antes, o que interessava eram os fins tidos em vista com a aplicação.

Discussão em que obteve vencimento a segunda tese; isto é, assentou-se que é o fim visado pela aplicação e não os resultados que caracterizam a dívida em proveito comum; isto é, são os fins da operação – se a mesma visa o interesse da sociedade conjugal – e não os resultados, benéficos ou prejudiciais, que indicam a ocorrência duma dívida em proveito comum do casal.

De tal maneira que o actual C. Civil substituiu a expressão equívoca “dívidas aplicadas” – constante do antigo art. 1114.º, § 2.º, do C. de Seabra – pela expressão “dívidas contraídas”, constante do actual art. 1691.º.

Há assim proveito comum do casal sempre que a dívida é contraída, tendo em vista um interesse de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar em geral

Do que fundamentalmente se trata, portanto, é de saber se o cônjuge administrador, ao contrair a dívida, agiu em vista de um fim comum (ainda que precipitada e desastrosamente) ou procurou, pelo contrário, realizar um interesse exclusivamente seu, satisfazendo uma necessidade apenas sua.”[3]

Isto assente, uma segundo dúvida se levantava, consistente em saber se o “fim comum” deveria resultar imediatamente do acto constitutivo da dívida ou poderia ser apenas um efeito indirecto, mediato ou até remoto desse acto.

Dúvida que foi várias vezes debatida a propósito de situações exactamente iguais à dos autos; ou seja, a propósito da prestação de garantias de favor feita em título cambiário, sendo o garante sócio, gerente ou sócio-gerente da sociedade avalizada.

Sustentou o Prof. Alberto dos Reis[4] que, se “ (…) a dívida do marido resultou do facto de ele ter garantido, pelo seu aval, o pagamento de letra sacada pela sociedade de que é gerente, (…) a dívida não podia considerar-se contraída em benefício comum do casal, nem pelo resultado, nem pelo fim; basta notar que o avalista se obrigou a pagar o montante da letra sem ter recebido dinheiro algum nem do sacador nem do aceitante. Acrescentando que “ (…) à obrigação cambiária não correspondia qualquer obrigação subjacente, derivada de actos ou operações de carácter económico”; e concluindo que “o aval foi um acto de puro favor praticado pelo marido.”

Em idêntico sentido se pronunciou o Prof. Pires de Lima[5], dizendo que “ (…) se não é necessário um proveito efectivo, não pode prescindir-se dum proveito, embora eventual, que resulte directamente do acto ou contrato realizado pelo marido.” Logo acrescentando que “ (…) dum simples aval num título de crédito não pode resultar para a mulher nenhum proveito, porque desse acto só podem resultar responsabilidades para quem se obrigou. Foi um acto gratuito. A ele não correspondem contraprestações.”

Assim se firmou a doutrina de que, para haver responsabilidade comum, se tornava essencial que a expectativa de benefício resultasse da própria constituição da dívida e não dos seus efeitos mediatos ou reflexos; e, “à sombra dela se repudiou a responsabilidade do cônjuge do avalista da letra de câmbio, quer no caso de se tratar de pura garantia altruísta, quer no caso de o avalista ser sócio ou gerente da sociedade avalizada[6], de que é exemplo o Acórdão do STJ, de 08/11/1965 em que se considerou que “o marido da recorrida ao intervir na letra como avalista ao aceitante prestou a este um acto de puro favor, pois se obrigou a garantir o pagamento do aceitante sem ter recebido dinheiro algum do sacador. Daí a dívida que assumiu não tenha sido, como é óbvio, contraída em benefício comum do casal, mas antes em seu prejuízo.”

É com as “coisas neste estado” que o Prof Antunes Varela diz que “não há nenhuma razão, nem na letra nem no espírito da alínea c) do art. 1691.º para se considerar prejudicada a orientação geral aceite por estes autores, que visa fundamentalmente afastar as incertezas e a insegurança a que conduziria a tese oposta”; para logo acrescentar que “o que importa é precisar o seu real alcance, especialmente no que respeita aos negócios cambiários (…)[7].

Vem tudo isto – este percurso histórico – a propósito do facto de o apelante se estribar no Ac. do STJ de 02/07/1998[8] que, salvo melhor opinião e com o devido respeito, aplica apenas parte do que o Prof. Antunes Varela quer dizer quando refere ser de precisar a orientação geral, “especialmente no que respeita aos negócios cambiários”.

Diz o Prof. Antunes Varela que a expectativa de proveito – a possibilidade de benefício – deve resultar da própria constituição da dívida (e não reflexa ou remotamente), entendida esta, para tal efeito, como “acto jurídico (em regra, contrato) constitutivo da dívida[9].

Argumenta ele que da própria constituição da dívida, isoladamente considerada, nunca poderá resultar um benefício para o devedor; uma vez que, “como operações de sinal negativo, quer a constituição, quer a assunção de dívida, representam sempre uma perda patrimonial para o devedor ou assuntor”, o que significaria que, sem a precisão efectuada, nunca se conseguiria vislumbrar a expectativa de benefício ou proveito.

Tudo isto para dizer e significar que a possibilidade de benefício para ambos os cônjuges pode estar e advir da contraprestação que – na compra, na venda, na locação, na empreitada, etc, levada a cabo pelo cônjuge administrador – corresponde à dívida constituída no mesmo acto.

Para logo a seguir ponderar que nem sempre o acto constitutivo da dívida é suficientemente esclarecedor sobre a sua real afectação; como acontece, v. g., no caso do acto constitutivo ser um empréstimo[10].

A ponto de observar que o fim transparece, as mais das vezes, no próprio acto constitutivo da dívida; mas que, outras vezes, “quando o acto é incolor quanto à afectação da dívida, há que procurar a sua finalidade no acto jurídico subsequente que determinou a realização do primeiro”.

Mas sem prejuízo de concluir que “ (…) é diferente, porém, o condicionalismo jurídico próprio, quer da fiança, quer do aval, que em regra são actos gratuitos; e de dizer, a propósito da fiança e do aval, que “ (…) só em casos raros será lícito sustentar que o acto foi realizado em proveito comum do casal”.

Escreveu-se, é certo, no Acórdão do STJ referido (de 02/07/1998)[11], em linha com a anotação em causa do Prof. Antunes Varela, que “quando alguém aceita, saca ou endossa uma letra, contrai uma dívida por meio de um acto de carácter abstracto. Mas, na base do acto bilateral do aceite, do saque ou do endosso da letra haverá em regra, como relação causal ou subjacente, um acto bilateral e a titulo oneroso.”

Só que, é este o ponto, o caso – o nosso caso – não é de aceite, saque ou endosso[12], não é daqueles em que, em regra, a relação causal é um acto oneroso; o nosso caso é um aval, que, em regra, é um acto gratuito.

Evidentemente, se, v. g., há um aceite ou endosso para efectuar uma compra para o casal, nada poderá impedir o tomador da letra de invocar a relação subjacente para dela tirar um qualquer efeito a seu favor e de se fazer pagar pelos bens comuns.

É este e apenas este o “real alcance” que, a respeito dos negócios cambiários, o Prof. Antunes Varela procura precisar, isto é, a expectativa de proveito comum ainda resulta directamente (e não reflexa ou remotamente) do acto jurídico constitutivo da dívida se tal expectativa resultar da relação subjacente ou causal[13].

Ora, enfatiza-se, é justamente isto que não sucede no caso sob apreciação.

A relação causal ou subjacente ao aval (do cônjuge da R/apelada) é claramente de favor e gratuita.

O que se encontra provado na alínea C) – ter sido a letra de câmbio avalizada[14] para garantir o pagamento de aceite, destinado ao pagamento de equipamentos hoteleiros adquiridos para o restaurante explorado pela sociedade de que os cônjuges eram os únicos sócios – não exprime um proveito comum imediato, mas porventura um proveito comum meramente indirecto, mediato ou remoto.

Por conseguinte, a expectativa/fim de proveito comum não resulta directamente do acto jurídico constitutivo da dívida, ainda que neste acto (jurídico constitutivo da dívida) se inclua a relação subjacente ou causal.

Enfim, é no caso inteiramente válida a orientação tradicional, segundo a qual um simples aval num título crédito não importa para o cônjuge não subscritor um qualquer proveito, porque a esse acto, gratuito e de favor, não correspondem contraprestações, mas tão só responsabilidades para quem se obrigou.

Improcede pois “in totum” o que o apelante invocou e concluiu na sua alegação recursiva, o que determina o naufrágio da apelação e a confirmação do sentenciado na 1ª instância, que não merece os reparos que se lhe apontam, nem viola qualquer uma das disposições indicadas.

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IV - Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo A/apelante.


[1] Avalista da sociedade aceitante na letra, em que o A. é sacador e portador; e, por conseguinte, “responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada” – cfr. arts. 32.º e 28.º da LULL.

[2] Não há notícia da data da propositura da acção de divórcio, tendo em vista o que se diz no art. 1789.º do C. Civil; todavia, em face do número da acção de divórcio, percebe-se que tal acção se iniciou apenas no ano de 2005.
[3] Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. IV, 2.º ed., pág. 331.
[4] In RLJ, ano 80.º, pág. 383.
[5] In RLJ, ano 100.º, pág. 9
[6] Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. IV, 2.º ed., pág. 331.
[7] Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. IV, 2.º ed., pág. 331.
[8] Consultável in CJ Online, Ref. 9447/1998.
[9] Antunes Varela, C. C. Anotado, Vol. IV, 2.º ed., pág. 332.
[10] Hipótese em que o dinheiro pode ter as mais diversas finalidades
[11] Cujo sumário é: “ (…) foi contraída em proveito comum do casal um dívida resultante de aceite de letra pelo marido para viabilização de uma empresa de que a mulher também é sócia”
[12] E no caso do aceite, saque ou endosso, o que relevará, para efeito da responsabilidade comum, é o que directamente acontece em termos de relação fundamental; e não, salvo o devido respeito, o que em termos mediatos e reflexos possa vir a ocorrer, designadamente, não releva se o aceite, saque ou endosso concorrem, mediata e reflexamente, “para viabilização de uma empresa de que a mulher também é sócia”. O que também significa que, quando o aceite, saque ou endosso são de favor (e por vezes são), não há, em face da relação fundamental, responsabilidade comum.

[13] Efectivamente – concorda-se com o que se diz no Acórdão, citando o Prof. Antunes Varela – “se para haver responsabilidade de ambos os cônjuges em tais hipóteses, fosse necessário que do próprio acto unilateral e abstracto resultasse um benefício comum para o casal, nunca o portador do título poderia demandar o cônjuge do subscritor, para agredir bens próprios dele ou até, em princípio, bens comuns”.
[14] O aceite - esclarece-se, embora seja evidente - não é do cônjuge (R. António), mas da sociedade.