Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
346/12.5TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
USUCAPIÃO
CONTRATO PROMESSA
POSSE
ACESSÃO DA POSSE
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU - VISEU - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1251, 1256, 1260, 1268, 1287, 1293, 1296, 1298, 1299, 1316, 1317 CC
Sumário: 1. - Por regra, o promitente-comprador com traditio é um mero possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor.

2. - Excecionalmente, porém, pode ser da vontade das partes no contrato-promessa a transferência, desde logo, a título definitivo, para o promitente-comprador, por razões específicas, da posse correspondente ao direito de propriedade.

3. - O facto de a posse do reivindicante não ser titulada, enquanto a dos seus antecessores era titulada, não impede a acessão da posse, caso em que vale o critério da posse de menor âmbito, a que alude o art.º 1256.º do CCiv., considerando-se a soma de ambas como não titulada.

4. - Na ação de reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade por via de aquisição originária, por usucapião, depende sempre da verificação de uma posse – traduzida num corpus e num animus –, do decurso de um certo lapso de tempo e das caraterísticas da continuidade, publicidade e pacificidade, tratando-se de pressupostos de procedência da ação que cabe à parte reivindicante demonstrar.

Decisão Texto Integral:

 


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

R (…), com os sinais dos autos,

intentou ([1]) ação declarativa, com processo ordinário, contra

1.ªs – M (…) e C (…), também com os sinais dos autos, e

2.º - J (…), ainda com os sinais dos autos,

pedindo:

a) A condenação dos RR. a reconhecer que a A. “é a única dona e legítima proprietária e possuidora do prédio Quinta X (...) , sito em (...) , composto por casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo 1687 da Freguesia de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Pedro do Sul com o n.º 1363”;

b) Que se ordene “o cancelamento do registo de penhora realizado a favor das primeiras rés, registada pela Ap. 2542, em 06/03/2012, por conta dos autos executivos n.º 1028/08.8TBVIS-A”.

Alegou, em síntese ([2]), que:

- o 2.º R. prometeu vender-lhe, em 20/06/2008, metade indivisa do prédio supra identificado, conforme contrato-promessa junto com a petição inicial, sendo que a escritura pública de compra e venda respetiva não foi realizada devido a problemas com o crédito bancário referente ao empréstimo com hipoteca que onera esse imóvel;

- a A. passou a habitar, exclusivamente, o prédio desde 20/06/2008, em cuja posse, por si e antecessores, se encontra desde há mais de 20 e 30 anos, posse essa com todas as caraterísticas de que depende a usucapião, que invoca a seu favor;

- tendo, porém, sido a aludida metade indivisa do dito prédio penhorada, em execução movida pelas 1.ªs RR. contra o 2.º R., em cujo nome o direito ainda se mantém registado, razão pela qual a A.,  tendo protestado na execução em causa que iria propor ação de reivindicação, vem agora reivindicar o que lhe pertence.

Regulamente citados, os RR. não contestaram, tendo sido julgados confessados os factos alegados pela A. (incluindo os alegados após convite ao aperfeiçoamento da petição inicial).

Foi depois proferida sentença (datada de 13/10/2015), pela qual foi a ação julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição dos RR..

Desta decisão veio a A., inconformada, interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões

«1 - A posse da autora é não titulada e, presume-se de má-fé;

2 - A autora pode somar à sua posse a dos seus antecessores;

3 - As posses agregadas têm o mesmo âmbito;

4 - Havendo acessão na posse o prazo de 20 anos para adquirir por usucapião é contanto desde o início da posse do primeiro antecessor.

5 - A acessão na posse, remonta a data anterior a pelo menos 1993

6 - Atenta a matéria de facto constante dos autos e nela dada como provada, a sentença violou o disposto no artigo 1256.º e 1296.º, ambos do Código Civil.

7 - Deve, assim, por violação das normas referidas, julgar-se procedente e provado o presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida e, em consequência, substituir-se a dita sentença por acórdão que condene a ré conforme peticionado na petição inicial, desta forma se fazendo correta e exata interpretação e aplicação da matéria de facto provada nos autos, correta e exata interpretação da lei a essa mesma matéria de facto.».

Pugna pelo integral provimento do recurso.


***

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.

***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados. 

Colhidos os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([3]) –, o thema decidendum, incidindo exclusivamente sobre a decisão da matéria de direito, consiste em saber:

a) Se adquiriu a A./Apelante o pretendido direito de propriedade por via de usucapião; para o que terá de saber-se

b) Se é aplicável ao caso a figura da acessão na posse.


***

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi considerada – de forma incontroversa – a seguinte factualidade como provada:

«1. Através de contrato promessa celebrado em 20 de Junho de 2008, o 2º réu declarou prometer vender à autora a metade indivisa de que era proprietário do prédio urbano denominado de Quinta X (...) , sito em (...) , composto por casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar, inscrito na matriz sob o artigo 1687 da Freguesia de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de S. Pedro do Sul sob o n.º 1363, livre de ónus, encargos e outras responsabilidades – 1º e 2º PI.

2. A venda prometida foi pelo preço estipulado nas cláusulas segunda e nona do referido contrato, ou seja, pelo valor de 100.000€, acrescido de todas as prestações mensais que se vencerem desde 20 de Junho de 2008, referentes ao contrato de empréstimo bancário garantido com hipoteca e que onera prédio prometido vender – 3º PI.

3. Para que a escritura fosse realizada seria necessário renegociar as condições do empréstimo em causa de forma a que o 2.º réu ficasse desobrigado do pagamento do mesmo – 5º PI.

4. No entanto, essas alterações iriam alterar todas as condições contratadas com o Banco Credor (Caixa Económica Montepio Geral), para além dos custos com todo o processo bancário que teria que ser despendido pela autora, esta iria ver ainda as taxas de spread a subir para valores que levavam a uma subida da prestação mensal para quantias que esta não poderia pagar – 6º e 7º PI.

5. Por assim ser, até à presente data não foi possível realizar a correspondente escritura de compra e venda do prédio objeto do contrato promessa de compra e venda em causa nos autos – 4º e 8º PI.

6. Desde 20 de Junho de 2008 que o prédio em causa é habitado exclusivamente pela autora – 9º PI.

7. A autora adquiriu, em compropriedade com o 2.º Réu, o prédio identificado no n.º 1 por escritura de compra e venda, e cuja aquisição foi registada em 30/05/2005, a J (…) Lda. (aperf.).

8. O prédio em causa nos presentes autos, o identificado no artigo 1.º da petição inicial, foi desanexado do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul sob o n.º 544 (5º aperf.).

9. Em data e tempo anteriores a 1993 faleceram J (…) e mulher C (…), residente que foi em Ribeiro, (...) , S. Pedro do Sul, que foram legítimos proprietários e possuidores do prédio misto descrito sob o n.º 544 descrito na Conservatória do Registo Predial de São Pedro do Sul (6º aperf.).

10. Este J (…) e mulher C (…), há mais de 20/30 anos, contados desde a data do seu falecimento, vinham possuindo o dito prédio misto, usando-o, fruindo-o, conservando-o e melhorando-o, ininterruptamente, continuando a posse dos antes possuidores, praticando neles todos os atos que são legítimos de um verdadeiro proprietário, sempre à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de serem seus verdadeiros donos (7º aperf.).

11. O dito J (…), tendo falecido como se disse em data anterior a 1993, deixou como herdeiro, a sua mulher C (…), que assim adquiriu por sucessão o prédio misto supra mencionado (8º e 9º aperf.)

12. À dita C (…), falecida em data anterior a 1993, sucederam, por legado daquela, J (…), M (…), A (…), G (…), M (…), J (…) e M (…). (10º aperf.).

13. Desde então (pelo menos 1993), vieram possuindo o dito prédio, usando-o, fruindo-o, conservando-o e melhorando-o, ininterruptamente, continuando a posse dos antepossuidores, praticando neles todos os atos que são legítimos de um verdadeiro proprietário, sempre à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de serem seus verdadeiros donos (11º aperf.).

14. Em 2001, veio a falecer M (…), residente que foi em Lisboa, tendo L (…) adquirido, por sucessão hereditária, 1/7 do dito prédio, aquisição que veio a registar (12º e 13º aperf.).

15. Em 2002, os referidos J (…), M (…), A (…), G (…), M (…), J (…) e L (…), venderam, por escritura pública de compra e venda, a J (…) - Sociedade de Construções, Lda., o dito prédio, aquisição que veio a registar em 08/07/2002 (14º aperf.).

16. Desde então, data da aquisição supra mencionada, que a dita JJ (…) - Sociedade de Construções, Lda., veio usando, fruindo, conservando-os e melhorando-os, ininterruptamente, continuando a posse dos ante possuidores, praticando neles todos os atos que são legítimos de um verdadeiro proprietário, sempre à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de ser seu verdadeiro dono, o dito prédio (15º aperf.).

17. Tendo-o vendido em 2005 à Autora e 2.º Réu (16º aperf.).

18. Desde a data referida em 6. que a autora vem usando e utilizando o prédio, vigiando-o e conservando-o, diária e consecutivamente, mobilando-o, realizando nele obras e benfeitorias e delas retirando as demais utilidades de que é suscetível, à vista de toda a gente e de boa-fé, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser o seu único e verdadeiro dono (10º PI).

19. Corre termos no Tribunal Judicial de Viseu, com o processo n.º 1028/08.8TBVIS-A, em que são partes: as [segundas] rés, na qualidade de exequentes; e o segundo réu na qualidade de executado (14º PI).

20. Na referida ação executiva foi penhorada metade indivisa do prédio em causa nos autos (15º PI).

21. Essa penhora foi registada a favor das primeiras rés em 06/03/2012 (16º PI).

22. Quando foi efetuada e registada a penhora em causa, já há muito a autora havia cumprido o pagamento do preço acordado no contrato promessa, e já se encontrava na posse do [seu] prédio, como de resto era do conhecimento das primeiras rés, filhas do segundo réu (20º PI).».


***

B) Matéria de Direito

1. - Se é aplicável ao caso a acessão na posse

Defende a parte apelante, como visto, em contraposição ao Tribunal recorrido, que é de aplicar ao caso dos autos a figura da acessão na posse.

Na fundamentação da decisão em crise expendeu-se do seguinte modo:

«Sucede que, sendo o ato translativo da propriedade nulo, conforme decorre dos arts. 875º e 220º do CC, não poderá operar a acessão na posse, que exige a existência de um vínculo jurídico válido entre as duas posses (neste sentido, cf. Ac. do STJ de 2.5.2012, no proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1; Ac. do STJ de 7.4.2011, no proc. 956/07.2TBVCT.G1.S1; e Ac. do STJ de 18.10.2012, no proc. 5978/08.3TBMTS.P1.S1, bem como a doutrina abundante nos mesmos citada, em www.dgsi.pt). No caso dos autos, sendo o ato translativo da propriedade nulo, a posse não é titulada, não sendo assim possível aplicar o instituto da acessão na posse.

Assim, não se encontrando completo o prazo mínimo para a aquisição originária da propriedade, tal implica a total improcedência dos pedidos formulados na PI, sem necessidade de outras considerações.» ([4]).

Vejamos, então.

Admite a Apelante – aceitando, nessa parte, a posição do Tribunal a quo – que a sua posse não é titulada e se presume de má-fé (conclusão 1.ª).

Todavia, considera, ainda assim, poder somar à sua posse a dos seus antecessores, de molde a ver observado o prazo da prescrição aquisitiva, sendo este o ponto em que não se conforma com a fundamentação de direito da sentença.

A questão crucial a decidir é, pois, a de saber se, ante a especificidade do caso dos autos, é aplicável a figura da acessão da posse.

Na sua sintética fundamentação, a decisão recorrida afirma suportar-se em três arestos do STJ, que identifica (os supra aludidos).

Ora, no sumário do primeiro dos citados arestos ([5]) pode ler-se:

“VII - A acessão na posse é, pacificamente, entendida como um meio ou instrumento destinado a facultar o funcionamento da usucapião. Na soma das duas posses exige-se-lhes que sejam contíguas e ininterruptas.

VIII - In casu, se a posse dos réus/reconvintes não é titulada, por ter sido desrespeitada a forma dos contratos de compra e venda dos imóveis que estão na origem da sua transmissão, ao passo que a dos seus antecessores era titulada, tal divergência resolve-se pelo critério da posse de menor âmbito consagrado no art. 1256.º do CC, e desta forma a soma de ambas terá de ser qualificada como não titulada”.

E no corpo desse Ac. STJ, chamando a atenção para o disposto no n.º 2 do art.º 1256.º do CCiv. – segundo o qual, se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito – clarificou-se que:

«No caso em presença, temos posses de conteúdo idêntico (uti dominus) e a divergência entre elas, como acima se referenciou, respeita a um dos seus caracteres: a posse dos Reconvintes (sucessores) não é titulada, por ter sido desrespeitada a forma dos contratos de compra e venda dos imóveis que estão na origem de sua transmissão ao passo que a dos seus antecessores era titulada, nomeadamente, por via da partilha de 1959, documentada por escritura pública.

Tal divergência resolve-se pelo critério da posse de menor âmbito consagrado no referido normativo e desta forma a soma de ambas terá de ser qualificada como não titulada.

Assim sendo, globalmente consideradas, temos como resultado uma posse pacífica, pública, não titulada, sem registo de título, nem de mera posse, mas de boa-fé, em virtude de ter-se elidido a presunção do artº 1260º, 2 do CC como atrás se fez alusão, pelo que o prazo para usucapião é de 15 anos – citado art. 1296º do Código Civil.

Prazo que, convenhamos, à data da propositura da acção e da citação dos RR., há muito se mostrava superado, face à acessão das posses em análise (grosso modo, de 1959 a 1981, a dos antecessores; de 1981 a 1996, a dos RR. Reconvintes)».

Quer dizer, contrariamente à leitura efetuada pela 1.ª instância – salvo o devido respeito –, o que resulta desta decisão do STJ é que, não obstante não ser titulada a posse dos reivindicantes, por inobservância da forma legal do contrato de compra e venda de imóveis, mas sendo titulada a dos seus antecessores, essa desconformidade não impede a acessão da posse, antes a admitindo, apenas com a limitação do critério da posse de menor âmbito (art.º 1256.º, n.º 2, do CCiv.), de molde a que soma de ambas as posses (atual e anterior) seja havida como não titulada.

Donde que a esta luz o caráter não titulado da posse atual não seja visto como impedimento à acessão da posse – soma de uma posse não titulada a uma posse anterior titulada ([6]).

É certo que ao Ac. STJ de 07/04/2011 ([7]), também citado pela decisão aqui recorrida, foi aposto em sumário o seguinte entendimento:

«II) - Se o acto translativo da coisa imóvel é nulo por vício de forma, a posse que daí deriva não é titulada. Não é, assim, titulada a posse que assenta num contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma não reduzido a escrito, nem a que se funda em contrato de compra e venda celebrado verbalmente.

III) - A acessão na posse pressupõe, além de uma posse homogénea e sucessiva, um acto translativo que seja formalmente válido».

Já, porém, no sumário do Ac. STJ de 18/10/2012 ([8]), também citado pela decisão aqui recorrida, consta:

“VII - Em regra, o contrato promessa não é, por si só, susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador, que a exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, por conseguinte, mero detentor ou possuidor precário.

VIII - Não é suficiente para transferir a posse um contrato promessa de compra e venda que, embora contenha uma cláusula expressa que prevê a tradição dos imóveis, quando nele se prevê, também, a realização da escritura e esta não possa ser realizada, sendo certo também que a posse, nos termos do art. 1251.º do CC, não se consuma se o promitente comprador não praticar ou realiza quaisquer actos materiais correspondentes ao exercício do direito (…)”.

Na fundamentação deste aresto esclarece-se: «Portanto, não tendo a recorrente o corpus, elemento integrativo da posse e não sendo o invocado contrato promessa de compra e venda meio idóneo translativo da posse, nos termos que acima se descreveu, não se verificam os requisitos da acessão a que se alude no citado art. 1256 nº 1 do C, Civil, sendo certo também que surge intrinsecamente contraditório em sede da presente acção de reivindicação, para efeitos de acessão invocar contra precisamente a 1ª Ré a posse desta (…).

Quer dizer, tratava-se de um caso em que o reivindicante, contando com a oposição da contraparte, não demonstrou sequer ter o corpus da posse, mas apenas uma convencionada traditio.

Que no caso dos autos está demonstrada uma posse – com inerentes corpus e animus - da A./Apelante, embora não titulada, é matéria em que não se gerou qualquer controvérsia.

E a possibilidade, a título excecional, de uma tal posse assente em contrato-promessa de compra e venda vem sendo admitida por parte significativa da doutrina ([9]) e da jurisprudência ([10]).

Assim, não obstante a regra de que o promitente-comprador exerce a posse em nome de outrem (o promitente-vendedor), concorda-se que o promitente adquirente pode, todavia, ser havido como possuidor em nome próprio, desde que, além da entrega da coisa, pratique, em nome próprio, atos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa com o intuito de o exercer ([11]).

Foi o que aconteceu no caso dos autos, como resulta da factualidade apurada, razão pela qual inexiste controvérsia nesta matéria.

Com efeito, vem provado que sendo A./Apelante e 2.º R. comproprietários (desde 2005), na proporção de metade, de um imóvel, tal R. declarou prometer vender àquela a metade indivisa de que era proprietário, livre de ónus, encargos e outras responsabilidades, pelo preço estipulado (€ 100.000,00, acrescidos de todas as prestações mensais que se vencessem a partir de 20/06/2008, referentes ao contrato de empréstimo bancário garantido com hipoteca e que onerava o imóvel), sendo que não foi possível realizar a escritura de compra e venda, o que ocorreu apenas por razões atinentes ao aludido crédito bancário.

Assim, desde 20/06/2008 que o prédio vem sendo habitado exclusivamente pela A., a qual o usa e utiliza, vigiando-o e conservando-o, diária e consecutivamente, mobilando-o, realizando nele obras e benfeitorias e delas retirando as demais utilidades de que é suscetível, à vista de toda a gente e de boa-fé, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de ser o seu único e verdadeiro dono, tal como o vinham fazendo os anteriores possuidores, desde há mais de 20 e 30 anos consecutivos.

Todavia, veio a ocorrer penhora sobre o imóvel, que foi registada a favor das 1.ªs RR. em 06/03/2012 – no âmbito de execução por elas movida contra o 2.º R., seu pai –, altura em que há muito a A./Apelante havia cumprido o pagamento do preço acordado no contrato promessa (o que era do conhecimento das ditas 1.ªs RR.).

Foi, pois, celebrado apenas contrato-promessa, que, mesmo acompanhado de traditio, não transmite, por si só, a propriedade. Não houve, assim, qualquer declaração contratual de venda, embora tenha havido antecipação, no quadro da promessa, de efeitos do contrato prometido (designadamente, a entrega da coisa e o pagamento integral do preço acordado na promessa).

Se, comummente, o promitente-comprador não é um verdadeiro possuidor, mas mero detentor (possuidor precário, em nome de outrem, o ainda proprietário), há, todavia, que atentar nas especificidades do caso em análise, onde se saliente a traditio, o pagamento integral do preço acordado e um claro comportamento da A. assumindo a veste de proprietária exclusiva, sendo ainda que no contrato promessa se prevê a “entrada imediata na posse” e a celebração de quaisquer contratos, de qualquer natureza, pelo promitente-comprador.

Assim, embora estivesse prevista a realização da escritura pública de compra e venda – que não foi realizada –, parece que há uma verdadeira posse da A., e posse que foi transmitida pelo anterior possuidor, o promitente-vendedor.

Temos, por isso, verificado um efetivo ato translativo da posse, como expressamente resulta do clausulado no contrato-promessa – entrega da coisa e entrada imediata na posse da totalidade do imóvel ([12]).

Donde que haja claramente uma posse em nome próprio da A./Apelante (apesar de estarmos perante contrato promessa), conferida pelo R. promitente vendedor, embora não titulada, transmitida no âmbito da acordada antecipação, no quadro da promessa, de efeitos do contrato prometido.

Será, então, uma posse que admita acessão, nos moldes previstos no art.º 1256.º do CCiv.?

Salvo o devido respeito por diverso entendimento, parece-nos que sim.

Com efeito, embora a posse atual seja não titulada – ao contrário da(s) posse(s) anterior(es), esta(s) titulada(s), com início há mais de 30 anos –, haverá de considerar-se que tal não impede a acessão da posse.

Como impressivamente mencionado no citado Ac. STJ relatado pelo Cons. Martins de Sousa, se a posse do reivindicante não é titulada, por ter sido desrespeitada a forma do contrato que originou a sua transmissão, enquanto a dos seus antecessores era titulada, tal divergência resolve-se pelo critério da posse de menor âmbito, a que alude o art.º 1256.º do CCiv., considerando-se a soma de ambas como não titulada. Por isso, se é titulada ou não titulada, não impedindo a acessão, resta verificar do cumprimento do prazo de usucapião.

In casu, embora fosse de presumir a posse da A./Apelante, por não titulada, de má-fé, nos termos do art.º 1260.º, n.º 2, do CCiv., parece, todavia, claro que os factos apurados deixam transparecer uma posse de boa-fé daquela, pelo que resulta ilidida a presunção legal (art.º 350.º, n.º 2, do CCiv. e pontos 6.-, 18.- e 22.- do elenco dos factos provados).

Mas mesmo que assim não se entendesse, então o prazo de usucapião seria de 20 anos – em vez de 15 –, sem constituir impedimento à acessão na posse.

Note-se que, na situação dos autos, está demonstrado que, pagando a A./Apelante – como pagou – o preço acordado na sua integralidade, incluindo as prestações bancarias subsequentes que cabiam ao promitente vendedor, as partes contratantes quiseram, como contrapartida, a entrada imediata daquela na posse do imóvel, que assim lhe foi transmitida, com expressa autorização a celebrar quaisquer contratos, de qualquer natureza, sobre o bem, podendo nele habitar e proceder a quaisquer trabalhos e obras reputados necessários.

Bem se compreende, pois, que jamais os RR. tenham deduzido qualquer oposição nos autos.

Assim, perante a posse de boa-fé dos antecessores, desde há mais de 30 anos – cfr. pontos 10.- a 18.- dos factos provados –, seguida da posse da A., uma vez ilidida a presunção legal de má fé, verificado estava, mediante acessão ([13]), o prazo de prescrição aquisitiva (de 15 anos) ao tempo da ocorrida penhora (registada em 06/03/2012), tal como estava também transcorrido o prazo de 20 anos previsto para a posse de má-fé (art.º 1296.º do CCiv.).

Não pode, pois, acompanhar-se a argumentação exposta, nesta parte, na decisão recorrida.

2. - Se ocorreu aquisição por usucapião

A posse, como é consabido, é constituída por um corpus e por um animus ([14]).

Na verdade, quanto à usucapião (cfr. art.ºs 1287.º e 1299.º, ambos do CCiv.), enquanto modo de aquisição originária do direito de propriedade (cfr. art.ºs 1316.º e 1317.º, al.ª c), também do CCiv.) sobre bens móveis (sujeitos ou não a registo) ou imóveis, dir-se-á que este instituto postula, no âmbito dos seus elementos integrantes, uma posse (art.º 1251.º do mesmo Cód.), a qual se traduz num “corpus” – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito –, tal como num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, posse essa que deve ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade (cfr. art.ºs 1293.º e segs. e 1298.º e segs. ainda do CCiv.).

A posse assume relevância jurídica fundamental, não só pelos mecanismos legais adotados para a sua defesa (cfr. art.ºs 1276.º e segs. do CCiv.), mas também por nela poder fundar-se a presunção da titularidade do respectivo direito, já que, com alude o art.º 1268.º, n.º 1, do CCiv., o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, a não ser que exista presunção, a favor de outrem, fundada em registo anterior ao início da posse.

Quer dizer, em ação de reivindicação caberá ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu pretendido direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. ([15]) –, prova essa a ser efetuada através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou dos seus antecessores na posse.

Quando, porém, a aquisição for derivada terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que ocorra presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), como a resultante da posse ou do registo definitivo de aquisição ([16]).

Como resulta patente da factualidade apurada no caso, bem como das considerações expostas, a posse da A./Apelante reúne as caraterísticas da pacificidade, continuidade e publicidade e, somada à dos antecessores, perdura por mais de 30 anos, pelo que, por via de acessão na posse, também está preenchido o prazo ininterrupto de prescrição aquisitiva do direito de propriedade.

Resta, pois, reconhecer à A./Apelante o seu reivindicado direito de propriedade, aliás, jamais contestado nos autos, assim procedendo as suas conclusões de recurso neste particular.

E, logicamente, como corolário deste reconhecimento, tem também de proceder o restante peticionado, isto é, o necessário cancelamento do registo de penhora realizado a favor das 1.ªs RR. em 06/03/2012.

Procedendo, pois, a apelação, terá de revogar-se a sentença absolutória em crise e, em substituição do Tribunal a quo (cfr. art.º 665.º do NCPCiv.), proferir condenação nos pedidos formulados.


***

IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Por regra, o promitente-comprador com traditio é um mero possuidor em nome de outrem, o promitente-vendedor.

2. - Excecionalmente, porém, pode ser da vontade das partes no contrato-promessa a transferência, desde logo, a título definitivo, para o promitente-comprador, por razões específicas, da posse correspondente ao direito de propriedade.

3. - O facto de a posse do reivindicante não ser titulada, enquanto a dos seus antecessores era titulada, não impede a acessão da posse, caso em que vale o critério da posse de menor âmbito, a que alude o art.º 1256.º do CCiv., considerando-se a soma de ambas como não titulada.

4. - Na ação de reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade por via de aquisição originária, por usucapião, depende sempre da verificação de uma posse – traduzida num corpus e num animus –, do decurso de um certo lapso de tempo e das caraterísticas da continuidade, publicidade e pacificidade, tratando-se de pressupostos de procedência da ação que cabe à parte reivindicante demonstrar.

 

***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida;
b) Condenar, em substituição do Tribunal recorrido, na procedência da ação, os RR./Apelados nos pedidos formulados.

Custas da ação e do recurso pelos RR./Apelados.

Escrito e revisto pelo relator.

Elaborado em computador.

Coimbra, 11/10/2016

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Em 08/11/2012 (cfr. fls. 16 dos autos em suporte de papel).
([2]) Segue-se, no essencial, a síntese do relatório da decisão recorrida.
([3]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença de fls. 126 a 128 v.º dos autos, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([4]) Cfr. fls. 128 v.º dos autos em suporte de papel, com sublinhado retirado.
([5]) Ac. STJ, de 02/05/2012, Proc. 1588/06.8TCLRS.L1.S1 (Cons. Martins de Sousa), em www.dgsi.pt. 
([6]) No mesmo sentido se veio a pronunciar também o Ac. STJ, de 01/12/2014, Proc. 94/07.8TBSCD.C1.S1 (Cons. Garcia Calejo), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «III- O douto acórdão entendeu (ainda) ser adequado aplicar à situação a acessão da posse a que alude o art. 1256.º do CC, sendo que, para esta aplicação, não se exige que a posse seja transmitida, necessária e inelutavelmente, através de um negócio jurídico formalmente válido. Assim, somando a posse da ré à dos seus antecessores (…), concluiu encontrar-se completado o prazo de usucapião, tendo, deste modo, a ré adquirido a propriedade do prédio (…). IV- Esta construção foi certa, pois para que a acessão da posse, a que alude o art. 1256.º do CC, se verifique, basta que o actual possuidor tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a transferência se baseie em acto (translativo) formalmente válido. Neste caso, essa posse não será titulada e de má fé pelo que, caso o actual possuidor queira beneficiar da acessão na posse, dada a natureza da sua posse (não titulada e de má fé), a posse (do antecessor) valerá (somente) como não titulada (posse de “menor âmbito”)».
([7]) Proc. 956/07.2TBVCT.G1.S1 (Cons. Fonseca Ramos), em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 14.
([8]) Proc. 5978/08.3TBMTS.P1.S1 (Cons. Tavares de Paiva), em www.dgsi.pt.
([9]) Cfr., entre outros, Calvão da Silva, “Sinal e Contrato-Promessa”, 11.ª ed., p. 231, nota 55 – citado pelo aludido Ac. STJ de 18/10/2012 –, segundo o qual não será possível a priori qualificar-se de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre o objeto do contrato prometido entregue antecipadamente, tudo dependendo do animus que acompanhe o corpus.
([10]) Veja-se o já citado Ac. STJ de 07/04/2011. No mesmo sentido, entre outros, o Ac. STJ, de 09/06/2016, Proc. 299/05.6TBMGD.P2.S2 (Cons. Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta: «I. Quando, no âmbito de um contrato-promessa, a coisa prometida vender tenha sido logo entregue pelo promitente-vendedor ao promitente-comprador, tal entrega traduzir-se-á numa aquisição derivada da posse, nos termos previstos na alínea b) do artigo 1263.º do CC, a qual se presume, por força do n.º 2 do artigo 1257.º do mesmo Código, que continua em nome de quem a começou, ou seja, do promitente-vendedor. II. Nessas circunstâncias, o promitente-comprador fica investido na situação de mero detentor, enquadrável no art.º 1253.º do CC, ainda que, dada a sua expectativa de realização do contrato definitivo, se lhe reconheça a titularidade de um direito pessoal de gozo, de base contratual, mais precisamente o acordo respeitante à traditio. III. Não obstante isso, a sobredita presunção da continuação da posse em nome do promitente-vendedor pode ser ilidida no sentido de que a vontade das partes fora a de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, por razões específicas, alicerçadas em situações excecionais, a título definitivo, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade. IV. Não se tendo provado quaisquer dessas situações execionais, considerando-se antes como não provada a factualidade tendente a consubstanciar o animus possidendi, por parte do promitente-comprador, não é lícito concluir que este tenha exercido uma posse relevante para efeitos de aquisição da coisa por via da usucapião» (itálica aditado).
([11]) Vide Ac. STJ, de 12/05/2016, Proc. 810/14.1TAVR-A.P1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos), em www.dgsi.pt.
([12]) Consta da cláusula 4.ª do contrato promessa escrito junto aos autos: “O segundo outorgante fica desde já autorizado a celebrar quaisquer contratos, de qualquer natureza, tendo por objeto o imóvel prometido transmitir”. E consta da seguinte cláusula 5.ª: “Com a celebração do presente contrato, o segundo outorgante entra de imediato na posse da totalidade do imóvel prometido comprar, podendo nele habitar e aceder livremente ao mesmo, a fim de ali proceder a trabalhos e obras que faltem realizar ou que repute necessárias” (cfr. documento de fls. 07 e seg. dos autos em suporte de papel).
([13]) Concorda-se, pois, com o entendimento adotado no Ac. TRP, de 31/05/2011, Proc. 1578/06.0TBGDM.P1 (Des. Vieira e Cunha), em www.dgsi.pt., em cujo sumário pode ler-se: «I- Nos casos de total falta de título legítimo de aquisição, como é o caso de aquele que exerce a posse sobre um imóvel ter apenas como título de aquisição um contrato promessa de compra e venda, a posse de boa fé conduz à prescrição aquisitiva do imóvel pelo decurso do prazo de 15 anos – art° 1296° C.Civ. II - Hipóteses fácticas existem nas quais, havendo sido paga já a totalidade do preço, a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse e, nesse estado de espírito — nesses casos, verifica-se acessão na posse por via da mera celebração de um contrato promessa».
([14]) Cfr., por todos, na jurisprudência recente, o Ac. STJ, de 07/02/2013, Proc. 1952/06.2TBVCD.P1.S1 (Cons. Serra Baptista), em www.dgsi.pt.
([15]) Assim já era entendido no distante Ac. TRL, de 09/02/1993, Proc. 0066831 (Rel. Joaquim Dias), em www.dgsi.pt.
([16]) Cfr. Ac. STJ, de 16/06/1983, BMJ, 328.º - 546, também citado por Abílio Neto na sua dita obra, p. 771.