Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3376/19.2T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VITOR AMARAL
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
RECURSO
Data do Acordão: 10/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUIZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 423º, NºS 1, 2 E 3 NCPC.
Sumário: 1. - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, por o ónus probatório caber à parte respetiva (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), embora possam ainda ser apresentados mais tarde, até vinte dias antes da data em que se realize a audiência final (neste caso, com sujeição a multa, nos termos do disposto no art.º 423.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv.).

2. - Por isso, não estando precludida, ao tempo do despacho saneador – ademais, sem audiência prévia –, a possibilidade de junção ainda pelos autores de certidão judicial, a ser extraída de invocados autos de inventário, quanto à alegada dedução ali de reclamações/oposição, matéria relevante para a decisão do litígio, não devia o Tribunal partir para a imediata prolação de saneador-sentença, onde julgou a ação totalmente improcedente, também com fundamento na ausência, que julgou provada, de tais reclamações/oposição, antes devendo, desde logo, determinar (em despacho pré-saneador) aos demandantes a junção do documento comprovativo das alegadas reclamações/oposição, com vista a permitir, de forma habilitada, o conhecimento, se possível, do mérito da causa no despacho saneador [art.º 590.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv.].

3. - Suscitada tal questão em recurso, tem de revogar-se o saneador-sentença absolutório, por, à luz do disposto no art.º 595.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., não poder conhecer-se imediatamente do mérito da causa – o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos –, antes havendo, na 1.ª instância, com observância do necessário contraditório, de proferir-se, em despacho pré-saneador, determinação/convite à junção da prova documental em falta.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1.ª – M...,

2.ºs – J... e mulher, I...,

3.º - D..., casado no regime da comunhão de adquiridos com C...,

4.ª – M...,

5.º - R...,

todos por si e em representação das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de M..., que usava também o nome de M..., e mulher, M... e A...,

6.ª - Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M..., que usava também o nome de M...,

7.ª - Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M...,

8.ª - Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A...,

9.º Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A...,

todos com os sinais dos autos,

intentaram ([1]) ação declarativa comum contra

1.º - M...,

2.ª – M...,

Intervindo os anteriores 1.º e 2.ª por si e em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de M...,

3.ª – M..., que também usa o nome M..., viúva, residente na Av. ...,

4.ª – L..., com os sinais dos autos,

Intervindo as anteriores 3.ª e 4.ª por si e em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A...;

5. O..., também com os sinais dos autos,

pedindo:

«Que seja declarado o seguinte:

1. Que o prédio identificado no artº 1º da p.i. (correspondente ao artº ... da matriz predial rústica da freguesia de ..., descrito na CRP sob o nº .../ ...) se encontra, actualmente, integralmente dividido, por usucapião, nas seguintes parcelas, todas localizadas no lugar de ..., união das freguesias de ... e ..., concelho de ...:

...

2. Que os 1º a 5ºs AA. são donos e legítimos possuidores das parcelas identificadas sob o nºs 2, 6 e 10, na qualidade de únicos e universais herdeiros por óbito de M..., que também usava o nome de M..., sem determinação de parte ou direito (quer em virtude da posse pública pacífica de boa fé, nos termos legalmente exigidos para efeitos de aquisição originária) quer em regular desenvolvimento, de harmonia com a equidade, boa fé e princípios eticamente dominantes, do teor da Sentença proferida no processo identificado no artº 63º desta p.i. (uma vez que os aqui RR. alegaram nesses autos a divisão do prédio ora peticionada, mas apenas peticionaram a aquisição e registo predial das parcelas por eles adquiridas, pretendendo ulteriormente, em manifesto venire contra factum proprium, negar os efeitos da mesma divisão apenas na parte em que a mesma aproveita aos AA.).

3. Que, em consequência do peticionado nos dois apontos anteriores, seja ordenada a actualização, na Conservatória do Registo Predial, da atual situação fáctica e jurídica em que se encontra o prédio referido no artº 1º;

4. Relativamente às parcelas identificadas sob os n.ºs 4, 8, 11 e 9, uma vez que os AA. não são os únicos herdeiros de A... e A..., carecendo, por isso, de legitimidade para efeitos de invocar a aquisição por usucapião (de harmonia com a Jurisprudência dominante), a presente ação visa, no exercício do direito de petição de herança, que seja declarado o seguinte, que se pede:

a) O reconhecimento pelos AA. da qualidade de atuais herdeiros de A... e A...;

e) A integração dos prédios correspondentes às parcelas atrás identificadas sob os nºs 4, 8 e 11 na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A..., operando-se restituição nestes termos;

f) A integração dos prédios correspondentes à parcela atrás identificada sob o nº 9 na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A..., operando-se restituição nestes termos.

5. Que todos os actos de relação de bens, licitações, partilhas e quaisquer efeitos jurídicos derivados do Processo n.º ..., são, relativamente às aludidas parcelas (nºs 2,6,10; 4,8, 11; e 9) nulos e ainda ineficazes e inoponíveis relativamente aos AA;

6. Que sejam igualmente declarados ineficazes e inoponíveis, relativamente aos AA., os actos e/ou contratos e efeitos jurídicos inscritos quanto às parcelas nºs 2, 6 e 10 (prédios descritos na CRP sob os nºs .../ ...) através da AP. 1 de ...) instaurada pelo 6º R. O... contra o A. R..., nomeadamente o seguinte pedido: “cumprimento de contrato promessa de compra e venda com suprimento de declaração negocial em falta”, ordenando-se o cancelamento dessa inscrição.

...

Alegaram, em síntese, que:

- os AA. são proprietários das parcelas a que aludem (com referência ao originário prédio rútico com inscrição matricial sob o art.º .../ ...), que adquiriram (por si ou seus antecessores) mediante aquisição originária, por usucapião a seu favor, decorrente da divisão verbal, entre herdeiros, do prédio originário, em janeiro e fevereiro de 1971, sendo que tal partilha e divisão nunca foi objeto de escritura pública, e da inerente posse individualizada sobre as respetivas parcelas;

- as ditas parcelas, cuja autonomização foi determinada por sentença judicial transitada em julgado, beneficiam de inscrição matricial própria e, algumas delas, de registo predial, tendo ocorrido eliminação do art.º matricial referente ao prédio originário, embora subsista a respetiva descrição em termos de registo predial, onde, todavia, foram já inscritas as desanexações de algumas das parcelas aludidas, faltando apenas duas delas;

- corre termos no Juízo Local Cível de Leiria o processo de inventário para partilha da herança deixada por morte de M... e J..., onde foram relacionados e partilhados os prédios correspondentes às parcelas 2, 6 e 10 (propriedade dos AA. e não dessa herança), 4, 8 e 11, bem como 9 (que integram outras heranças ilíquidas e indivisas e não aqueloutra herança aludida);

- ocorre, por omissão em sede de declarações de cabeça de casal, nulidade de qualquer partilha dessas parcelas, o que também já foi arguido no inventário mencionado, consubstanciado apropriação de bens alheios, sendo que ainda não se verificou o trânsito em julgado no quadro do inventário, onde foi deduzida reclamação à relação de bens, com alegação da factualidade antes referida;

- na pendência desses autos de inventário, que se encontram suspensos, alguns dos ora AA. instauraram ação para reconhecimento da sua aquisição por usucapião (parcelas 2, 6 e 10), processo este em cujo âmbito foi declarada a exceção de ilegitimidade processual ativa, motivando a instauração da presente ação, que também configura causa prejudicial perante o inventário.

Em contestação, as RR. ..., para além de se defenderem por impugnação, excecionaram o caso julgado, a ilegitimidade ativa, o abuso do direito dos AA., a caducidade do direito de petição de herança, a incompetência material do Tribunal quanto a diversos pedidos, com as legais consequências, assim concluindo pela absolvição dos RR. da instância ou dos pedidos.

Os AA. deduziram «resposta às excepções» [a convite do Tribunal, sob invocação por este, designadamente, do disposto no art.º 593.º, n.º 2, al.ª b), do NCPCiv.)], concluindo pela improcedência da matéria de exceção invocada, para o que alegaram, designadamente, sob o art.º 13.º, que:

«O inventário a que os RR. se reportam não transitou em julgado – encontrando-se pendentes reclamações relativamente à relação de bens ali apresentada e o processo ainda em curso – conforme sabem os RR. e consubstancia facto de conhecimento oficioso.».

Em saneador-sentença de 28/02/2020 ([2]), o Tribunal a quo julgou «procedente a excepção dilatória de caso julgado relativamente ao pedido formulado em 4 na presente acção no segmento em que os Autores pedem o reconhecimento de que as parcelas 4, 8 e 11 em causa pertencem à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A... e, em consequência», absolveu «os Réus da instância relativamente a este pedido», improcedendo toda a demais matéria de exceção.

E, considerando-se habilitado a conhecer de imediato do mérito da causa, julgou «totalmente improcedente a presente acção», com a consequente absolvição dos demandados.

Inconformados, recorrem os AA., apresentando alegação, com as seguintes

Conclusões:

...([3]).

Na sua contra-alegação, a parte recorrida pugna pela confirmação do saneador-sentença impugnado.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos ao Tribunal ad quem, onde foi determinado que a 1.ª instância se pronunciasse, de forma fundamentada, sobre a matéria de nulidade da sentença.

Em obediência a tal determinação, o Tribunal recorrido, por despacho datado de 02/11/2020, conheceu das invocadas causas de nulidade, julgando «que não existiram quaisquer nulidades na sentença em crise».

Perante o que veio a parte recorrente declarar manter integralmente o recurso e alargar o respetivo âmbito, ao abrigo do disposto no art.º 617.º, n.º 3, do NCPCiv., quadro em que, oferecendo adicionais conclusões, invocou a nulidade do dito despacho de 02/11/2020, por excesso de pronúncia e contradição, e pediu que, em alargamento do âmbito recursivo, fosse também sindicado aquele despacho posterior à decisão final.

Pugnando a contraparte pela improcedência do assim requerido e remetidos de novo os autos a esta Relação, foram os mesmos objeto de redistribuição (cfr. fls. 396 e segs. do processo físico).

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, incidindo a apelação sobre a decisão de matéria de facto e de direito, importa saber ([5]):

a) Se ocorre nulidade do despacho datado de 02/11/2020, que conheceu das invocadas causas de nulidade da sentença, e é admissível, devendo proceder, o pretendido alargamento do âmbito do recurso;

b) Se foram cometidas as invocadas nulidades da sentença – omissão de pronúncia e ambiguidade/obscuridade, a que aludem as al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv. (conclusões 11.ª a 13.ª);

c) Se o estado dos autos não permitia ainda o conhecimento de meritis, impondo-se, por isso, o seu prosseguimento (conclusões 28.ª e 29.ª);

d) Se ocorreu erro de julgamento quanto à decisão relativa à matéria de facto dada como provada (pontos 8 e 12 do quadro apurado);

e) Se ocorreu erro de julgamento de direito, devendo, na sede recursiva, julgar-se procedente a ação.

III – Questão prévia

Da nulidade do despacho de 02/11/2020 e (in)admissibilidade do alargamento do âmbito do recurso

Esgrimem os Recorrentes que o despacho que conheceu das invocadas causas de nulidade da sentença padece, ele próprio, de nulidade, por excesso de pronúncia e contradição [al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv.].

1. - Quanto a tal excesso de pronúncia, argumentam que o Tribunal recorrido, em vez de apenas se pronunciar sobre as arguidas causas de nulidade da sentença, de acordo com a determinação da Relação, aproveitou para «complementar ou sanear ou voltar a pronunciar-se relativamente a erros de julgamento», o que lhe estava vedado (cfr. conclusão 4.ª).

A contraparte defende que nenhuma nulidade pode ter-se por verificada.

Apreciando, então, sobre esta matéria, cabe começar por lembrar o que foi determinado pela Relação:

«Pelo exposto, e nos termos do artigo 617º, nº 5 do CPCivil, voltem os autos á 1ª instância a fim de ser proferido o despacho a que alude o artigo 617º, nº 1 e nº 5 do CPCivil, devidamente fundamentado».

Perante tal determinação do Tribunal superior, a 1.ª instância quis, obviamente, cumprir, em termos cabais, o imposto pela Relação. Daí a extensão e exaustividade do aludido despacho de pronúncia sobre as invocadas causas de nulidade da sentença, que se prendiam, no essencial, com a omissão de pronúncia e a contradição/ambiguidade/obscuridade, a que aludem as al.ªs c) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do NCPCiv..

Por isso é que, após ponderação demorada, em diversas perspetivas, da argumentação dos Recorrentes, o Tribunal recorrido concluiu, sistematicamente, pela inexistência de quaisquer nulidades.

Ante o modo disperso como a matéria foi apresentada no acervo conclusivo dos Apelantes e a preocupação em observar cabalmente – e de forma clara/esclarecedora – o determinado pela Relação, o Tribunal a quo acabou por proferir um longo e exaustivo despacho, sopesando os enunciados conclusivos dos Recorrentes, perspetivando-os em múltiplos ângulos, mas sempre no prisma das causas de nulidade da sentença e para concluir pela inexistência de quaisquer dessas nulidades.

Donde, assim, que não haja, salvo o devido respeito, excesso de pronúncia ao ponto de inquinar de vício de nulidade o despacho aludido.

2. - Quanto àquela contradição, argumentam os Recorrentes que o Tribunal, em vez de se pronunciar, como começou por referir, sobre a matéria das causas de nulidade da sentença, acabou – em contradição consigo próprio – por fazer incidir a análise e decisão sobre imputados erros de julgamento.

Ora, cabe reiterar, também aqui, que aquele Tribunal, proferindo longo e exaustivo despacho, teve a preocupação de sopesar os enunciados conclusivos dos Recorrentes, perspetivando-os em múltiplos ângulos, mas sempre no prisma das causas de nulidade da sentença e para concluir pela inexistência de quaisquer dessas nulidades, o que logo afasta, obviamente, qualquer pretensão de reapreciação, após interposição de recurso, das matérias decididas no saneador-sentença, que em nada foi alterado, seja na sua fundamentação ou no seu dispositivo.

Em suma, não se vê que o Tribunal recorrido tenha extravasado o âmbito da apreciação imposta em sede de nulidades da sentença, termos em que indemonstrada fica também a imputada contradição, enquanto causa de nulidade invocada, improcedendo, pois, a argumentação dos Recorrentes em contrário.

3. - Já quanto ao pretendido alargamento do âmbito do recurso, importa dizer, desde logo, que o mesmo é claramente inadmissível.

Com efeito, como estabelecido no art.º 617.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv., se o juiz suprir a nulidade – em vez de decidir no sentido do seu indeferimento –, então o despacho proferido surge como complemento e parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto, sem mais, a nova decisão, caso em que – somente neste caso – o recorrente pode alargar o âmbito do seu recurso.

Não assim, pois, no caso de indeferimento (não suprimento da nulidade), situação em que, não sendo permitido recurso da decisão de indeferimento, também não é admissível o alargamento do âmbito do recurso já interposto.

Em suma, está legalmente vedado, in casu, o pretendido alargamento do âmbito recursivo, termos em que decaem as conclusões dos Apelantes em contrário. 

IV – Fundamentação

A) Nulidades da sentença

1. - Omissão de pronúncia

Começam os Apelantes por esgrimir, em matéria de nulidades da sentença recorrida, que ali não se conheceu de questões de que deveria ter-se conhecido, ao não se ter levado em conta, para a matéria factual provada e para a fundamentação de direito, diversas vicissitudes do processado de outros autos, tratando-se de processo de inventário (atual Proc. ...) e do «processo n.º ...», ambos a correr termos noutros juízos (conclusões XVII a XIX).

Trata-se, pois, da invocação da causa de nulidade da sentença a que alude o art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., que comina com a nulidade da decisão judicial o vício que se traduz em o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou, ao invés, conhecer de questões de que não pudesse tomar conhecimento, sendo aquela primeira vertente a aqui em causa.

Na 2.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo NCPCiv. prescreve-se que não pode o juiz ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, questões essas que, naturalmente, deverá apreciar, a não ser que devam ter-se por prejudicadas.

Vem sendo entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência o de que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira, “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda” ([6]).

E, segundo Alberto dos Reis, “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” ([7]).

Ora, no caso dos autos os Apelantes pretendem que o vício cometido – omissão de pronúncia – consistiu em se não ter conhecido/valorado (levado em conta) as ditas vicissitudes processuais de dois outros processos judiciais, a correr termos, como dito, noutros juízos.

Porém, é sabido que na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude, designadamente, de se não tratar de questões de que deveria conhecer-se. São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Como já se mencionou, para apuramento quanto ao vício de omissão de pronúncia cabe perspetivar as questões em sentido técnico, só o sendo os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, só esses constituindo verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer.

Assim, não são questões para este efeito os factos (alegados ou provados), nem os argumentos apresentados pelas partes, nem as razões em que sustentam a sua pretensão ou defesa, nem as provas produzidas, nem a apreciação que delas se faça em termos de formação da convicção do Tribunal.

Ora, dito isto, as invocadas vicissitudes processuais de outros autos (dois processos a correr termos em outros juízos) prendem-se desde logo com a definição da matéria fáctica da sentença, a tida por relevante para a boa decisão da causa, isto é, com os factos a ser objeto de julgamento (de «provado» ou «não provado»).

E, tratando-se de vicissitudes processuais, a prova desses factos, quando invocados, teria de ser efetuada através de documento autêntico – dotado de força probatória plena (cfr. art.ºs 369.º a 371.º do CCiv.) –, a saber, as pertinentes certidões judiciais a serem extraídas dos respetivos autos e juntas pela parte interessada, a quem cabia, inevitavelmente, o correspondente ónus probatório (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).

Com efeito, não se trata de factos do conhecimento oficioso do Julgador, posto, desde logo, estarem em causa processos judiciais que correm (ou correram) termos noutros juízos.

E só depois de estabelecidos os factos – no confronto com as necessárias provas de cariz documental – se poderia partir para a aplicação do direito, na vertente pretendida pelos Recorrentes, âmbito em que poderia configurar-se, eventualmente, algum relevante erro de julgamento de facto ou de direito, matéria que, todavia, já ultrapassa a esfera dos vícios formais da sentença – a que convoca as nulidades da decisão – para se prender com a substancia (fáctica ou jurídica) da decisão, isto é, a dimensão de meritis, a ser, por isso, impugnada no quadro dos erros de julgamento.

Do exposto já se depreende não estar consubstanciada a pretendida omissão de pronúncia, visto o vício em causa, nos termos em que invocado, se reportar, desde logo, ao plano da matéria de facto e respetiva prova, o que não contende com as causas de nulidade da sentença.

2. - Ambiguidade ou obscuridade

Mas haverá vício de ambiguidade/obscuridade, a que alude a al.ª c) do n.º 1 do mesmo art.º 615.º?

Defendem os Apelantes estarem cometidos os vícios assacados de ambiguidade e obscuridade, gerando a ininteligibilidade da decisão, para o que invocam ainda o manifesto desconhecimento – pelo Tribunal recorrido – dos exatos termos do processo de inventário, nos termos já expostos.

Ora, o art.º 615.º, n.º 1, do NCPCiv. comina, quanto às suas al.ªs b) e c),  com a nulidade da sentença as situações em que, respetivamente, (i) faltem os fundamentos da decisão ou (ii) estes, existindo, estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Trata-se de normação inovadora apenas quanto ao fundamento de nulidade da sentença traduzido na existência de ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, pois que no (anterior) art.º 668.º, n.º 1, al.ª c), do CPCiv. revogado apenas se aludia ao vício de oposição entre os fundamentos e a decisão e na al.ª b) desse dispositivo do Cód. revogado apenas se previa, como agora, a não especificação dos fundamentos, de facto e de direito, justificativos da decisão.

Em qualquer caso, serão vícios internos da decisão, no plano dos respetivos fundamentos e decorrente dispositivo, constituindo anomalia a extrair da leitura da sentença – vista em si própria –, ante a forma como se mostra elaborada, e não da sua conjugação com outras posições decisórias exaradas no processo ou, menos ainda, noutros processos.

Como é consabido, por ser orientação dos Tribunais Superiores, a nulidade da decisão (sentença ou despacho), tal como prevista no dispositivo citado – a problemática a considerar é sempre, com efeito, a dos fundamentos da decisão, seja pela sua falta ou contradição ou ainda por falta de sintonia com o dispositivo –, segundo o qual “a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença. Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o Juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (art. 659º, nº2, do CPC). Ora, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído” ([8]).

Ora, nos moldes em que invocada em sede de conclusões de recurso, a dita ambiguidade e obscuridade respeitaria ao desconhecimento dos termos de outro processo (inventário), o que, como já dito, se prende com a (não) aquisição de factos e de provas.

Com efeito, se não se julgou bem/corretamente em termos de estabelecimento da matéria de facto dada como provada, com a decorrente defeituosa aplicação do direito, desde logo por não obtenção de determinados meios de prova, tal em nada se prende com os vícios formais/intrínsecos da sentença, não denotando qualquer obscuridade ou ambiguidade – ou contradição (entre fundamentos e dispositivo) – que tornassem a decisão ininteligível, mas, diversamente, um erro de apreciação por eventual impreparação dos autos para decisão de fundo ou um erro de julgamento, em matéria de facto ou de direito, a dever ser apurado no âmbito do conhecimento de mérito.

Termos em que não pode considerar-se verificada qualquer invocada nulidade da sentença, decaindo os Recorrentes nas suas conclusões em contrário.

B) Quadro fáctico da sentença

Na 1.ª instância foi julgada provada a seguinte factualidade ([9]):

...

C) Impreparação dos autos para conhecimento do fundo da causa no quadro do despacho saneador

Importa agora verificar, ante o alegado pelos AA./Apelantes (cfr., designadamente, as suas conclusões 27.ª a 29.ª), se o estado dos autos não permitia ainda o conhecimento de meritis, antes se impondo o seu prosseguimento, com vista à possibilidade de obtenção de prova referente ao aludido processo de inventário, impedindo, assim, que se dessem como provados determinados segmentos fácticos do quadro factual da decisão em crise (quanto aos factos 8 e 12, aliás, também objeto de impugnação recursiva).

Com efeito, os Recorrentes, concluindo que jamais se poderia conhecer de mérito, no caso, no despacho saneador, acrescentam que não foi feita luz sobre as vicissitudes invocadas do processo de inventário e que, também por isso, houve claro erro de julgamento de facto ao dar-se como provados aqueles factos 8 e 12 – de si, alegadamente relevantes para a decisão do litígio –, uma vez que de tais autos de inventário resultaria o contrário (quanto à ausência de reclamação/oposição dos AA., os quais teriam efetivamente reclamado e deduzido oposição).

Por isso, na ausência de audiência prévia [cfr., porém, o disposto no art.º 591.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., sendo que não se tratava, na lógica do Julgador, de ação que houvesse de prosseguir ([10])], teria ao menos – caso não se considerasse, como não considerou, que estamos em matéria de conhecimento oficioso do Tribunal, com decorrente obrigação de indagação deste quanto aos factos – a aquisição de prova documental quanto aos eventos relevantes do processo de inventário, na medida em que previamente invocados, de ser permitida aos AA. antes do conhecimento quanto ao mérito da causa.

E é certo – adiante-se desde já – que, se os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, também se afigura claro que tais documentos podem ainda ser apresentados mais tarde, «até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final», embora, por regra, com sujeição a multa (cfr. art.º 423.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv.).

No caso, é também seguro que os AA. deixaram alegado – como invocam –, em sede de resposta à matéria de exceção (art.º 13.º), que:

«O inventário a que os RR. se reportam não transitou em julgado – encontrando-se pendentes reclamações relativamente à relação de bens ali apresentada e o processo ainda em curso – conforme sabem os RR. e consubstancia facto de conhecimento oficioso.».

Todavia, foi julgado provado, com o inconformismo dos AA./Apelantes, que:

«8. Os Autores foram notificados da relação de bens a partilhar apresentada no dia 16.09.1999 e foi notificada aos interessados em 18.11.1999 e contra a mesma não houve reclamações.

(…)

12. No dia 04.01.2008 foi dada forma à partilha e os Autores não se opuseram à mesma.» (itálico aditado).

Como já visto, refere o Tribunal recorrido – de forma algo vaga/indiferenciada – que os factos dados como provados resultam de «acordo das partes e/ou documentos juntos aos autos com a suficiente força probatória, como as certidões juntas».

Ora, os Recorrentes afirmam perentoriamente que dos autos de inventário resulta o contrário, isto é, que os mesmos ali deduziram, efetivamente, reclamação/oposição, pelo que seria insustentável, a seu ver, manter aquele enunciado fáctico da decisão em crise, podendo surpreender-se nos autos a ausência de documentos de suporte (a serem extraídos daqueles autos), sem os quais sempre seria prematura uma apreciação de mérito.

Cabe, então, perguntar: encontram-se esses documentos nos autos, atestando a ausência de reclamações/oposição? Ou têm razão os AA./Apelantes quando esgrimem que tais documentos não se mostram juntos e são necessários para a boa decisão da causa?

No despacho de indeferimento da arguição de nulidades da sentença, argumenta a respeito o Tribunal recorrido:

«Sobre esta questão, o ponto 1.3. da sentença é apenas uma síntese da posição sustentada pelos Autores no articulado de Resposta.

E consta dos factos provados da sentença a matéria de facto atinente ao invocado art. 13.º do articulado de Resposta dos Autores, quanto à falta de trânsito em julgado da sentença proferida naquele inventário – único facto constante da certidão do inventário junta aos autos (porque são factos apenas susceptíveis de prova documental), como segue:

«14. Por sentença de 31.05.2013, ainda não transitada em julgado, foi homologada a partilha resultante do mapa de partilha adjudicando a cada um dos interessados o respectivo quinhão hereditário.”».

- Este é o único facto relativo ao art. 13.º do articulado de Resposta dos Autores constante do teor objectivo dos documentos juntos aos autos.

- No momento da prolação da sentença em crise não se mostrava junto qualquer documento a atestar o facto em causa.

Além disso, foi tido o cuidado de detalhadamente serem elencados os trâmites do inventário de acordo com os dados objectivos constantes da certidão junta aos autos, por ordem cronológica, como segue:

“5. Corre termos processo de inventário com o n.º ... (actualmente com o processo n.º ...) instaurado por óbito de M... e mulher J... são herdeiros e únicos interessados todos os Autores e todos os Réus, (com excepção do 6.º R. O...).

6. Os Autores foram citados para se oporem ao inventário.

7. Os Autores foram notificados das declarações de cabeça de casal.

8. Os Autores foram notificados da relação de bens a partilhar apresentada no dia 16.09.1999 e foi notificada aos interessados em 18.11.1999 e contra a mesma não houve reclamações.

9. No auto de licitações, ocorrido no dia 10.07.2003, estiveram presentes todos os Autores acompanhados dos seus mandatários, procedeu-se a licitações sobre as verbas que constituem as parcelas 2, 6, 10, 4, 8, 11 e 9, objecto do pedido nesta acção.

10. A 1.ª e o 5.º Autores licitaram nas verbas 1, 3, 5, 6, 8, 9, 11, 12, 13, e 14 e F... (ex-marido da 1.ª Autora) licitou nas verbas 6 e 8, todas objecto desta acção.

11. Ao longo do aludido processo de inventário exerceram funções vários cabeça de casal, entre outros, o aqui Autor R..., o qual prestou compromisso de honra e declarações complementares em 20/06/2006.

12. No dia 04.01.2008 foi dada forma à partilha e os Autores não se opuseram à mesma.

13. Os Autores foram notificados do mapa da partilha e não tendo sido depositadas as tornas, todos os Autores ..., requereram naquele inventário que lhes fossem adjudicadas as verbas relacionadas sob os números 5, 6, 9, 11 e 13 em pagamento das tornas a que tinham direito.

14. Por sentença de 31.05.2013, ainda não transitada em julgado, foi homologada a partilha resultante do mapa de partilha adjudicando a cada um dos interessados o respectivo quinhão hereditário.”.

Estes são os dados objectivos que resultaram da certidão junta aos autos.

No art. 13.º do articulado de Resposta efectivamente os Autores ainda alegaram “encontrando-se pendentes reclamações relativamente à relação de bens ali apresentada”, no entanto, tais factos não resultavam do teor objectivo da certidão do processo de inventário, antes pelo contrário, da certidão resultam todos os actos praticados cronologicamente ao longo da tramitação correspondente às várias fases processuais, culminando com a sentença homologatória do mapa de partilha.

Apenas com as alegações de recurso vieram os Autores juntar documento comprovativo de que apresentaram reclamações, contudo, constata-se que tais reclamações foram apresentadas já no ano de 2013 e de 2016 em fase processual posterior à elaboração do mapa de partilha.

No entanto, note-se que no ponto 8. dos factos provados consta o seguinte:

“8. Os Autores foram notificados da relação de bens a partilhar apresentada no dia 16.09.1999 e foi notificada aos interessados em 18.11.1999 e contra a mesma não houve reclamações.”.

Ou seja, efectivamente não foram apresentadas reclamações no prazo previsto no art. 1348.º, n.º 1, do CPC, na versão anterior (DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), os Autores naquele processo de inventário deduziram reclamações apenas no ano de 2013 e de 2016 e já em fase processual do inventário posterior à elaboração do mapa de partilha – facto apenas agora conhecido com a junção dos documentos pelos Autores nas alegações de recurso, e que por isso não poderia ser dado como provado naquela sentença.

No entanto, atento o princípio do dispositivo e as regras de repartição do ónus de prova, competiria aos Autores juntarem os documentos que entendessem necessários, não competindo ao tribunal – ao que julgamos – solicitar a junção integral do processo de inventário para desse modo colmatar lacunas das partes.» (destaques aditados).

Quer dizer, a 1.ª instância acaba agora por admitir que, afinal, os AA./Recorrentes, no dito processo de inventário, deduziram reclamações, apenas o tendo feito em 2013 e 2016, já em fase processual do inventário posterior à elaboração do mapa de partilha – facto apenas agora conhecido, por não constar da certidão junta aos autos, razão pela qual «não poderia ser dado como provado naquela sentença».

Concorda-se, então, nesta senda, que, «atento o princípio do dispositivo e as regras de repartição do ónus de prova, competiria aos Autores juntarem os documentos que entendessem necessários», não estando o Tribunal obrigado – oficiosamente – a «solicitar a junção integral do processo de inventário para desse modo colmatar lacunas das partes».

Mas já tem de objetar-se que, perante o expressamente alegado sob o art.º 13.º da resposta à matéria de exceção (pendência das reclamações), sendo o ónus probatório dos AA., a estes haveria de ser dada a possibilidade de juntarem a respetiva prova documental (certidão correspondente a extrair dos autos de inventário), posto não estar precludida, como visto, ao tempo do despacho saneador – ademais, sem audiência prévia –, a possibilidade de junção ainda pela parte (com sujeição a multa, é certo) da ilustrativa certidão judicial, a ser extraída dos mencionados autos de inventário (dito art.º 423.º do NCPCiv.).

Poderia argumentar-se que não se trata de factualidade relevante para a decisão da causa – atentas as plausíveis hipóteses de solução da questão de direito –, matéria que não teria impacto, assim, na proferida decisão de total improcedência da ação.

Porém, como se pode retirar da respetiva fundamentação de direito, tem de ser dada razão nesta parte aos Recorrentes, posto dali resultar (cfr. 2.2. da fundamentação jurídica da decisão em crise) que:

«(…) o exercício do direito invocado pelos Autores integraria manifestamente a figura do abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium (cfr. art. 334.º, do Código Civil), tal como invocada pelos Réus, uma vez que ficou provado que os Autores foram citados para se oporem ao aludido processo de inventário, que os Autores foram notificados das declarações de cabeça de casal, que os Autores foram notificados da relação de bens a partilhar apresentada no dia 16.09.1999 e foi notificada aos interessados em 18.11.1999 e contra a mesma não houve reclamações (…).

Ou seja, os Autores foram praticando actos e foram sendo notificados, no âmbito do aludido processo de inventário, desde o ano de 1999 até hoje, ao longo de mais de 20 anos, por isso, seria um manifesto abuso do direito vir agora, depois de tanto tempo decorrido, lateralmente em processo diverso, invocar determinados direitos em contradição total com os actos praticados no processo de inventário ao longo de mais de 20 anos.».

Isto é, trata-se de factualidade que, dada como provada, veio a ser apreciada/valorada, de forma expressa, em sede de fundamentação de direito, com decorrente influência na decisão da causa – julgamento de total improcedência da ação – e que, por isso, sempre haveria de ser considerada relevante, na perspetiva das plausíveis hipóteses de solução da questão de direito, sendo esta a perspetiva a adotar (à cautela) na fase do despacho saneador ([11]), sabido que as partes ainda estavam em tempo de juntar documentos (com sujeição a eventual multa).

É certo que o Tribunal a quo entendeu que a certidão junta aos autos – extraída do processo de inventário – era englobante e esgotante, pelo que, ao tempo, percecionou nada mais haver a adquirir em termos de prova documental (certidão judicial de tal processo).

Mas agora já admite que tal certidão não seria totalmente englobante e esgotante, podendo ocorrer – demonstração a dever ser feita através de certidão judicial, por ser dessa forma que se provam os respetivos factos, entendidos como ainda carecidos de prova – que, afinal, tenha havido reclamação/oposição em sede de inventário.

E se, como dito, o ónus probatório era da parte, que deixou expressamente alegado o factualismo da invocada reclamação/oposição, em vez de se tratar de um estrito dever de aquisição de prova do Tribunal – contrariamente ao defendido por tal parte –, parece-nos claro, por outro lado e salvo o devido respeito, na lógica do pretendido processo equitativo e direcionado para a descoberta da verdade e obtenção de soluções de justiça material (a justa composição do litígio a que alude o art.º 6.º, n.º 1, do NCPCiv., em que se deve esforçar/comprometer o Juiz), a demandar a sujeição de magistrados, mandatários e partes ao princípio da cooperação (art.º 7.º do mesmo Cód., determinando o concurso de todos para a justa composição do litígio), podendo o Juiz convidar as partes a fornecer esclarecimentos ou outros elementos (designadamente, prova documental), em qualquer altura do processo (cfr. n.º 2 do mesmo art.º 7.º e art.º 411.º do dito Cód.), desde que tal possa contribuir para a pretendida decisão materialmente justa e transparente, que deveria o Julgador, antes de partir para uma imediata decisão de meritis (de improcedência total da ação), convidar a parte demandante, na iminência do naufrágio da sua pretensão, a juntar, querendo, prova documental (certidão judicial) dessa sua convocada reclamação/oposição no processo de inventário.

É certo, na lógica daquele Julgador, que a prova documental já junta (e subsistente) apontava num determinado sentido, mas, perante a expressa alegação da parte demandante em contrário, importaria dar-lhe a possibilidade/oportunidade de fazer prova do que alegava, tanto mais que ainda não estava processualmente precludida a possibilidade de o fazer a jusante.

Não atuando, cautelarmente, desta forma, ainda em sede de despacho saneador, ficava aberta a possibilidade de erro quanto ao cabal estabelecimento da materialidade fáctica e, consequentemente, de aplicação do direito ao caso, mormente quanto à dita figura jurídica do abuso do direito, que teria de ser assente em factos indiscutíveis, o que parece, do que se descortina, não estar verificado in totum.

Em suma, tudo aconselhava, salvo sempre o devido respeito pelo Tribunal a quo, que não se decidisse imediatamente do mérito, ademais em termos de total improcedência da ação, no despacho saneador ([12]), apontando a prudência e os princípios do atual processo civil – comprometidos, como dito, com a ideia de cooperação e envolvimento na procura da justa composição do litígio – no sentido de ser dada a oportunidade à parte (AA.) de comprovar, mediante junção de certidão judicial, o que alegava ([13]) quanto ao processo de inventário ([14]).

Era caso, pois, a esta luz, de prosseguimento dos autos, ao menos para concessão, por determinação ou convite, de tal oportunidade de prova documental, não havendo ainda preclusão de aquisição respetiva, termos em que não deveria ser proferida imediata decisão de mérito.

Tudo visto, procedem nesta parte as conclusões dos AA./Apelantes, devendo ser, consequentemente, revogada a decisão recorrida, de molde a conceder-se aos Recorrentes, na 1.ª instância – e na fase processual própria (despacho pré-saneador) –, a oportunidade de juntarem a prova documental em falta ([15]), com sujeição ao princípio do contraditório [cfr. o já aludido art.º 590.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv., em conjugação com o art.º 3.º, n.º 3, do mesmo Cód.], só após podendo verificar-se se os autos dispõem de todos os elementos necessários a uma segura e justa decisão de mérito na fase do saneador.

Com o que, como se torna manifesto, fica prejudicado o conhecimento recursivo das demais questões anteriormente enunciadas.

V – Síntese conclusiva (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, por o ónus probatório caber à parte respetiva (art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), embora possam ainda ser apresentados mais tarde, até vinte dias antes da data em que se realize a audiência final (neste caso, com sujeição a multa, nos termos do disposto no art.º 423.º, n.ºs 1 a 3, do NCPCiv.).

2. - Por isso, não estando precludida, ao tempo do despacho saneador – ademais, sem audiência prévia –, a possibilidade de junção ainda pelos autores de certidão judicial, a ser extraída de invocados autos de inventário, quanto à alegada dedução ali de reclamações/oposição, matéria relevante para a decisão do litígio, não devia o Tribunal partir para a imediata prolação de saneador-sentença, onde julgou a ação totalmente improcedente, também com fundamento na ausência, que julgou provada, de tais reclamações/oposição, antes devendo, desde logo, determinar (em despacho pré-saneador) aos demandantes a junção do documento comprovativo das alegadas reclamações/oposição, com vista a permitir, de forma habilitada, o conhecimento, se possível, do mérito da causa no despacho saneador [art.º 590.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv.].

3. - Suscitada tal questão em recurso, tem de revogar-se o saneador-sentença absolutório, por, à luz do disposto no art.º 595.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., não poder conhecer-se imediatamente do mérito da causa – o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação total dos pedidos deduzidos –, antes havendo, na 1.ª instância, com observância do necessário contraditório, de proferir-se, em despacho pré-saneador, determinação/convite à junção da prova documental em falta.
VI – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que, conhecendo de mérito, julgou no sentido da improcedência dos pedidos dos AA./Recorrentes, assim determinando o prosseguimento dos autos, nos moldes previstos na antecedente fundamentação jurídica.

Custas da apelação pelos Recorridos (vencidos).

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas e em teletrabalho.

Coimbra, 26/10/2021

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo                              

Fernando Monteiro


([1]) Em 16/10/2019.
([2]) Com declarada dispensa de realização da audiência prévia, sob invocação do disposto no art.º 593.º, n.º 1, do NCPCiv. (o qual, todavia, é expresso no sentido de apenas ser aplicável às «ações que hajam de prosseguir»).
([3]) Destaques retirados.
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes e seguindo-se um critério de ordem lógica na sua apreciação.

([6]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([7]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([8]) Cfr., por todos, o Ac. Rel. Lisboa, de 01/10/2013, Proc. 4638/08.0TCLRS.L1-7 (Rel. Maria do Rosário Morgado), em www.dgsi.pt. No mesmo sentido os Acs. do STJ, de 14/01/2010, Proc. 1885/04.7TBMTS.S1 (Cons. Alberto Sobrinho), da mesma data mas no Proc. 2299/05.7TBMGR.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos) e de 25/03/2009, Proc. 09B0412 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza), todos em www.dgsi.pt.
([9]) Por invocado «acordo das partes e/ou documentos juntos aos autos com a suficiente força probatória, como as certidões juntas» (é esta, apenas, a justificação apresentada da convicção adquirida relativamente à matéria de facto).
([10]) Leia-se, conjugadamente, o art.º 593.º, n.º 1, mediante interpretação a contrario, do mesmo Cód., posto a ação ter vindo a ser logo julgada improcedente. No mesmo sentido, entre outros, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, no seu Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 691, referindo que a dispensa da audiência prévia tem sempre de ocorrer «num cenário em que, seguramente, a ação prosseguirá para além do momento do despacho saneador.».
([11]) Como entendido no Ac. TRC de 08/07/2021, Proc. 668/20.1T8GRD.C1 (Rel. Fonte Ramos), disponível em www.dgsi.pt, em que o aqui Relator foi Adjunto: «O despacho saneador destina-se a: a) Conhecer das excepções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (art.º 595º, n.º 1 do CPC). Na hipótese prevista na alínea b), o despacho fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença (n.º 3, 2ª parte). // Contudo, a decisão de mérito, ainda que parcial, só deve ter lugar quando haja uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir, pois de outro modo o aparente ganho de economia processual pode resultar, pela via da revogação da decisão em recurso, em perda real na duração do processo.».
([12]) De acordo com o preceituado no art.º 595.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv., só pode conhecer-se imediatamente do mérito da causa, quanto ao que ora importa, se «o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos (…)». Cfr. também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, op. cit., p. 696, salientando ter de ocorrer situação processual de desnecessidade de mais provas. Veja-se ainda José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, p. 659: «Este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa».
([13]) Veja-se o disposto no art.º 590.º, n.º 2, al.ª c), do NCPCiv., no sentido de, findos os articulados, o juiz poder/dever determinar, sendo caso disso, em despacho pré-saneador, a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador. Em tal tipologia de casos, «o juiz proferirá despacho saneador-sentença, depois de ter convidado as partes a juntar a prova documental necessária», sabido que «a audiência final (…) não se destina no essencial à apresentação de documentos, antes à produção de outros meios de prova, sujeitos a livre apreciação (…)» – cfr., ainda, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, op. cit., p. 697.
([14]) A certidão que consta a fls. 203 e segs. do processo físico, datada de 25/06/2013, foi obtida pelos RR. (respetivo Mandatário) e junta com a contestação, reportando-se apenas a determinadas partes do processo de inventário (as partes que aqueles tiveram por convenientes).
([15]) Note-se que a factualidade em questão só documentalmente – mediante certidão completa, a extrair dos autos de inventário – poderá ser, segura e cabalmente, provada, do que os AA./Apelantes têm consciência, não se mostrando ainda adquirida para os presentes autos a necessária certidão judicial [os documentos a que os Apelantes aludem nas suas conclusões, e que acompanham a sua peça recursiva (cfr. fls. 282 a 344 do processo físico), não constituem qualquer certidão judicial, razão pela qual não fazem prova plena, atendendo até ao circunstancialismo e vicissitudes dos autos, do que se pretende, certidão essa que, volvido mais de um ano, não foi junta].