Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1872/18.8T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: JUROS DE MORA
TAXA SUPLETIVA DE JUROS
NATUREZA DO CRÉDITO
INDEMNIZAÇÃO POR FACTO ILÍCITO
JUROS CIVIS
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 804.º E 806.º, N.º 1, DO CÓDIGO CIVIL, 2.º E 3.º DO DECRETO-LEI N.º 62/2013, DE 10-05, E 102.º § 3º E § 5.º DO CÓDIGO COMERCIAL
Sumário: I – Estando em causa a reparação de danos provindos de uma apropriação ilícita de bens, o crédito respetivo não se integra numa transação comercial sujeita ao Decreto-Lei n.º 62/2013 (art. 102.º § 5.º do Código Comercial), porquanto se encontra expressamente afastada a aplicabilidade do diploma em análise [art. 2.º, n.º 2, c)] e por não se incluir na definição de transação comercial aí prevista, a qual abrange apenas as operações de fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração [art. 3.º, b)].

II - O estabelecimento de juros moratórios a créditos de que sejam titulares empresas comerciais nos termos do art. 102.º § 3º do Código Comercial tem como pressuposta a existência de um “ato comercial” gerador desse crédito, não bastando a mera qualidade de “empresa” por parte do titular.

III - Ainda que se possa admitir que os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade civil extracontratual, possam consubstanciar atos de comércio nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 2.º, 2.ª parte, e 102.º § 3º do Código Comercial, sempre seria exigível para esse efeito que tais factos ilícitos resultem do exercício da atividade mercantil do seu autor.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Apelação n.º 1872/18.8T8LRA.C2

Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 2

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I - Relatório

Moamineral – Minerais Industriais S.A.

intentou contra

Sabril- Sociedade de Areias e Britas, Lda.

ação declarativa pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 1.413.333, acrescida de juros de mora, desde a data da sua citação e até efetivo e integral pagamento, calculados à taxa supletiva legalmente aplicável.

Por sentença de 04.03.2019 (ref. 904652227) a ação foi julgada improcedente, com a consequente absolvição da Ré do pedido.

Interposto recurso dessa decisão, por acórdão deste Tribunal da Relação de 03.12.2019 (ref. 8900600), o mesmo obteve provimento parcial, com a condenação da Ré a pagar à A. o montante de € 829.200, acrescido de juros, à taxa legal, desde a citação e até pagamento.

A Ré interpôs recurso de revista para o STJ, o qual, por acórdão de 10.09.2020 (ref. 9462261), transitado em julgado, mereceu procedência parcial, decidindo-se, com fundamento em responsabilidade civil, no que agora interessa, “b) Condenar a Ré Sabril – Sociedade de Areias e Britas, Lda. a indemnizar a Autora Motamineral, Minerais Industriais, S.A. pelas toneladas de areia de que se apropriou em quantia a calcular em incidente de liquidação, de acordo com os parâmetros definidos no ponto 12. do presente acórdão”.

Na sequência, a A. veio requerer a liquidação do crédito, pedindo, com os fundamentos que invocou, a condenação da Ré “no pagamento à Autora, do montante de € 780.000,00 (setecentos e oitenta mil euros), acrescido de juros de mora vincendos desde a notificação da Ré para o presente incidente, calculados às taxas legais de juros comerciais sucessivamente em vigor, nos termos dos artigos 804.º, 805.º, n.º 2, alínea a) e b), e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil, e do artigo 102, § 3.º, do Código Comercial”.

A Ré deduziu oposição pugnando no sentido de ao reclamado valor de € 780.000 ser deduzido do valor que resultar do apuramento das quantidades de cada tipologia de areia retiradas do local e respetiva valorização contratual.

Entretanto, a 03.11.2022 (ref. 9167464), já depois de ter sido agendado o julgamento, a Ré veio confessar o pedido na parte respeitante ao valor do capital (montante indemnizatório liquidado pela A.) e duração da mora tendo juntado aos autos comprovativos do pagamento a favor da A. dos montantes de € 780.000 (capital) e € 59.921,10 (juros de mora) efetuado nessa mesma data.

Por sentença de 06.12.2022 (ref. 102180905) foi julgada válida a confissão, com a condenação da Ré a pagar à A. a quantia confessada de € 839.921,10, prosseguindo os autos tão só, no que ainda subsiste para apreciação no presente recurso, para o julgamento respeitante à natureza dos juros devidos.

Após ter sido facultado às partes o exercício do contraditório a propósito dessa questão (por meio de alegações) foi, a 20.01.2023, proferida sentença, na qual, por se ter considerado estarem em causa juros à taxa para as operações civis e estar pago o montante devido a esse título, se declarou extinto, por inútil, o incidente de liquidação.

                                                                  *

Irresignada, a A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
A. Em 10.09.2020, o Supremo Tribunal de Justiça condenou a Recorrida a indemnizar a Recorrente pelas toneladas de areia de que a primeira se apropriou, em quantia a calcular em incidente de liquidação.
B. A Recorrente deduziu, por apenso, o presente incidente de liquidação contra a Recorrida, pedindo a sua condenação no pagamento do montante de EUR 780.000,00, acrescido de juros de mora vincendos desde a sua notificação para o presente incidente, calculados à taxa legal de juros comerciais sucessivamente em vigor.
C. A Recorrida veio juntar aos autos dois documentos comprovativos do pagamento à Recorrente das quantias de EUR 780.000,00 e de EUR 59.921,10,esta última referente a “juros moratórios civis à taxa legal aplicável”.
D. Por requerimento de 09.11.2022, a Recorrente veio pedir a condenação da Recorrida no pagamento da quantia de EUR 59.579,17, por entender que o montante que havia sido entregue pela Recorrida não satisfazia o seu crédito, por ter sido por esta aplicada a taxa de juros civis, quando era aplicável a taxa de juros comerciais.
E. Na Sentença Recorrida, proferida em 20.01.2023, o Tribunal a quo julgou improcedente o pedido formulado pela Recorrente nas suas alegações finais, considerando que nenhuma outra quantia poderia ser exigida à Recorrida, visto que, entendeu o Tribunal a quo, seriam devidos juros à taxa para as operações civis, e não à taxa comercial.
F. A Recorrente não pode concordar com a posição vertida na Sentença Recorrida, por serem aplicáveis, no caso sub judice, juros moratórios à taxa comercial. Senão vejamos,
G. Desde logo, no Requerimento Inicial, a Recorrente peticionou a condenação da Recorrida no pagamento de juros moratórios comerciais, e não civis, não tendo a Recorrida, em sede de oposição, contestado esse pedido, pelo que não o pode agora, naturalmente, fazer.
H. Assim, do ponto de vista processual, não tendo o pedido de aplicação da taxa de juros comercial sido questionado, deve ser considerado como não controvertido e, por conseguinte, deve a Recorrida ser condenada a liquidar à Recorrente juros de mora comerciais.
I. Por outro lado, é aplicável ao caso sub judice a taxa de juros moratórios comerciais, e não a taxa de juros civis, nos termos do § 5.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013.
J. O montante liquidado nos presentes autos pela Recorrida corresponde, materialmente, e para os efeitos do Decreto-Lei n.º 62/2013, à remuneração de uma transação comercial entre “empresas”, porquanto:
i. A Recorrente e a Recorrida são comerciantes (por serem sociedades comerciais).
ii. A Recorrente e a Recorrida têm o mesmo objeto comercial, dedicando-se à extração e à venda de matérias-primas, nomeadamente areias, sendo que a venda de areias contribuía para os resultados da Recorrente.
iii. No exercício desta atividade comercial, a Recorrida subtraiu areias do stock da Unidade do Oeste da Recorrente, fazendo-as suas, sem pagar o respetivo preço.
iv. Foram retiradas, pelo menos, 300 mil toneladas de areias do stock da Unidade do Oeste, que poderiam ser vendidas pela Recorrente pelo preço global de EUR 780.000,00.
v. A apropriação indevida das areias teve repercussões imediatas na atividade comercial da Recorrente, que sofreu uma delapidação do seu stock de produtos destinados ao comércio.
vi. Em consequência do supra, a Recorrida foi condenada a pagar à Recorrente o montante de EUR 780.000,00, acrescido de juros de mora.
K. O crédito indemnizatório liquidado destina-se a remunerar e compensar a Recorrente pela subtração de matérias-primas exclusivamente afetas à sua atividade comercial e que, de outro modo, seriam alienadas no quadro de uma transação comercial por esse mesmo valor e no quadro do exercício das atividades comerciais da Recorrente e também da Recorrida.
L. No Acórdão de 10.09.2020, proferido nestes autos, o Supremo Tribunal de Justiça reconhece que estamos perante atos praticados no âmbito das atividades comerciais das partes e que provocaram um dano de natureza comercial, pois que, não fosse o facto ilícito perpetrado pela Recorrida, a Recorrente teria vendido as ditas areias a coberto de uma transação.
M. Os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade civil extracontratual, podem ter conexão com o comércio, devendo considerar-se, quando o tenham, como verdadeiros atos de comércio, como se verifica in casu.
N. Se a Recorrida tivesse atuado licitamente e adquirido as areias à Recorrente no contexto de uma verdadeira transação comercial, ao invés de as “subtrair gratuitamente”, não haveria quaisquer dúvidas de que seriam devidos juros comerciais nos termos do § 5.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013.
O. Deve entender-se que são aplicáveis in casu juros comerciais, às taxas sucessivas de 8% e 10,5%,nos termos do § 5.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013.
P. Subsidiariamente, sempre seriam devidos juros comerciais nos termos do artigo § 3.º do 102.º do Código Comercial.
Q. A taxa de juro a que se refere o § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial é aplicável a todos os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, como é o caso da Recorrente, assim o impondo os elementos literal e teleológico de interpretação da lei.
R. Quanto ao elemento literal, o § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial refere-se expressamente aos “créditos de que sejam titulares empresas comerciais”, não fazendo qualquer distinção quanto ao tipo de crédito em apreço.
S. A teleologia do referido preceito aponta mesma direção, pois o ratio da norma é o de “compensar especialmente as empresas pela imobilização de capitais, pois que, para elas o dinheiro tem um custo mais elevado do que em geral, na medida em que deixam de o poder aplicar na sua atividade, da qual extraem lucros, ou têm mesmo que recorrer ao crédito bancário”.
T. Por essa razão, não fará sentido distinguir os tipos de créditos em apreço, pois, em qualquer caso, haverá uma situação de imobilização de capital que, de outro modo, seria alocado às atividades comerciais do comerciante (em concreto, da Recorrente).
U. A necessidade de tutela da Recorrente exprime-se nos mesmos moldes em que se justificaria caso se verificasse o atraso no pagamento de uma transação comercial conduzida licitamente: houve uma redução da mercadoria afeta à sua atividade comercial, mas a “contrapartida” tardou em ser prestada.
V. In casu, revelaram-se necessários vários anos de litígio, com a necessidade de intervenção de todas as instâncias judiciais, para que a Recorrente pudesse satisfazer, ainda que parcialmente, o seu crédito.
W. Uma vez que que a Recorrente é uma empresa comercial, cumpre concluir que o seu crédito sobre o montante de capital de EUR 780.000,00 estaria sempre sujeito à taxa de juro comercial, nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial.
X. De todo o modo, sempre seria de admitir a aplicação do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial, pois no caso sub judice o facto ilícito que fundamenta a responsabilidade civil da Recorrida configura um verdadeiro ato comercial.
Y. Por inerência, a respetiva prestação e crédito indemnizatórios revestem, também, natureza comercial.
Z. Diz-se ato comercial em sentido subjetivo aquele que: (i) seja reconduzível à esfera jurídica de um comerciante; (ii) não seja de natureza exclusivamente civil; e (iii) não aparente não ter qualquer conexão com a atividade do comerciante.
AA. In casu, estão preenchidos todos os mencionados pressupostos.
BB. Tanto a Recorrente, como a Recorrida, são comerciantes (por serem sociedades comerciais).
CC. O facto ilícito gerador de responsabilidade não tem natureza exclusivamente civil.
DD. O facto ilícito em discussão relaciona-se com a atividade comercial da Recorrente e da Recorrida (precisamente, a comercialização de areias) e poderia e deveria ter sido praticado no âmbito de uma efetiva transação comercial (em vez de as areias terem sido subtraídas gratuitamente).
EE. Não resulta do ato ilícito gerador de responsabilidade civil, nem do respetivo crédito indemnizatório, que este não tem qualquer conexão com a atividade comercial subjacente. Pelo contrário, o ato ilícito, assim como a respetiva prestação indemnizatória, relaciona-se, efetivamente, com essa atividade.
FF. A Doutrina tem esclarecido que a expressão “se o contrário do próprio ato não resultar” significa que a comercialidade do ato se mantém sempre que do próprio ato não resultar que ele foi praticado pelo comerciante fora do exercício do seu comércio, o que não exclui os factos jurídicos ilícitos praticados pelo comerciante no exercício do seu comércio.
GG. A prestação indemnizatória visa remunerar e compensar a Recorrente pela apropriação de stock destinado exclusivamente ao seu comércio e que, de outro modo, teria sido comercializado no contexto da sua atividade comercial.
HH. Não estamos perante um caso “típico” de responsabilidade civil em que o ato ilícito e o respetivo crédito indemnizatório são acidentais perante a atividade comercial dos agentes.
II. A doutrina aceita que os factos jurídicos ilícitos e, assim, as obrigações de indemnização deles correntes podem ter, quando efetivamente a tenham, conexão com o comércio, devendo considerar-se, nesse caso, como verdadeiros atos de comércio.
JJ. O facto ilícito gerador da responsabilidade civil da Recorrida configura um ato subjetivamente comercial, estando, por conseguinte, a respetiva prestação indemnizatória sujeita à taxa de juros moratórios supletiva prevista no § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial.
KK. Pelo facto de o crédito reclamado nestes autos pela Recorrente ser um direito detido por uma empresa comercial e com relação com a sua atividade comercial, é devido o pagamento dos respetivos juros de mora comerciais, às taxas sucessivas de 7% e 9,5%, nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial.
LL. Face ao disposto no artigo 785.º, n.º 1, do Código Civil, o pagamento é feito, em primeiro lugar, por conta dos juros e, só depois, por conta do capital. Por essa razão, o valor pago pela Recorrida é imputado à liquidação prioritária dos juros e apenas liquida parcialmente o capital em divida.
Pelo exposto, (…)
MM. Nos termos do § 5.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013:
i. ao valor de capital em dívida acrescem juros de mora calculados às sucessivas taxas de juro comercial de 8% (entre o 2.º semestre de 2020 e o 2.º semestre de 2022) e 10,5% (no 1.º semestre de 2023).
ii. Os juros de mora vencidos calculados desde a data da notificação à Recorrida do presente incidente (04.12.2020) até à data do pagamento realizado pela Recorrida (03.11.2022), sobre o capital de EUR 780.000,00, totalizam a quantia de EUR 119.500,27.
iii. Por conseguinte, permanece em dívida, a título de capital, o montante de EUR 59.579,17.
iv. A este montante acrescem os juros de mora vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, calculados sobre a quantia do capital em dívida, à taxa legal de juros de mora comerciais sucessivamente em vigor.
NN. Pelo que, permanece em dívida, por liquidar à Recorrente pela Recorrida, a quantia de EUR 59.579,17 a título de capital, a que acresce os juros de mora vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, às taxas sucessivas de 8% (até ao dia 31.12.2022, inclusive) e 10,5% (a partir do dia 01.01.2023, inclusive).
Subsidiariamente,
OO. Nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial:
i. ao valor de capital em dívida acrescem juros de mora calculados às sucessivas taxas de juro comercial de 7% (entre o 2.º semestre de 2020 e o 2.º semestre de 2022) e 9,5% (no 1.º semestre de 2023).
ii. Os juros de mora vencidos calculados desde a data da notificação à Recorrida do presente incidente (04.12.2020) até à data do pagamento realizado pela Recorrida (03.11.2022), sobre o capital de EUR 780.000,00, totalizam a quantia de EUR 104.562,74.
iii. Por conseguinte, permanece em dívida, a título de capital, o montante de EUR 44.641,64.
iv. A este montante acrescem os juros de mora vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, calculados sobre a quantia do capital em dívida, à taxa legal de juros de mora comerciais sucessivamente em vigor.
PP. Pelo que, permanece em dívida, por liquidar à Recorrente pela Recorrida, a quantia de EUR 44.641,64 a título de capital, a que acresce os juros de mora vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, às taxas sucessivas de 7% (até ao dia 31.12.2022, inclusive) e 9,5% (a partir do dia 01.01.2023, inclusive).

Terminou pugnando no sentido de a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que:

a. Condene a Recorrida no pagamento da quantia de EUR 59.579,17, a título de capital, acrescida de juros moratórios comerciais vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, calculados sobre a quantia de capital em dívida, à taxa legal de juros de mora comerciais sucessivamente em vigor, de 8% e 10,5%, nos termos do § 5.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013; ou, caso assim não se entenda,

b. Condene a Recorrida no pagamento da quantia de EUR 44.641,64, a título de capital, acrescida de juros moratórios comerciais vencidos desde 04.11.2022 e vincendos até integral pagamento, calculados sobre a quantia de capital em dívida, à taxa legal de juros de mora comerciais sucessivamente em vigor, de 7% e 9,5%, nos termos do § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial”.
*                               

Ré respondeu defendendo a improcedência do recurso, formulando em tal peça processual as seguintes conclusões:

(…).
*

Dispensados os vistos, foi realizada conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*

II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é a de saber se os juros de mora do crédito de que a A. é/foi titular são calculados nos termos do artigo 102.º, § 5.º (pedido principal) ou § 3.º (pedido subsidiário) do Código Comercial.
                                                                  *

III-Fundamentação
A questão a apreciar e decidir, acabada de enunciar, está dependente da resposta prévia que se dê à caracterização da obrigação pecuniária em causa, com a consequente incidência na taxa de juros aplicável.
Todavia, antes de entrarmos na apreciação de fundo, importa previamente deixar claro que, diversamente do defendido pela recorrente [conclusões l) e k)], independentemente de a ora recorrida não ter, em sede de contestação ao incidente de liquidação, apresentado oposição expressa quanto a serem devidos juros comerciais, essa circunstância não patenteia qualquer relevância, na justa medida em que a admissão por acordo a que se refere o art. 574.º, n.º 2 do CPC apenas ocorre quanto a “factos” – o que não é o caso, uma vez que se trata da mera subsunção dos factos ao direito (saber se são ou não devidos os juros de mora reclamados e sendo-o, qual a sua natureza).
Assim, valendo a este propósito o disposto no art.º 5.º, n.º 3 do CPC (“O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito”), nada obstava a que o tribunal recorrido se pronunciasse e decidisse qual a taxa de juros moratórios aplicável à mora.
Revertendo agora ao núcleo essencial da discussão, é sabido que a mora, ou seja o incumprimento no tempo devido da prestação, constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor (art. 804.º do Cód. Civil).
Nas obrigações pecuniárias, partindo-se do pressuposto que o dinheiro tem um rendimento necessário que dispensa a prova quanto à existência do dano e ao nexo causal, essa indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806.º, n.º 1 do Cód. Civil).
O nosso legislador entendeu estabelecer uma diferenciação da taxa dos juros consoante a natureza da do crédito pecuniário incumprido (cível, comercial ou fiscal).
Assim, e no que ao caso dos autos interessa, e limitado o campo de discussão à taxa supletiva, tratando-se de obrigações pecuniárias cíveis, a taxa é de 4% (fixada na Portaria n.º 291/2003, de 08 de abril), e no caso das “obrigações pecuniárias comerciais”/transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, são aplicáveis as sucessivas taxas que decorrem da Portaria n.º 277/2013, de 26 de agosto.
Para efeitos das “obrigações pecuniárias comerciais” vale o disposto no art. 102.º do Código Comercial onde se prevê “Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os atos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se”.
Ou seja, contrariamente ao defendido pela recorrente[2], o estabelecimento de juros moratórios a créditos de que sejam titulares empresas comerciais nos termos dos § 3º desse normativo tem como pressuposta a existência de um “ato comercial” gerador desse crédito (não bastando a mera qualidade de “empresa” por parte do titular), não fazendo, de resto, qualquer sentido uma leitura da norma constante desse § 3º sem se atentar no seu proémio (“atos comerciais”) e no diploma em que se encontra inserido (Código Comercial).
É que, como se refere no acórdão do STJ de 08.09.2016 (proc. n.º 1665/06.5TBOVR.P2.S1), e que, de resto, até foi citado pela recorrente, “A obrigação de pagamento de juros comerciais respeita à natureza do acto: acto comercial ou não”.
Por seu lado, o Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011) veio estabelecer regras específicas para os atrasos de pagamentos das transações comerciais entre empresas.
Ou seja, tem como pressuposta existência de uma transação comercial entre empresas.
Mau grado os seus múltiplos pontos de contacto, aparenta-se uma diferenciação destes dois regimes, já que enquanto que o primeiro (art. 102.º § 3 do Cód. Comercial) salvaguarda os créditos emergentes de atos comerciais unilaterais[3] (desde que a comercialidade opere do lado do credor) ou bilaterais, já no segundo (art. 102.º § 5 do Cód. Comercial com referência ao Decreto-Lei n.º 62/2013) exige-se uma transação consistente no fornecimento de bens ou prestação de serviços contra remuneração (art. 3.º, b) do citado diploma) entre empresas[4] e, consequentemente, com um campo de aplicação significativamente reduzido face ao primeiro.
Deixados estes considerandos e a posição firme em como a qualidade de empresa da Ré não implica, sem mais, a aplicabilidade do art. 102.º § 3 do Cód. Comercial, importa aferir se a obrigação em causa nos autos - objeto de controvérsia - emerge de
- ato comercial para efeitos do disposto no art. 102.º § 3 do Cód. Comercial
 ou
- de transação comercial sujeita ao Decreto-Lei n.º 62/2013 de 10 de maio (art. 102.º § 5 do Cód. Comercial).
Como primeira nota importa acentuar que no acórdão do STJ proferido nos autos se estabeleceu como causa obrigacional a indemnização, em termos de responsabilidade civil (apropriação ilícita, com violação do direito de propriedade da ora recorrente) “pelas toneladas de areia de que (a Ré) se apropriou”.
O que significa que o crédito objeto de liquidação não se integra numa transação comercial sujeita ao Decreto-Lei n.º 62/2013 (art. 102.º § 5.º do Código Comercial), porquanto:
i) tratando-se de pagamento de indemnização por responsabilidade civil se encontra expressamente afastada a aplicabilidade do diploma em análise [art. 2.º, n.º 2, c)]
ii) respeitando a uma apropriação ilícita por parte da Ré não se inclui na definição de transação comercial aí prevista, a qual abrange apenas as operações de fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração [art. 3.º, b)]
Fica, como tal, arredado o acolhimento do contido nas alegações da recorrente a esse propósito (conclusões I a O).

Por outro lado, e antecipando desde já a sorte da ação, o crédito em causa também não cai no âmbito acautelado pelo art. 102.º § 3º do Código Comercial, por não emergir de qualquer ato comercial (cfr. conclusões P a LL das alegações de recurso).
Com efeito, estatui-se no art. 2.º do Código Comercial “Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar”.
Sem pretensões de delongas a propósito da interpretação dessa norma e das múltiplas divergências doutrinárias e jurisprudenciais que tem vindo a ocasionar, temos por óbvio que o Código Comercial acolheu um critério dual na determinação do que são atos comerciais.
Objectivo enquanto considera como atos de comércio os que, enquanto tal, estão regulados no Código Comercial (v.g. mandato, conta corrente, operações de banco, transporte, compra e venda, empréstimo, depósito, reporte, etc.), sendo hoje entendimento pacífico que podem aí ser incluídos outros atos ainda que não regulados no Código Comercial, desde que reúnam os requisitos que a própria lei comercial considera indispensáveis para atribuir a certa espécie deles a qualidade de mercantil - atos praticados “no exercício do comércio e para o exercício do comércio”[5].
Subjetivo enquanto considera como comerciais os atos praticados por comerciantes, desde que não tenham natureza exclusivamente civil se o contrário do próprio ato não resultar[6].
- atos praticados por comerciantes assim os reservando às sociedades comerciais e a todos os que fazem do comércio profissão (art. 13.º do Cód. Comercial).
- desde que não tenham natureza exclusivamente civil”, com o significado óbvio de excluir desde logo os de caráter extrapatrimonial como o casamento, a adoção, a perfilhação, etc.. 
Todavia esse segmento da norma tem vindo a consentir múltiplas interpretações com o sentido de o aproximar “a atos essencialmente civis”[7], de molde a podem ser considerados como comerciais atos como doações feitas por comerciantes, gratificações a empregados, etc.[8].
Também não se apresenta pacífica a resposta à questão de saber se os factos jurídicos ilícitos, geradores de responsabilidade civil extracontratual, quando resultem do exercício do comércio, devam ser considerados como atos de comércio, ou antes, como atos de natureza exclusivamente civil[9].
Seja como for, e é este o ponto, ainda que se admita que os factos delituosos possam integrar a prática de ato comercial e, como tal, a mora possa ser reparada nos termos do art. 102.º § 3 do Cód. Comercial, é essencial que o ato (ilícito) seja exercido no exercício do comércio.
- “se o contrário do próprio ato não resultar”, ou seja, desde que dele próprio não resulte ser estranho ao comércio do seu autore; se do próprio ato não resultar a não ligação ou conexão com o concreto giro comercial do agente.
Ora, no caso dos autos, apesar de a A. e a Ré serem comerciantes,
i) o facto gerador do crédito não emerge de ato regulado, enquanto tal, no Código Comercial ou noutra legislação que lhes confira a qualidade de mercantil;
ii) tem natureza exclusivamente/essencialmente civil (desde logo por o facto ilícito não ter sido praticado no exercício do comércio do A. ou da Ré);
iii) e do próprio ato resulta tratar-se de facto alheio ao comércio da A. ou da Ré  (apropriação de bem pela primeira, pertença da segunda).
Não colhe, por isso, a tese avançado em sede de recurso em como o facto ilícito que fundamenta a responsabilidade civil se apresentar como “um verdadeiro ato subjetivamente comercial”, configurando, tão só, indemnização a receber a título de ressarcimento de danos em sede de responsabilidade civil extracontratual, totalmente alheia ao exercício da sua atividade mercantil.
Nessa medida, também não assiste à A. o direito ao recebimento de juros comerciais a coberto do art. 102.º § 3 do Cód. Comercial.
                                                                  *

Sumário[10]:

(…).

                                                                  *                                                         

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

                                                             *

Custas pela apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 30 de maio de 2023


(Paulo Correia)

(Catarina Gonçalves)

(Maria João Areias)





[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Catarina Gonçalves e Maria João Areias.
[2] - Cfr. conclusões Q. a W. das alegações de recurso.
[3] - No sentido de o art. 102.º, § 3, do Código Comercial, ainda que com o reforço interpretativo do estatuído no art. 99.º desse diploma legal, não exigir que o ato seja comercial relativamente a ambas as partes, vejam-se os acórdãos do TRG de 4.10.2017, 07.11.2019 e 21.01.2021, do TRC de 12.2.2019 e de 19.10.2010 e os acórdãos do STJ, de 8.9.2016 e de 4.6.2013 (todos disponíveis in www.dgsi.pt).
[4] - “Empresas” com o significado de incluir as entidades privadas que desenvolvam uma atividade económica ou profissional autónoma, incluindo pessoas singulares (art. 3.º, d) do referido diploma legal).
[5] Entre outros Fernando Olavo (Direito Comercial, I, 2.ª edição, pág. 48 e segs.), Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, pág. 76 e segs.) e Jorge Manuel Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, Vol. I, 13.ª edição, págs. 71 a 92).
[6] - Jorge Manuel Coutinho de Abreu, obra citada, pág. 93 designa o enunciado como “uma fórmula com ares esotéricos, e com ingredientes e combinação transalpinos”
[7] - Conceção ampla advinda da doutrina de Barbosa de Magalhães e secundada por Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, págs. 103 e segs.). 
[8] - Cfr. a este propósito Coutinho de Abreu, obra citada, págs. 94 a 96.
[9] - Admitindo a prática destes factos ilícitos como podendo constituir atos de comércio, entre outros, Cunha Gonçalves (Comentário ao Código Comercial Português, Vol. I, pág. 19), Barbosa de Magalhães (Do estabelecimento comercial, Ática, pág. 97), Fernando Olavo (Direito Comercial, I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1978, pág. 92) e Ferrer Correia (lições de Direito Comercial, Vol. I, Coimbra, 1973, págs. 119 e 120). Já José Tavares (Sociedades em empresas comerciais, Coimbra Editora, pág. 42 a 44), Caeiro da Mata (Direito Comercial Português, págs. 250 a 253) e Pinto Coelho (Liçoes de Direito Comercial, 1.º Vol., págs. 70 e 71) não admitem a comercialidade dos delitos.
 
[10] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).