Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2364/18.0T8ACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
EFEITO ÚTIL NORMAL DA DECISÃO
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 33.º, N.º 2 E 3, DO CPC
Sumário: I - O art.º 33.º n.º3 do CPC consagra uma concepção restrita do conceito «efeito útil normal» da decisão, segundo a qual este se afere apenas por querer evitar-se a inutilidade ou a futura contradição prática do julgado,  e já não para evitar  a sua contradição lógica, teórica ou técnica.

II - Assim, e não se vislumbrando tal inutilidade ou contradição prática, a decisão produz o seu efeito útil normal, se, perante os elementos do processo introduzidos pelo autor:  réus, causa de pedir e pedido, se concluir que ela – e  mesmo que não vincule possíveis restantes interessados que não estejam na causa -, se mostra susceptível de regular definitivamente a situação concreta das partes perante o pedido.

III - Pedido o reconhecimento do direito de propriedade contra certos réus e o levantamento de penhoras existentes sobre um determinado imóvel, o facto de existir uma penhora a favor da Fazenda Nacional (FN), cuja competência para o levantamento cabe aos tribunais administrativos e fiscais, não impede a prolação de decisão com efeito útil normal em relação ao levantamento das outras penhoras.

IV- A intervenção da Fazenda Nacional no processo, por iniciativa oficiosa, não era exigível e a sua posterior absolvição da instância, por incompetência material do tribunal comum para o pedido de levantamento da penhora a favor de tal entidade, não determina a absolvição dos restantes réus.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

 R... UNIPESSOAL, LDA. instaurou contra  C..., CRL, S..., SA, AA e BB,  sendo que posteriormente foi admitida como Interveniente Principal, no lado passivo, a  FAZENDA NACIONAL (ESTADO PORTUGUÊS), ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu:

a) A condenação dos réus a reconhecerem o seu direito de propriedade  de 2/3 do prédio  rustico  sito em ..., na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19 e inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ...06º, nomeadamente, as que compõe a zona fabril de com 492m2, telheiros com 197m2, zonas administrativas com 70m2 e arrecadação com 27m2;

b) A condenação dos réus a procederem ao levantamento de toda e qualquer penhora que tenham requerido sobre as construções em causa e penhora sobre o prédio urbano constante do auto de penhora, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...17º da freguesia ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o n.º ...35.

c) Serem anulados cancelados todos os registos efetuados referentes à inscrição do prédio na repartição de finanças sob o artigo ...17º da freguesia ..., concelho ...  e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...34.

Alegou:

É proprietária, por compra e usucapião, do imóvel  rústico e respetivas construções que a Autoridade Tributária penhorou indevidamente.

Foi apresentada contestação por alguns réus.

Pelo Ministério Público, em representação do Estado Português – Autoridade Tributária -,  foi  invocada a incompetência absoluta do tribunal comum em razão da matéria.

Alegando essencialmente:

O pedido de condenação do Estado Português para proceder ao levantamento de uma penhora fiscal que incidiu sobre um prédio urbano que identifica, bem como, a anulação/cancelamento dos registos referentes à inscrição oficiosa desse prédio pelo serviço de finanças de ... decorre, tal como a Autora o configura, de relações jurídicas estabelecidas entre a administração fiscal e um privado, cuja resolução de litígios, cabe, nos termos do art. 212.º, da Constituição da República, aos tribunais administrativos e fiscais ao plasmar no seu n.º 3 “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

2.

Seguidamente foi proferida sentença na qual se decidiu:

«Nos termos e fundamentos expostos:

- Ocorre a excepção dilatória, insuprível, de incompetência absoluta em razão da matéria e, em consequência,

- Declara-se o presente Juízo Central Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente acção e, em consequência, absolvem-se os Réus da instância.»

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – A Autora intentou a presente acção declarativa de condenação, em processo comum contra a C..., CRL, S..., SA, AA e mulher BB.

2 – Em 23/05/2019, veio o Tribunal proferir despacho com a referência 91124531 onde, veio convidar a Autora a requerer a intervenção principal provocada passiva dos demais titulares de ónus e encargos inscritos sobre o prédio em causa nos presentes autos, ou seja, da Fazenda Nacional e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS).

3 -Em resposta, veio a aqui Autora, através de requerimento junto aos autos em 01/06/2019, informar os autos que já havia apresentado junto do órgão respectivo os embargos de terceiro contra a Fazenda Nacional e contra o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS),

4 – Encontrando-se, nessa altura, a correr os respectivos processos, respectivamente, na ... do Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o n.º 1687/15.... e na Unidade Orgânica 4 do mesmo Tribunal Administrativo e Fiscal ... sob o n.º 97/17...., onde, neste, havia já sido proferida sentença onde julgou procedentes os embargos, ordenando-se o levantamento da penhora.

5 – Posteriormente, veio também a ser proferida sentença no âmbito do processo n.º 1687/15.... onde julgou procedentes os embargos deduzidos ordenando-se o levantamento de uma das penhoras inscritas no prédio a favor da Fazenda Nacional,

6 – Actualmente, encontra-se ainda a correr novo Processo de Embargos de Terceiro, tendo o mesmo objecto e pedido o dos presentes autos, em que é embargante a Autora e embargada a Fazenda Nacional, onde se peticiona o levantamento de uma segunda penhora posteriormente inscrita a favor da Fazenda Nacional, conforme documento n.º1 que ora se junta,

7 – Mas que, atendendo à decisão proferida no âmbito daquele processo n.º 1687/15.... e à autoridade do caso julgado (na medida em que as partes e o objecto são os mesmos), tudo se espera que os embargos venham de igual forma a serem julgados procedentes, pelo que será apenas uma questão de tempo.

8 – Daí que, com a sentença agora proferida nos presentes autos, absolvendo-se todos os Réus da instância, obrigará a Autora a intentar contra todos eles, incluindo a Fazenda Nacional, nova acção no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., o que levará, necessariamente, à excepções de litispendência e/ou caso julgado quanto à Fazenda Nacional, o que não faz qualquer sentido.

9 – O que o Tribunal poderia e deveria ter feito, era absolver da instância a Ré Fazenda Nacional, na medida em que contra ela já correram ou correm os respectivos processos no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., mantendo-se no entanto a instância contra os restantes Réus C..., CRL, AA e BB,

10 – Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação ... de 29/06/2017 “É o Tribunal de 1ª instância absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção relativamente aos Réus Fundo de Resolução, ...), sendo competentes os Tribunais administrativos, tal circunstância não afastanto a competência do Tribunal «a quo» relativamente aos demais réus, antes conduzindo, apenas, à absolvição dos indicados Réus da instância”.

11 – Ao assim decidir, violou a sentença proferia, entre outros, os artigos 4º n.º 1 e 117º n.º 1 alínea a) da LOSJ, 212º da CRP, pelo que deve ser revogada e substituída por uma outra onde absolva a Fazenda Nacional da instância, mas considerando-se materialmente competente para decidir e prosseguir com a acção contra os restantes Réus C..., CRL, AA e BB.

Inexistiram contra alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Ilegalidade de da decisão na parte em que, além da FN,  absolveu  da instância os Réus C..., CRL, AA e BB.

5.

Os factos a considerar são os dimanantes do relatório supra e, ainda, os atendidos pelo Sr. Juiz a quo, a saber.

- Consta inscrição do prédio urbano para efeitos de tributação por imposto municipal sobre imóveis (IMI) e a penhora do mesmo teve lugar  pelo serviço de finanças de ..., sendo esta última diligência no âmbito de um processo de execução fiscal que correu termos no TAF ... sob o nº1687/15...., cuja competência é da repartição de finanças.

- Correram termos de embargos de terceiro em execução fiscal.

6.

Apreciando.

O Sr. Juiz decidiu nos seguintes, essenciais, termos:

«…embora com a presente acção judicial a Autrora reivindique o direito de propriedade sobre as construções existentes no imóvel, o certo é que ao pretender anular e cancelar a penhora do prédio inscrito oficiosamente pela Autoridade Tributária (ATA) como prédio urbano proveniente das aludidas construções, tal configura um litígio que decorre de uma relação jurídica de natureza fiscal ou administrativa, por isso, este tribunal judicial é materialmente incompetente para julgar a presente acção judicial, atentas as matérias em discussão (arts. 96.º alínea a), 97.º n.º 2 e 98.º do C.P.Civil), sendo competentes os tribunais fiscais e administrativos.

Além disso, não pode ser julgada a matéria em causa sem a intervenção do Estado Português.».

(sublinhado nosso)

Dilucidemos.

6.1.

A génese juridicamente patológica do caso derivou dos despachos anteriores que entenderam que, pelo facto de existirem penhoras sobre os imóveis a favor da Fazenda Nacional e da Segurança Social, estas entidades tinham de intervir no processo, para que a decisão pudesse produzir o seu efeito útil normal – artºs 33º nºs 2 e 3 do CPC.

Ou seja, considerou-se ser um caso de litisconsórcio necessário.

Mas o facto de a relação jurídica material controvertida afetar os interesses de várias pessoas não determina, só por si, a necessidade de intervenção de todos os interessados.

A regra é a do litisconsórcio voluntário em que os sujeitos da relação podem intervir, ou não, em conjunto - artº 32º do CPC.

 Isto em homenagem e respeito pela autonomia da vontade em sede de direitos disponíveis e de cariz privado.

Destarte, o litisconsórcio necessário tem caráter excecional e só é admitido em três situações:

I) quando a lei  o impuser;

II) quando o negócio jurídico o impuser;

III) quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

Está aqui em causa esta última hipótese.

A Lei – artº 33º nº 3 -  define e concretiza este conceito de efeito útil normal, nos seguintes termos:

«A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.»

Ora: 

«A norma do nº 3 não trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias, nos seus fundamentos, mas o de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não podem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.

A pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o.»  - Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, p. 78.

Dito de outra forma, procura-se evitar que a sentença nem sequer entre os sujeitos vinculados consiga produzir o seu efeito útil normal, o qual consiste na composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido formulado.

Ou seja:

« A concepção de “efeito útil normal” tem o sentido de que só haverá litisconsórcio necessário quando a decisão que vier a ser proferida não possa persistir inalterada quando não vincule todos os interessados pois o que se pretende é que não sejam proferidas decisões que praticamente venham a ser inutilizadas por outras proferidas em face dos restantes interessados, por virtude de a relação jurídica ser de tal ordem que não possam regular-se inatacavelmente as posições de alguns sem se regularem as dos outros.» - Ac. RL de  de 15.03.2006, p. 11920/2005-4 in dgsi.pt.

(sublinhado nosso)

Entende-se, maioritariamente, que esta conceção e substanciação do «efeito útil normal»  é a consagrada no aludido segmento normativo.

A qual se apresenta como uma interpretação mais restrita relativamente a outra, mais ampla, que alguns defendem.

Esta conceção mais abrangente  considera que o «efeito útil normal», não se afere apenas por querer evitar a inutilidade ou a futura contradição prática do julgado, mas outrossim visa evitar  a sua contradição lógica, teórica ou técnica – cfr. Ac. RL de 09.11.2017, p. 3831/15.... e doutrina ali cit.

6.2.

No caso vertente, e ao abrigo da aludida conceção mais restrita, à qual aderimos, verifica-se que inexistia necessidade de intervenção da Fazenda Nacional para assegurar o efeito útil normal da decisão que viesse a ser proferida.

Naturalmente que a  possibilidade da consecução deste efeito útil tem de ser  perspetivada e avaliada em função dos elementos do processo  - os réus, a causa de pedir e os pedidos –  nele introduzidos  pela autora.

Ora esta pede, nuclear e essencialmente, a declaração do seu direito de propriedade relativamente a certo imóvel e a condenação de certos e determinados  réus a reconhecerem-lho.

A autora definiu os réus e, com base nos fundamentos aduzidos, compra e venda e usucapião, contra eles formula tal pedido bem como os pedidos secundários daquele pedido principal  dimanantes e dependentes.

Por conseguinte, a autora definiu os elementos do processo, e, perante eles, a decisão que venha a ser proferida «regula definitivamente a situação concreta das partes» e, assim, produz o seu efeito útil normal entre estas.

O facto de existirem outros interessados  no objeto da lide não obsta a esta conclusão, pois que é a própria lei que  admite que tal possa acontecer: «não vinculando embora os restantes interessados».

Ou seja, mesmo a existirem tais interessados, a decisão produz o seu efeito útil normal desde que seja suscetível de «regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.»

No caso  sub judice assim é ou pode ser.

A decisão que, eventualmente, venha a reconhecer à autora, contra os réus demandados, o seu direito de propriedade, fica definitiva quanto a este pedido.

 Pois que não se antolha, pelo menos por via de regra e em termos de normalidade, como é que a Fazenda Nacional (infra FZ) apenas titular de um direito – penhora – sobre o imóvel, pode (ou, inclusive, tem interesse) contrariar tal reconhecimento.

E o facto de existirem tais penhoras a favor da FN não altera os dados da questão, antes é por eles abrangido.

A autora pede o levantamento das penhoras apenas contra os réus demandados, pelo que só as penhoras que a eles digam respeito são abrangidas e podem ser afetadas.

As penhoras a favor da FN já não o são.

Este assunto  tem de ser decidido nos tribunais competentes: os administrativos, como foi decidido pelo Sr. Juiz a quo e  com cuja decisão, neste particular, as partes se conformaram.

Aliás, e segundo a autora, o que já está a acontecer.

Mas tal em nada afeta o efeito útil da decisão a proferir na presente ação.

Pois que, quanto às penhoras, estamos perante pedidos diferentes relativos a credores diferentes e que, assim, podem, e até devem  - porque a jurisdição é diversa - serem decididos autonomamente em sede própria.

Do que tudo emerge que, se assim é quanto à menos curial decisão da existência de litisconsórcio necessário,  outrossim, por igualdade ou maioria de razão -  argumento a fortiori -  a decisão  recorrida, na parte em que absolveu todos os réus da instância com base na incompetência material, merece censura, pois que esta absolvição apenas se impõe quanto  à Fazenda Nacional, a qual, aliás, e como se viu, nem deveria ter sido introduzida nos autos.

E, ademais, porque a absolvição da instância de um dos réus não acarreta, inexoravelmente, e por simples arrastamento, a absolvição dos restantes co-réus, o que apenas poderá acontecer se entre todos os réus existir uma indissociável ligação ao objeto do processo que não permita um julgamento em separado, ou relativamente a todos se verificar o legal requisito para o efeito.

Procede o recurso.

7.

(…)

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a decisão, e ordenar a continuação do processo quanto aos réus inicialmente demandados.

Custas recursivas a final pelo vencido ou na proporção da respetiva sucumbência.

Coimbra, 2022.04.05.