Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
457/18.3T8LMG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASAMENTO
SEPARAÇÃO DE PESSOAS E BENS
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DE LAMEGO DO TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1.º, N.º 2, DA LEI Nº 7/2001, DE 11 DE MAIO
ARTIGO 2020.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Duas pessoas casadas entre si, ainda que separadas judicialmente de pessoas e bens, nunca podem considerar-se unidas de facto para efeitos da legislação referente às medidas de protecção das uniões de facto.
Decisão Texto Integral:

                       

                        Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


                       A...., B.... e C.... apresentaram petição inicial para impulsionar a fase contenciosa da presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra D.... - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, formulando o seguinte pedido:

                        “- Deve a RR. ser condenada a reconhecer como acidente de trabalho o acidente em causa nos autos de que o sinistrado foi vítima, as lesões por este sofridas, e o nexo de causalidade entre estas e o acidente;

                        - Devem os AA. ser reconhecidos como beneficiários do sinistrado; e, nessa medida,

                        - Deve a R. ser condenada a pagar aos AA., a quantia global de € 149.852,26 (cento e quarenta e nove mil oitocentos e cinquenta e dois euros e vinte e seis cêntimos), a título das pensões, subsídio e prestações que a seguir se descriminam, às quais acrescem juros de mora, contados à taxa legal, desde o seu vencimento até efectivo e integral pagamento:

                        i) € 2.339,40 (dois mil trezentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos) de pensão anual e vitalícia, a partir do dia 9 de Janeiro de 2020, obrigatoriamente remível, à 1.ª A., cuja origem melhor se descrimina em 51. da p.i.;

                        ii) € 3.119,20 (três mil cento e dezanove euros e vinte cêntimos) de pensão anual e vitalícia, a partir do dia 9 de Janeiro de 2020, obrigatoriamente remível, aos 2.º e 3.º AA., cuja origem melhor se descrimina em 52. da p.i.;

                        iii) € 5.661,48 (cinco mil seiscentos e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos) a título de subsídio por morte, cabendo metade à 1.ª A. e metade aos 2.º e 3.º AA., cuja origem melhor se descrimina em 53. da p.i.;

                        iv) € 11,40 (onze euros e quarenta cêntimos) referentes a despesas de transporte para deslocação dos AA. ao Tribunal para estarem presentes na tentativa de conciliação, cuja origem melhor se descrimina em 54. da p.i.;

                        v) € 62,50 (sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos) relativos a taxas moderadoras das consultas de medicina geral e família e do atendimento de urgência e com os meios complementares de diagnóstico e terapêutica empregues durante as idas do sinistrado ao S.U.B. de ...., ao Centro de Saúde de ...., e ao CHTV, suportadas na íntegra pelos AA., cuja origem melhor se descrimina em 57. da p.i.;”.

                        Mais tarde, foi junta ao processo a certidão da sentença transitada em julgado que decretou o divórcio entre a 1.ª Autora e o sinistrado.

                        A Ré apresentou contestação, concluindo pela improcedência da acção.

                        Na audiência de julgamento, “Pela Ré seguradora foi dito que assume os seguintes pagamentos:

            - Reconhece a qualidade de beneficiário de B.... e, uma vez que o mesmo já é maior e terminou os seus estudos em julho de 2018, aceita pagar a pensão anual e temporária que é devida a partir de 09-01-2018 até julho de 2018, calculada com base em 40% da retribuição anual do sinistrado (artº 60º da LAT);

                        - Reconhece a qualidade de beneficiário de C...., e uma vez que o mesmo atingiu a maioridade e terminou os seus estudos no ano lectivo de 2019/2020, mais concretamente em julho de 2020, aceita pagar a pensão anual e temporária que lhe é devida a partir de 09-01-2018 até julho de 2020, calculada com base em 40% da retribuição anual do sinistrado, (artº 60º da LAT);

                        - Aceita pagar a estes dois beneficiários o subsídio por morte, no valor de €5.661,48 (cinco mil seiscentos e sessenta e um euros e quarenta e oito cêntimos);

                         - Aceita pagar a estes beneficiários as taxas moderadoras no valor de €62,50 (sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos) e, bem assim, as despesas de deslocação obrigatórias, no valor de €11,40 (onze euros e quarenta cêntimos).

                        Seguidamente, pela Srª Juíza foi proferido o seguinte despacho:

                        “Tendo em consideração o acima exposto, por desnecessário, aos temas de prova haverá que subtrair a discussão relativa ao reconhecimento da qualidade de beneficiários legais de B.... e C.... para efeitos de reparação emergente de acidente de trabalho relativamente, retirando-se as demais consequências na sentença a proferir, prosseguindo o julgamento relativamente às demais questões suscitadas nos autos”.

                        E, na sequência de requerimento da Autora – A... a solicitar ”a inquirição das testemunhas E.... e F...., prescindindo das demais testemunhas arroladas no requerimento probatório”, foi proferido o seguinte despacho:

                        “Face ao que ficou já consignado em ata, ou seja, relativamente à qualidade de beneficiários de dois dos Autores, ou seja aos filhos do Sinistrado, relativamente aos quais se considerou já não haver nada a discutir em sede de audiência de discussão e julgamento, mas ficando ainda controvertida a matéria relativa, não só à qualidade ou não de beneficiária da Autora, bem como o nexo de causalidade entre a causa da morte do sinistrado e as lesões / sequelas derivadas do acidente de trabalho sofrido pelo mesmo, e consequentemente quais os danos a reparar, a quantificação das prestações devidas aos Autores/beneficiários e à responsabilidade das prestações devidas aos mesmos, as partes relativamente à matéria do nexo causal e demais consequências, desde logo, implicitamente aceitam já o que existe nos autos, razão pela qual prescindiram já da audição de testemunhas, à exceção da Autora que, entendendo relativamente ao tema de prova que diz respeito à sua qualidade ou não de beneficiária por força da união de facto que invoca neste processo, requereu prova testemunhal, ou seja, a audição de duas das testemunhas indicadas nos autos pela mesma, quanto a essa e só quanto a essa matéria, ao que a Ré se opõe.

                        Efectivamente, concordando com a Ré, face à prova plena, que consubstancia a certidão junta aos autos da sentença proferida, relativamente à situação da Autora com o Sinistrado falecido, ou seja, sentença que decretou o divórcio entre ambos, proferida pelo Tribunal de Família e Menores de Lamego, sentença essa já transitada em julgado, afigura-se-nos que efectivamente e nos termos do artigo 393º, n.º 2 do Código Civil, não é admissível prova testemunhal, pelo que se indefere a audição das testemunhas a esta concreta matéria factual”.
                                                                       x
                        Inconformados, vieram os Autores  interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

                        (…)


x

                        Definindo-se o âmbito do recurso pelas suas conclusões,  temos, como questões em discussão, a de saber se:

                   - foi violado o princípio do contraditório;

                         - é admissível prova testemunhal sobre se à data do acidente a Autora – A.... vivia em união de facto com o sinistrado e, em caso afirmativo, desde quando.
                                                                  x
                        Como factualidade relevante temos a descrita no relatório deste acórdão.

                                                                       x

                        - o direito:

                        Estando em causa a produção de prova testemunhal referente ao tema de prova de “saber se, à data do acidente a Autora vivia em união de facto com o sinistrado e, em caso afirmativo, desde quando”, verifica-se que abordagem de tal questão se apresenta como manifestamente inútil, já que a respectiva resposta positiva, no sentido de ser admissível essa produção e vir-se a efectivar a realização da mesma, em nada iria alterar  a não qualificação  da Autora - A.... como beneficiária legal.

                        Foi dado cumprimento ao disposto no artº 655º, nº 1, do C.P.C.

                        Dispõe o artº 57º, nº 1, da LAT- Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, que “Em caso de morte, a pensão é devida aos seguintes familiares e equiparados do sinistrado:
                        a) Cônjuge ou pessoa que com ele vivia em união de facto;

                        (...)”.
                        O nº 3 do referido artº 57º da LAT, na definição do que se deve considerar pessoa a viver em união de facto,  estabelece que é aquela que “preencha os requisitos do artigo 2020º do Código Civil”.
                        O nº 1 do artº 2020º do Código Civil, na redacção vigente aquando da publicação da LAT, dispunha que “aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a...”.

                        Esse artigo foi alterado pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, passando a dispor o seu nº 1 que “o membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.

                        A Lei nº 7/2001, de 11/05, que adoptou medidas de protecção das uniões de facto, veio prescrever, no seu artigo 1º, nº 1, que as pessoas que, independentemente do sexo, vivam em união de facto há mais de dois anos, têm direito à protecção prevista na mesma lei.
                        O nº 2 desse artº 1 da Lei nº 7/2001 foi objecto de alteração pela  Lei nº 23/2010, passando a dispor que “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
                        Assim para que a Autora – A.... pudesse ser considerada como “pessoa que vivia em união de facto com o sinistrado” teria que estar  demonstrado que vivia “em condições análogas às dos cônjuges com o sinistrado há mais de dois anos”.
                        E é essa demonstração que a Autora está impedida de alcançar.

                   O Prof. Pereira Coelho, in RLJ, ano 120, pag. 85, a propósito da vida em comum, em condições análogas às dos cônjuges, escreveu:

                        “Falando a lei em vida em comum, em condições análogas às dos cônjuges, o art. 2020º, não pode pois deixar de referir-se à comunhão more uxorio, em que o homem e a mulher vivem como se casados fossem, apenas com a diferença…de que o não são, ou seja, de que não estão vinculados pelo casamento. Mantendo essa diferença fundamental em relação à comunhão conjugal, a comunhão more uxorio é todavia materialmente e sociologicamente igual a ela, devendo, pois, a coabitação entre os sujeitos da relação compreender os três aspectos em que se desdobra o dever de coabitação no âmbito do matrimónio (art. 1672º): comunhão de leito, de mesa, e de habitação”

                        Como se afirma no Ac. desta Relação de 25/10/2011 (relatora Sílvia Pires), disponível em www.dgsi.pt, o que releva é que, embora não estando sujeitos a deveres nesse sentido, os unidos de facto adoptaram espontaneamente um modo de relacionamento que os faz cair numa situação “análoga à dos cônjuges”. Analogia que se estende a todas aquelas esferas que são denotadas quando a relação, tanto a conjugal como a de união de facto, é qualificada como de “vida em comum”. A união de facto não é uma pura e imaterializada “comunidade de afecto”. Ela corporiza-se em laços reais entretecidos por uma constante e duradoura entreajuda e comunhão de interesses, sem as quais não há união. O ser esta de facto não a diferencia, no plano da realidade relacional, de uma união juridicamente vinculada, pelo casamento.
                         A união de facto há-de ser uma relação entre duas pessoas que revista informalmente características próximas e similares das do casamento, e, portanto, pressupõe que as pessoas unidas em tal relação possuem interesse pessoal recíproco alimentado por alguma espécie de sentimento ou afectividade que as leva a concertar um modo de vida comum, a existirem um com o outro, a estarem disponíveis para se darem um ao outro pessoal, física e economicamente. Tal como as relações de casamento formal podem revestir as mais variadas características de co-existência das pessoas casadas, também as uniões de facto não têm de se reconduzir a um padrão único de relacionamento a dois, melhor dizendo a uma forma de relacionamento que deva reunir as características socialmente consideradas normais de uma relação uxória entre duas pessoas.

                        Como bem se refere na sentença proferida no processo nº 727/12.4TTVNG, junta aos autos, o reconhecimento de eficácia jurídica à comunhão de leito, mesa e habitação pressupõe assim, desde logo, a verificação de dois requisitos positivos: a existência de comunhão de leito, mesa e habitação, ou seja, vivência em condições análogas às dos cônjuges, e a duração mínima de dois anos (artº 1º, nº 2, da Lei nº 7/2001).

                        Ora, o que resulta dos autos é que, tenho a vítima falecido, em consequência de acidente de trabalho, em 8 de Janeiro de 2018, se encontrava divorciado da Autora desde 24 de Fevereiro de 2017, pelo que não decorreu o lapso temporal de dois anos entre os dois eventos.

                        E, também como acertadamente se desenvolve na sentença, que merece o nosso inteiro acolhimento, “a união de facto é a “situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivem em condições análogas às dos cônjuges”, o que não se verifica in casu, porquanto, Autora e sinistrado eram efetivamente cônjuges – não viviam em situação análoga à dos cônjuges.

                        Não se encontra, assim, preenchido, o primeiro requisito material de que a lei faz depender a aplicação da Lei nº 7/2001 e dos restantes instrumentos jurídicos destinados à proteção dos unidos de facto.

                        À Autora e ao sinistrado terá de se aplicar o regime jurídico do casamento, com os efeitos legalmente instituídos, uma vez que a separação decretada não dissolveu o vínculo conjugal e não é juridicamente possível os cônjuges manterem, em simultâneo, o estatuto jurídico de casado e de unido de facto. Se estão casados – ainda que separados de pessoas e bens – não vivem em união de facto (para o efeito de beneficiarem dos efeitos jurídicos a esta aplicáveis). A união de facto pressupõe, pela sua própria natureza, que os conviventes não estejam ligados entre si pelo vínculo do casamento (ainda que atenuado pela separação de pessoas e bens).

                        Se os cônjuges separados de pessoas e bens, vêm mais tarde a restabelecer a vida em comum, exercendo em pleno os direitos e deveres conjugais, devem regularizar o seu estatuto perante a entidade competente, a fim de a nova situação jurídica produzir efeitos em relação a terceiros, declarando por termo no processo de separação a sua reconciliação ou celebrando escritura pública, sujeita a homologação pelo conservador competente, sendo a decisão oficiosamente registada – cfr. art. 1795.º-C do Código Civil – não sendo lícito invocar o estatuto jurídico da união de facto”.
                        Como tal, a produção de qualquer tipo de prova, designadamente testemunhal e pressupondo a sua admissibilidade legal,  de que se após o divórcio a Autora e o sinistrado viviam em união de facto, e por não terem passado entretanto os dois anos legalmente previstos e exigidos, revelar-se-ia como completamente inútil, sendo um acto proibido por lei- artº 130º do CPC, dado que nunca seria de reconhecer à Autora a qualidade de beneficiária legal.
                        Com o consequente não conhecimento do recurso.

                                                                       x

                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em não tomar conhecimento do recurso.

                        Custas pelos Autores – apelantes.

                                                           Coimbra, 15/12/2021