Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
278/10.1TBFND-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CRÉDITO LABORAL
GARANTIA
HIPOTECA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Data do Acordão: 06/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 377º DO CÓDIGO DE TRABALHO DE 2003; 333º DO CÓDIGO DE TRABALHO DE 2009; 751º CC.
Sumário: I – Sendo a declaração de insolvência datada de 17/09/2010, dúvidas não pode haver sobre o tipo de privilégio de que gozam os créditos laborais reclamados e reconhecidos em relação ao único imóvel apreendido para a massa insolvente – é o privilégio imobiliário especial, resultante dos artºs 377º, nº 1, al. b) do Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 (que entrou em vigor em 01/12/2003, embora o novo regime dos privilégios imobiliários que servem de garantia aos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores, previsto no citado artº 377º apenas tenha entrado em vigor em 28/08/2004, atento o disposto nos artºs 3º, 8º, nº 1 e 21º, nº 2, als. e) e f) da Lei nº 35/2004, de 29/08, que regulamentou a Lei nº 99/2003) e 333º do Código de Trabalho vigente, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02.

II - Os créditos dos trabalhadores passaram, com o Código do Trabalho de 2003, a gozar, ao invés do que antes sucedia, de privilégio imobiliário especial (sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade), tendo ficado, dessa forma, claramente abrangidos pela letra do artº 751º do CC, na redacção saída do Dec. Lei nº 38/2003, de 08/03, quando estatui que «os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiriram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».

III – De modo que, sendo os privilégios creditórios imobiliários especiais uma garantia mais forte do que a hipoteca, os créditos dos trabalhadores reclamantes devem ser graduados à frente de todos os demais créditos, apesar de estes se (poderem) mostrar(em) garantidos por hipoteca voluntária anteriormente constituída.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

            No Tribunal Judicial da Comarca do Fundão corre termos o processo de insolvência com o nº 278/10.1TBFND, em que foi declarada insolvente, por sentença de 17/09/2010, transitada em julgado em 14/10/2010, a sociedade “C…, L.dª “, com sede em...

            Instaurado o respectivo apenso de reclamação de créditos, foi nele proferida sentença de verificação e de graduação dos ditos e a propósito do que nela se escreveu o seguinte:

“No presente processo de insolvência, por despacho proferido na tentativa de conciliação que antecedeu, foram julgados verificados todos os créditos reclamados.

Subsiste, todavia, a questão do privilégio creditório reconhecido pelo Sr. Administrador aos trabalhadores por reporte ao imóvel da insolvente, verba 1 dos bens apreendidos.

É esta questão que ora nos cumpre decidir.

Assim, pelo credor Banco…, foi sustentado, em síntese, que foi atribuído ao conjunto dos créditos laborais o privilégio creditório imobiliário especial constante do artigo 333º do Código de Trabalho (certamente referente ao único imóvel apreendido à insolvente), sendo que tal entendimento não deve merecer deferimento; primeiro, não se mostra alegado que todos esses trabalhadores, cujos créditos foram reclamados, trabalhavam no imóvel apreendido e identificado no inventário de bens apreendidos à insolvente como verba 1; segundo importa lembrar que o privilégio creditório imobiliário especial surge com o Código de Trabalho de 2003 – Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, que entrou em vigor em 1 de Dezembro desse mesmo ano, sendo que tal entendimento legislativo não deve prevalecer sobre o valor da segurança jurídica sem a qual o necessário tráfego negocial ficaria posto em causa; é que a reclamante celebrou com a insolvente contrato de hipoteca que registou em 19 de Dezembro de 2002 (cfr. certidão predial com o código PP-0359-90198-050417-000722), sendo que nessa data a exponente não poderia prever a alteração legislativa que se avizinhava nem tal lhe seria exigível, pelo que não pode assim ser aplicada à situação aqui em apreço qualquer norma que institui o privilégio creditório imobiliário especial aqui em causa, pois estas só se deverão aplicar a situações constituídas após a sua vigência; assim se tem igualmente entendido a questão jurisprudencialmente (cfr. Acórdão da Relação de Coimbra do processo 412-A/2000.C1, datado de 20 de Abril de 2010, in www.dgsi.pt).

Conclui referindo que os créditos laborais reconhecidos nos presentes autos, por reporte ao bem imóvel, devem ser graduados depois do crédito hipotecário reconhecido à requerente.

Respondeu apenas o Sr. Administrador, alegando que é certo que o contrato de hipoteca foi celebrado em 19 de Dezembro de 2002, enquanto que os privilégios dos créditos emergentes do contrato de trabalho gozam de privilegio mobiliário e imobiliário geral, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 4° da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, alíneas a) e b).

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Não foi apresentada qualquer impugnação destes (ou de outros) créditos.

*

Para a massa insolvente foram apreendidos um bem imóvel e bens móveis (cfr. respectivo apenso).

*

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

Não há nulidades que invalidem todo o processo.

As partes gozam de personalidade, de capacidade judiciária e são legítimas.

Não há outras excepções, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

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Estipula o nº 3 do artigo 130º do C.I.R.E. que “se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista”.

No caso em apreço, uma vez que os créditos que constam da lista de créditos reconhecidos não foram impugnados, já foi homologada a lista de credores reconhecidos.

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Aqui chegados cumpre proferir sentença que gradue os créditos reconhecidos em harmonia com as disposições legais.

Uma vez indicados os créditos verificados, cumpre proceder à graduação dos mesmos, sendo certo que a massa insolvente é constituída por bens móveis e um imóvel.

Ora, em regra, todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor, sendo este o denominado princípio da par conditio creditorum.

Esse princípio corporiza-se no artigo 604º, nº 1 do Código Civil (C.C.): «Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos».

Porém, é muito frequente que um ou mais credores tenham direito a ser pagos preferencialmente por alguns dos bens ou por todos os bens do insolvente.

Deve, especialmente, enfatizar-se que as garantias e privilégios creditórios constituem excepções àquele princípio de igualdade dos credores perante o património do devedor, pelo que as normas que os tutelam devem ser interpretadas de acordo com a regra enunciada no artigo 11º do Código Civil.

A repartição dos credores por classes no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (C.I.R.E.) é justificada pela consideração da diversidade de situações em que podem encontrar-se os titulares dos créditos sobre o insolvente e na necessidade de lhes dar um tratamento adequado à sua natureza.

E a definição da prioridade dos créditos para serem pagos opera-se através da verificação e graduação dos créditos, procedimentos estes de natureza declarativa, previstos no Capítulo I do Título V do aludido Código.

De forma inovadora, o C.I.R.E. introduz as «classes de créditos».

Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência e tais créditos são denominados como créditos sobre a insolvência (artigo 47º nºs 1 e 2).

Os “créditos sobre a insolvência” não se confundem com os “créditos sobre a massa insolvente”, previstos no artigo 51º.

Os créditos sobre a insolvência são:

- Créditos «garantidos» e «privilegiados», os créditos e respectivos juros que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais e de privilégios creditórios gerais sobre os bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalentes (artigo 47º, nº 4, alínea a));

- Créditos «subordinados», os créditos enumerados no artigo 48º, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência (alínea b));

- Créditos «comuns», os demais créditos (alínea c)).

Dito de outro modo:

- Os créditos garantidos são os que beneficiam de garantias reais, neles se incluindo os créditos que beneficiam de privilégios creditórios especiais previstos no Código Civil;

- Os créditos privilegiados são os que beneficiam de privilégios gerais, mobiliários e imobiliários;

- Os créditos comuns são os que não beneficiam de garantias, nem privilégios, nem subordinados, sendo pagos depois dos antecedentes; e

- Os créditos subordinados são os que são pagos depois de todos os restantes créditos, incluindo os comuns.

A classificação dos créditos tem influência directa na graduação respectiva dos mesmos para pagamento, liquidada que seja a massa insolvente.

- Os Créditos Laborais.

Justifica-se uma referência aos créditos laborais, porque tais créditos se apresentam a concurso na grande maioria dos processos de insolvência, tal como no caso vertente.

Os créditos e respectivos juros, emergentes de contrato individual de trabalho, já previstos na Lei n.º 17/86, de 14-07, gozavam de privilégios mobiliário e imobiliário (artigo 12º, nº 1, alíneas a) e b)).

Os créditos com privilégio imobiliário geral graduavam-se antes dos créditos previstos no artigo 747º do C.C., mas pela ordem enunciada no artigo 737º do mesmo diploma.

Os créditos com privilégio imobiliário geral graduavam-se antes dos créditos referidos no artigo 748º e dos créditos da segurança social.

Os créditos e respectivos juros emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação, não abrangidos pela Lei n.º 17/86, gozavam também de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário geral, graduando-se os créditos de forma idêntica à descrita na Lei n.º 17/86 (artigo 4º da Lei n.º 96/2001, de 20-08).

Entretanto, em 1 de Janeiro (deve ler-se Dezembro) de 2003 entrou em vigor o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.

A regra geral é da que ficam sujeitos ao regime jurídico do Código do Trabalho, os contratos de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor (artigos 8º, nº 1 da referida Lei nº 99/03 e 12º, nº 2, parte final do C.C.).

Por sua vez, nos termos do artigo 21º, nº 2, alíneas e) e t) da citada Lei, com a entrada em vigor das normas regulamentares são revogadas as Leis nº 17/86, de 14-06 (lei dos salários em atraso) e a Lei nº 96/01, de 20-08 (privilégios creditórios).

Ora, as normas regulamentares referidas são as constantes da Lei nº 99/03, de 29-07, que regulamenta o Código do Trabalho, a qual entrou em vigor em 29-08-2004 (artigo 3º).

Concluindo, a revogação das Leis nº 17/86 e nº 96/01 operou-se a partir da referida data de 29-08-2004, vigorando a partir de então o regime dos privilégios creditórios previstos no artigo 377º do Código do Trabalho.

O citado artigo 377º estabelece que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios:

- Privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes dos créditos referidos no artigo 748º do C.C. e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

O novo regime alarga o âmbito dos privilégios creditórios a todos os “créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador”, eliminando a exclusão relativa aos créditos mencionados no nº 2 do artigo 4º da Lei nº 96/01 (os créditos de carácter excepcional).

Em segundo lugar, os créditos laborais que gozam de privilégio mobiliário geral são graduados antes dos referidos no artigo 747º, nº 1 do C.C., o que significa que prevalecem sobre todos os restantes créditos com privilégio mobiliário geral e mobiliário especial, com excepção dos créditos por despesas de justiça (artigo 746º do referido diploma).

Finalmente, a inclusão de um privilégio imobiliário especial, se bem que reduza os bens afectos à garantia do crédito (são apenas os bens imóveis nos quais o trabalhador presta a sua actividade, em lugar de todos os bens imóveis que ficavam afectos no regime da Lei 17/86 e Lei 96/91), reforçará a garantia do pagamento dos créditos, na medida em que se lhe aplicará o regime do artigo 751º do C.C., por força do qual preferirão sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiro.

A graduação dos créditos é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios.

Na graduação não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente de penhora, mas as custas pagas pelo Autor ou Exequente constituem dívidas da massa insolvente (artigo 140º).

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Estando a graduação preconizada a fls. 17 e 18 conforme o acima exposto, importa apenas que apreciemos o sobredito privilégio creditório laboral por contraponto com a garantia real de que goza o reclamante sobre o imóvel apreendido.

Ora, como acima se deixou consignado, a inclusão de um privilégio imobiliário especial a favor dos trabalhadores, se bem que reduz os bens afectos à garantia do crédito (são apenas os bens imóveis nos quais o trabalhador tenha prestado a sua actividade), reforça a garantia do pagamento dos créditos, na medida em que se lhe aplicará o regime do artigo 751º do C.C., por força do qual preferirão sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiro.

É relativamente a este entendimento que o reclamante se opõe, invocando a violação da segurança jurídica, fundando-se na hipoteca constituída em 19.12.2002 (logo antes da entrada em vigor do Código do Trabalho).

A questão em apreço tem dado origem a alguma discussão jurisprudencial sendo que a posição que comungamos foi agora consagrada em Ac. do S.T.J. de 26.10.2010 (Proc. nº 103-H/2000.C1.S2, disponível in www.dgsi.pt), para cujos fundamentos, com a devida vénia, remetemos e aqui damos por reproduzidos, onde se decidiu que: “Quer na norma do art. 152º do CPEREF, quer no preâmbulo deste diploma, é sempre e tão-só aos privilégios creditórios que a lei se refere, sem qualquer alusão a outra garantia, nomeadamente, à hipoteca legal, inexistindo outros elementos capazes de sustentar uma extensão teleológica da respectiva previsão legal, ou a existência de um caso omisso, que deva ser juridicamente regulado.

Tendo sido proferida a sentença que decretou a falência em 18-07-2008, data a partir da qual os direitos de crédito dos trabalhadores da falida estavam vencidos e se haviam tornado exigíveis, e encontrando-se em vigor o art 377º do CT de 2003, desde 28-08-2004, aqueles gozam de privilégio imobiliário geral, e não de privilégio imobiliário especial, sobre o prédio apreendido para a massa falida, sendo inaplicável ao concurso de credores o disposto naquele normativo legal, mas antes o preceituado pelos arts 12º, nº 1, al. b) da Lei n.º 17/86, de 14-06, e 4º, nº 1, al. b) da Lei n.º 96/01, de 20-08.

Conferindo a hipoteca ao credor o direito de ser pago, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, considerando que o privilégio creditório de que gozam os trabalhadores tem, no caso em apreço, a natureza de privilégio imobiliário geral e não especial, fica o respectivo crédito numa situação de subalternidade em relação à hipoteca que, manifestamente, lhe prefere.

Os créditos garantidos por hipoteca, ao abrigo da legislação anterior ao CT de 2003, devem ser pagos, relativamente aos bens imóveis sobre que esta incide, com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois dos créditos hipotecários”.

Eis o que se vai determinar, procedendo a reclamação deduzida.

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Considerando os princípios atrás expostos, procede-se ao pagamento dos créditos, através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem:

1º- As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda de cada bem móvel (artigo 172º, nº 1 e 2).

2º- Do remanescente dar-se-á pagamento aos créditos indicados sob a ordem preconizada e com as especificações realizadas nos pontos 1.2 a 1.9, conforme se alcança de fls. 17 e 18.

3º- Em particular, no que ao imóvel respeita, a graduação será feita naqueles moldes, alterando-se todavia, a ordem aí preconizada, no que respeita à preferência dos créditos laborais, na medida em que os créditos garantidos por hipoteca, ao abrigo da legislação anterior ao CT de 2003, devem ser pagos, relativamente aos bens imóveis sobre que esta incide, com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois dos créditos hipotecários”.


II

            Dessa sentença interpôs recurso o credor J…, recurso que foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentou o Apelante concluiu do seguinte modo:

            1ª – O crédito laboral reclamado pelo Recorrente goza de privilégio imobiliário especial.

            2ª – O privilégio imobiliário especial de que goza o crédito do recorrente sobre o único imóvel da insolvente deve preferir ao crédito garantido por hipoteca, ainda que esta tenha sido registada em momento anterior à entrada em vigor da Lei 7/2009, de 12/02, em virtude de a norma que estabelece o privilégio imobiliário especial ser de aplicação imediata.

            3ª – Violou, assim, a sentença recorrida o artº 333º da Lei nº 7/2009, de 12/02, e o artº 751º do C. Civil.

            4ª – Termos em que não poderá a sentença recorrida ser mantida, devendo ser revogada e em sua substituição ser proferido acórdão que gradue em primeiro lugar os créditos laborais dos trabalhadores, em virtude de gozarem de privilégio imobiliário especial.


III

            Contra-alegou o credor/reclamante Banco…, onde defende que não se deve dar provimento ao recurso interposto, devendo ser mantida a sentença recorrida, por se dever entender que “o artº 377º do Código do Trabalho em vigor só se aplica quando o privilégio creditório imobiliário especial por ele constituído se confronta com uma hipoteca constituída em data posterior à entrada em vigor do C. T. de 2003”.

            Que tal entendimento se funda, entre outros, nos valores de segurança jurídica, valores a que o legislador não deve ser alheio.


IV

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume em saber se os créditos dos trabalhadores reclamados e já reconhecidos gozam ou não de algum privilégio e qual e sendo esse privilégio o imobiliário especial sobre o único imóvel da insolvente se ele (privilégio) deve preferir (ou não) ao crédito de outro credor/reclamante garantido por hipoteca, ainda que esta tenha sido registada em momento anterior à entrada em vigor da Lei 7/2009, de 12/02.

           

            Apreciando, importa, antes de mais, que se diga que foi pelo sr. Administrador da Insolvência apresentada a relação de créditos reclamados, conforme fls. 3 a 6, créditos esses que foram considerados como reconhecidos ou verificados, por não impugnados, conforme fls. 41.

            Entre os bens da sociedade insolvente apreendidos conta-se um único bem imóvel (verba 1 dos bens apreendidos).

            A referida relação de bens constam diversos créditos ditos laborais, designadamente o crédito do Reclamante/recorrente.

            O Banco… é credor da insolvente e esse seu crédito goza de hipoteca voluntária sobre o imóvel descrito sob a verba nº 1 do auto de arrolamento e apreensão de bens, hipoteca essa registada em 19/12/2002.

            A sentença de declaração de insolvência é de 17/09/2010, tendo transitado em julgado em 14/10/2010.  


***


 Prosseguindo, afigura-se-nos que na sentença recorrida, na parte supra transcrita, se comete um erro de apreciação ao nela se escrever que “respondeu apenas o Sr. Administrador, alegando que é certo que o contrato de hipoteca foi celebrado em 19 de Dezembro de 2002, enquanto que os privilégios dos créditos emergentes do contrato de trabalho gozam de privilegio mobiliário e imobiliário geral, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 4° da Lei 96/2001, de 20 de Agosto, alíneas a) e b)”, na medida em que na própria relação de bens reclamados por ele apresentada consta que “os créditos reclamados pelos trabalhadores gozam de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário especial, nos termos do artº 333º do Código de Trabalho aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02” e porque teve lugar a realização de uma tentativa de conciliação nos presentes autos e nela foi ouvido o sr. administrador da insolvência, aí tendo referido que “entende que os trabalhadores gozam de privilégio mobiliário e imobiliário especial, considerando que exerceram a sua actividade nos bens a que se reporta a massa insolvente” – fls. 40/41.

Ora, tendo presente que a declaração de insolvência data de 17/09/2010, dúvidas não pode haver sobre o tipo de privilégio de que gozam os créditos laborais reclamados e reconhecidos em relação ao único imóvel apreendido para a massa insolvente – é o privilégio imobiliário especial, resultante dos artºs 377º, nº 1, al. b) do Código de Trabalho de 2003, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 (que entrou em vigor em 01/12/2003, embora o novo regime dos privilégios imobiliários que servem de garantia aos direitos de crédito da titularidade dos trabalhadores, previsto no citado artº 377º apenas tenha entrado em vigor em 28/08/2004, atento o disposto nos artºs 3º, 8º, nº 1 e 21º, nº 2, als. e) e f) da Lei nº 35/2004, de 29/08, que regulamentou a Lei nº 99/2003) e 333º do Código de Trabalho vigente, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/02, preceitos esses onde se dispõe o seguinte: “Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) privilégio mobiliário geral; b)privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade…”.

Por isso enferma de erro a dita sentença, quando nela se escreve que “…3º- Em particular, no que ao imóvel respeita, a graduação será feita naqueles moldes, alterando-se todavia, a ordem aí preconizada, no que respeita à preferência dos créditos laborais, na medida em que os créditos garantidos por hipoteca, ao abrigo da legislação anterior ao CT de 2003, devem ser pagos, relativamente aos bens imóveis sobre que esta incide, com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois dos créditos hipotecários”, já que os créditos laborais reclamados/reconhecidos neste processo gozam de privilégio imobiliário especial sobre o único bem imóvel apreendido para a massa insolvente, nos termos supra referidos.

            Apreciada e decidida a referida questão e não se colocando qualquer dúvida ou incerteza sobre o facto de ser no dito imóvel, único conhecido à insolvente e onde esta tinha a sua sede/oficina, que trabalhavam todos os seus trabalhadores, coloca-se então a questão subsequente e que é a de se saber se os ditos créditos sobre a insolvente, beneficiários de tal garantia ou privilégio devem preferir (ou não) ao crédito de outro credor/reclamante garantido por hipoteca e que tenha sido registada em momento anterior à entrada em vigor quer da Lei nº 99/2003, de 27/08, quer da Lei nº 7/2009, de 12/02.

            Tal como se diz/escreve na sentença recorrida, esta questão não é entendida de forma unânime pela jurisprudência dos Tribunais superiores, como, aliás, as próprias partes alegantes referem nas suas alegações.

            Muito recentemente, por acórdão de 01/02/2011 – ver Col. Jur. ano XXXVI, tomo I/2011, pg. 30 -, esta Relação (sendo seu relator o sr. Des. Nunes Ribeiro) defendeu a tese de que “I – Apesar de o trânsito em julgado da sentença declaratória da falência ser anterior à entrada em vigor do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003, é de aplicar aos créditos dos trabalhadores reclamados na falência o disposto no artº 377º daquele diploma que criou a favor deles um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade, pois a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, aplica-se retroactivamente. II – A prevalência do privilégio imobiliário especial de que gozam os créditos emergentes do contrato de trabalho sobre a hipoteca constituída anteriormente não viola o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, pois está em causa o direito fundamental dos trabalhadores à sua remuneração e à sua sobrevivência condigna, que o privilégio visa assegurar”.

            Esta posição baseia-se, também, no entendimento (expresso no próprio acórdão) de que “Há que considerar que no dia 01 de Dezembro de 2003 entrou em vigor o novo Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08.

            (Lei) que veio estatuir, no seu artº 377º, que «os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) privilégio mobiliário geral; b) privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade…».

            Os créditos dos trabalhadores passaram, assim, com o novo Código do Trabalho, a gozar, ao invés do que antes sucedia, de privilégio imobiliário especial, tendo ficado, dessa forma, claramente abrangidos pela letra do artº 751º do CC, na redacção saída do Dec. Lei nº 38/2003, de 08/03, quando estatui que «os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiriram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».

            Entendemos que a lei que regula em novos termos a garantia patrimonial de determinados créditos, criando a seu favor um privilégio creditório, deve aplicar-se retroactivamente, de acordo com o disposto na 2ª  parte nº 2 do artº 12º do C.C., …, sendo, por isso, de aplicar o regime decorrente daquele artº 377º do Código do Trabalho aos direitos de crédito laborais ainda que constituídos antes da referida data de 28/08/2004.

            De modo que, sendo os privilégios creditórios imobiliários especiais garantia mais forte do que a hipoteca, os créditos dos trabalhadores reclamantes dev(em) ser graduados à frente de todos os demais créditos, apesar de estes se (poderem) mostrar(em) garantidos por hipoteca voluntária anteriormente constituída…”.  

            Ver, neste mesmo sentido, o também acórdão da Rel. Coimbra de 28/01/2009, proferido no Procº nº 374-D/1977.C1 (sendo seu relator o Des. Serra Leitão), disponível em www.dgsi.pt/jtrc...

            Esta tese também foi acolhida no STJ, pelo acórdão de 20/10/2009, proferido no Procº nº 1799/06.6TBAGD-B.C1.S1 (disponível em www.dgsi.pt/jstj...), no qual se defende que “os privilégios creditórios imobiliários especiais constituem garantias reais de cumprimento das obrigações, valem contra terceiros e gozam de preferência sobre hipoteca anteriormente constituída; o privilégio imobiliário especial de que gozam os trabalhadores da empresa insolvente por crédito constituído posteriormente ao início da vigência da lei que o criou – o Código do Trabalho – prevalece sobre hipoteca voluntária constituída e registada anteriormente à entrada em vigor dessa lei, sendo irrelevante a data da sentença que decretou a insolvência”.

            Mas a jurisprudência não é unânime neste entendimento, como sucede, p. ex., com o Acórdão desta mesma Relação de 20/04/2010, proferido no Procº nº 412-A/2000.C1, sendo seu relator o sr. Des. Távora Vítor (disponível em www.dgsi.pt/jtrc...), em que se entendeu que “o Código do Trabalho veio estatuir no seu artº 377º, nº 1, al. b) que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade; havendo créditos com garantia hipotecária sobre imóveis de uma instalação fabril os mesmos não cedem perante o privilégio imobiliário especial que os créditos laborais gozam sobre aqueles imóveis se à data da entrada em vigor do Código do Trabalho que criou tal privilégio a hipoteca já tivesse sido registada; ao mesmo resultado se chegará ainda que ponderemos a aplicação ao caso do artº 751º do CC, segundo o qual o crédito hipotecário cede perante o privilégio imobiliário especial ainda que o primeiro seja de constituição anterior. É que, na verdade, isto supõe que a norma que cria tal privilégio casuisticamente já se encontrasse em vigor”.

            Neste mesmo sentido pode ver-se o Ac. do STJ de 26/10/2010, proferido no Procº nº 103-H/2000.C1.S2, relatado pelo sr. Conselheiro Hélder Roque (disponível em www.dgsi.pt/jstj...), no qual se dispõe, muito em resumo, que “os créditos garantidos por hipoteca, ao abrigo da legislação anterior ao CT de 2003, devem ser pagos, relativamente aos bens imóveis sobre que esta incide, com preferência sobre os créditos laborais que, gozando embora de privilégio imobiliário geral, têm de ser graduados depois dos créditos hipotecários”.

            São, pois, estas as duas teses em confronto e que relevam para a graduação (hierarquia) de créditos sobre o único imóvel apreendido no presente processo de insolvência, sendo certo que a sentença recorrida seguiu esta última orientação.

            Havendo, pois, necessidade de optar por uma das referidas teses em confronto, propendemos para a 1ª posição supra exposta, isto é, de que, apesar da hipoteca que favorece o crédito do Banco… reclamado/reconhecido nos autos ter sido registada antes da entrada em vigor do Código de Trabalho de 2003, cujo artº 377º criou a favor dos trabalhadores um privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestem a sua actividade, deve entender-se que este privilégio prefere à dita hipoteca, tendo presente o disposto no artº 751º do C. Civil, na sua redacção resultante do D.L. nº 38/2003, de 8/03, e bem assim os fundamentos constantes dos citados arestos, que aqui se dão como reproduzidos, muito em especial a interpretação da aplicação retroactiva das leis relativas ao regime legal dos privilégios creditórios (artº 12º, nº 2, 2ª parte, do CC) – ver Prof. Antunes Varela, in C.Civ. anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada, pg. 62.

            Neste sentido vejam-se, ainda, os Acórdãos do STJ de 30/11/2006, in Col. Jur.STJ, ano XIV, tomo III/2006, pg. 140; de 29/04/2008, in Col. Jur. STJ, ano XVI, tomo II/2008, pg. 43; (2) de 2/07/2009, in Col. Jur. STJ, ano XVII, tomo II/2009, pgs. 160 e 163; da Relação de Coimbra de 11/10/2005, Proc.º nº 2239/05, disponível em www.dgsi.pt/trc; da Rel. de Lisboa de 26/03/2009, Proc.º nº 10744/08-8, também disponível em www.dgsi.pt/trl.

Ver também Abílio Neto, in C. Civil anotado, 14ª edição e seguintes, notas ao artº 751º, onde cita Álvaro Moreira e Carlos Fraga in Direitos Reais, pg. 70.

            O mesmo é dizer-se que se impõe a revogação da sentença que graduou os créditos sobre a insolvente, na sua parte relativa ao único imóvel apreendido para a massa insolvente, por cujo produto da venda a realizar se respeitará a seguinte ordem de pagamentos:

1º - os créditos dos trabalhadores reclamados/reconhecidos;

2º - o crédito do Banco… também reconhecido e que goza de hipoteca registada sobre tal imóvel;

3º - os demais créditos reconhecidos.

            No mais, mantém-se a graduação efectuada na sentença recorrida.


V

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a sentença recorrida apenas quanto à graduação dos créditos a serem pagos pelo produto da venda do único imóvel apreendido para a massa insolvente, os quais passam a ter a seguinte graduação ou ordem de preferência nos respectivos pagamentos:

1º - os créditos dos trabalhadores reclamados/reconhecidos;

2º - o crédito do Banco… também reconhecido e que goza de hipoteca registada sobre tal imóvel;

3º - os demais créditos reconhecidos.

            Custas pelo Recorrido.


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Jaime Carlos Ferreira (Relator)

Jorge Arcanjo

Isaías Pádua