Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2209/17.9T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: LIVRANÇA
AVALISTA
PAGAMENTO
SUB-ROGAÇÃO
SENTENÇA
FACTOS
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JL CÍVEL (EXTINTO)
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 30, 32, 77 LULL, 524 CC, 607 CPC
Sumário: 1. As meras conclusões de facto ou de direito não podem ser objecto de consideração já que a lei manda seleccionar na elaboração da sentença apenas factos substantivos, materiais, específicos ou concretos (art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte do NCPC).

2. O direito do avalista que paga a letra de câmbio (ou livrança) é um direito próprio e autónomo, emergente da letra, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou que haja sucedido, porque não há sub-rogação.

3. O termo “sub-rogado” inscrito no art. 32 § 3º da LULL está aí impropriamente empregue, por erro de tradução.

Decisão Texto Integral:








I – Relatório

 

1M (…) e marido C (…), residentes em (...) , intentaram contra L (…)  e M (…), residentes em (...) , acção declarativa, pedindo a condenação dos réus a entregarem-lhe a quantia de 24.043,07 €, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo pagamento.

Para o efeito alegaram, no essencial, que os réus foram casados entre si tendo contraído, na pendência do casamento, uma dívida no valor de 15 milhões de escudos, tendo constituído, para garantia do pagamento, hipoteca sobre a fracção autónoma identificada em 4º, bem como entregaram ao banco uma livrança caução que foi avalizada pelos autores. Na sequência do divórcio os réus deixaram de pagar as prestações do crédito ao banco, tendo este reclamado créditos no processo de inventário por divórcio, intentando também execução, indicando, no processo executivo, à penhora a identificada fracção autónoma, que é bem próprio do aqui réu, seu filho. Dado que os réus não procederam a qualquer pagamento o credor banco colocou a fracção à venda, tendo os aqui autores, tendo em vista evitar a venda do imóvel no leilão, alcançado um acordo com o banco, pagando a quantia de 24.043,07 €, na qualidade de avalistas, sendo, contudo, responsáveis pelo pagamento deste montante os réus. Terminam dizendo que com a presente acção exercem o direito de regresso, previsto no art. 524º do CC, contra os principais devedores.

Só a ré contestou, dizendo, além do mais, que o pagamento efectuado o foi sem que os autores a tanto se mostrassem obrigados, pois o processo de inventário ainda se mostra em curso, no âmbito do qual foram depositadas tornas as quais, previsivelmente, seriam encaminhadas para o credor Banco reclamante, e que não procedeu ao pagamento em causa por não dispor de meios para o efeito. Terminou pedindo a sua absolvição da instância, julgando-se procedentes as excepções aduzidas e, caso assim se não entenda, a sua absolvição do pedido.

Os autores pronunciaram-se sobre a matéria de excepção aduzida e concluíram como na petição inicial, tendo ainda requerido a condenação da ré como litigante de má-fé.

A ré pronunciou-se sobre a sua requerida condenação como litigante de má-fé, pugnando pela sua improcedência.

*

A final foi proferida sentença que julgou procedente a acção e em consequência decidiu:

a) Condenar solidariamente os RR a entregarem aos AA a quantia de 24.043,07 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da citação e até integral pagamento;

b) Não condenar a R. como litigante de má-fé.

*

2. A R. recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. Os AA contra-alegaram, concluindo que:

(…)

 

II – Factos Provados

 

1. Os réus foram casados entre si, tendo-se entretanto divorciado.

2. Os autores são pais do réu L (…), conforme se prova com a junção.

3. No decurso do casamento, e mais propriamente em 20 de Dezembro de 2000, junto do Banco (…) S.A, através de contrato de abertura de crédito, os réus contraíram uma dívida no montante de quinze milhões de escudos.

4. Para garantia do pagamento daquele montante, os réus constituíram uma hipoteca sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, do prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana da freguesia do k (...) sob o artigo 7 (...) .º.

5. E entregaram também ao banco uma livrança caução, em branco, avalizada pelos aqui autores, que entretanto veio a ser preenchida, com o esclarecimento que foi preenchida no montante de € 52.879,65.

6. Fruto do divórcio os réus deixaram de pagar as prestações do crédito ao banco.

7. O banco veio reclamou da relação de bens apresentada no processo de inventário por divórcio, com o esclarecimento de que aí requereu a inclusão de um crédito a seu favor na quantia de € 54.033,39, e simultaneamente, intentou a acção executiva a que coube o processo número 4581/16.9T8VIS, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Central, Secção de

Execuções – J1, no valor de € 65.499,52, com o esclarecimento que aí figuravam como exequente o Banco (…), S.A. e como executados os aqui autores e réus.

8. Neste processo executivo foi indicado à penhora a fracção autónoma referida em 4., a qual é bem próprio do réu L (…).

9. Os réus não deduziram oposição à reclamação apresentada pelo banco no âmbito do processo de inventário referido.

10. Os réus não deduziram oposição à execução, na acção executiva indicada, não tendo também procedido ao pagamento da dívida aí reclamada.

11. O réu L (…) e seus pais instaram a ré M (…) a proceder ao pagamento de metade da dívida, o que esta não fez.

12. Feitas as adjudicações no processo de inventário n.º 3707/14, a Ilustre mandatária do Banco requereu que as tornas depositadas lhe fossem atribuídas e declarou não desonerar nenhuma das partes, ou seja nenhum dos réus.

13. Todavia, fruto da mudança de Notário, o processo de inventário está parado e as tornas depositadas ainda não foram entregues ao banco, com o esclarecimento que a aqui ré procedeu ao depósito, a título de tornas, da quantia de € 29.125,00, nas datas de 26/12/2016, 27/12/2016, 28/12/2016 e 29/12/2016.

14. Dada a falta de pagamento, o credor Banco, colocou a fracção autónoma indicada em 4. à venda, mediante leilão electrónico que terminava a 29 de Março de 2017.

15. Os autores avalistas, para evitarem a venda de tal imóvel em leilão, conseguiram alcançar um acordo com o Banco e procederam ao pagamento da quantia de € 24.043,07, quantia esta que foi depositada pelo aqui autor, com o esclarecimento que o depósito em causa foi efectuado em 15 de Março de 2017.

16. A quantia referida em 3. foi utilizada pelos réus, que utilizaram o dinheiro que lhes era depositado na conta, em proveito próprio.

17. Os autores não tinham qualquer dívida para com o banco credor.

18. Os autores efectuaram o pagamento referido movidos pelo receio da perda da garantia patrimonial.

19. Na data em que procederam ao pagamento referido em 15. o património dos autores não se encontrava a ser afectado, desconhecendo-se se o viria a ser.

20. No âmbito da acção executiva acima identificada foi requerida, e posteriormente declarada, a suspensão da respectiva instância, com o esclarecimento que tal pedido foi efectuado em 17 de Março de 2017.

21. Para proceder ao pagamento das tornas no processo de inventário a aqui ré obteve ajuda monetária dos seus familiares.

*

Factos não Provados:

(…)

c) Os autores procederam ao pagamento referido em 15. por o terem querido fazer e sem que o mesmo lhes tivesse sido exigido.

d) A suspensão da instância da acção executiva identificada em 7. Poderia ser declarada sem necessidade dos autores procecerem ao pagamento ao banco de qualquer quantia

*

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Do direito dos AA a serem restituídos à quantia paga.

2. A R. impugna a decisão da matéria de facto relativamente aos factos provado 18. e não provados c) e d), pretendendo que aquele passe a não provado e estes a provados. Isto, com base nas declarações dos AA, prestadas em depoimentos de parte, declarações de parte dela própria, depoimento da testemunha Maria Helena Pais, o que tudo transcreveu parcialmente, e ainda em documentos do cartório notarial que indicou (cfr. conclusões de recurso 2- a 17-).

2.1. A matéria constante do facto provado 18. e do não provado c) está intrinsecamente ligada, como a própria recorrente reconhece (nas aludidas conclusões 4- a 17- e 35-), e reporta-se ao motivo para os AA terem pago ao Banco exequente a quantia apontada no facto 15., na sequência do acordo a que chegaram com tal Banco. Ora o motivo para tal pagamento, fosse porque estavam receosos da perda de garantia patrimonial, fosse porque simplesmente o quiseram fazer, não importa, não tem relevo, na economia do caso em apreço para a decisão do recurso e para a solução do mérito da causa, como iremos ver, infra no ponto 3. Pelo que a apreciação da impugnação deduzida se revela inútil, e por isso não deve ser levada a cabo.

2.2. Relativamente à impugnação do facto não provado d), cabe relembrar que a lei, na elaboração da sentença, apenas permite que se considerem factos substantivos, materiais, específicos ou concretos, como dimana do estatuído no art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte do NCPC. Não consentido, por isso, que se seleccione para tal decisão de facto conclusões de direito, juízos conclusivos de facto ou que tenham essa característica híbrida de conclusão de direito e de facto. A dita d), alicerçada numa eventualidade – “poderia”-, reveste essa mesma natureza, não passando de mera conclusão que sempre teria de convocar factos e direito, este sempre sujeito a simples possibilidade. 

Por conseguinte, não há lugar, legalmente, a tal impugnação nem à sua correspondente apreciação.

Já para não falar da total irrelevância dessa circunstância para conhecer de fundo a sorte da acção.      

3. A R. defende que os AA não têm direito à restituição do desembolsado (cfr. conclusões de recurso 18- a 34- e 36-).

Na sentença recorrida escreveu-se que:

“Para além da hipoteca o credor banco dispunha ainda de uma livrança caução subscrita pelos réus e que foi avalizada pelos aqui autores.

(…)

Verdadeiramente relevante é o aval prestado pelos aqui autores, figura prevista no art. 30º da LULL e que configura o acto cambiário pelo qual um terceiro garante o pagamento da livrança por parte do seu subscritor.

Nas palavras do Prof. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1996, págs. 196, 198 e ss., citado por França Pitão, in Letras e Livranças, 3ª Edição, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças - Anotada, Almedina, pág. 191, podemos definir o aval como sendo o acto pelo qual um terceiro ou um signatário da letra garante o pagamento dela por parte de um dos seus subscritores. Desta forma, parece fácil indicar a natureza jurídica do aval: é uma garantia do avalista, é uma obrigação de garantia - garantia da obrigação do avalizado. Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia: o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário, que se designa na letra de maneira expressa ou tácita.

Representa, pois, o aval uma garantia de natureza pessoal.

Ademais, a obrigação do avalista é acessória e autónoma da do avalizado, por o aval ser também uma verdadeira obrigação cambiária autónoma. Isto é, o dador do aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval mas também assume a responsabilidade abstracta, objectiva do pagamento, sendo, por conseguinte, incondicionável.

Ainda nas palavras do Prof. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Vol. III, pág. 196, o avalista está numa posição paralela, solidária e nunca numa posição subsidiária, uma vez que a função do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.

(…)

A ré alicerça a sua pretensão na circunstância da divida em causa se mostrar garantia por hipoteca sobre a fracção identificada em 4., sobre a qual incidiu penhora no âmbito da execução e onde se mostrava já designada a respectiva venda, venda esta que os autores obviaram mediante o pagamento que efectuaram.

É certo que a regra, prevista no art. 752º do Código de Processo Civil, é que executando-se, como sucedeu no caso vertente, dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução.

In casu a penhora efectuada no processo executivo iniciou-se pela fracção que servia de garantia real à divida, em obediência ao disposto no citado normativo.

Veio, contudo, o pagamento da quantia exequenda, após uma reestruturação da dívida na sequência de um acordo firmado entre os aqui autores e o banco, a ser satisfeito mediante um depósito efectuado pelos aqui autores, obviando à venda da fracção sobre a qual incidia a hipoteca e sem que haja notícia nos autos de outras penhoras efectuadas sobre outros bens.

Adianta-se desde já que da nossa perspectiva apenas assistiria razão à ré se porventura os aqui autores não tivessem também sido demandados na execução em causa, como foram, e na qualidade em que o foram, avalistas, tendo estes efectuado o pagamento em causa, mediante depósito, nessa qualidade e com as consequências que daí advêm.

Parece-nos que a ré olvida que os autores foram igualmente demandados, como se disse, na execução dada como provada, bem como olvida o título executivo aí oferecido contra os autores, concretamente a função cartular que do mesmo emerge, e o aval que prestaram.

Demandados na execução nesta qualidade e recordando-se que a obrigação dos autores/avalistas era acessória e autónoma da dos avalizados/réus, assumiram também os autores a responsabilidade abstracta e objectiva do pagamento.

E não cremos que a circunstância dos autores terem efectuado o pagamento da quantia mencionada em 15., dessa forma obviando à venda da fracção sobre a qual impendia hipoteca que garantia a dívida, possa consubstanciar um meio de defesa de que a ré se possa prevalecer sobre aqueles.

Não só face ao pagamento efectuado mas também por não se poder olvidar que desse pagamento resultaram inequívocas vantagens de índole económica para os réus.

Note-se que a quantia exequenda reclamada na execução ascendia a € 65.499,52 (n.º 7 dos factos provados) ficando bem aquém o montante pago, e com o qual o exequente considerou liquidada a dívida – € 24.043,07. Não fora, pois, as diligências que os autores efectuaram e que culminaram com o acordo referido em 15. e os réus sempre seriam obrigados a liquidar valor correspondente à quantia exequenda, superior em mais de metade da quantia efectivamente liquidada, o que não pode deixar de consubstanciar vantagem económica atendível.

Sendo embora certo que, como nota a ré, existem tornas depositadas no âmbito do inventário e que poderiam ser atribuídas ao credor banco, como o próprio solicitou no inventário (n.º 12 dos factos provados), facto é que a execução prosseguiu os seus ulteriores termos enquanto que o inventário ficou parado (n.º 13), não tendo as tornas aí depositadas sido entregues ao banco, que prosseguiu com a execução. Ademais, note-se que o valor das tornas depositadas – que se apurou, em 13., ser de € 29.125,00 – não se mostrava também suficiente para liquidar o crédito do banco reclamante (que reclamou a inclusão, na relação de bens, de um crédito de € 54.033,39 executando por quantia de € 65.499,52), mas apenas de parte daquele. Isto porque, frise-se, a quantia que o banco aceitou, considerando liquidada a dívida – € 24.043,07 – não pode ser considerada para efeitos de valor reclamado no inventário e a suficiência de tornas, pois que o referido valor de € 24.043,07 apenas surge posteriormente e por força da intervenção dos autores/avalistas – acordo celebrado com o banco exequente.

Não cremos, pois, existir qualquer defesa atendível e que a ré possa opor aos aqui autores, que satisfizeram o direito do credor banco – art. 525º n.º 1 do Código Civil.

(…)

Assim sendo, tendo os aqui autores satisfeito o direito do credor Banco (…), S.A., têm os mesmos direito de regresso da totalidade do montante que liquidaram contra os condevedores aqui réus, e devedores principais da divida.”.

A decisão assentou o seu discurso, como se vê, na existência de um direito de regresso dos AA, previsto no art. 524º do Código Civil (como os AA tinham invocado), e que reza que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.

A decisão está correcta, mas precisa de uma pequena afinação a nível do discurso jurídico, que terá de ser clarificadora e relevante, pois permitirá refutar as objecções que a recorrente levanta no seu recurso.

Vejamos, então, tendo em consideração que ficou provado que os RR, no decurso do seu casamento, contraíram uma divida no valor indicado em 3., através de contrato de abertura de crédito, e que para garantia do pagamento de tal quantia, além de uma hipoteca, entregaram ao Banco exequente uma livrança que foi avalizada pelos AA, que posteriormente foi preenchida no montante referido em 5., visto que os aqui RR deixaram de pagar as prestações do crédito, tendo os AA/avalistas, após o Banco ter instaurado execução contra eles e contra os aqui RR para pagamento da quantia em divida (que foi usada exclusivamente pelos aqui RR), com base em tal título cambiário, procedido ao pagamento da quantia de 24.043,07 €.

Efectivamente o normativo que há que aplicar ao caso dos autos é o previsto, ex vi do art. 77º da LULL (referente às livranças), no art. 32º § 3º da LULL que dispõe que se o dador de aval pagar a letra fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval (e contra os obrigados para com esta em virtude da letra).

A existir a indicada sub-rogação estaríamos perante uma sub-rogação legal, prevista no art. 592º, nº 1, do CC, na parte em que se reconhece que “noutras disposições legais” se pode fundar tal sub-rogação. Embora se reconheça que tal eventual sub-rogação legal do avalista possa ter afinidades substanciais com a primeira circunstância prevista em tal preceito - na parte em que se prevê que o terceiro fica sub-rogado quando tiver garantido o cumprimento, como é o caso do avalista – tal eventual sub-rogação não derivaria de tal referida circunstância mas por imposição directa da lei consignada em disposição especial.

O que afastaria uma das objecções da recorrente, quando nas suas alegações argumenta que se estaria perante a sub-rogação legal prevista naquela aludida 1ª circunstância.

E a existir sub-rogação legal também seria de afastar a figura da sub-rogação do credor ao devedor, prevista nos arts. 606º a 609º do CC, que a recorrente também traz a terreiro na sua alegação, como objecção à sentença apelada, e que deriva de incorrecta conceptualização da sua parte, pois nesta situação deparamo-nos com a faculdade concedida ao credor de se substituir ao seu devedor no exercício de direitos de conteúdo patrimonial deste contra terceiro, o que não é manifestamente o caso.         

É altura, agora, para precisar que de facto não estamos perante uma verdadeira sub-rogação, mas sim perante um direito de regresso.

Repare-se, como relembra ajustadamente A. Varela (em CC Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 1. ao mencionado artigo, pág. 577) que perante um devedor solidário - como é o caso do avalista e que merece a concordância da apelante - que paga ao credor, o crédito deste não se transfere, como é típico da sub-rogação, mas extingue-se (nos termos do art. 523º do CC). E nessa hipótese o devedor não é terceiro, como a lei na sub-rogação exige, tendo por isso o seu direito de regresso, que é próprio e nascido ex novo, natureza e regime especifícos (nos termos do art. 524º do CC).
O que acontece, como se desenvolve no Ac. desta Rel. de 3.6.2014, Proc.18/12.0TJCBR-A, e já se explicitava no Ac. do STJ de 23.11.2010, Proc. 1955/09, ambos em www dgsi.pt, é que o direito do avalista que paga é um direito próprio e autónomo, emergente da letra, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou em que haja sucedido, porque não há sub-rogação. O termo “sub-rogado” está aí impropriamente empregue, por erro de tradução, tanto assim que na correspondente norma do art. 27 § 3º da LUCH já não se refere tal expressão, mas a da aquisição dos direitos resultantes do cheque.
Neste sentido, elucida GONSALVES DIAS (Da Letra e da Livrança, Vol. VII, pág. 563 e 564):
É pois exacto que o avalista, pagando o título, não fica propriamente subrogado nos direitos do portador. Não há subrogação, mas aquisição própria. Não fica mesmo subrogado nos direitos daquele por quem pagou – nos direitos do avalizado: nem é sucessor do portador pago, porque não é seu cessionário, nem um sucessor do avalizado, porque este é sempre um obrigado cambiário a respeito do avalista que o garante.
Todas estas explicações servem para a Lei Uniforme e seriam desnecessárias se a tradução portuguesa não tivesse adulterado o texto original da alínea III do artº 32º. Esta alínea, reportando-nos à redacção francesa ou inglesa, nem de perto, nem de longe fala da “subrogação”. A versão correcta seria: “ Efectuando o pagamento, o dador de aval adquire os direitos emergentes da letra contra o seu avalizado e contra os obrigados para com este”.
Por outro lado, a sub-rogação com fundamento nos arts. 592º e 593º do CC, pressupõe a “prestação de terceiro”, o que não sucede, porque os aqui AA e RR foram demandados, aqueles na qualidade de co-avalistas, na acção executiva intentada pelo Banco exequente.
De igual modo, o pagamento voluntário feito na pendência da execução pelo executado ou por terceiro é causa de extinção da execução (arts. 846º, nº1, e 847º do NCPC = aos arts. 916º e 917º do CPC de 19995) mas o executado que paga, ainda que haja outros co-executados, não pode considerar-se “terceiro”, para efeito do art. 847, nº 6, do NCPC, a quem a lei confere a sub-rogação nos direitos do exequente, pela simples razão de que terceiro é estranho à relação jurídica, é aquele que não é devedor, nem credor (art. 767º, nº 1, CC), e que não figura no título executivo como tal (art. 53º, nº 1, do NCPC = ao art. 55º, nº 1, do CPC/95).
É, igualmente, esta a lição de Ferrer Correia (ob. cit., 1975, págs. 215 e 219) quando professa que a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado, tratando-se antes de uma responsabilidade solidária, e que pagando pelo signatário garantido, o dador do aval, adquire o direito que o portador tinha contra o avalizado, sendo que esse efeito deriva da natureza que se assinalou à obrigação do dador de aval: obrigação de garantia. Assumindo uma obrigação igual à do avalizado, é justo que o avalista, pagando a letra (ou livrança) tenha naturalmente um direito de regresso contra esse signatário (no mesmo sentido pode ver-se Abel Delgado, em LULL, 7ª Ed., pág. 188).   

Daí que os AA pudessem e possam reclamar dos RR o direito de regresso que invocaram, tendo direito a ser-lhes restituído a quantia que dispenderam, ao abrigo do citado art. 524º do CC. E daí, também, que seja indiferente o motivo pelo qual os mesmos liquidaram a dívida, como acima realçámos, pois tal motivação dos aqui AA para tal pagamento não é meio de defesa oponível pela condevedora-executada, ora R./apelante, a coberto do art. 525º, nº 1, do CC, como por ex. benefício do prazo, nulidade de contrato, impossibilidade da prestação, a não verificação da condição suspensiva, excepção de contrato não cumprido, prescrição da dívida, etc., ou meio pessoal de defesa da R. demandada, como por ex. um vício da vontade.        

Não procede, por conseguinte face ao explanado o recurso da R.

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) As meras conclusões de facto ou de direito não podem ser objecto de consideração já que a lei manda seleccionar na elaboração da sentença apenas factos substantivos, materiais, específicos ou concretos (art. 607º, nº 3 e 4º, 1ª parte do NCPC);

ii) O direito do avalista que paga a letra de câmbio (ou livrança) é um direito próprio e autónomo, emergente da letra, e não um direito que lhe tenha sido transmitido ou que haja sucedido, porque não há sub-rogação;

iii) O termo “sub-rogado” inscrito no art. 32 § 3º da LULL está aí impropriamente empregue, por erro de tradução.

 

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

*

Custas pela R./recorrente. 

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                                                                        Leiria, 8.5.2019

                                                                        Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                        Fonte Ramos

                                                                        Maria João Areias