Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2129/13.6TAVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CAUSA EXCLUDENTE DA ILICITUDE
DIREITO DE NECESSIDADE
Data do Acordão: 04/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 31.º, N.ºS 1 E 2, AL. B), E 34.º DO CP
Sumário: I – Em face do disposto na al. b) do artigo 34.º do CP, a justificação por direito de necessidade exige a ponderação do valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau do perigo que os ameaça.

II – Numa situação em que o arguido, para aceder, num determinado dia, ao seu terreno agrícola e ao espaço físico dentro dele, no qual permaneciam alfaias agrícolas, alimentos e animais domésticos, destruiu parcialmente um muro erguido, nesse mesmo dia, pela proprietária do prédio rústico confinante, com a finalidade de obstruir a dita introdução, há sensível superioridade do interesse a salvaguardar (protecção dos bens e da vida dos animais) relativamente ao interesse sacrificado (direito de propriedade), verificando-se, deste modo, a causa de exclusão da ilicitude (direito de necessidade) prevista nos artigos 31.º, n.º 2, e 34.º do CP.

Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, na 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

No processo comum supra identificado, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

a) Condenar o arguido C. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 7,00 €, o que perfaz o quantitativo de 350,00 €.

b) Condenar a arguida M. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, o que perfaz o quantitativo de 350,00 €.

c) Absolver os arguidos/demandados do pedido cível formulado pela demandante S..


*

Discordaram os arguidos de tal decisão, e dela interpuseram o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

1- Os arguidos C. e M. não se conformam com a douta sentença recorrida, que condenou cada um deles pela prática, em autoria material na forma consumada, de um crime de dano, p. e p. pelo artº. 212º, n.º 1, do Cód. Penal;   

2- A douta sentença recorrida faz uma incorrecta apreciação da matéria de direito, a qual levou a uma injusta condenação dos arguidos;

3- Da análise dos factos dados como provados pelo Tribunal “a quo”, resulta que a arguida M. destruiu parte do muro que a Assistente andava a construir naquele momento;

4- Com especial relevo para os presentes autos, ficou provado que a Assistente quis com a construção daquele muro impedir o acesso dos arguidos a uns barracões existentes no interior do prédio destes e onde tinham, e têm ainda hoje, vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos, designadamente;

5- Muro esse que, nos termos em que foi feito, impedia o acesso dos arguidos à parte do seu prédio destinada à agricultura e tornava completamente encravados quer o referido terreno agrícola dos arguidos, quer os ditos barracões, onde se encontravam os animais domésticos referidos, impedindo o acesso dos arguidos aos mesmos;

6- Os arguidos não tinham como aceder ao terreno agrícola do seu prédio, nem aos barracões onde tinham os animais domésticos, senão através da destruição parcial do muro, por forma a nele fazerem uma abertura que lhes permitisse a passagem para aquele trato de terreno e barracões;

7- Quando a arguida M. cerca das 15h55m do dia 12.11.2013 se deslocava aos ditos barracões para dar de beber e de comer aos referidos animais foi confrontada com a construção do dito muro;

8- Perante a impossibilidade de aceder aos barracões e aos animais domésticos a arguida deitou abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o muro, o que fez com o intuito de poder passar para o seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões e para ir dar de comer e de beber aos supra aludidos animais domésticos;

9- O arguido C., quando no final da tarde desse mesmo dia 12.11.2013, cerca das 18 horas, se ia a deslocar aos ditos barracões para acomodar os animais domésticos referidos, para eles passarem a noite, transportando nas mãos um balde com comida para eles, foi também ele confrontado com o facto de a abertura feita anteriormente no muro pela arguida M. se encontrar novamente fechada com blocos de cimento, tendo sido nessa tarde reconstruido (e fechado completamente), ficando impossibilitado absolutamente o arguido C. de se deslocar aos referidos barracões, pelo que deitou abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro;

10- Tendo agido com o intuito de se deslocar ao interior do seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões e dar de comer e de beber aos animais domésticos aludidos;

11- Os arguidos ao actuarem na forma descrita supra, designadamente ao derrubarem parte do muro construído pela assistente, fizeram-no licitamente, no exercício de um direito, e ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

13- Atenta a factualidade dada como provada, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, entendem os arguidos que “in casu” estão preenchidos todos os requisitos conducentes à verificação da invocada acção directa – artº. 336º do Cód. Civil;

14- Resulta inquestionável da matéria dada como provada nos autos que os arguidos até à construção do muro feito pela assistente acediam livremente ao interior do prédio de que são proprietários e onde tinham – e ainda hoje têm – vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos, designadamente, e onde têm também um barracão destinado a arrumos de alfaias agrícolas e de produtos agrícolas, tais como milho e feijão, destinados ao consumo dos arguidos e respectiva família;

15- Foi a construção daquele muro pela assistente que impediu o acesso dos arguidos à parte do seu prédio destinada à agricultura e tornou completamente encravados quer o referido terreno agrícola dos arguidos, quer os ditos barracões, onde se encontravam os animais domésticos referidos;

16- É indubitável a existência de um direito privado próprio dos arguidos, de acesso ao seu prédio, na exacta medida em que o prédio deles resultantes da divisão jurídica do prédio mãe em duas parcelas autónomas, que a sentença cível junta aos autos veio fazer, só é possível havendo acessos a ambos os prédios resultantes dessa divisão jurídica e material;

17- Relativamente ao requisito traduzido na impossibilidade de os arguidos recorrerem em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais), com que o Tribunal “a quo” justifica o afastamento do invocado direito ao uso da acção directa, importa dizer que o mesmo deve ter-se por verificado;

18- Já quanto a uma eventual instauração judicial de uma providência cautelar, a mesma nunca seria deferida em tempo útil, pois que a apreciação e deferimento dessa providência cautelar não era possível num curto espaço de tempo, demorando seguramente alguns dias a ser deferida e cumprida;

19- Durante o decurso desse período de tempo é previsível que os ditos animais domésticos fossem sujeitos a grande sofrimento e graves problemas de saúde resultantes do facto de não serem alimentados, senão mesmo a morte;

20- Daí que tenha de se concluir pela verificação dos pressupostos legais da acção directa e, consequentemente, pela exclusão da ilicitude da conduta dos arguidos, nos termos da al. b), do n.º 2 do artº. 31º do Cód. Penal;

21- Nos termos do disposto no artº. 17º, n.º 1 do Cód. Penal “Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável” ;

22- O erro sobre a ilicitude do facto verifica-se quando o agente não conhece a norma de proibição que respeita a esse facto, ou conhecendo-a tem-na por não válida, ou quando representa defeituosamente o seu âmbito de validade, e vai daí considera a sua conduta como juridicamente admissível;

23- No caso dos autos, examinando criticamente a matéria de facto dada como provada, os arguidos agiram sem consciência da ilicitude dos factos por si praticados, designadamente devido a erro directo, indirecto ou do tipo permissivo;

24- Os arguidos ainda que tenham representado o facto como uma infracção do direito, actuaram convictos de que ao destruírem parte do muro edificado pela Assistente e que os impedia absolutamente de acederem aos barracões existentes no prédio deles para aí darem de comer e de beber aos animais domésticos que ali se encontravam, a sua conduta estava justificada e não lhes podia ser censurada;

25- Agiram os arguidos na firme convicção de que a destruição parcial do muro se justificava plenamente pela necessidade actual e premente de darem alimento e bebida àqueles animais, na defesa de princípios sociais, éticos e morais nobres, que o Direito não podia senão justificar deixando de punir criminalmente essas condutas;

26- Tanto mais que o bem protegido é maior do que o bem sacrificado, quer à luz da ordem moral e ética, quer à luz do entendimento comum do homem médio que vê a conduta dos arguidos como não censurável;

27- Os arguidos agiram, pois, sem consciência da ilicitude do facto por eles praticado e, consequentemente, sem culpa;

28- A douta sentença recorrida violou, designadamente, as disposições dos artºs. 13º, 14º, 16º, n.ºs 1, 2 e 3, 17º, n.ºs 1 e 2, 31º, n.º 2, al. b), 34º e 212º, n.º 1, todos do Código Penal, e 336º do Código Civil.      

Nestes termos, nos mais de direito aplicável e atento o douto suprimento de Vªs. Exªs., deve ser substituída a douta sentença recorrida por outra que absolva os arguidos C. e M., da prática por cada um deles, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano, bem como das custas e demais encargos do processo.


*

A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, por discordar da argumentação dos recorrentes, porquanto, em seu entender:

“Não resultou demonstrado que os arguidos, desde logo, tivessem o direito de passagem na parte onde destruíram o muro da assistente, para aceder à parte do terreno que cultivam e onde possuem os barracões com animais.

Mas, e por hipótese, mesmo a terem esse direito de passagem, sempre poderiam ter recorrido aos meios coercivos normais, policiais ou judiciais, e, em caso de urgência, sempre poderiam propor uma providência cautelar.

Pelo que, perante a inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, nomeadamente a invocada nas alegações de recurso, a outra conclusão não se pode chegar de que os arguidos actuaram com conhecimento e vontade de praticar os factos que lhe foram imputados a titulo de dano, e com a consciência da ilicitude de tal conduta.

Consequentemente, praticaram os arguidos, em autoria material e na forma consumada, um crime de dano, p.p. pelo artigo 212º do Código Penal.”.

Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso interposto pelos arguidos, absolvendo-os da prática do crime, por o facto não ser ilícito, por força do disposto nos artigos 31º, n.º 2, al. b) e 34º do Código Penal, por terem agido por direito de necessidade.

Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a assistente respondeu, concluindo que deve negar-se provimento ao recurso apresentado pelos arguidos.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

“Factos provados:

1. No dia 12 de Novembro de 2013, cerca das 12 horas e 55 minutos, a arguida M. entrou na parte rústica do prédio da queixosa, sito na Rua (...), n.º 156, em (...), (...), e destruiu parte do muro de alvenaria que aí havia sido construído, nesse mesmo dia, deitando abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro.

2. Com tal conduta, a arguida M. destruiu parte do muro, propriedade da assistente, numa extensão, em altura, de cerca de um metro e, em comprimento, de cerca 1,5 metros.

3. Nesse mesmo dia, cerca das 18 horas, o arguido C. entrou na parte rústica do prédio acima indicado, propriedade da assistente, destruiu parte do muro de alvenaria que entretanto havia sido reconstruído nessa mesma tarde, deitando a baixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o já referido muro.

4. Com esta conduta, o arguido C. destruiu parte do muro propriedade da assistente numa extensão, em altura, de cerca de 1,45 metros e, em comprimento, de cerca de 1,10 a 2 metros.

5. No âmbito do processo n.º 3025/08.4TBVIS que correu termos no 3º Juízo Cível, do Tribunal Judicial de Viseu, por decisão transitada em julgado em 29/04/2013, foi declarado que a ali Autora (e aqui assistente) é dona e legitima proprietária do prédio ali identificado nos pontos 6), 7) 11) a 21), como autónomo e independente do prédio ali identificado no ponto 1) da factualidade dada como assente, e que é titular de um direito de servidão de passagem de pé e de carro de mão para acesso à parte superior, actualmente rústica, do prédio ali identificado em I), através da parte remanescente do prédio identificado no ponto 1) da factualidade apurada e com a configuração mencionada nos pontos 29) a 44) e 62) da factualidade assente, tudo conforme melhor decorre da referida sentença, cuja certidão foi junta a de fls. 84 e segs. e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido.

6. A assistente vive sozinha em moradia com quintal contíguo à propriedade dos arguidos.

7. A assistente tem actualmente 77 anos de idade (nasceu em 25/05/1942).

8. Com as descritas condutas, ao destruírem parcialmente o dito muro, os arguidos provocaram um prejuízo patrimonial de valor não concretamente apurado.

9. Os arguidos C. e mulher M. agiram livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de inutilizar e destruir em parte o dito muro de vedação, bem sabendo que o mesmo não lhes pertencia, actuando contra a vontade e em prejuízo da assistente, legítima proprietária do mesmo, assim provocando à assistente um prejuízo patrimonial de valor não concretamente apurado.

10. Os arguidos tinham conhecimento que as suas condutas eram proibidas por lei e que incorriam em responsabilidade criminal. 

11. A demandante tem vindo a evitar o contacto com os arguidos.

12. A demandante teve que se deslocar ao Posto da GNR, pelo menos por duas vezes, a fim de ser inquirida nos autos, e teve que se deslocar a este tribunal e ao escritório do seu mandatário.  

13. O prédio da assistente supra aludido confina com um prédio dos arguidos.

14. Os referidos prédios não estavam delimitados fisicamente por marcos.

15. Foi a assistente quem, por sua iniciativa, e segundo a sua vontade e interesse decidiu fazer um muro de vedação por onde quis e como quis, sem que previamente tivesse disso dado conhecimento aos arguidos.

16. Ao construir o dito muro nos termos em que o fez, e designadamente na parte em que o mesmo foi destruído pelos arguidos, a assistente quis impedir o acesso dos arguidos a uns barracões existentes no interior do prédio destes e onde tinham, e têm ainda hoje, vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos, designadamente, e onde têm também um barracão destinado a arrumos de alfaias agrícolas e de produtos agrícolas, tais como milho, feijão destinados ao consumo dos arguidos e respectiva família.

17. A construção desse muro, nos termos em que foi feito, e designadamente na parte em que o mesmo foi destruído pelos arguidos, impedia o acesso dos arguidos à parte do seu prédio destinada a agricultura e onde os mesmos cultivam vários produtos hortícolas, videiras, cereais e algumas árvores de fruto, e tornava completamente encravados quer o referido terreno agrícola dos arguidos, quer os ditos barracões, onde se encontravam os animais domésticos referidos, impedindo o acesso dos arguidos aos mesmos, coisa que era do perfeito conhecimento da assistente.

18. A arguida, na ocasião supra descrita no ponto 1, e antes de ter destruído parte do dito muro, ia-se a deslocar aos ditos barracões para dar de beber e comer aos referidos animais, quando foi confrontada com a construção do dito muro, que estava a ser levado a cabo no local do acesso àqueles.

19. E de seguida destruiu parte do aludido muro, nos termos supra mencionados, deitando abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro, e que tinham acabado de ser ali colocados, com o intuito de poder passar para o seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões, e ir dar de comer e beber aos animais domésticos supra aludidos.

20. Posteriormente, no final da tarde, quando o arguido C., marido da arguida M., se ia a deslocar aos ditos barracões, para acomodar os animais para passarem a noite, transportando nas mãos um balde com comida para eles, constatou que a dita passagem tinha sido novamente fechada a muro em blocos de cimento.

21. E de seguida destruiu parte do referido muro, nos termos supra mencionados, que havia sido reconstruído nessa mesma tarde, deitando abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro, e que tinham acabado de ser ali colocados, com o intuito de poder deslocar-se ao seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões, e dar de comer e beber aos animais domésticos supra aludidos.

22. Desde então que o referido muro permanece tal e qual ficou, desde essa altura, com uma abertura, na parte onde foi destruído, servindo-se dela os arguidos e sem que a assistente tenha proposto judicialmente qualquer acção com vista à reposição do muro.           

Quanto às condições pessoais e económicas dos arguidos provou-se que:

(...).

Quanto aos antecedentes criminais provou-se que:

41. Os arguidos não têm antecedentes criminais.


*

Factos não provados

Da prova produzida em audiência não resultaram provados quaisquer outros factos, maxime todos os que estejam em contradição com os supra enunciados e, designadamente, que:

1. O prédio da queixosa, sito na Rua (...), tem o n.º 150;

2. A extensão da destruição do muro por parte da arguida foi em cerca 2 metros de comprimento;

3. O arguido foi incentivado pela sua esposa, a arguida M., que proferia as seguintes expressões “bota a baixo, ela é uma ladra”;

4. A extensão da destruição do muro por parte do arguido foi em cerca de cerca de 1 metro em altura;

5. Tudo porque os arguidos nunca se conformaram com a decisão judicial a que se alude no ponto 8 (será o ponto 5?) dos factos provados;

6. Desde então, os arguidos têm vindo a atormentar quase diariamente a assistente;

7. A assistente vive em constante sobressalto, tem medo até de ir ao seu quintal, temendo pela sua integridade física e até pela vida;

8. Razão pela qual se viu forçada a vedar a sua propriedade, através da construção do dito muro de vedação, com rede e portões, para sua protecção;

9. A reparação do dito muro importa um custo de 480 Euros, a que acresce IVA à taxa em vigor, sendo necessário para o efeito a compra por parte da demandante de cerca 50 blocos, 1,5 metros de areia, 10 sacos de cimento e 16 horas de mão-de-obra;

11. Os arguidos/demandados actuaram com intenção de rebaixar e escarnecer a demandante, bem como de lhe gerar apreensão e temor;

12. Tendo, aliás, antecedido a sua conduta de várias ameaças proferidas para quem quisesse ouvir, em como iriam derrubar o muro;

13. O que levou a demandante a sentir-se triste e apreensiva em relação aos demandados e às atitudes que estes podiam e poderão vir a tomar;

14. A demandante tem-se escusado a sair de casa e a dirigir ao seu quintal a fim de granjear o mesmo quando os demandados se encontram junto à sua propriedade e bem assim de utilizar a servidão de passagem que o seu prédio tem sobre o daqueles;

15. E o que lhe tem provocado enorme desgaste psicológico, que se tem manifestado no seu estado de tristeza, nervosismo e ansiedade permanente em que vive e que se reflecte no seu estado de espírito de inquietude e medo; 

16. As deslocações mencionadas no ponto 12 dos factos provados ocorreram em virtude dos comportamentos e condutas assumidas pelos demandados.

17. Tais deslocações causaram também à demandante, pelo menos, enormes incómodos e aborrecimentos.

18. A assistente construiu o muro no interior do terreno pertencente aos arguidos.

19. Na ocasião mencionada no ponto 18 dos factos provados a arguida solicitou aos trabalhadores que andavam a fazer o dito muro para que parassem essa construção pelo menos até que fosse resolvida a questão desse acesso ao terreno agrícola e aos barracões da arguida, senão os animais morreriam de fome e sede, não tendo estes, nem a assistente, atendido a tal solicitação, continuando a fechar aquela passagem.

20. A arguida não destruiu nem danificou os blocos de cimento que deitou abaixo que constituíam o dito muro.

21. O arguido não destruiu nem danificou os blocos de cimento que deitou abaixo que constituíam o dito muro.

23. Os arguidos agiram sempre dentro dos limites da lei.


*

Convicção do tribunal:

(...).


***

APRECIANDO

O âmbito do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraem da respectiva motivação, de acordo com o estabelecido no artigo 412º, n.º 1 do CPP, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

No presente recurso, pugnam os recorrentes pela sua absolvição quanto ao crime de dano por que foram condenados, por consideram que o Tribunal a quo efectuou uma errada qualificação jurídica da conduta dos arguidos, pois, actuaram a coberto de causa de exclusão da ilicitude.


*

Alegam os recorrentes:

“- os arguidos destruiram parte do muro que a Assistente andava a construir;

- ficou provado que a Assistente quis com a construção daquele muro impedir o acesso dos arguidos a uns barracões existentes no interior do prédio destes e onde tinham, e têm ainda hoje, vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos;

- muro esse que, nos termos em que foi feito, impedia o acesso dos arguidos à parte do seu prédio destinada à agricultura e tornava completamente encravados quer o referido terreno agrícola dos arguidos, quer os ditos barracões, onde se encontravam os animais domésticos referidos, impedindo o acesso dos arguidos aos mesmos;

- os arguidos não tinham como aceder ao terreno agrícola do seu prédio, nem aos barracões onde tinham os animais domésticos, senão através da destruição parcial do muro, por forma a nele fazerem uma abertura que lhes permitisse a passagem para aquele trato de terreno e barracões;

- os arguidos ao derrubarem parte do muro construído pela assistente, fizeram-no licitamente, no exercício de um direito, e ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.”.

Desde já adiantamos que se nos afigura terem os recorrentes razão.

Vejamos:

A assistente é irmã do arguido e cunhada da arguida.

Resulta da factualidade dada como assente que, os arguidos destruíram parte do muro, propriedade da assistente, que estava a ser construído. Assim, cerca das 12:55h a arguida deitou abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro. E, dado que o mesmo foi reconstruído nessa tarde, cerca das 18h, o arguido deitou abaixo alguns dos blocos de cimento de tal muro.

E, foi também dado como provado:

13. O prédio da assistente supra aludido confina com um prédio dos arguidos.

14. Os referidos prédios não estavam delimitados fisicamente por marcos.

15. Foi a assistente quem, por sua iniciativa, e segundo a sua vontade e interesse decidiu fazer um muro de vedação por onde quis e como quis, sem que previamente tivesse disso dado conhecimento aos arguidos.

16. Ao construir o dito muro nos termos em que o fez, e designadamente na parte em que o mesmo foi destruído pelos arguidos, a assistente quis impedir o acesso dos arguidos a uns barracões existentes no interior do prédio destes e onde tinham, e têm ainda hoje, vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos, designadamente, e onde têm também um barracão destinado a arrumos de alfaias agrícolas e de produtos agrícolas, tais como milho, feijão destinados ao consumo dos arguidos e respectiva família.

17. A construção desse muro, nos termos em que foi feito, e designadamente na parte em que o mesmo foi destruído pelos arguidos, impedia o acesso dos arguidos à parte do seu prédio destinada a agricultura e onde os mesmos cultivam vários produtos hortícolas, videiras, cereais e algumas árvores de fruto, e tornava completamente encravados quer o referido terreno agrícola dos arguidos, quer os ditos barracões, onde se encontravam os animais domésticos referidos, impedindo o acesso dos arguidos aos mesmos, coisa que era do perfeito conhecimento da assistente.

18. A arguida, na ocasião supra descrita no ponto 1, e antes de ter destruído parte do dito muro, ia-se a deslocar aos ditos barracões para dar de beber e comer aos referidos animais, quando foi confrontada com a construção do dito muro, que estava a ser levado a cabo no local do acesso àqueles.

19. E de seguida destruiu parte do aludido muro, nos termos supra mencionados, deitando abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro, e que tinham acabado de ser ali colocados, com o intuito de poder passar para o seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões, e ir dar de comer e beber aos animais domésticos supra aludidos.

20. Posteriormente, no final da tarde, quando o arguido C., marido da arguida M., se ia a deslocar aos ditos barracões, para acomodar os animais para passarem a noite, transportando nas mãos um balde com comida para eles, constatou que a dita passagem tinha sido novamente fechada a muro em blocos de cimento.

21. E de seguida destruiu parte do referido muro, nos termos supra mencionados, que havia sido reconstruído nessa mesma tarde, deitando abaixo alguns dos blocos de cimento que constituíam o dito muro, e que tinham acabado de ser ali colocados, com o intuito de poder deslocar-se ao seu terreno, na parte onde se encontravam os ditos barracões, e dar de comer e beber aos animais domésticos supra aludidos.

22. Desde então que o referido muro permanece tal e qual ficou, desde essa altura, com uma abertura, na parte onde foi destruído, servindo-se dela os arguidos e sem que a assistente tenha proposto judicialmente qualquer acção com vista à reposição do muro.

Ora, é com base nesta factualidade, dada como assente, que os recorrentes desenvolvem a sua argumentação no recurso que interpuseram, por considerarem que a sua conduta está justificada, nos termos do artigo 31º, n.ºs 1 e 2, al. b) do C.Penal.

Igualmente, na contestação que apresentaram, os arguidos suscitaram as mesmas questões, daí que, na apreciação do direito da sentença recorrida a Exmª Juiz a quo tenha deixado consignado:

« (…). Mostram-se, assim, preenchidos os elementos típicos do crime de dano que lhes vem imputado.

Não obstante os demais factos demostrados nos pontos 15 a 22, cumpre ainda aqui frisar que não se pode afirmar que os arguidos actuaram de forma lícita, e no exercício de um direito, e ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, sendo certo que tais factos, não os autoriza a usar do recurso à força, destruindo o dito muro.

(...)

A ilicitude significa que a ordem jurídica liga à agressão um sentido de desvalor jurídico, supondo que ela contraria uma norma geral e abstracta e viola um interesse geral protegido.

O requisito da necessidade significa que a defesa só será legítima se ela se apresentar como indispensável para a salvação de um interesse jurídico agredido.

Ora, no caso vertente não se verificam requisitos supra referidos, já que não se verificou qualquer agressão actual e ilícita por parte da assistente.

Por sua vez, e no que concerne à acção directa impõem-se que a actuação do agente seja indispensável, pela impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática de um direito.

(...)

No caso concreto, não resultou demostrado, que os arguidos têm o direito de passagem na parte onde destruíram o muro para aceder à parte do terreno agrícola que cultivam e onde possuem os mencionados barracões, onde têm os aludidos animais.

 Mas, mesmo a terem tal direito de passagem, sempre poderiam ter recorrido aos meios coercivos normais, policias ou judiciais, sendo certo que mesmo em caso de urgência sempre poderiam propor uma providência cautelar.

Todavia, optaram desde logo por proceder à supramencionada destruição, não sendo, por conseguinte, legítima a sua actuação.

Com efeito, o facto de os arguidos terem ou não o dito direito de passagem, não afasta o carácter alheio do bem destruído, e não se vê por que razão estavam os mesmos impedidos de recorrer aos meios judiciais em tempo útil, ou ainda que a acção directa fosse indispensável para evitar a inutilização prática de um direito.

(...).

Assim sendo, face à inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, resta concluir que os arguidos actuaram com conhecimento e vontade (animus danificandi) de praticar os factos que lhes são imputados a título de dano. E com consciência da ilicitude de tal conduta (...).

Flui do exposto que, como se adiantou, contrariamente ao pugnado pelos arguidos, a sua actuação não se mostra legitimada.».

O crime de dano pelo qual os arguidos foram acusados e condenados está previsto no artigo 212º, n.º 1, do CP, o qual estabelece que: «Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»

O bem jurídico protegido é a propriedade. Assim, a incriminação do dano protege a propriedade alheia contra agressões que atingem a existência ou a integridade do estado da coisa, através de quatro modalidades de acção típica: destruir, danificar, desfigurar e tornar não utilizável a coisa.

Quanto ao elemento subjectivo da infracção, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades: directo, necessário e eventual.

Sustentam os recorrentes que agiram a coberto de causa de exclusão da ilicitude. Teremos de concordar com tal entendimento, em função da factualidade dada como provada.

Com efeito,

Dispõe o artigo 31º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal que “o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade (...) nomeadamente, no exercício de um direito”.

Como salienta Figueiredo Dias ([1]), o afastamento da punibilidade fica a dever-se “a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que in casu não seja razoável exigir dele outro comportamento”.

E, um desses direitos é o «direito de necessidade», o qual pressupõe a existência de três requisitos cumulativos.

Estabelece o artigo 34º do CP que: «Não é ilícito o facto praticado como meio adequado a afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificadoe

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado».

Como escrevem Simas Santos e Leal Henriques, em anotação ao art. 34º,
“está-se perante o estado de necessidade quando, não se verificando a legítima defesa, só é possível salvar certos interesses ou valores, ameaçados ou em perigo, sacrificando, através de um comportamento que preenche um tipo legal de crime, outros interesses juridicamente protegidos”. Acrescentando que “o estado de necessidade, contrariamente ao que ocorre com a legítima defesa, é, eminentemente subsidiário: não existe se o agente podia conjugar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem”.

Ou ainda, como sublinha Figueiredo Dias ([2]) “De acordo com o disposto na al. b) do art. 34º só tem lugar a justificação por direito de necessidade se houver “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”. Aqui deparamos verdadeiramente com o cerne da figura em análise, com a lídima expressão do seu fundamento justificador: ela segue em primeira linha, o princípio do interesse preponderante. Por outras palavras, a lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau do perigo que os ameaça, é dizer, dos decursos possíveis do acontecimento em função da violação (ou perigo de violação) dos bens jurídicos que lhe está ligada”.

No caso vertente, ficou consignado na fundamentação da decisão de facto:

«Os factos dados como provados nos pontos 15 a 22 resultam da conjugação das declarações dos arguidos na parte em que confirmaram na sua essência tais factos, o que foi secundado em certa medida pela assistente, na parte em que corroborou que tomou a iniciativa de mandar proceder à construção do muro em causa, sem que previamente tivesse disso dado conhecimento aos arguidos, e que a construção do muro impedia o acesso dos arguidos a que se alude nos pontos 16 e 17 dos factos dados como provados, o que aliás foi secundado pelas testemunhas (...), (...), (...) e (...), que confirmaram tais factos, e o que logrou convencer, e foi também constatado na própria inspecção ao local (cfr acta de fls. 414 a 415 e respectiva reportagem fotográfica efectuada no decurso de tal inspecção local que se encontra vertida no CD junto a fls. 416).»   é nosso o sublinhado

Portanto, não estando os prédios da assistente e dos arguidos delimitados fisicamente por marcos, a assistente decidiu fazer um muro de vedação, sem dar prévio conhecimento aos arguidos. Foi, pois, com surpresa que, no próprio dia da sua construção, os arguidos se depararam com um muro, precisamente no local onde os arguidos acediam à parte do seu prédio destinada à agricultura e onde tinham vários animais domésticos, tais como galinhas e coelhos e barracões, um deles destinados a arrumos de alfaias agrícolas e de produtos agrícolas, o que era do conhecimento da assistente.

Ou seja, tal como ficou provado, a construção desse muro (designadamente na parte em que o mesmo foi destruído pelos arguidos), tornava completamente encravados quer o terreno agrícola dos arguidos, quer os barracões onde se encontravam os referidos animais, impedindo o acesso dos arguidos aos mesmos.

De notar que, desde então que o referido muro permanece tal e qual ficou, desde essa altura, com uma abertura, na parte onde foi destruído, servindo-se dela os arguidos e sem que a assistente tenha proposto judicialmente qualquer acção com vista à reposição do muro. (facto 22)

 

Considerou a sentença recorrida que “os arguidos sempre poderiam ter recorrido aos meios coercivos normais, policias ou judiciais, sendo certo que mesmo em caso de urgência sempre poderiam propor uma providência cautelar”.

Acontece que, a necessidade de os animais serem alimentados, e cuidados, diariamente, não se compadece com os tempos da justiça, mesmo no caso de uma providência cautelar.

Deste modo, acompanhamos o Exmº PGA quando no seu Parecer considera que “a conduta dos arguidos foi para afastar um perigo actual que ameaçava interesses jurídicos protegidos dos arguidos, não tendo tal perigo sido criado voluntariamente por eles, haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, e ser razoável impor à ofendida o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza do interesse ameaçado”.

Por conseguinte, entendemos que os arguidos agiram ao abrigo do direito de necessidade, nos termos dos artigos 31º, n.º 2, al. b) e 34º, do Código Penal.

Assim, pese embora a conduta dos arguidos tenha preenchido os elementos objectivos do crime de dano, dado que actuaram ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, nos termos dos preceitos acima mencionados, a sua conduta não lhes pode ser imputada a título de dolo, em qualquer das suas modalidades, impondo-se a sua absolvição da prática do referido crime.


***

III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedente o recurso e, em consequência, absolver os arguidos C. e M. da prática do crime de dano, por que se encontravam acusados.

Sem custas.

Coimbra, 21-4-2021

Texto processado em computador e integralmente revisto pela relatora e assinado electronicamente - artigo 94º, n.º 2 do CPP

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime, 2ª parte, Sobre a construção do tipo-de-culpa e os restantes pressupostos da punibilidade, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, 1º, pág. 28.

[2] - Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 445.