Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
258/09.0GAFZZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FERREIRA DO ZÊZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 308º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Tratando-se de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação do mesmo traduz-se numa nulidade, que é sanável e, assim, dependente de arguição, no prazo de dez dias, a partir da respectiva notificação.
Decisão Texto Integral: I. Relatório
1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 258/09.0GAFZZ que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Ferreira do Zêzere, o Ministério Público, em despacho de 27 de Abril de 2010, acompanhou a acusação particular deduzida pelo assistente AF..., quanto ao crime de injúria imputado ao arguido AA... e, simultaneamente, ao abrigo do disposto no art. 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP), proferiu despacho de arquivamento quanto aos demais factos participados.
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2. Inconformado, o assistente AF... veio requerer a abertura da instrução, nos termos constantes de fls. 107/116, para que a final fosse proferido despacho de pronúncia do arguido, pelo cometimento dos crimes que, no seu ponto de vista, estão suficientemente indiciados, o de ameaça agravada, p. e p. pelo artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e o de coacção agravada, p. e p. pelo art. 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), do citado Código.
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3. Admitida a abertura da instrução, e sem a realização de diligências instrutórias, teve lugar o respectivo debate, tendo a final o Sr. Juiz de Instrução proferido despacho de não pronúncia.
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4. Desse despacho recorreu o assistente AF…, tendo formulando na motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1.ª – Nos presentes autos, a Dignm.ª Magistrada do Ministério Público entendeu não deduzir acusação contra o arguido, por considerar que os factos que o assistente se queixou, abstractamente, não consubstanciam a prática de dois crimes de ameaça p. e p. pelos artigos 153.°, n.º 1 e 155.°, n.° 1, al. a), ambos do C. Penal.
2.ª - Fundamentando o arquivamento do presente inquérito no n.° 1 do artigo 277.° do CPP, porque a conduta que o assistente descreve “não se trata de um mal futuro, mas sim iminente só não concretizado, porquanto o denunciante abandonou o lugar”;
3.ª - Discordando deste arquivamento, o assistente requereu a abertura da instrução, fundamentando que os factos denunciados: (1) têm enquadramento no âmbito da tutela penal; (2) estão verificados indícios suficientes da prática de crime de coacção agravada e de ameaça agravada: (3) divergindo, no entanto, quanto à qualificação jurídica abordada no despacho de arquivamento;
4.ª - Foram pedidas diligências de prova, relativamente à factualidade descrita no requerimento de abertura da instrução, que o douto tribunal indeferiu, designando desde logo debate instrutório.
5.ª - Foi proferida decisão instrutória que decidiu não pronunciar o arguido pela prática dos crimes imputados no requerimento de instrução, de coacção agravada p. e p. pelos artigos 154.° e 155, n.° l, al. a), e ameaça agravada p. e p. pelos artigos 153.º, n.º l e 155.°, n.° l, al. a), ambos do Código Penal;
6.ª - O assistente discorda da decisão proferida, pois que, em primeiro lugar, não resulta da decisão quais os factos apurados e que foram tidos em conta para a tomada de decisão, elementos que em nosso entender são essenciais à boa inteligibilidade da decisão e que a vicia de nulidade, nos termos e de acordo com o artigo 308.°, n.° 2 e 283.°, n.° 3, do CPP.
7.ª - Sendo que, relativamente aos factos apurados em inquérito, não existem dúvidas que o Ministério Público profere despacho de arquivamento, tendo como base os factos da queixa, “confirmados pelas testemunhas”, admitindo a existência daqueles factos e, pronunciando-se de mérito, desqualificando a conduta como crime de ameaça e assim arquivando o inquérito com fundamento no n.° l do artigo 277.° do CPP, ao mesmo tempo que acompanha a acusação particular, com base nos mesmo depoimentos.
8.ª - A presente decisão instrutória, sem ter sido realizada qualquer diligência de prova, recua nesta questão, visto que, decreta a não pronúncia com fundamento na falta de indícios suficientes, ou seja, no n.° 2 do artigo 277.°, designadamente, “na disparidade de versões e face à falta de detalhe e disparidade de depoimentos”.
9.ª - Fundamento e contradição que o assistente não aceita e tem dúvidas sobre a sua legalidade.
10.ª - Ora, dos autos as quatro testemunhas e o assistente são unânimes quanto à factualidade essencial - que o arguido detinha um arma - e todos eles, com excepção de uma única testemunha - que o arguido disparou um tiro para o ar e abriu a arma para a recarregar -, (sendo certo que a testemunha que refere não ter ouvido o tiro, tem vindo a ser “pressionada” pelo arguido quanto ao teor do seu depoimento).
11.ª - Por outro lado, o douto tribunal retira estas conclusões (distintas do Ministério Público) apenas e só da interpretação e leitura dos relatos do assistente e testemunhas existentes no processo. Ora, se o tribunal tinha dúvidas quanto à “disparidade de versões” nos depoimentos prestados em inquérito, deveria ter realizado diligências instrutórias, não sendo permitido ao tribunal valorar e interpretar os depoimentos prestados e escritos em sede de inquérito, sob pena de violação do artigo 290.°, n.° 2 e 291.° n.° 3 do Código de Processo Penal em vigor.
12.ª - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (artigo 286.°, n.° 1), sendo que, para o efeito, o juiz está obrigado a praticar todos os actos necessários à realização das finalidades referidas, designadamente, o interrogatório do arguido, que neste caso, se remeteu ao silêncio e a inquirição das testemunhas (que foram indeferidas e, não obstante, foram consideradas como não credíveis).
13.ª - Sendo que, o artigo 291.º, n.° 3, do CPP, prevê que os actos e diligências de prova na fase de instrução são repetidos quando tal se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução, o que em nosso modesto entender sucede, face à decisão recorrida e à contradição existente com o despacho de arquivamento, que não colocou em causa o depoimento destas testemunhas.
14.ª - Nesta situação, parece-nos essencial a reinquirição pelo juiz de instrução, fazendo funcionar o princípio da imediação e da livre apreciação da prova e de forma a se decidir ou não pela submissão da causa a julgamento.
15.ª - E, com o devido respeito, da análise dos depoimentos descritos, é nosso entender que, no processo existem factos que merecem a intervenção de tutela penal e que são indiciadores suficientes da prática de crimes.
16.ª - Os depoimentos prestados são suficientemente indiciadores da prática pelo arguido dos crimes de coacção agravada e ameaça agravada, não encontrando fundamento para desvalorizar tais depoimentos, somente porque não esclarecem: “Para onde o denunciante se dirigia?” ou “Qual a razão do disparo?”
17.ª - Ao mesmo tempo, não vislumbramos alicerce para, “caso o arguido tivesse disparado como “advertência” ao denunciante, para não avançar, ou o agredir, porque estava armado este acto seria considerado uma causa de exclusão de ilicitude - legítima defesa - já que o arguido teria usado aquele disparo para o ar para afastar um acto ilícito iminente”, conforme refere a douta decisão.
18.ª - Tais fundamentos não passam de meras suposições, já que não foi sequer abordado no inquérito ou alegado pela defesa e tal situação não se enquadraria no artigo 32.° do Código Penal.
19.ª - Quanto à “alegada espera”, de noite e de arma em punho, efectivamente, o arguido no requerimento de instrução apresenta uma “versão mais composta” desta, mas fá-lo, dando cumprimento ao disposto legal, doutrina e Jurisprudência, que são unânimes em afirmar que o requerimento de abertura de instrução tem que conter todos os requisitos formais e substancias da acusação, nos termos e de acordo com os artigos 287.° n.º 2 e 283.°, n.º 3, do CPP, sob pena de indeferimento.
20.ª - Não entrevendo, nesta parte da instrução, a existência de quaisquer factos novos e, caso assim fosse, o Tribunal teria de dar cumprimento ao disposto no artigo 303.° do CPP, o que não foi sequer abordado.
21.ª - No entender do arguido, as circunstâncias em causa, todo o enredo descrito e verificado desta situação, designadamente: o bloqueio da passagem, a aposição de escritos do tipo “vou-te matar”, com “engenhos explosivos”, o facto de no dia antes o arguido ter empunhado uma arma e disparado um tiro e, na noite seguinte ficar à espera, de arma em punho, afirmando às pessoas em geral, que está à espera do assistente, em nosso modesto entender, são factos mais que suficientemente indiciadores da prática de um crime de ameaça de morte, por consubstanciarem um verdadeiro e real anúncio de um mal futuro.
22.ª - Pelo que, é nosso entender, que a presente instrução e decisão instrutória são nulas, devendo a decisão ser revogada por outra que decrete a pronúncia do arguido, pelos crimes de coacção agravada e ameaça agravada previstos e punidos pelos artigos 154.° e 155.°, n.° 1, al. a) e 153.°, n.° 1 e 155.°, n.° 1, al. a), todos do Código Penal.
23.ª - E assim, o presente recurso ser admitido nos termos e de acordo com o artigo 414.º do CPP e a presente decisão instrutória ser revogada por outra, de pronúncia, nos termos e de acordo com o artigo 308.°, do C.P.P.
24.ª - Sempre com a plena convicção de V. Exas farão a devida justiça.
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5. O Ministério Público e o arguido AA... responderam ao recurso, pugnando ambos pela sua improcedência.
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6. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido (cfr. fls. 209/211).
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7. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, o assistente e o arguido não exerceram o seu direito de resposta.
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8. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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II. Fundamentação:
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:
Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
As conclusões apresentadas pelo recorrente AF... circunscrevem o recurso às seguintes questões:
- Das consequências jurídicas decorrentes da omissão de reinquirição do arguido, do assistente e das testemunhas AL..., JC..., JC... e MI...;
- A decisão instrutória de não pronúncia é nula, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP, por não conter a narração “dos factos apurados”;
- Existem indícios suficientes da prática, em concurso efectivo, pelo arguido, de um crime de coacção agravada e ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) e 153.º, n.º 1, al. a) e 155.º, n.º 1, al. a), respectivamente, todos do Código Penal?
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2. Do mérito do recurso:
2.1. Para além do excurso dogmático que contém em redor da ratio da instrução e do conceito jurídico relativo à suficiência de indícios, é do seguinte teor a decisão de não pronúncia:
«IV. Indícios recolhidos:
Do inquérito foi possível recolher os seguintes elementos:
- O assistente AF... declarou, em síntese, que, no dia 21/08/2009, uma passagem que dava acesso à sua casa encontrava-se bloqueada. No dia 22/08/2009, o arguido saiu de sua casa e lhe disse “cobarde, cobardola, anda cá meu cobarde, ladrão, filho da puta”. O Assistente deslocou-se à passagem e o denunciado saiu de casa, empunhou uma arma, e disparou-a para o ar, na direcção do assistente. Após, abriu-a, e o assistente e demais pessoas (indicadas como testemunhas), refugiaram-se na habitação do assistente, com receio de serem atingidas com um disparo – cfr. fls. 13;
- A testemunha AL... afirmou, em síntese, que, no dia 22/08/2009, ouviu o arguido a chamar ao assistente “cabrão, ladrão, filho da puta”. O assistente saiu do lugar onde se encontrava. Momentos depois ouviu um disparo, não sabendo quem o efectuou – cfr. fls. 14;
- A testemunha JC... depôs, em síntese, que ouviu o arguido a chamar ao assistente “cabrão, filho da puta, aldrabão, cobarde”. O assistente dirigiu-se então ao arguido. Este foi a casa buscar uma caçadeira. O assistente e as testemunhas recuaram então. Mais afirmou que estava no local mas não ouviu qualquer disparo. – cfr. fls. 15;
- Inquirido novamente, o assistente afirmou que o arguido lhe fez uma espera a noite inteira – cfr. fls. 32;
- A testemunha JC... afirmou, em síntese, que em 22/08/2009 ouviu o arguido a chamar o assistente de “chulo, filho da puta, cobarde e cabrão”, tendo o assistente referido que havia o arguido de justificar os nomes que chamava. O arguido entrou então em sua casa e saiu empunhando uma caçadeira, tendo efectuado um disparo, não sabendo em que direcção. Após, refugiou-se me casa do assistente aproveitando um momento em que o arguido abriu a arma para a carregar – cfr. fls. 39;
- O arguido remeteu-se ao silêncio – cfr. fls. 50;
- A testemunha MI..., filha da testemunha AL... afirmou, em síntese, que, no dia em causa se encontrava no local, tendo o assistente se deslocado a uma passagem para retirar o que a estava a bloquear. Após, o arguido chamou ao assistente “filho da puta, cobarde, ladrão, vigarista, cabrão”. A testemunha estava a segurar o assistente para este não se envolver com o arguido. O arguido dirigiu-se então a sua casa tendo regressado com uma caçadeira e disparado para o ar. O arguido disse então que ia buscar mais cartuchos, e, nesta altura, a testemunha e o assistente correram para o pátio de sua casa, e chamaram a GNR – cfr. fls. 57;
- O arguido não tem antecedentes criminais – cfr. fls. 61;
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V. A tipificação legal e a existência ou inexistência de indícios suficientes:
Dos elementos de prova recolhidos existe uma uniformidade no que respeita às expressões injuriosas que, em 22/08/2009, o arguido proferiu contra o assistente. Contudo, não é esse o objecto do requerimento de instrução, já que, quanto a estes factos, o assistente, entretanto, já deduziu acusação particular – cfr. fls. 64 a 71.
O requerimento de abertura de instrução debruça-se sobre um conjunto de factos, alegadamente contemporâneos dos actos injuriosos, e que se relacionariam, para o Ministério Público com o crime de ameaças e, para o assistente, com o crime de ameaças agravado e o crime de coacção agravado.
Comecemos pelos factos ocorridos a 22/08/2009.
Quanto a estes factos, a dinâmica de como, alegadamente, ocorreram, segundo os diversos depoimentos, é tudo menos uniforme:
- Na versão do assistente, este deslocou-se à passagem e o denunciado saiu de casa, empunhou uma arma, e disparou-a para o ar, na sua direcção e, ao abrir a arma para a voltar a carregar, o assistente correu para sua casa;
- A testemunha AL... só ouviu um disparo e não sabe quem disparou;
- A testemunha JC... não ouviu nenhum disparo;
- A testemunha JC... refere que o assistente, após as palavras injuriosas, se dirigiu ao arguido;
- A testemunha MI..., por sua vez, afirma que o assistente se dirigiu à passagem para remover objectos que a obstruíam, o arguido profere expressões injuriosas, vai a casa buscar a caçadeira, dispara para o ar, diz ao assistente que vai buscar mais cartuchos, e o assistente e testemunha dirigem-se ao pátio.
Ou seja, cada testemunha, sua versão.
Afinal o assistente dirigiu-se ao arguido momentos antes do disparo (como refere JC...)?; ou dirigiu-se à passagem (como declarou o assistente)?; ou estava na passagem e o arguido surgiu depois (como refere MI...)?
Por outro lado, parece certo que o arguido empunhou uma arma. E, com excepção de JC..., todas as outras testemunhas afirmaram que a disparou, o que indicia claramente que o arguido, efectivamente, a disparou (a testemunha JC... até poderá ter saído do local antes do disparo). Mas o que sucedeu depois? O arguido abriu a arma para, previsivelmente a recarregar e o assistente e as testemunhas fugiram (versão do assistente e de JC...)? Ou o arguido disse que ia buscar mais cartuchos e dirigiu-se para sua casa (versão de MI..., filha do assistente)?
Ou será que, como refere o assistente na acta do debate instrutório e que está em consonância com o depoimento da testemunha AL…, nenhuma das testemunhas estava no local e, por isso mesmo, nenhuma viu a arma a disparar, e, por conseguinte, cada uma conta uma versão diferente de um episódio que não assistiram na totalidade?
De facto a imputação, ao arguido, da prática de qualquer crime pressupõe que existam indícios suficientes da prática de determinados factos criminalmente puníveis.
Ora, perante a disparidade de versões, e face à falta de detalhe e disparidade dos depoimentos, não se poderá considerar existirem indícios suficientes da prática de determinado crime.
Porque razão terá o arguido disparado?
O arguido disparou a arma como advertência, temendo que o arguido avançasse para ele e para lhe mostrar que não o deveria agredir, porque estava armado?
Se for este o caso, existiria sempre uma causa de exclusão da ilicitude (legítima defesa), já que o arguido teria usado daquele meio (disparo para o ar) para afastar um acto ilícito iminente – cfr. art. 32.º do Cód. Penal.
E repare-se: esta possibilidade não está afastada, porque a testemunha MI... depôs no sentido de estar a segurar o assistente para este não se dirigir ao arguido…!.
Desta forma, claramente inexistem indícios suficientes de que o arguido praticou qualquer ameaça (anúncio ilícito de um mal futuro). E, pela mesma razão, também não existem indícios suficientes da prática do crime de coacção. Com efeito, não se mostram suficientemente indiciadas as reais intenções do arguido porque as versões relatadas são díspares e inconciliáveis em aspectos que, concretamente, relevam para este efeito. Disparou para o ar para se defender de uma agressão iminente? Disparou para o ar para constranger o assistente a não se deslocar no local?
As várias versões são inconciliáveis e não é possível, aos olhos do Tribunal, fazer sobressair umas das versões em detrimento das restantes.
Aliás, é o próprio assistente que, no exercício do direito de réplica, veio colocar em causa que as testemunhas estivessem no local. E este aspecto é bem revelador do desnorte da versão do próprio assistente, que em inquérito afirmou que as testemunhas se encontravam presentes no local e que fugiram com o disparo.
Por conseguinte, perante a inexistência de indícios suficientes da prática de qualquer crime, bem andou o Ministério Público ao arquivar os autos nesta parte.
Resta, no entanto, apreciar os factos relativos à alegada “espera”.
O Ministério Público nem conseguiu sequer qualificar estes factos.
O Assistente vem agora, na instrução, relatar uma versão muito mais composta desta, alegada, “espera”.
Mas o Tribunal deve avaliar a existência de indícios tendo por base a denúncia do assistente. E este, em acto complementar à denúncia, limitou-se a referir que “além destas ameaças com a arma caçadeira, teve também conhecimento de que o denunciado lhe fez uma espera armado uma noite inteira” – cfr. fls. 32.
E são estes, e só estes os factos que agora o Tribunal deve analisar. Os factos agora, neste âmbito, trazidos ao requerimento de abertura de instrução são factos novos, que não foram objecto de inquérito e que, por isso, o seu conhecimento está vedado.
Ora, independentemente de tudo, o assistente não relatou qualquer ameaça. Estar à espera de outra pessoa uma noite inteira não é anunciar-lhe a prática de qualquer mal futuro.
Mais uma vez, portanto, bem andou o Ministério Público ao arquivar os autos também nesta parte».
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VI. Decisão:
Face ao exposto, o Tribunal decide confirmar o despacho de arquivamento e, desta forma, não pronunciar o arguido AA... pela prática dos crimes de coacção agravado, p.p. pelo art. 154.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal e ameaça agravada, p.p. pelo art. 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Penal, crimes imputados no requerimento de abertura de instrução.
Esta decisão, não afecta, evidentemente, a parte relativa à acusação particular, prosseguindo os autos os seus normais termos, relativamente a esta parte».
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2.2. Como flui do n.º 4 do art. 288.º do CPP, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento de abertura de instrução, a que se refere a parte final do n.º 2 do artigo anterior. Em consonância, a instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda levar a cabo (...) - art. 289.º, n.º 1 -, efectuando-se os actos de instrução pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade, indeferindo ele, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que não interessam à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e praticando ou ordenando oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de reclamação, só havendo lugar à repetição dos actos e diligências praticados no inquérito no caso de não terem sido observadas as formalidades legais ou quando a repetição se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução - art. 291.º, n.ºs 1 e 2.
Perante este quadro legal, a insuficiência de instrução, como nulidade, só pode respeitar à omissão de actos que a lei prescreva como obrigatórios, se para essa omissão a lei não dispuser de forma diversa, só assumindo esse carácter de obrigatoriedade o interrogatório do arguido, quando por este solicitado, para além de outros casos predeterminados na lei, quando requeridos. Cfr. Germano Marques da Silva, Do processo Penal Preliminar, p. 320-321, e Curso de Processo Penal, Vol. II, p. 80.
No caso, o recorrente não invoca a omissão de actos de instrução impostos por lei, limitando-se a discordar da posição tida pela Sr.ª Juíza, ao omitir a reinquirição da arguida, da assistente e das 4 testemunhas, mas sem que refira sequer qualquer irregularidade formal das inquirições feitas em inquérito e sem que tivesse deduzido qualquer reclamação perante o despacho de fls. 128/129, que teve por desnecessárias à instrução as diligências requeridas pelo assistente.
Improcede, pois, esta vertente do recurso.
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2.3. Há que apreciar agora se a decisão instrutória padece de nulidade, nos termos do disposto nos artigos 308.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, do CPP, por não conter a narração dos factos provados e não provados em termos indiciários.
Este fundamento do recurso reside na omissão de fundamentação de facto do despacho de não pronúncia, em virtude de não conter a indicação dos factos que o Sr. Juiz de Instrução tem, em termos indiciários, como provados e não provados, face aos elementos de prova recolhidos nos autos.
Na exegese do recorrente, tal falta afecta esse despacho de nulidade, em face do disposto no artigo 308.º, n.º 2, por referência ao artigo 283.º, n.º 3, ambos os preceitos do CPP.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 286.º do CPP, «a instrução visa a comprovação da decisão judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Perante a abstenção do Ministério Público em deduzir acusação, o requerimento do assistente deve conter, além de outros, os requisitos exigidos para a acusação, definidos no artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPP (aplicável ao requerimento de instrução por força do disposto no n.º 2 do artigo 287.º do mesmo Código).
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do acto que os afecte e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o acto de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzia acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o M.º P.º não tiver deduzido acusação. Estando em causa crimes particulares, a instrução não pode ter lugar a requerimento do assistente, uma vez que em crimes desta natureza a acusação do M.º P.º, se tiver lugar, segue a do assistente, sendo por esta substancialmente limitada (art. 285.º, n.º 3), podendo, deste modo, o assistente promover sempre o julgamento, formulando a sua acusação, a qual tem inteira autonomia da decisão que o M.º P.º tenha por bem adoptar.
A estrutura acusatória do processo penal exige, porém, que a intervenção do juiz não seja oficiosa e, além disso, que tenha de ser delimitada pelos termos da comprovação que se lhe requer sobre a decisão de acusar ou, se não tiver sido deduzida acusação, sobre a justificação e a justeza da decisão de arquivamento.
Por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução: “tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução”, como refere o n.º 4 do artigo 288.º.
O requerimento de abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz de instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
No caso de requerimento de instrução do assistente, «o pressuposto da vinculação temática do processo só pode ser constituído pelos termos desse requerimento, que há-de definir as bases de facto e de direito da questão a submeter ao juiz. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há, assim, uma similitude funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura da instrução no caso de não ter sido deduzida acusação». Ac. do STJ de 24-09-2003, proc. 2299/03, http://www.dgsi,pt/.
Neste requerimento, muito embora não sujeito a formalidades especiais, o assistente deve indicar as razões de facto e de direito (art. 287.º, n.º 2) da sua divergência relativamente à posição de não acusação do M.º P.º.
Seguindo as palavras do Prof. Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, III, pág. 139., formalmente o assistente indica como o M.º P.º deveria ter actuado, ou seja que «não deveria arquivar, mas acusar e em que termos o deveria ter feito», invocando razões daquela dupla vertente, sendo imprescindível que do requerimento de abertura de instrução conste a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes imputados a cada um dos arguidos e das disposições legais.
Assim, o requerimento do assistente, no plano material, consubstancia uma acusação que, nos mesmos termos da acusação formal, condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão acusatória.
Intimamente conexionados com a função de acusação, em sentido material, que o requerimento de abertura de instrução deve desempenhar e, por consequência, de delimitação do objecto do processo, com a inerente vinculação temática, estão os arts. 303.º e 309.º, do CPP.

Um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público e do despacho de pronúncia pelo juiz de instrução é a insuficiência de indícios da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes [cfr. artigos 277.º, n.º 2 e 308.º, n.º 1, ambos do CPP)].
A decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume, sem dúvida, a natureza de acto decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo (cfr. al. b) do n.º 1 do artigo 97.º do CPP).
O despacho de não pronúncia deverá ser proferido sempre que, perante o material probatório constantes dos autos, não se indicie que o arguido, se vier a ser julgado, venha provavelmente a ser condenado, sendo tal probabilidade sustentada um pressuposto indispensável da submissão do feito a julgamento.
Por esse motivo, o despacho de não pronúncia tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
Como bem se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 10-07-2007 e da Relação do Porto de 17-02-2010 Procs. n.º 1075/07-5 e 58/07.1TAVNH.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt., só da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de um futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas. E é sobre esse juízo que o Tribunal da Relação pode decidir do acerto ou não da decisão recorrida.
Para que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se imperioso saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.
Por isso, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 22-11-2005, proferido no proc. n.º 1324/05-1. Veja-se ainda, no mesmo sentido, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Portuguesa, anotação ao artigo 308.º do CPP, pág. 768..
No caso dos autos, alegou o assistente no seu requerimento de abertura da instrução os factos infra transcritos:
«10. Dos autos de diligência de inquérito, o douto despacho de arquivamento é omisso quanto à factualidade que resultou indiciada, designadamente que:
11. No dia 21 de Agosto de 2009, da parte da tarde, o denunciante, ao querer entrar na sua propriedade, sita em O…, cujo acesso é feito por uma passagem pública aí existente,
12. O arguido havia obstruído esse caminho com uma cadeira, uma barrica, um rolo de cabo de aço e uma estaca em madeira, com um bloco de cimento em cima;
13. De forma a obstruir que o assistente ali passasse.
16. No dia seguinte, 22 de Agosto de 2009, cerca das 19h30, o arguido, apercebendo-se da presença do assistente e de uns amigos no quintal e na passagem acima descrita, entrou na sua casa de habitação, donde saiu empunhando uma arma de caça;
17. E, de imediato, efectuou um disparo;
18. Tendo de seguida, aberto a arma para a carregar;
19. Ao que o assistente começou a correr, de forma a conseguir refugiar-se dentro da sua casa de habitação.
20. O arguido actuou com o propósito concretizado de impedir, como impediu que o assistente ali estivesse;
21. Actuando com o intuito claro de provocar um sentimento de insegurança, intranquilidade e de constrangimento quanto à liberdade de acção e decisão do assistente;
22. O que conseguiu;
23. Após tudo isto, nesse mesmo dia, o assistente teve conhecimento, por um terceiro chamado JL... que o arguido no dia 19 de Agosto lhe disse que:
- “Esteve toda a noite à espera do assistente;
- Que não tinha dormido, com a espingarda à espera que o assistente aparecesse”;
- Que ai (caminho) ele não passava, pois fazia justiça à sua maneira”;
25. O arguido igualmente actuou desta forma, com o propósito de causar ao assistente temor e receio pela sua vida, já que o faz de forma intimidatória e bem credível;
26. O que também conseguiu, pois o assistente vive com receio de perder a vida, com medo de se deslocar, circular e permanecer nesta casa de veraneio, que adquiriu, por herança de seus pais, sita em O…, Ferreira do Zêzere;
(…)».
No caso dos autos, o Sr. Juiz começou por fazer o saneamento do processo, considerando não existirem nulidades ou questões prévias a conhecer e, em seguida, depois de fazer uma resenha dos elementos probatórios produzidos em sede de instrução e uma análise crítica da prova, e de afastar os “factos novos”, ou seja, situados fora do objecto do inquérito (referidos no art. 23), concluiu pela não pronúncia do arguido.
Porém, não descreve quais os factos do RAI que considera suficientemente indiciados e os que não vislumbra indiciados com suficiência.
Torna-se, deste modo, evidente que a decisão sob recurso não deu cumprimento ao determinado no artigo 308.º, n.º 2, do CPP.
E qual o vício que daí decorre?
Neste domínio têm existido profundas divergências na jurisprudência dos Tribunais da Relação.
Versando concretamente o despacho de não pronúncia, há quem entenda que se trata de uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal Neste sentido, v. g., Acs. da Relação de Guimarães de 05-01-2004 (proc. n.º 293/04-1) e de 12-02-2007 (proc. n.º 2335/06-1); e Ac. da Relação do Porto de 16-12-2009 (proc. n.º 568/0GFVNG.P1), todos publicados in www.dgsi.pt..
Diversamente, referem outros tratar-se de uma nulidade oficiosamente cognoscível em sede de recurso Cfr. Acs. da Relação de Évora de 22-11-2005 (proc. n.º 1324/05-1); da Relação de Lisboa de 10-07-2007 (proc. n.º 1075/07-5); e da Relação do Porto de 17-02-2010 (proc. n.º 58/07.1TAVNH.P1), os dois últimos publicados no sítio www.dgsi.pt..
Quanto a nós, seguimos, ao “pé da letra”, a posição assumida no Ac. da Relação do Porto de 07-07-2010 Proc. n.º 102/08.5PUPRT.P1, relatado por Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt., importando distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios.
A nulidade que se vislumbra decorre do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, do CPP.
É de admitir que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade, por omissão de narração dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento, seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema e o princípio da acusação.
Efectivamente, nesta situação, se a falta de descrição dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, determinando a rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP], seria destituído de todo o sentido que a falta de factos do despacho de pronúncia não consubstanciasse nulidade de conhecimento oficioso.
Dito de outro modo: os casos elencados no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm na previsão das diversas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º constituem uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.
Os demais casos do n.º 3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação se traduza numa nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.
Consequentemente, deveria ter sido suscitada, pelo assistente, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do CPP), contados a partir da notificação ao arguido do despacho de não pronúncia. Porque assim não sucedeu, está sanada.
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2.4. Por fim, cabe averiguar se os autos fornecem indícios suficientes da prática, pela arguida, dos crimes elencados na motivação de recurso.
A dedução de acusação findo o inquérito, como o despacho de pronúncia no caso de ter havido lugar a instrução, supõem a existência no processo de indícios suficientes de que se tenha verificado crime e de quem foi o seu agente - artigos 283.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, do CPP.
O artigo 283.º, n.º 2, do citado diploma, formata normativamente o conceito de “indícios suficientes”: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Esta fórmula legal acolhe a noção, sucessivamente densificada pela doutrina e pela jurisprudência, de “indícios suficientes”.
Em formulação doutrinalmente bem definida, «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição». Cfr., Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, 1974, pág. 132-133.
«Afirmar a suficiência dos indícios deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção, o Ministério Público deve arquivar o inquérito e o juiz de instrução deve lavrar despacho de não pronúncia». Cfr. Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, p. 171.
Traçando o limite de distinção entre o juízo de probabilidade e o juízo de certeza processualmente relevante, acrescenta o referido autor: Idem, pág. 172. «o que distingue fundamentalmente o juízo de probabilidade do juízo de certeza é a confiança que nele podemos depositar e não o grau de exigência que nele está pressuposta. O juízo de probabilidade não dispensa o juízo de certeza porque, para condenar uma pessoa, o conceito de justiça num Estado de direito exige que a convicção se forme com na base na produção concentrada das provas numa audiência, com respeito pelos princípios da publicidade, do contraditório, da oralidade de da imediação. Garantias essas que não é possível satisfazer no fim da fase preparatória».
Quer isto dizer que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia).
A jurisprudência, por seu lado, afinou a compreensão do conceito através da definição e enunciação de elementos de integração que se podem hoje rever na noção legal.
Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade.
O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos.
Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.
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Disto isto, vejamos se a reconstituição processual dos elementos do inquérito (não houve diligências instrutórias) permite ou não alcançar o nível de probabilidade necessário para a pronúncia do arguido pelos crimes de ameaça e coacção agravados.
AF... apresentou queixa contra AA..., nestes termos:
«No dia 21 de Agosto do corrente ano» (2009), «da parte da tarde, quando pretendia entrar numa sua propriedade, sita no lugar de Olheiro, Courelas, Paio Mendes, Ferreira do Zêzere, a passagem pública que dá acesso à mesma encontrava-se obstruída com uma cadeira, uma barrica, um rolo de cabo de aço e uma estaca em madeira, com um bloco de cimento em cima, pelo que para poder passar afastou todo esse material para o lado.
No dia seguinte (22 de Agosto), cerca das 19h30, apercebendo-se da presença do denunciante no quintal anexo a uma sua casa de habitação, o denunciado, dirigindo-se a ele proferiu as seguintes injúrias “cobarde, cobardola, anda cá meu cobarde, meu cabrão, ladrão, filho da puta” (…).
Perante a situação, o denunciante deslocou-se à referida passagem e o denunciado entrou na sua habitação, de onde saiu empunhando uma arma de caça e efectuou um disparo para o ar na direcção do denunciante e de seguida abriu a arma, presumivelmente para a voltar a carregar, pelo que o denunciante e as testemunhas abaixo indicadas que também se encontravam no local refugiaram-se no interior da habitação, com receio de serem atingidos por algum disparo.
Posteriormente, o denunciado foi guardar a arma em causa e abandonou o local num veículo automóvel (…)».
Na fase de inquérito, para além do assistente (fls. 32), foram ouvidas as testemunhas AL... (fls. 14), JC... (fls. 15), JC... (fls. 39) e MI... (fls. 56).
O arguido recusou prestar declarações (fls. 49/50).
O assistente confirmou os factos descritos na queixa e acrescentou: «Além destas ameaças com a arma caçadeira, também teve conhecimento que o denunciado lhe fez uma espera, armado, durante uma noite inteira».
Referiu a testemunha AL…, nos aspectos mais relevantes:
«No dia 22 de Agosto de 2009, por cerca das 19h39, encontrava-se numa propriedade do denunciante e na sua companhia. A determinada altura começou a ouvir o denunciado a proferir as seguintes expressões para o denunciante: …és um cobardola; cobarde; cabrão; ladrão, filho da puta. O denunciante, depois de ouvir estas injúrias saiu de junto da testemunha. Momentos depois ouviu um disparo de uma arma de fogo, não sabendo quem o efectuou, mas (…) que foi dado a poucos metros do sítio onde se encontrava».
A testemunha JC...:
«No dia 22 de Agosto de 2009, cerca das 18h00, deslocou-se à habitação do denunciante no sentido de falar com o mesmo sobre um trabalho a realizar.
Quando estava a falar com o mesmo, começou a ouvir injúrias (“cabrão; filho da puta; aldrabão; cobarde) por parte de um indivíduo para o assistente (…).
O denunciante, farto de ouvir tais expressões, dirigiu-se ao denunciado, tendo a testemunha tentado impedir para evitar algum confronto, acabando ainda assim o denunciante por ir ao encontro do assistente. Seguiu o denunciante e quando o mesmo estava a cerca de 10 metros, aproximadamente, viu o denunciado a sair da sua residência para o exterior com uma arma em punho, não sabendo precisar se seria uma arma de caça ou uma arma de recreio (…). Imediatamente o denunciante recuou, assim como a testemunha, uma vez que o denunciado avançou na direcção de ambos.
Desconhece o motivo dos factos, tendo ouvido dizer no local que estava relacionado com uma passagem.
Não (…) ouviu qualquer disparo semelhante ao de uma arma de fogo».
A testemunha JC...:
«Estava com um grupo de amigos junto à casa do denunciante, quando de repente começou a ouvir gritos. Quando olhou, o depoente deparou com o denunciado, que aos gritos, dirigindo-se ao denunciante, começou a chamar-lhe “chulo, filho da puta, cobarde, cabrão” (…), tendo-lhe o assistente apenas respondido que havia de justificar os nomes que lhe estava a chamar. (…) Logo a seguir, o denunciado entrou em casa e (…) e saiu da mesma empunhando uma arma, que lhe pareceu ser uma caçadeira, e efectuou um disparo, não se tendo o depoente apercebido da direcção (…), uma vez que, na altura, se havia protegido, tendo-se (…) resguardado atrás da casa, aproveitando uma altura em que o denunciado abriu a arma, aparentemente para a carregar (…)».
Por fim, a testemunha MI... (filha da testemunha AL...):
«(…) No dia indicado nos autos, quando a declarante se encontrava na residência de seu pai, a determinada altura, já no final da tarde, o denunciante foi tirar um objecto que, segundo ele, havia sido colocado pelo denunciado, por forma a dificultar a passagem do denunciante para a sua habitação.
Como naquela altura o denunciado não se encontrava no local, assim que chegou, passados alguns instantes, desde logo começaram em discussão, tendo o denunciado injuriado o denunciante de “cobarde, ladrão, filho da puta, vigarista, cabrão (…).
Em seguida o denunciado dirigiu-se à residência dele, regressando com uma arma de fogo “caçadeira”, dando com ela um tiro para o ar; o objectivo dele foi o de, no segundo tiro, dar no denunciante, que naquela altura se encontrava a ser segurado pela depoente para não se envolver com o denunciado.
Em virtude do denunciado, naquela altura, se encontrar única e simplesmente com um cartuxo na arma e ter dado um tiro para o ar e querer também alvejar o denunciante, dirigiu-se novamente a casa dizendo que ia buscar mais cartuxos; nessa altura a declarante, juntamente com o denunciante, correram para o pátio da residência do deste (…)».
O confronto das versões que se perfilam nos autos revela a existência de flagrantes contradições entre as declarações prestadas.
Refere o arguido, de um lado, que removeu os objectos colocados, pelo arguido, na passagem para a sua propriedade um dia antes dos acontecimentos determinantes da queixa.
Omite, de outro, a existência de qualquer discussão com o arguido, aduzindo também que, quando se deslocou à passagem, aquele se muniu de uma arma de caça, com a qual efectuou um disparo para o ar, tendo, em seguida, aberto a arma, presumivelmente com o propósito de a voltar a carregar, razão pela qual, conjuntamente com as testemunhas acima identificadas, se refugiou no interior da habitação, com receio de ser atingido.
A testemunha AL...apenas ouviu um disparo de uma arma de fogo, sem saber quem o efectuou.
A testemunha JC..., embora no local da ocorrência dos factos, não ouviu nenhum tiro.
Segundo o declarado pela testemunha JC…, após o disparo a mesma resguardou-se atrás da casa e não no seu interior.
A testemunha MI..., por sua vez, também em patente dissonância com o assistente, revelou que tudo se passou na tarde de 22 de Agosto de 2009, inclusive o acto em que aquele desobstruiu a passagem. E em contrário das declarações do assistente e das demais testemunhas, acentuou o propósito de o arguido, com um segundo tiro, alvejar o assistente.
Para além disso, ninguém senão ela referiu a reentrada do arguido em casa com a intenção de se munir de mais cartuxos.
Aparte as contradições que se registam, tal como está assinalado na decisão instrutória de não pronúncia, cada declaração, quer do arguido quer de cada uma das quatro testemunhas, comporta distinta versão, como é facilmente constatável pela simples leitura dos extractos acima expostos.
Relativamente à alegada “espera”, apenas o arguido a refere, por ter ouvido dizer.
Face às objecções contrapostas à verosimilhança e credibilidade do assistente e das testemunhas, no que para o caso importa considerar, estão apenas indicados os seguintes factos: «Na sequência de desavença pessoal entre o arguido e o assistente, no dia 22 de Agosto de 2009, no lugar de Olheiro, Courelas, Paio Mendes, Ferreira do Zêzere, o primeiro, munido de uma arma de caça, disparou um tiro para o ar».
Estes factos, como é bom de ver, não preenchem os tipos de crime de ameaça e/ou coacção.
Não evidenciam, com um grau de segurança exigível, o anúncio de que o arguido pretendesse infligir ao assistente um mal (futuro), adequado a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do segundo (vide artigo 153.º do Código Penal), como não são reveladores de uma situação de constrangimento, traduzido em acção ou omissão do assistente, através de violência física ou psicológica, ou seja, que o assistente tenha sido impedido, por via de violência ou de ameaça exercidas pelo arguido, da liberdade de acção ou inacção (vide artigo 154.º do CP).
Na verdade, a singeleza dos factos indiciados apenas permite um “mar” de conjecturas no plano objectivo e subjectivo, insusceptíveis de definição concreta de qualquer ilícito penal.
Nos termos expostos, por não estarem indiciados factos que preencham os tipos de crimes de ameaça e de coacção agravados, bem decidiu o tribunal a quo ao não pronunciar o arguido AA..., sendo, assim, improcedente o recurso interposto pelo assistente AF....
Não procede, pois, o recurso do assistente.
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III. Dispositivo:
Posto o que precede, Acordam os Juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, confirmando-se, na íntegra, o despacho recorrido de não pronúncia.
Taxa de justiça pelo assistente, cujo quantitativo se fixa em 3 UC [artigo 515.º, n.º 1, alínea b), do CPP, artigo 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais e tabela anexa III].
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Alberto Mira (Relator)
Elisa Sales