Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
486/07.2GAMLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GOMES DE SOUSA
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO DE PROVAS
Data do Acordão: 05/05/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MEALHADA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 147º,355º DO CPP
Sumário: 1. O reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355º, nº1, in fine, nº 2 e artigo 356º, nº 1, b) do Código de Processo Penal, não lhe sendo aplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 356º do Código de Processo Penal.
2. Caso já tenha sido realizado um reconhecimento em inquérito, torna-se desnecessário repeti-lo em audiência de julgamento.
3. A realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução, ou se realizado, enfermar de nulidade processual ou nulidade probatória.
4. O artigo 147º do Código de Processo Penal não determina a repetição de reconhecimentos. Limita-se a impor ao tribunal que, se entender adequado proceder a um reconhecimento em audiência de julgamento, este deverá observar o formalismo ali previsto.
5. A ineficácia da prova contida no nº 7 do artigo 147º do Código de Processo Penal não é uma nulidade processual em sentido restrito nem uma “inexistência”, mas sim uma proibição de valoração da prova.
Decisão Texto Integral: A - Relatório:

No Tribunal Judicial da Comarca da Mealhada correu termos o processo comum colectivo supra numerado no qual é arguido T, solteiro, vendedor de automóveis, nascido em 21/../1980, natural da freguesia…. de Lisboa, filho de R. e de M. com última residência R… , em Lisboa, mas actualmente detido no Estabelecimento Prisional de Lisboa, o qual foi condenado, pela prática de:

um crime de roubo agravado p. e p. pelo art.º 210º, nºs1 e 2, al. b) do C. Penal, por referência ao art.º 204º, nº2, al. f), do mesmo Código, na pena de 7 (sete) anos de prisão;

um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo artigo 86°, nº 1, alínea c), da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão;

um crime de uso de documento autêntico falsificado, previsto e punido pelo artigo 256°, nºs 1, alínea e) (por referência à alínea a) do mesmo normativo) e 3, do Código Penal na pena de 1 (um) ano de prisão;

Em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;

Julgar procedente os pedido de indemnização formulado a fls. 589 condenando o arguido/demandado, a pagar ao Banco Santander Totta, S.A.a quantia de 1250,00 € (mil duzentos e cinquenta euros) acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação para contestar até integral pagamento.


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Inconformado, interpôs o arguido o presente recurso, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

1. O douto acórdão recorrido cometeu a nulidade processual da insuficiência do exame crítico da prova, nulidade cominada no art. 379.° nº 1 alínea a) do CPP.

2. O douto acórdão recorrido atribui aos reconhecimentos do recorrente efectuados em inquérito valor probatório autónomo por considerar não ser necessário repeti-los em audiência, assim violando o disposto no art. 355.° do CPP.

3. Foi cometida, também, no douto acórdão recorrido, a nulidade de omissão de pronúncia a que faz jus o art. 379.° nº 1 alínea c) do CPP dado que considera ficar "prejudicada a apreciação da questão da nulidade dos reconhecimentos em audiência. Ora, como decorre do conteúdo do acórdão, este considera que as testemunhas Óscar Moutinho, Luís André e José Luís Correia (este militar da GNR) reconheceram o arguido na audiência. E porque assim é, não poderia deixar de tomar posição concreta sobre o pedido de nulidade desses reconhecimentos que o arguido efectuara na audiência, através de requerimento ditado para a acta pelo seu advogado. (Como da Acta de dia 14 de Outubro consta)

4.Impugnação da matéria de facto:

Cumprimento do disposto no art. 412.° nº 3 alínea a) do CPP

Os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados são os seguintes:

Itens 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 17, 19 da Matéria de Facto Provada (fls. 2. 3 e 4 do acórdão recorrido): tais itens não resultaram decididamente provados, uma vez que toda a prova que o recorrido acórdão considera relevante para a convicção de que assim se teria passado assenta, essencialmente, no reconhecimento do arguido feito em audiência pelos intervenientes processuais que na mesma depuseram.

5. Ora, o acórdão ora em crise considera que uma testemunha reconhecer o arguido numa sala de audiências onde não se encontra sentado mais ninguém que o recorrente "não (um reconhecimento" mas uma prova incluída no âmbito do art. 127.° do CPP 

6. No entanto, o art. 127.° do CPP (que nada diz de concreto sobre reconhecimentos. como todos sabemos, tratando-se de disposição genérica sobre a convicção dos julgadores) não pode excluir a aplicação "in concreto" do art. 147.° do CPP nem tem o condão de eliminar do ritualismo a que as provas obedecem, o conteúdo do art. 147.° do CPP!

7. Dúvidas portanto não há que "reconhecer" significa "identificar”. "Pelo que o recorrido acórdão violou, por erro de interpretação, o disposto nos art. 127.° e 147.° do CPP.

8. Por isso não assiste qualquer razão, neste "interim" na douta decisão aqui sob censura. Pelo que se disse "supra" a valoração/interpretação do disposto no art. 147.° 1, 2 e 7 do CPP, operada na recorrida decisão viola, por manifesto erro interpretativo, quer o disposto no art.° 147.° nº 7 do CPP (que obriga a que qualquer reconhecimento/identificação de arguido feita em audiência siga os trâmites e os requisitos do disposto no art." 147.° 1.° e 2 do CPP sob pena de nulidade cominada no art." 7.° desse mesmo preceito legal. quer o disposto no art. 32.° n. 1 da CRP - e dos princípios basilares de defesa do arguido neste consignados. nomeadamente o princípio da presunção de inocência em processo penal.

9. Cumprimento do disposto no art." 412.° n. 3 alínea b) do CPP. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. São as seguintes:

Depoimento das testemunhas Ó, L e J  todos inquiridos na audiência de discussão e julgamento como o Cd da gravação dá conta. Sem conceder quanto ao que se disse sobre a apontada nulidade do reconhecimento feito em audiência, sempre se dirá quanto ao depoimento da testemunha Ó, que o acórdão é deveras lacunar quanto ao exame crítico que faz do seu depoimento, a saber: O primeiro (Ó) encontrava-se na caixa e foi abordado pelo arguido e descreveu como provado a entrada do arguido, as suas movimentações no interior da agência e a saída do mesmo" (a fls.6 do acórdão recorrido).Ora, como decorreu da prova da audiência (CD I aos min .... e seguintes) a testemunha só "reconhece" o arguido porque não existe mais ninguém para reconhecer na sala.

10. Quanto ao depoimento da testemunha L:

A recorrida decisão afirma a este respeito e a dado passo o seguinte:

"O segundo (L) "não estava no interior da agência mas viu o arguido sair do seu interior sendo portador de uma arma" (a fls. 6)

Ora, na audiência, a testemunha não reconhece sem qualquer sombra de dúvida o arguido, referindo-se­-lhe como o tendo já visto "ao balcão" logo ás primeiras perguntas do Mº Juiz Presidente (CD 1 aos 10h24m o que não é compaginável com o que disse depois: "À saída do balcão, no dia do assalto, eu era o responsável na altura .. do Banco Totta na Rua .:.'5 de Abril eram 9h mas ausentei-me para o carro, tinha o pneu rebentado ... o À  disse-me que o Banco estava a ser assaltado .. "O individuo sai do balcão com uma arma ... Quando sai faz um movimento, caiem uma série de notas ... Os militares entretanto chegam pela frente o senhor sai saiu pelo fundo da rua ... A GNR aparece por trás .....

A instância do advogado do arguido, a testemunha não sabe elencar alguma característica específica do arguido (CD 1 aos 10h 34 e seg) Logo, não conseguiu afirmar seguramente ao Tribunal que seria (o arguido) a mesma pessoa que assaltou o Banco, pelo que a instância violou o disposto no art. 127. do CPP.

11. Testemunho de J (Militar da GNR): O acórdão refere que a apontada testemunha "perseguiu o arguido mas com o devido respeito, falta-lhe a razão de ciência, a motivação concreta, específica, do afirmado. Na audiência, esta mesma testemunha afirmou não ter a certeza se a pessoa que assaltou o banco é a mesma que estava a ser julgada.

Atente-se no seu depoimento (parcelar): Início do depoimento às 10h 38m (in CD nº 1). Audiência 14 de Outubro 2009."Quando vinha a trazer um detido a este Tribunal .."

À frente do Banco Totta vi populares, mandaram-me parar ...

Sai de lá um individuo com uma caçadeira na mão e o saco ele estava a dirigir-se a pé ... aponta-me a caçadeira ele arranca num Audi TT, faz-se uma barricada na estrada no IC 2 ... Zona de Santa Luzia ele aponta-me uma caçadeira "Aponta mesmo!" uma caçadeira de canos serrados Não fui eu que fiz o auto de Notícia Foi outro militar. "E a pergunta do Distinto Advogado do Demandante Cível se "Reconhece o arguido"? A testemunha responde:

"A fisionomia é mais ou menos ...

Magro, roupa escura, estatura média com aspecto de barba por fazer, utilizava barba preta. a fisionomia da cara…  não tinha bigode"

Ou seja, não reconhece sequer o arguido.

E sendo-lhe exibida fls. 257 afirma testemunha: "pode ser ... um com estas características .. " (SIC)

Violado foi pela instância o comando do art. o 127º do CPP e do princípio "in dubio pro reo".

12. Quanto aos exames periciais às faculdades mentais do arguido: a desconsideração, no recorrido acórdão, do Relatório Psiquiátrico de fls. 453 dos autos:

Estatui-se ainda a fls. 4 (Factos Provados) que 19. “À data dos factos tinha (o arguido) a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se auto determinar perante essa avaliação, pelo que deverá ser considerado imputável pelos/actos praticados ".

Mas, a testemunha Dr. V, médico psiquiatra ouvido por videoconferência na audiência de 30 de Outubro 2009 não teve propriamente essa certeza, afirmando peremptoriamente que conhecia bem o arguido, que este tinha graves perturbações a nível psiquiátrico e que não se poderia ter a certeza se no momento dos crimes que lhe são imputados estaria lúcido ou não.

Por isso (basta atentar na gravação do depoimento deste médico psiquiatra in CD 2 às 15h20) se insurge o recorrente com o conteúdo da matéria de facto considerada provada no item 19 da Matéria de Facto bem como com a apontada Motivação de fls. 7 do acórdão.

13. Ao considerar provada tal matéria (imputabilidade do recorrente) o recorrido acórdão violou manifestamente o conteúdo do art. 127.° e do art. 355º do CPP também aqui por claro erro interpretativo, desvalorizando em absoluto os depoimentos dos médicos psiquiatras Dr. M e DR. V.

14.A ambiguidade da matéria provada sob o item 19. - O depoimento do Dr. V (efectuado dia 30 de Outubro 2009, por vídeo-conferência). Talvez que o Tribunal tenha sido influenciado pelo Relatório que consta no Volume 3 dos autos - mais propriamente a fls. onde se escreve padecer o arguido de "esquizofrenia paranóide sendo inimputável" havendo assim sido declarado como tal no âmbito do processo 192/00.9GCCLD no 1º Juízo do Tribunal Judicial das Caldas da Rainha - a fls. 454 a 462).

15. Ou pelo testemunho da médica Psiquiatra Dr M (inquirida em 14 Outubro 2009 no dia da 1ª Sessão da Audiência destes autos) (in CD nº I às l2h39m) que interrogada disse ter conhecido o T. encontrando-se este sujeito a uma medida de internamento para inimputáveis, dado o diagnóstico deste senhor ser de "inimputabilidade".

16.Assim, ao desse modo não considerar, desvalorizando por completo tal depoimento, também aqui a instância violou com clareza o disposto no art. 127.° e o art. 355.°, ambos do CPP,

17. Ora, eventual relatório noutro sentido constante dos autos (não corroborado por depoimento ou testemunho produzido em audiência) a tal propósito, era por demais insuficiente para o douto Tribunal haver concluído, sem mais, pela imputabilidade do recorrente, sendo certo que o mesmo, como dos autos consta abundantemente (douto Acórdão do Tribunal das Caldas da Rainha, entre outros, transitado em julgado) foi, há anos, declarado inimputável perigoso.

18.Tanto bastaria pois, para que a este cidadão não fosse aplicada qualquer pena de prisão, mas antes medida de internamento compulsivo, dado o seu manifesto estado de perigosidade compulsiva.

19.Desconsideração do Relatório de fls. 453 dos autos: Encontra-se junto aos autos um Relatório Pericial Psiquiátrico acerca da pessoa do recorrente, subscrito pelo Dr. J, médico psiquiatra, onde se conclui pela inimputabilidade do recorrente. O recorrido acórdão desconsidera-o totalmente, com a alegação de que esse relatório "reporta-se a outros factos e data de 2001 ". (a fls. do acórdão).

20.Mas atentas as declarações prestadas a propósito da imputabilidade ou inimputabilidade do recorrente, já em sede de audiência, de outro médico psiquiatra, o Dr. V (através de vídeo-conferência de boa qualidade, o que já vem sendo raro ... ), sempre o Colectivo deveria, em melhor ponderação, decidir pela inquirição de terceiro médico psiquiatra que dissipasse as dúvidas, podendo ainda o Tribunal, no uso dos poderes que lhe conferem o art. 340º do CPP ordenar nova perícia, atentas as razões elencadas pelo advogado do recorrente, desde logo não aceites, como da acta da sessão de dia 30 de Outubro de 2009 consta.

21.Pelo que ao assim não proceder violou o disposto no art. 340.° do Código de Processo Penal.

22.E. como se vê o douto e recorrido acórdão condenatório, ao não valorar devidamente os depoimentos dos médicos psiquiatras ouvidos em audiência (repletos de dúvidas, de incertezas, de indefinições várias) em ordem a poder fundamentar um juízo de inimputabilidade quanto ao arguido, aqui recorrente.

23.Pelo que cometido foi o apontado vício do art. 410.° nº 2 alínea a) do CPP, havendo sempre lugar, por via da sua existência, ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos art. 426.° e 426.° - A do CPP.

24.Aliás, pese embora o douto acórdão haja feito referência "en passant" ao Relatório de fls. 453 (onde se conclui pela inimputabilidade do recorrente), o certo é que ter tal não se considerado provado, pese embora constar CERTIDÃO nos autos referindo que no âmbito do Proc. …/00.9GCCLD das Caldas da Rainha, na sequência de um exame psiquiátrico às suas faculdades mentais, o arguido foi declarado inimputável perigoso c sujeito a medida de segurança de internamento" .

25.Por outro lado, o Colectivo não questionou os peritos médicos que depuseram em audiência, sobre a provável evolução da doença do arguido, isto é, qual a evolução da sua esquizofrenia, e como se portaria o arguido nos intervalos da sua actividade psicótica, uma vez que é ponto assente, padecer ele de esquizofrenia, pelo menos desde a data em que tal exame psiquiátrico foi efectuado (ano 2001 - Relatório de fls. 453).

26.Não havendo cura para a esquizofrenia (que surge como a dissociação do "eu" ou "cisão da mente", sendo "um distúrbio psíquico que afecta a consciência do próprio eu, as relações afectivas, a percepção e o pensamento" (Douto Ac. Relação de Guimarães de 2/07/2007 in ITIJ relatado pelo Sr. Desembargador Cruz Bucho) deveria o douto Tribunal Colectivo ter inquirido especialmente os senhores peritos sobre a evolução da esquizofrenia no recorrente, o que não logrou fazer.

27.Sendo "A esquizofrenia uma doença caracterizada pela dissociação, isto é, pela falta de coordenação entre as faculdades psíquicas principais, especialmente entre o pensamento, afectividade e vontade e também entre os próprios elementos do pensamento" e que:

28. "nos intervalos ENTRE AS CRISES E NOS ESTADOS CRÓNICOS O PROBLEMA É COMPLEXO. Nestas circunstâncias, o perito deverá analisar cuidadosamente, caso a caso, as repercussões que a doença já provocou no individuo. nomeadamente o grau de envolvimento do processo destrutivo, os recursos da personalidade ainda sã e a existência 011 não, de actividade produtiva. Nestas situações a imputabilidade é gradativa, havendo sempre atenuação da responsabilidade (ibidem pás. 401 - 402).

29. O douto Tribunal apenas "ouviu" o que as testemunhas Dr. M e Dr. V (ambos médicos psiquiatras) tinham para dizer acerca da doença psicótica do arguido e da sua eventual esquizofrenia paranóide, consubstanciada no modo como os relatórios teriam sido elaborados e acerca do facto de o arguido ser ou não imputável. Só que a respostas (como se vê da respectiva gravação) estão longe de ser concludentes.

30.Haveria o douto Tribunal de instar especialmente os senhores peritos sobre a evolução da esquizofrenia e caso as dúvidas persistissem, mandar efectuar novo e concludente relatório (faculdade que sempre caberia no âmbito do art° 340.° n° 1 do CPP) o que não logrou fazer. Pelo que foi violado, pela instância, o art. 340.° nº 1 do CPP.

31.Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - omissão de uma diligência de prova: Pelo que, ao também assim não ter procedido, foi cometida, pela instância a omissão de uma diligência de prova essencial para a boa decisão da causa, qual seja, a determinação in concreto do grau de imputabilidade do arguido, ou da sua eventual inimputabilidade no momento da prática dos factos delituosos que lhe são imputados.

32.A omissão de tal diligência configura insuficiência para a decisão da matéria de facto provoca e implica, em nossa opinião, o reenvio do processo para novo julgamento (art. 426.° e 426.° -A do CPP) a fim de ser determinada com mais precisão - à luz da evolução da esquizofrenia de que comprovadamente padece - a sua imputabilidade ou a existência de eventual imputabilidade diminuída à data da prática dos factos de que tratam os autos. (a este propósito e com as devidas adaptações, o douto Ac, Rel. Coimbra de 4 de Fevereiro de 2009 in Proc n." 618/05 - Comarca de Castelo Branco) in CJ ANO XXXIV - TOMO I /2009 - a pag 66 - 68.

33.Dada a discrepância nos relatórios periciais psiquiátricos já elaborados relativamente à personalidade do arguido (bem como à discrepância, falta de assertividade, carácter evasivo e dúbio dos depoimentos dos peritos em audiência) quanto à eventual determinação da imputabilidade ou não imputabilidade do recorrente, não se poderia concluir ~ como o fez o recorrido acórdão - ser o arguido inteiramente imputável e inteiramente senhor das suas acções e omissões, devendo ter sido declarada a verificação do vício da decisão recorrida ínsito no art. 410.° n." 2 alínea a) do CPP. e haver sido declarado o reenvio do processo para novo julgamento, no cumprimento dos art. 426º e 426.° do CPP. Pelo que o recorrido acórdão violou, por erro de interpretação, o sentido e o alcance do art. 426.° do CPP.

34.Ainda assim - e sempre sem conceder - a pena aplicada mostra-se exagerada levando em conta a personalidade do arguido, que acabou por ser condenado na pena de 8 anos e seis meses de prisão pelo crime de roubo agravado, detenção ilegal de arma e uso de documento falsificado como se fosse uma pessoa inteiramente normal e não padecendo de qualquer distúrbio mental (o que já se verificou que não será assim) devendo o recorrente ser condenado (admitindo-se ser a sua imputabilidade diminuída) na pena de quatro anos de prisão, dadas as descritas circunstâncias do caso.

35.Ao assim não proceder o recorrido acórdão violou o disposto no art. o 41º e 71º do CP.

Pelo que. com o melhor suprimento de Vossas Excelências, deverá ser revogado e suhstituído por outro que, por mais douto e acertado decida como peticionado


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Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Mealhada concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e manter-se na íntegra a douta sentença recorrida.

O Exmº. Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417 n.º 2 do Código de Processo Penal e o arguido apresentou resposta.


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B - Fundamentação:

B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 25 de Setembro de 2007, pelas 9h25m, o arguido deslocou-se numa viatura de marca Audi, modelo TT, com a matrícula 18-48…YY, à agência do Banco Santander Totta, …, na Mealhada, com o intuito de aí entrar e de se apoderar dos objectos e valores que encontrasse e que lhe despertassem interesse, a fim de os fazer seus.

2. Para o efeito, muniu-se de uma mochila da marca Nike e de cor preta e, sem que fosse portador de licença de uso e porte de arma, de uma arma caçadeira de canos serrados, de cor cinzenta.

3. Naquele momento, estavam no interior da agência bancária os funcionários Ó. e AR, bem como alguns clientes.

4. Após ter entrado nas instalações da agência, o arguido dirigiu-se a Ó., funcionário que naquele momento exercia as funções de caixa no balcão de atendimento, e afirmou que desejava proceder a um levantamento de dinheiro, ao mesmo tempo que lhe apontou a referida arma e lhe disse "dá-me todo o dinheiro que tiveres aí”.

5. De seguida, voltou-se para o funcionário AR que estava a atender um cliente num gabinete reservado e, empunhando a arma na sua direcção, ordenou-lhe que ele se dirigisse para o balcão de atendimento.

6. Entretanto, o funcionário Ó disse ao arguido que aquela caixa estava equipada com um temporizador que retardava a sua abertura, pelo que este lhe ordenou que emitisse um cheque para levantamento de valores.

7. Intimidado com o comportamento do arguido e receoso de que ele lhe pudesse fazer algum mal e atentar contra a sua liberdade, a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida, o funcionário deu a ordem informática para que a dispensadora emitisse dinheiro.

8. Nesse instante, o arguido colocou a mochila preta em cima do balcão e, continuando a empunhar a arma na direcção do funcionário Ó, ordenou-­lhe que ele pusesse as notas lá dentro.

9. Entretanto, como a dispensadora só emitia notas de valor facial de 5 €, 10 € e 20 €, o arguido ficou nervoso e avisou o funcionário que lhe daria um tiro se não pusesse na mochila notas de valor facial mais elevado.

10. Após o funcionário ter colocado várias notas no interior da mochila, no valor global de 2385 €, o arguido apercebeu-se que se aproximava do local uma viatura policial, pegou na mochila e fugiu pela porta principal da agência, tendo deixado cair no chão algumas das notas, no valor global de 300 €.

11. De seguida, dirigiu-se para a viatura supra referida e saiu das imediações da agência.

12. No dia 17 de Novembro de 2007, foram encontradas na posse do arguido, no interior da sua habitação de então, sita… em Ribamar, e apreendidas as peças de vestuário e a mochila por ele usadas na ocasião da prática dos factos descritos.

13. Por outro lado, a viatura de marca Audi e modelo TI utilizada pelo arguido, com o número de quadro TRUZZZ8N2210…, havia sido retirada, no dia 10/09/2007, ao seu legítimo proprietário, sendo que a sua matrícula original era 61-96-… e não a matrícula 18-48-YY… nela aposta, que pertencia ao veículo de marca Opel, modelo Corsa-C Van, com o número de quadro WOLOXCF08540…

14. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito alcançado de fazer seus os aludidos valores, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que, ao actuar da forma descrita, o fazia contra a vontade e sem autorização dos respectivos donos, recorrendo para o efeito ao uso da referida arma para intimidar os funcionários do estabelecimento bancário, o que diminuía a capacidade de defesa deles e aumentava a sua superioridade e a possibilidade de mais facilmente levar a cabo os seus intentos.

15. Mais detinha tal arma sem ser portador de licença de uso e porte de arma, bem sabendo que não a podia deter sem possuir tal licença, e, não obstante isso, quis detê-la nas circunstâncias descritas.

16. Por sua vez, ao utilizar a referida viatura, o arguido sabia ainda que a chapa de matrícula nela aposta não correspondia à original e que, dessa forma, lesava o interesse público na autenticidade e genuinidade de documentos e que punha em causa o seu valor probatório, pois punha em perigo a credibilidade e a fé que as mesmas gozam, enquanto documentos, perante o público em geral e as autoridades em particular, fé e credibilidade estas tuteladas pelo Estado que, desse modo, se viu prejudicado.

17. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

18. O arguido apresenta diagnóstico compatível com perturbação de personalidade anti-social.

19. À data dos factos tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se autodeterminar perante essa avaliação, pelo que deverá ser considerado imputável pelos factos praticados

20. O arguido é solteiro, antes de detido residia em casa dos pais, ambos reformados e tem 11 anos de escolaridade como habilitações literárias.

21. No PCC …/00.9GCCLD, do 1º Jz do TJ de Caldas da Rainha, por acórdão de 12/../2001 foi considerado autor de factos que consubstanciam a prática de crimes de detenção ilegal de arma, roubo, falsificação de documento, furto e evasão tendo sido sujeito a medida de segurança de internamento.

22. No PCC …/07.8PAPTM do 2º Jz Criminal de Portimão, por acórdão de 30/3/2009, transitado em julgado em 28/4/2009 foi condenado por crime de furto na pena de 1 ano e 9 meses de prisão por factos praticados em 14/…/2007.


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B.1.2 - E como não provados os seguintes factos:

Em julgamento não ficou provado o alegado em 6º do PIC.

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, não se referindo aqui a demais matéria contida no pedido de indemnização civil por ser conclusiva e de direito.


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B.1.3 - E apresentou as seguintes razões para fundamentar a matéria de facto:

Ó e Ls reconheceram sem quaisquer dúvidas o arguido como autor dos factos ocorridos no Banco Santander (autos de reconhecimento fotográfico de fls. 55 e 121).

Como resulta dos autos de reconhecimento pessoal de fls. 279/80, fls. 282/83 Ó e L reconheceram o arguido sem quaisquer dúvidas.

Atribuiu-se assim aos reconhecimento realizados em inquérito valor probatório autónomo por se considerar não ser necessário repeti-los em audiência e considerou-se que tal não atentava contra os princípios do contraditório e da concentração da prova.

Fica desta forma prejudicada a apreciação da questão da nulidade dos reconhecimentos em audiência já que os mesmos não serviram para formar a convicção do tribunal sobre a identificação do arguido como o autor dos factos.

De qualquer modo e sobre a questão sempre se dirá que o que o arguido diz tratar-se de um reconhecimento feito em audiência, na realidade não o é.

Com efeito, trata-se do simples acto de uma testemunha na audiência identificar o arguido como o autor dos factos em julgamento, pelo que tal se insere no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da prova por reconhecimento, em sentido técnico-jurídico. “O simples acto de uma testemunha na audiência identificar o arguido como o autor dos factos em julgamento insere-se no âmbito da prova testemunhal e não no âmbito da prova por reconhecimento. – Ac. da RP, de 07.11.2007, Proc.º 0713492, Rel. Paulo Valério. “I – Conforme jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, o reconhecimento em audiência de certa pessoa como autora de determinado facto não está sujeito aos requisitos exigidos no art.º 147º do CPP. II – É que em tais casos o que se valoriza é o depoimento da testemunha, apreciado nos termos do artigo 127º do CPP, e não a “prova por reconhecimento” a que alude o referido art.º 147º III – E esta interpretação do art.º 147º não viola o princípio das garantias de defesa consagrado no art.º 32º, n.º1, da CRP, ou qualquer outra norma constitucional, como entendeu o TC no Ac n.º 425/05, de 25-08-2005. IV – Tais considerações aplicam-se ao reconhecimento de objectos, por força do disposto no art.º 148º do CPP.” – Ac. do STJ, de 06.09.2006, Proc.º 06P1392, Rel. Políbio Silva Flor.Também o Ac. do T. Constitucional n.º 425/2005 (onde se referencia diversa doutrina nacional e estrangeira, nomeadamente italiana, sobre a prova por reconhecimento), publicado no DR., II Série, de 10.10.2005, decidiu:“Não julgar inconstitucional o artigo 147º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual quando, em julgamento, a testemunha, na prestação do seu depoimento, imputa os factos que relata ao arguido, a identificação do arguido efectuada nesse depoimento não está sujeita às formalidades estabelecidas em tal preceito.” Assim, por contraposição ao reconhecimento que foi feito em inquérito, o acto de identificação feita do arguido, por uma testemunha, em audiência, é apreciado livremente pelo julgador, no âmbito do art.º 127º, do C. P. Penal pelo que não se verifica qualquer nulidade.

Formou ainda o tribunal a sua convicção, quanto aos factos provados nos depoimentos de Ó e do referido L (respectivamente bancário e gerente da agência do Banco Santander Totta, por isso sabem dos factos). O primeiro encontrava-se na caixa e foi abordado pelo arguido e descreveu como provado a entrada do arguido, as suas movimentações no interior da agência e a saída do mesmo. O segundo não estava no interior da agência mas viu o arguido sair do seu interior sendo portador de uma arma e também o viu deixar cair algumas notas na saída.

Os fotogramas de fls. 85 a 111 contêm as imagens dos factos ocorridos no banco, designadamente a entrada do arguido, as suas movimentações no interior da agência e a saída do mesmo. A testemunha Ó foi confrontada com os mesmos e, passo a passo, assim descreveu o que se passou.

A testemunha J  é militar da GNR e ainda perseguiu o arguido que se dirigiu a um Audi TT cuja matrícula na altura anotou. Também declarou que o arguido era portador de uma caçadeira de canos serrados. Também a testemunha AP viu o mesmo Audi TT e tomou nota da respectiva matrícula e as testemunhas C C e MN viram o mesmo Audi TT sendo esta última a proprietária do veículo que foi embatido pelo arguido na fuga. A fls. 78 a 83 vê-se o local e a viatura embatida na fuga.

A testemunha AB é inspector da PJ, deslocou-se à agência no dia dos factos, participou também na vigilância que foi efectuada em Ferreira do Zêzere, localidade onde veio a ser encontrada a viatura. Recolheu os fotogramas de fls. 17 e 18 e esclareceu que a matrícula correspondia à que tinha sido indicada pelas testemunhas presentes no local. A testemunha MN é também inspector da PJ e esclareceu as circunstâncias em que o referido Audi TT veio a ser localizado e apreendido em Ferreira do Zêzere tal como a testemunha JC, também inspector da PJ que ainda esclareceu o tribunal sobre informação de que a mesma viatura tinha abastecido combustível no Posto da BP e recolheu fotogramas que constam de fls. 17 a 19.

Considerou-se ainda o auto de apreensão do Audi TT e objectos encontrados no interior desta (fls. 139 a 145), auto de exame directo de fls. 164, documentos de fls. 181 a 223 (fotografias do veículo e objectos) e relatório de exame pericial fls. 605 a 608 e ainda documentos de fls. 24, 46, 47 a 49, 50 a 53, 168 a 223, 239, autos de apreensão de fls. 249 e 250, auto de busca e apreensão de fls. 251 a 253.

Atendeu-se ao relatório pericial psiquiátrico de fls. 524 a 531 do qual resulta que o arguido apresenta diagnóstico compatível com perturbação de personalidade anti-social e que à data dos factos tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se autodeterminar perante essa avaliação, pelo que deverá ser considerado imputável pelos factos praticados. Nenhum outro meio de prova permitiu infirmar esta conclusão do perito relativamente aos factos imputados ao arguido.   A fls. 453 e ss. encontra-se certidão de relatório pericial psiquiátrico subscrito pelo Dr. J onde se concluiu pela inimputabilidade mas tal relatório reporta-se a outros factos e data de 2001. Aliás, o depoimento da testemunha V, médico psiquiatra que observou o arguido em 2004 foi bastante esclarecedor referindo que o facto de o arguido ser considerado inimputável para os factos imputados num processo não significa que o seja para todos os ilícitos que cometa.

Finalmente atendeu-se às declarações do arguido quanto ao provado em 19 e ao CRC junto aos autos quanto aos seus antecedentes criminais”.


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Cumpre decidir.

B.2 - Do recurso

Este tribunal da Relação tem competência para conhecer de facto e de direito (Artigo 428.º do Código de Processo Penal) e, exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1ª instância interpõe-se para a relação (Artigo 427.º do mesmo diploma).

É um dado assente que o recorrente afirma pretender recorrer de facto e de direito.

Assim, para além da manutenção do poder cognoscitivo deste tribunal quanto aos vícios de conhecimento oficioso contidos no artigo 410º do Código de Processo Penal, haverá que apreciar os argumentos de facto em função das conclusões apresentadas.

O recorrente invoca vários vícios em sede de apreciação da prova e de nulidade de sentença, mas todos eles se reconduzem à análise dos reconhecimentos efectuados, ou não, nos autos. Assim, todos esses vícios (insuficiência do exame crítico da prova, omissão de pronúncia e erro na apreciação da prova) supõem um assumir de posição sobre a realização de reconhecimentos e sua apreciação probatória.

Assim, este tribunal apreciará, em sede de recurso:

A – Do reconhecimento;

B – Da imputabilidade;

C – Da pena aplicada;


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B.3.1 – Do valor probatório do reconhecimento realizado em inquérito

Afirma o recorrente que o acórdão recorrido “atribui aos reconhecimentos do recorrente efectuados em inquérito valor probatório autónomo por considerar não ser necessário repeti-los em audiência, assim violando o disposto no art. 355.° do Código de Processo Penal”.

Não se concorda com a alegação do recorrente.   

A grande maioria dos estudos realizados no campo da psicologia da memória e a maior parte das legislações apontam para a necessidade de realizar o reconhecimento de pessoas em fase de investigação, porque mais próximo da data da percepção e – cumpridas as formalidades legais – considerá-lo como uma prova autónoma obtida no inquérito, com validade intrínseca que se projecta, de per se, na audiência de julgamento. Naturalmente que sujeita ao contraditório, pelo que melhor diríamos, uma prova realizada em fase de investigação e a apreciar em audiência de julgamento, independentemente do óbvio valor indiciário.

Isso resulta de forma clara dos ordenamentos norte-americano, escocês, inglês/galês e espanhol. O inglês/galês com limitações próprias, só permitindo a “dock identification” (reconhecimento em audiência de julgamento) em casos muito excepcionais; o espanhol exigindo a ratificação da identificação em audiência de julgamento na estrita medida em que considera o reconhecimento um depoimento (não perde, pois, a característica de testemunho).

Para esses ordenamentos jurídicos, a proximidade temporal com a prática do acto ilícito, a tendencial irrepetibilidade e a impossibilidade prática e jurídica da sua realização na audiência de julgamento nos mesmos moldes em que pode ser realizada em inquérito, o aconselham.

Isto é, devemos constatar a tensão existente entre a necessidade de realização de um eficaz e justo reconhecimento em fase de investigação, porque temporalmente mais próximo da prática do ilícito, e a exigência da sua apreciação e sujeição ao contraditório em audiência de julgamento, com a imediação e publicidade inerentes a tal fase processual.  

Será o ordenamento inglês/galês aquele que melhor acautela e equilibra esta tensão através da exaustiva previsão da sua execução em fase de investigação, pela possibilidade de aplicação da “exclusionary rule” se não cumpridas as exigências do “fair trial” e pelas cautelas de que é rodeada a sua apreciação, pelo júri, em audiência de julgamento. [1]

Neste campo, o reconhecimento em audiência de julgamento consagrado pela legislação portuguesa (a mais recente redacção do artigo 147º do Código de Processo Penal), vai ao arrepio dos bons contributos em psicologia da memória e dos bons exemplos legislativos de diversa legislação e jurisprudência estrangeira.

Não obstante isso, ela é vigente e haverá que a interpretar de acordo com o ordenamento nacional actual.

Mas convém não olvidar que a partir do momento que o reconhecimento é realizado em inquérito ou instrução no estrito cumprimento do disposto no artigo 147º, nº 2 do Código de Processo Penal (o reconhecimento físico) – isto é, quando a testemunha ou declarante “declara” que reconhece um dos intervenientes na linha de identificação – o auto de reconhecimento não pode ser encarado como aquilo que não é, um “auto de declarações”, e deve ser encarado como aquilo que é: um “auto de reconhecimento”.

O auto de reconhecimento não pode ser visto como um auto que contém declarações, mas sim como um meio autónomo – e diverso – de prova.

Se assim não fosse dever-se-ia entender inútil a consagração do reconhecimento como meio autónomo de prova e deveria o mesmo passar a ser visto como um meio complementar de declarações e depoimentos.

É que, consagrado na legislação portuguesa como meio de prova com autonomia de declarações e depoimentos – contrariamente ao que ocorre na legislação espanhola onde o reconhecimento não perde a sua característica de testemunho, mas de forma semelhante ao que ocorre na legislação inglesa – o “reconhecimento físico” em Portugal perde a natureza de “declaração” ou “depoimento”. 

Daqui haverá que retirar as devidas ilações.

A principal é de que o reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355º, nº1, in fine, nº 2 e artigo 356º, nº 1, b) do Código de Processo Penal.

O “reconhecimento” é um meio de prova “pré-constituído” pois que, pela sua natureza e pelas conclusões apresentadas por estudos em psicologia da memória, deve ser realizada temporalmente o mais próximo possível da prática do acto ilícito – no início do inquérito, portanto – inadequado para, ex novo, ser praticado em audiência de julgamento (no entanto inexplicavelmente aceite pela legislação portuguesa), de valor moderado mas discutível se nesta for praticado pela segunda vez, mas passível de, em audiência, ser contraditado. [2]

E porque observados todos os pressupostos formais e substanciais, o caso concreto reconduz-se à mera apreciação probatória, livre, dos reconhecimentos fotográficos, intelectuais e físicos adequadamente realizados nos autos em inquérito.

Naturalmente que um óbice teórico se suscita. A ausência de defensor no acto, que a legislação portuguesa não instituiu como obrigatória.

Essa seria forma adequada para um efectivo exercício do direito de defesa e do contraditório posterior em audiência. [3]

Essa não foi, no entanto, a opção do legislador português. Assim, para o ordenamento vigente, a consequência deverá centrar-se na dúvida metódica sobre tais reconhecimentos em sede de livre apreciação da prova, inclusive com a possibilidade de rever a própria forma como foram executados.


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B.3.2 - Do reconhecimento realizado em audiência

Questão diversa é a afirmação – que subjaz às conclusões do recorrente – de que qualquer identificação realizada em audiência de julgamento tem que revestir a forma de “reconhecimento”.

Afirma o recorrente que há “erro interpretativo” do disposto no art.° 147.° nº 7 do Código de Processo Penal, na medida em que este “obriga a que qualquer reconhecimento/identificação de arguido feita em audiência siga os trâmites e os requisitos do disposto no art." 147.° 1.° e 2 do CPP sob pena de nulidade cominada no nº 7 desse mesmo preceito legal”, alegando, igualmente, violação do disposto no art. 32.° n. 1 da CRP - e dos princípios basilares de defesa do arguido neste consignados, nomeadamente o princípio da presunção de inocência em processo penal.

Afirmação que olvida ou não dá a devida importância a um facto simples: um “reconhecimento”, assenta num extracto de depoimento (um “testemunho”, portanto) ou declaração, Mas os dois actos (reconhecimento e depoimento) são diferenciados pela especial solenidade da sua execução e pelas especiais condições em que o reconhecimento é realizado. Aquele pedaço de “testemunho” ou “declaração”, assente na memória e numa simples declaração (de identificação positiva ou não) ganha autonomia, desprende-se do depoimento na estrita medida em que o legislador lhe dá uma diferente força probatória. Tanto que o erige à categoria de meio de prova distinto do testemunho ou da declaração. [4]

A jurisprudência portuguesa, tem vindo a encontrar dificuldades face à constatação do fraco nível instrutório dos actos de reconhecimento (quer pela incompleta ou deficiente execução, quer pela nem sempre nítida cautela no assegurar das necessidades de defesa dos arguidos), pela inexistência de documentação vídeo ou fotográfica e pela constatação de que o regime normativo da audiência de julgamento se mostra de difícil compatibilidade com o formalismo previsto no artigo 147º do Código de Processo Penal, claramente pensado para a fase de inquérito ou instrução.

Para além das naturais dificuldades práticas que a imposição desse formalismo em audiência acarreta na sua execução, suscita-se a dúvida sobre o alcance da necessidade da sua realização e sobre a exclusividade dessa mesma realização.

Isto é. Caso já tenha sido realizado um reconhecimento em inquérito torna-se necessário repeti-lo em audiência de julgamento, como pretende o recorrente?

A resposta é claramente negativa caso o reconhecimento tenha sido realizado seguindo todos os trâmites legais, isto é, se não padecer de invalidade processual ou probatória.[5]

A repetição do acto, tenha ou não havido identificação positiva, é um acto inútil. Mesmo que assim se não considere, a sua repetição tem fraco valor probatório.

Assim, a questão da realização de um reconhecimento em audiência de julgamento com o cumprimento dos requisitos previstos no nº 2 do artigo 147º do Código de Processo Penal só se coloca se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução por inércia das entidades investigadoras, por nulidade processual ou nulidade probatória do acto praticado em fase de inquérito ou instrução.  

Esses serão os campos, por excelência, de aplicação desta exigência formal da legislação portuguesa, uma novidade heterodoxa.

Naturalmente que, nestes casos, se impõe uma tomada de posição do tribunal no sentido de considerar necessária e adequada a realização de um “reconhecimento”, ao qual será atribuída uma específica e autónoma força probatória.

No entanto, nem todas as “identificações” realizadas em audiência têm que revestir a forma de reconhecimento nem o artigo 147º do Código de Processo Penal obriga a que todos os depoimentos sejam interrompidos no momento da “identificação” para que passem, naquele extracto de “testemunho”, a revestir a forma de reconhecimento.

Só o deverão ser, para revestir maior peso probatório, nos casos supra indicados: (1) se inexistir reconhecimento realizado em inquérito ou instrução; (2) por nulidade processual; (3) ou nulidade probatória do acto praticado em fase de investigação.  

Não sendo esse o caso, nada obsta a que o tribunal inquira a testemunha até no âmbito do contraditório ou com vista à identificação do ou dos autores do facto ilícito.

Coisa diversa será a força probatória de tal inquirição. Se visa, unicamente, a corroboração da identificação já realizada por reconhecimento em inquérito será probatóriamente inútil. Assim como será de fraquíssimo valor probatório uma identificação por depoimento positivo em audiência que tenha sido negativo num reconhecimento realizado em inquérito.

Naturalmente que essa “identificação” deverá ser apreciada como um mero depoimento ou meras declarações, que não como de um reconhecimento se tratasse.


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B.3.3 - Do exame do reconhecimento em audiência

É necessário não olvidar - e aqui entramos noutro dos pontos suscitados pelo recorrente - que o artigo 355º nº 1 do Código de Processo Penal determina que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”.

Isto é, podem ser examinadas em audiência de julgamento provas produzidas em inquérito, desde que cumpram as exigências impostas pelo legislador para o respectivo meio de prova e o Ministério Público as indique na acusação.

É o que ocorre, por exemplo, com autópsias e outras perícias realizadas em inquérito. O exemplo das autópsias é assaz claro. Nem sequer podem ser renovadas, produzidas de novo em audiência de julgamento, dada a impossibilidade técnica da sua renovação. Apenas podem ser sujeitas ao contraditório e ao exame de compatibilidade entre os factos biológicos apurados e as conclusões.

Assim, a ideia de que toda ou quase toda a prova produzida em inquérito tem valor meramente indiciário e deve ser renovada em audiência é, claramente insustentável, no que a alguns meios de prova diz respeito (reconhecimentos, reconstituições, perícias).

Assim, se um reconhecimento já foi realizado em inquérito ou instrução, restará analisá-lo em audiência e aí sujeitá-lo ao contraditório.

E aí, sujeito ao disposto nos artigos 355º, nº 2 e 356º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal – e apenas – na medida em que se trata de meio autónomo de prova que se não confunde com declarações e depoimentos, não lhe sendo aplicável, pois, o disposto nos nsº 2 e 3 do artigo 356º do Código de Processo Penal. [6]

E isto porque se trata, realmente, de um outro meio de prova, que não de declarações.

Essa prova tem clara autonomia relativamente às declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas e, por via disso, se inserem na previsão do artigo 356º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal.

A novidade legislativa da nova redacção do artigo 147º do Código de Processo Penal alterou até a própria substância de interposição de recursos. Na anterior redacção do preceito era comum a alegação de nulidade por irrepetibilidade do reconhecimento. A nova redacção já parece permitir a alegação de nulidade por não repetição. Isto é, por razões jurídicas e/ou psicológicas, o reconhecimento tanto vê o seu valor probatório posto em causa pela alegação da sua “irrepetibilidade” como, agora, se exige a sua repetição em audiência. Ambas se sustentam sempre na alegação de nulidade.

Essa aparente contradição surge na sequência de uma das questões suscitadas pelo recorrente, a necessidade de repetição do reconhecimento em audiência e subsequente nulidade face à omissão.

A concepção base da alegação contrária assenta na ideia de que um reconhecimento mal realizado acarreta a sanção automática de proibição de realização de um novo reconhecimento nesse processo e por referência ao mesmo arguido, mesmo que diversos sejam os restantes integrantes da linha de identificação. Uma espécie de efeito à distância automático e de largo espectro que inviabilizaria a prova por identificação do arguido, seja por novo reconhecimento em inquérito, em audiência de julgamento ou por depoimento da testemunha, igualmente, em audiência

Esta última alegação surge em regra associada à afirmação de irrepetibilidade defendida pelo Prof. Germano Marques da Silva.[7]

Quer-nos parecer, no entanto, que a questão da repetibilidade ou irrepetibilidade do reconhecimento não surge associada ao regime das nulidades.

O artigo 147º, nº 7 do Código de Processo Penal fulmina um reconhecimento, que não tenha cumprido os requisitos legais, de nulidade probatória mas não proíbe a sua repetição.

Por seu lado, o artigo 122º do Código de Processo Penal é claro na possibilidade de determinar, sempre que necessário e possível, a repetição do acto nulo.

Não temos dúvida em afirmar que a repetição de um reconhecimento é, em regra, necessária, pois que se o não fosse, o primeiro não teria sido realizado. E será possível desde que estejam disponíveis o arguido e a testemunha que o realizaram previamente, aconselhando as cautelas mínimas, que outros sejam os restantes intervenientes.

Assim, a característica de “irrepetibilidade” está associada, não a uma invalidade de prova, sim à substância probatória do concreto acto que se repete, sabendo-se que o novo acto não terá a virtualidade de convencimento que teria um primeiro adequadamente realizado. O seu peso probatório será, portanto, menor.

Isto é, saímos do regime de proibição de produção e de valoração da prova e passamos para o regime de apreciação da prova contido no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Foi este, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, este no acórdão nº 199/2004.[8]

Essencial para o cumprimento dos princípios inerentes a um “fair trial”, para o “due process of law” será, então, um escrupuloso cumprimento, pelo tribunal, do dever de motivação.

Quanto à primeira alegação – a necessidade de repetição, em audiência, de reconhecimentos já realizados em inquérito – não tem o mínimo suporte científico (bem pelo contrário), nem suporte legal, pois que o artigo 147º do Código de Processo Penal não determina a repetição de reconhecimentos. Limita-se a impor ao tribunal que, se entender adequado proceder a um reconhecimento em audiência de julgamento, este deverá observar o formalismo ali previsto. Ponto é que o tribunal decida que, no caso concreto, se deve proceder a um reconhecimento. Se sim, para os casos já apontados supra, o formalismo é o imposto pela norma.

Pelo que se afirmou já se entende a afirmação do tribunal recorrido (quanto à alegação de “nulidade de omissão de pronúncia a que faz jus o art. 379.° nº 1 alínea c) do Código de Processo Penal” como alega o recorrente) ao considerar prejudicada a questão da nulidade dos reconhecimentos em audiência.

É que não houve “reconhecimentos” em audiência, sim mera apreciação de depoimentos prestados. Por outro lado considerou-se que a autonomia probatória dos reconhecimentos realizados em inquérito tornava inútil a sua repetição em audiência de julgamento. Não ocorreu, portanto, omissão de pronúncia.


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B.3.4 - O reconhecimento e a proibição de prova 

Na sequência das alegações do recorrente surge a questão da proibição da prova associada aos reconhecimentos.

Um reconhecimento efectuado sem o cumprimento dos requisitos contidos nos artigos 147º, 148º e 149º do Código de Processo Penal “não tem valor como meio de prova”, tal como se estatui nos artigos 147º, nº 7, 148º, nº 3 e 149º, nº 3.

Temos assim que a análise da questão posta se centra na expressão contida no nº 7 do artigo 147º do Código de Processo Penal: ”o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”, para o qual os outros dois preceitos remetem.

É interessante verificar que, quando o legislador utilizou a expressão adequada e mais próxima da sua intenção de consagrar uma proibição de prova, a doutrina e a jurisprudência se dividam entre qualificá-la como uma inexistência ou uma nulidade processual em sentido restrito, correndo-se o risco de desvirtuar a essência da previsão.

Tentar reduzir esta previsão a uma simples “invalidade processual” (com a agravante da possibilidade de sanação pelo decurso de determinado prazo), é esquecer a necessidade de consolidar, precisamente, estes casos de adequada separação de conceitos, entre as nulidades processuais stricto sensu e as proibições de prova.

E, em nossa opinião, o legislador consegue nestes preceitos essa adequada separação conceptual. [9]

Consagrada a separação conceptual destas proibições de prova no nº 3 do artigo 118º do Código de Processo Penal e admitindo que o legislador processual penal, face ao disposto no artigo 122º do Código de Processo Penal, entendeu desnecessária uma previsão própria reguladora das proibições de prova, será este regime, o do artigo 122º, o adequado à sua regulação, à conformação do regime próprio das proibições de prova.

Não só porque único na economia do código, também pela íntima relação que o legislador estabelece com o regime das nulidades naquele artigo 118º, nº 3 do diploma.

Caso o legislador tivesse optado pela regulação específica do regime das invalidades e ineficácias da matéria relativa à prova (proibições de produção e proibições de valoração), o nº 3 do artigo 118º seria inútil.

Assim, chamar-lhe proibição de prova ou nulidade relativa à prova será mera questão terminológica, face à íntima conexão dos dois regimes e à profusão de casos em que o termo “nulidade” se refere a uma efectiva e própria proibição de prova. Mas nunca uma nulidade processual em sentido restrito. É a capacidade probatória do acto o que está em causa, não a sanidade processual do mesmo acto.

Também não vemos razão para qualificar a ineficácia da prova contida no nº 4 do Código de Processo Penal como uma “inexistência”.

Admitindo nós que o sistema de taxatividade das nulidades contido no artigo 118º, nº 1 do Código de Processo Penal deixa sem previsão legal um número indeterminado de casos graves, haverá que reconhecer que, ao contrário do direito civil, a figura da inexistência mantém toda a pertinência em sede de processo penal. [10]

No entanto tem vindo a ser reconhecido pela melhor doutrina que a figura da inexistência se reserva para os casos mais graves – tão graves ao ponto de não permitirem a formação de caso julgado - e não previstos pelo legislador.

“Este campo, de reduzidas dimensões, constituído pelos vícios que o legislador não reconheceu apesar do seu imenso potencial destrutivo – de importância superior aos previstos na lei como causa de nulidade insanável e que, em situação alguma, devem permitir a formação de caso julgado – é, portanto, motivo suficiente para a subsistência teórica e para a utilidade prática da figura da inexistência jurídica “ [11]

Ora, não é isto que ocorre com o reconhecimento viciado. Não se concorda, pois, com a qualificação do vício como um “caso pontual de vício de inexistência”. [12]

Aqui o legislador previu a sanção e fê-lo da forma mais adequada possível: a incapacidade de o reconhecimento ser apto a cumprir a sua função de meio de prova. E não assume, por outro lado, a virtualidade de impedir a formação de caso julgado. 

De outra banda não se pode afirmar que o reconhecimento viciado não tem existência jurídica. A ser “inexistente” não existiria perante a ordem jurídica, não produziria efeitos. Esse seria um regime concreto – a não produção de efeitos – potencialmente causador de danos graves. É que, pelo menos, os efeitos negativos resultantes de um prévio reconhecimento mal realizado existem e persistem, naturalmente a serem analisados em sede de livre apreciação da prova.

Sequer a diversa terminologia utilizada – o não uso da expressão “nulidade” tal como acontece no Código de Processo Penal italiano – sustenta outra que não seja a ideia de tornar ainda mais patente a ideia de proibição de produção e valoração da prova ou, se se quiser, a necessidade sentida pelo legislador de tornar mais forte a mensagem de impossibilidade de uso daquele concreto meio de prova para fundar a convicção do Tribunal.

Aquilo que o legislador pretende é um resultado idêntico à previsão da “exclusionary rule” anglo-saxónica: evitar que a sentença seja “maculada” por um meio proibido de prova, que se estabeleça uma causalidade entre este meio proibido de prova e a decisão ou, na terminologia canadiana, que o sistema de justiça seja conduzido à admissão de uma prova que traria à Justiça “descrédito, má reputação”.

Não há, pois, qualquer dúvida sobre a proibição de exame, em audiência de julgamento, de um concreto reconhecimento deficientemente realizado em inquérito ou instrução – proibição de produção de prova – e sobre a proibição da sua valoração na decisão.

Que essa proibição esteja equiparada, pelo legislador, às nulidades é, igualmente, um dado adquirido. A ser assim, melhor seria afirmar que se trata de uma proibição de prova sujeita ao regime das nulidades insanáveis.

Isto, claro, para os casos de manifesta, patente, proibição de prova, designadamente nos casos de “reconhecimentos” físicos realizados sem o número mínimo de integrantes da “linha de identificação” previsto no artigo 147º, nº 2.

Outros casos ocorrem de incumprimento dos requisitos legais onde a “nulidade” não é tão evidente mas onde esse incumprimento pode assumir o mesmo, ou maior, nível de gravidade.

Serão os casos de dissemelhança manifesta, grave, evidente, entre o arguido e os demais integrantes da linha de identificação.

Equivalem a estes os casos de “intromissão” na fidedignidade do acto: a exibição “clandestina” prévia (imediatamente antes da realização do procedimento) de fotografias do suspeito; o permitir que este seja visto pela pessoa que vai proceder à identificação a entrar, algemado, no local do procedimento; a transmissão de informação entre pessoas que procederam e vão proceder ao reconhecimento; a sugestão feita pelo agente policial que realiza o procedimento; a realização de um reconhecimento em audiência de julgamento depois de o arguido ter sido visto por todas as testemunhas no lugar reservado ao arguido em sala de audiências ou a entrar nesta algemado. Isto é, qualquer acto que afecte, de forma grave, a credibilidade do reconhecimento, a sua substância probatória.

Estes são casos de nulidade de reconhecimento, não já por referência a um requisito formal numérico, sim a um requisito substancial que também afecta, sobremaneira, a capacidade probatória do acto.

Todos estes serão, igualmente, casos em que entendemos ser de aplicar um regime de ineficácia total, equivalente à falta do número mínimo de integrantes da “linha de identificação”.

Não faria sentido que a falta de um requisito formal conduzisse à ineficácia probatória e o incumprimento de requisitos substanciais não.

Outros, eventualmente, não merecerão tratamento tão gravoso e se reconduzirão à livre apreciação da prova.

Não obstante o incumprimento formal de um requisito que se entende previsto, será o caso de reconhecimento intelectual não lavrado em auto autónomo e que possa ser destacado de declarações e depoimentos, sem violação do artigo 356º do Código de Processo Penal.

E outros que, não merecendo uma abordagem formal que exclua a sua virtualidade absoluta como meio de prova, deverão ser resguardados para a livre apreciação da prova devidamente motivada. 

Em resumo, se o acto processual em si não padece de qualquer nulidade ou irregularidade processual, o cerne da questão consiste em saber se tal acto, processualmente válido, serve como específico meio de prova, se cumpriu as normas atinentes à sua específica função probatória, se serve – enquanto acto processual próprio para obter o reconhecimento dos arguidos – para fundar a convicção do Tribunal ou se, ao invés, por ter violado uma regra de proibição de prova, deve ser afastado da fundamentação factual, se está “privado do seu valor como meio de prova” [13], matéria naturalmente invocável a todo o tempo.

É esse o regime que decorre dos artigos 118º, nº 3 e 122º do Código de Processo Penal.

Ora, que se passa nos autos?

Nenhum dos reconhecimentos realizados em inquérito sofre de invalidade formal ou substancial. Nenhum dos reconhecimentos realizados em inquérito tinha que ser repetido em audiência de julgamento.

Quando muito se poderá aceitar que o depoimento de J. em audiência de julgamento é, por si só, incapaz de fundar uma perfeita identificação do arguido. Repete-se, nada obsta a que uma testemunha, se inquirida em audiência de julgamento sobre a pessoa do arguido, sobre isso preste depoimento. Mas o desta testemunha é, de facto, pouco convincente.

Impunha-se – já que esta testemunha não realizou reconhecimento em inquérito – realizar um reconhecimento em audiência com esta testemunha?

O critério há-de ser o da necessidade. Ora, o depoimento desta testemunha é, também, irrelevante no capítulo “identificação”. Apenas ganhou relevo na perseguição até um Audi TT e na posse da arma.

Não obstante se não poder cindir a convicção do tribunal recorrido, a sua motivação factual deixa perceber, de forma clara, que os reconhecimentos realizados em inquérito com as testemunhas Ó. (reconhecimentos fotográficos, intelectuais e físicos) são suficientes para a imputação dos factos ao arguido.

Mas mais, e o recorrente não fala disso. Pudera. Os fotogramas de fls. 85 a 111 (também fundamentadores, legítimos e lícitos, da convicção do tribunal recorrido) são um filme perfeito do acontecido. Aliás, para a aproximação à verdade material não poderíamos ter melhor: ver o arguido em fotogramas do sistema de vigilância do banco a entrar neste, a movimentar-se, a empunhar a arma caçadeira, a ameaçar com ela, a retirar o dinheiro e a abandonar o local do crime, tudo isto de cara descoberta e a poder ser analisado, em audiência, pelo tribunal recorrido, é quanto basta.

Pelo que vai dito não é acertada a afirmação do recorrente de que estão incorrectamente julgados os factos 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15 e 17 da Matéria de Facto Provada.

Desde logo porque a convicção do tribunal recorrido, contrariamente ao que alega o recorrente, não assenta exclusiva nem principalmente “no reconhecimento do arguido feito em audiência pelos intervenientes processuais que na mesma depuseram”. O que se verifica é que a convicção do tribunal recorrido não assenta, de todo, em qualquer reconhecimento realizado em audiência, nem a identificação do arguido recorrente se baseou em qualquer depoimento obtido em audiência de julgamento. Neste ponto - a identificação do arguido e a imputação dos factos - a convicção do tribunal recorrido assentou licitamente nos reconhecimentos realizados em inquérito e nos fotogramas constantes dos autos.

São, pois, improcedentes as alegações de insuficiência do exame crítico da prova, omissão de pronúncia e erro na apreciação da prova.


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B.4 – Da imputabilidade do arguido.

Concorda-se com o recorrente quando afirma que se impõe apurar da imputabilidade do arguido se se suscitarem dúvidas sobre a sua capacidade de entender e querer.

E não há dúvida que é sumamente acertado o exposto nos acórdãos da Relação de Guimarães de 02-07-2007 (proc. 981/06-1, sendo relator o Des. Cruz Bucho) [14] e no acórdão desta Relação de Coimbra de 04-02-2009 (proc. 618/05.5PBCTB.C1, sendo relator o Des. Calvário Antunes) [15] no sentido de afirmar a necessidade de fazer operar o disposto no artigo 351º do Código de Processo Penal no caso de se revelarem “fundadas suspeitas” sobre a inimputabilidade do arguido e sobre as consequências de tal omissão.

No entanto os factos no presente processo apresentam uma coloração diversa da exposta pelo recorrente.

O recorrente coloca o assento tónico na existência de dois depoimentos e num relatório extraído de processo por factos ocorridos em 2000 (proc. nº ../00.9GCCLD) em que o arguido foi declarado inimputável.

Quanto aos depoimentos prestados em audiência de julgamento o próprio recorrente afirma terem sido inconclusivos.

No resto – na existência de duas perícias aparentemente contraditórias - o recorrente faz apelo explícito à realização de uma terceira perícia para “desempate”.

A ideia de que a decisão nos presentes autos assenta na existência de duas perícias médicas contraditórias é aparente.

A primeira afirma que o arguido é inimputável. A segunda afirma que o arguido é imputável.

Estaremos, pois, face a perícias contraditórias, realizadas ambas na mesma área do saber e por peritos de igual credibilidade/formação?

Será uma das “situações de difícil solução” a que se refere Carlota Pizarro de Almeida, que desaconselha, e bem, a possibilidade de um “desempate” pela realização de uma terceira perícia, que reconduziria a solução do caso em apreço à mera soma de opiniões?[16]

Não nos parece. Impõe-se, pois, analisar ambas as perícias.

Determinante nesta análise será, também, a relação lógico-racional, científica, que se estabelece entre os fundamentos e as conclusões de ambos os relatórios.

Quanto ao relatório preferido pelo recorrente – que o dá como inimputável – ele foi desde logo negado pela observação realizada pela Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo que não teve dúvida na afirmação de que a hipótese de diagnóstico apresentada (Esquizofrenia Paranóide) não foi confirmada durante o internamento – v. fls. 468.

Temos, pois, dois elementos de peso no afastar das conclusões desse relatório: o seu desfasamento temporal (o relatório foi realizado em 19-02-2001 e o arguido praticou os factos dos presentes autos em Setembro de 2007) e a observação posterior que negou a conclusão do relatório. 

E a hipótese de diagnóstico apontada (mesmo que fosse acertada), não sendo um estado isento de tratamento adequado, nem implicando obrigatoriamente a inimputabilidade, sequer dos mais gravosos – v. g. DSM-IV.TR, fls. 313, dando o tipo paranóide como o menos gravoso caso de esquizofrenia – implica uma análise temporal que aquele Estabelecimento Prisional estava capaz de melhor analisar.

Acresce que dos autos consta um relatório pericial especificamente realizado para estes autos pelo Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa em 29 de Julho de 2008 (com uma mais adequada realização temporal) que é claro na afirmação de que o arguido não sofre de Esquizofrenia Paranóide, sim de Perturbação de Personalidade Anti-Social, sendo imputável.

Mas mais. Não só os dados observáveis “vão contra a hipótese do diagnóstico de Psicose Esquizofrénica”, como esses mesmos dados sugerem que o arguido simula e manipula os sintomas da esquizofrenia que lhe permitam obter uma declaração de inimputabilidade.

É clara a afirmação do relatório pericial, realizado em tempo adequado e pela entidade competente para a emitir, de que a simulação de patologia psiquiátrica surge como justificação para os actos praticados – fls. 530 dos autos.

As suas conclusões também não deixam lugar a dúvidas: “consideramos que o arguido apresenta diagnóstico compatível com Perturbação de Personalidade Anti-Social, e que à data dos factos tinha a capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se auto-determinar perante essa avaliação, pelo que deverá ser considerado imputável pelos factos praticados.

Trata-se de um indivíduo com traços de personalidade em que se destaca a fraca capacidade de empatizar e de se sintonizar emocionalmente com os outros e de os tomar em consideração, revelando imaturidade e frieza afectivas. De referir ainda a existência de impulsividade, reagindo sob o princípio do prazer imediato, o que pode determinar a fácil passagem ao acto, determinando, na nossa opinião, um considerável risco de violência”.

Também por aqui é improcedente o recurso do arguido.


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B.5 – Da pena aplicada.

Insurge-se o arguido contra as penas aplicadas.

A essência do seu argumentário assenta na existência de inimputabilidade ou, ao menos, de imputabilidade diminuída.

Não se verificando nem uma nem outra, sendo o arguido plenamente imputável, cai pela base a sua argumentação e o apelo a uma maior tolerância nas medidas das penas.

Estas mostram-se de acordo com a gravidade dos ilícitos praticados, suas consequências e a personalidade demonstrada pelo arguido.

Nada há que alterar nesta sede.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 4ª Secção (Criminal) deste tribunal da Relação de Coimbra em declarar improcedente o recurso interposto.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) Uc.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Coimbra, 05-05-2010

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes

[1]  - V. g. do relator “Elementos para o estudo comparado do reconhecimento de pessoas em Processo Penal na óptica do juiz de julgamento”, in Boletim da ASJP, Vª série, nº 3, pag. 91, Abril de 2007.

[2]  - Como afirmou o relator do presente acórdão in“O reconhecimento de pessoas no Projecto do Código de Processo Penal”, in Julgar, nº 1, pag. 167, 2007.

[3]  - V. g. “O reconhecimento de pessoas no Projecto do Código de Processo Penal”, in Julgar, nº 1, pags. 165-166, 2007.

[4]  - Estamos a pressupor, naturalmente, um restritivo entendimento do disposto na al. c) do nº 3 do artigo 99º do Código de Processo Penal, que no auto de reconhecimento apenas consta a declaração de identificação, não que o auto de reconhecimento seja abusivamente utilizado para ali constarem “declarações” que estejam para além do objecto do meio de prova reconhecimento.
[5]  - Invalidade processual, em sentido restrito, pois que nem todos os casos têm origem na afectação da capacidade probatória do meio de prova. Nada obsta a que ao acto processual “reconhecimento” (o reconhecimento não deixa de ser um acto processual) sejam aplicáveis as normas da invalidade dos actos processuais em tudo o que não respeite à sua “substância”, isto é, à sua intrínseca força probatória, à sua capacidade para permitir ao Tribunal fundar uma decisão. Cairão neste âmbito as irregularidades que se verificariam em qualquer acto processual independentemente da sua diferente natureza (como meio de prova ou outro), como a falta de assinatura do auto, a assinatura do mesmo por quem não presidiu ou não podia presidir ao mesmo. Enfim, actos que, não dizendo directamente respeito à sua natureza probatória, se assemelham a qualquer outro acto processual na sua vertente física ou intelectual, tão passível do cometimento de irregularidades como qualquer outro. Aqui sim, se poderá discutir, em concreto, a possível qualificação do vício como nulidade ou irregularidade, bem como a questão do prazo da sua arguição.


[6]  - No que estamos em frontal desacordo com Paulo P. Albuquerque, in “Comentário ao Código de Processo Penal”, anotação 20, pag. 420, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007. A referida anotação faria todo o sentido se tivesse sido consagrada a proposta inicial da Unidade de Missão para a Reforma Penal e do grupo parlamentar socialista de alteração do artigo 356º do Código de Processo Penal atribuindo, implicitamente, natureza testemunhal ao reconhecimento, proposta em boa hora abandonada. V.g., a este propósito, “O reconhecimento de pessoas no Projecto do Código de Processo Penal”, in Julgar, nº 1, pags. 166-167, 2007.
[7] - “Curso de Processo Penal”, II, 151, Editorial Verbo, 1993.
[8]  - Sendo relator o Conselheiro Artur Maurício. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é de 5-11-2003 e encontra-se publicado na Col. Jur. – Supremo Tribunal de Justiça – III, 227, sendo relator o Conselheiro Políbio Flor.
[9] - Correia, João Conde, “Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais”, Stvdia ivridica, nº 44, Coimbra Editora, 1999, pag. 160 e nota 367.
[10] - Quanto ao direito civil ver, entre outros, Cordeiro, António Menezes – “Tratado de Direito Civil português, I, Parte Geral”, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 573-577; HORSTER, Heinrich Ewald – “A parte geral do Código Civil português”, Almedina, Coimbra, 1992, pag. 518, nº 860.
[11] - Correia, João Conde, “Contributo...”, pags. 163-164.
[12] - Gonçalves, Maia – Código de Processo Penal Anotado.



[13]  - V. g. ac. S.T.J. de 20-11-1996, proc. nº 788/96 e ac. S.T.J. de 16-06-1997, proc. Nº 25/97, este in ww.dgsi.pt.
[14]  - V – Ora, existindo um estado de dúvida sobre a inimputabilidade do arguido o tribunal tinha o poder-dever, por força do artigo 340°, nº 1 do Código de Processo Penal, desencadear o mecanismo previsto no artº 351.°, nºs 1 e 2, do CPP, ou seja, em vista do apuramento da inimputabilidade ou até da imputabilidade diminuída do arguido, ordenar a comparência de perito para pronúncia sobre o estado psíquico daquele, medida com eventuais reflexos na pena de prisão efectiva imposta ao arguido ou até requisitar perícia a estabelecimento especializado.
IV – A omissão de tal diligência – implicando urna lacuna de indagação de factos resultantes da discussão da causa relevantes para a decisão, a qual resulta do texto da decisão recorrida – configura insuficiência para a decisão da matéria de facto provado implica o determina o reenvio do processo para novo julgamento (arts. 426º e 426º -A), ambos do CPP)

[15]  - 2. Existindo um estado de dúvida sobre a inimputabilidade do arguido o tribunal tinha o poder-dever, por força do artigo 340º, n.º1 do Código de Processo Penal, desencadear o mecanismo previsto no art. 351.°, n.ºs 1 e 2, do CPP, ou seja, em vista do apuramento da inimputabilidade ou até imputabilidade diminuída da arguida, ordenar a comparência de perito para pronúncia sobre o estado psíquico daquele, medida com eventuais reflexos na pena imposta à arguida ou até requisitar perícia a estabelecimento especializado.

3. A omissão de tal diligência, configura insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e implica o reenvio do processo para novo julgamento a fim de, além do mais, ser decidido se a arguida é inimputável, se tem imputabilidade diminuída ou se é imputável.
[16]  - V. g. Carlota Pizarro de Almeida – Modelos de inimputabilidade – pags. 52-53. Almedina, 2000.