Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9335/18.5T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
CONFERÊNCIA PREPARATÓRIA
ADJUDICAÇÃO
DESPACHO DETERMINATIVO DA PARTILHA
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA DA PARTILHA
RECURSO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JL CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.17, 48, 57, 76 RJPI ( LEI Nº 23/2003 DE 5/3), 13, 20 CRP
Sumário: I – Não obstante se deva reconhecer que o juiz, no momento em que profere decisão de homologação (ou não homologação) da partilha, tem o poder/dever de controlar a regularidade e legalidade do processo e dos actos processuais nele praticados, recusando, quando for o caso, a respectiva homologação, tal poder/dever não pode ir ao ponto de reapreciar questões que já tenham sido objecto de decisão proferida e que já se tenha tornado definitiva, seja porque já foi judicialmente impugnada e objecto de decisão judicial, seja porque não foi judicialmente impugnada no prazo previsto na lei.

II – Assim, não tendo sido judicialmente impugnado, em momento oportuno, o despacho determinativo da forma da partilha onde se determinou que as adjudicações seriam efectuadas em conformidade com o acordo obtido na conferência preparatória, essa questão – os termos em que seriam efectuadas as adjudicações – ficou definitivamente resolvida, não podendo ser contrariada pela decisão que homologa a partilha.

III – Nessas circunstâncias, fica vedado aos interessados a possibilidade de invocar, em sede de recurso interposto da decisão homologatória da partilha, as questões relacionadas com os termos daquelas adjudicações e com a invalidade ou ilegalidade do acordo obtido na conferência de preparatória nos termos do qual as adjudicações foram efectuadas.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito do processo de inventário – que correu termos no Cartório Notarial de (…) – para partilha da herança de V (…) e M (…), a cabeça de casal A (…) prestou declarações com o seguinte teor:

- O Inventariado V (…) faleceu em 23/10/2011, no estado de casado com M (…) no regime de comunhão geral de bens, deixando como herdeiros o cônjuge sobrevivo e duas filhas: A (…) e Z (…);

- Z (…) faleceu entretanto, deixando como herdeiros o seu cônjuge A (…) (que repudiou a herança) e os seus filhos H (…) e J (…)

- A referida M (…) veio a falecer em 08/03/2013, no estado de viúva, deixando os seguintes herdeiros:

. A sua filha A (…)

. Os seus netos – em representação de Z (…)(filha pré-falecida da Inventariada) – H (…) e J (…).

Apresentada a relação de bens, foi realizada a conferência preparatória onde se consignou que, por maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança nos termos do nº 1 do artigo 48º do RJPI – com deliberação favorável das interessadas A (…) e H (…) com a oposição do interessado J (…) –, os bens eram adjudicados nos termos que aí constam.

Após a adjudicação, o mandatário do interessado J (…), fez consignar o seguinte:

O interessado J(…) considera que a decisão tomada pelos demais interessados relativamente à adjudicação de todos os bens, em particular os bens imóveis que fazem parte do presente processo de inventário, é profundamente injusta, violando frontalmente o princípio da igualdade de tratamento entre herdeiros e da procura de uma partilha justa e equilibrada entre os mesmos. Com efeito, relativamente aos bens imóveis, e concretamente no que concerne a prédios urbanos, constata-se que na relação de bens foram relacionados 17 imóveis. Todavia, desse conjunto de prédios urbanos, foi decidido pelos outros interessados, apenas por terem logrado constituir uma maioria que lhes permitisse distribuir a seu bel-prazer todos os bens que compunham a herança, atribuir-lhe um único prédio urbano, concretamente o que se encontra relacionado sob a verba n. º 68 da relação de bens já atualizada. Para todos os efeitos legais, pretende neste momento que fique desde já consignado o seu total desacordo relativamente ao decidido pelos demais interessados".

Em resposta, o mandatário das interessadas A (…) e H (…) fez consignar o seguinte:

O que foi feito na presente Conferência Preparatória obedece à lei e não padece de qualquer vício ou ilegalidade não deixando certamente, e por isso, de vir a ser homologado”.

Foi elaborado despacho determinativo sobre a forma da partilha onde se concluiu pelos seguintes quinhões: 514.574,59€ para a interessada A (…), 257.290,29€ para a interessada H (…) e 257.290,29€ para o interessado J (…). Mais se consignou em tal despacho que, no que toca às adjudicações de bens e pagamentos, “…respeita-se o acordo obtido na Conferência Preparatória, constantes da respetiva ata, com a retificação agora apurada relativa ao valor das tornas…”. De seguida foi elaborado o mapa da partilha em conformidade com o aludido despacho, pelo que os quinhões foram preenchidos com os bens adjudicados na conferência, concluindo-se que A (…) tinha direito a tornas no valor de 1.600,47€, H (…)ficava obrigada a pagar tornas no valor de 1.656,27€ e J (…) tinha direito a tornas no valor de 55,80€.

O interessado J (…) impugnou judicialmente o despacho determinativo sobre a forma da partilha e mapa da partilha, impugnação que veio a ser rejeitada por intempestiva.

O referido interessado reclamou desse despacho e tal reclamação veio a ser julgada improcedente por decisão judicial proferida em 21/03/2019.

O processo foi então remetido ao tribunal onde foi proferida sentença – em 20/05/2019 – que homologou a partilha constante do mapa de partilha e adjudicou aos interessados os quinhões que naquele, expressa e respectivamente, lhes foram atribuídos.

Inconformado com essa decisão, o interessado J (…) veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto da douta sentença judicial proferida pelo Tribunal a quo que homologou a partilha feita no presente processo de inventário constante do respectivo mapa de partilha e com a adjudicação aos interessados dos bens que lhes foram atribuídos, conforme tudo melhor consta do teor da sentença recorrida.

B) Tendo aquela decisão judicial sido notificada ao interessado J (…)mediante comunicação electrónica realizada no dia 20.05.2019, emanada do Cartório Notarial da Dra. (…), foi o presente recurso apresentado no pressuposto da validade dessa notificação.

C) Existem diversas incongruências e diferentes formas de processamento e de tramitação dos processos de inventário por parte dos cartórios notariais que provocam nos interessados uma completa incerteza e falta de segurança quanto ao regime processual a adoptar.

D) Não tendo o presente processo escapado a essa incerteza agravada pelas próprias dificuldades da exacta interpretação do novo regime jurídico do processo de inventário, está, contudo, o Recorrente plenamente convencido de que o Mmo. Juiz do Tribunal a quo não poderia ter homologado a presente partilha.

E) O ilustre julgador de 1.ª instância deixou escapar dois aspectos fundamentais que consistiram no facto de a decisão da Senhora Notária ter assentado no errado pressuposto de que a deliberação tomada em sede de Conferência Preparatória tinha sido validamente formada por uma maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança, nos termos estabelecidos no artigo 48.º, n.º 1 do RJPI.

F) Por outro lado, ao ter homologado aquela partilha nos termos em que o fez, também não atendeu à circunstância de se encontrar perante uma situação de manifesta desigualdade de tratamento e de desproporção na atribuição dos bens entre os herdeiros, em violação ostensiva de normas de direito substantivo, como também em ofensa de direitos constitucionalmente consagrados.

G) A generalidade dos autores entendem presentemente que ao ser chamado a proferir uma decisão judicial acerca da partilha, o juiz exerce um verdadeiro controlo jurisdicional sobre a legalidade e a substancia dos actos praticados pelo notário.

H) Impende sobre o Juiz o dever de verificar a legalidade da partilha, do ponto de vista substantivo (cumprimento as disposições legais substantivas) e processual (nulidades e excepções de conhecimento oficioso) o que foi expressamente reconhecido no Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República de 12.12.2012, sobre a Proposta de Lei n.º 105/XII, que antecedeu a Lei 23/2013, de 5 de Março. – Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, Regime Jurídico do Processo de Inventário – 3.º Edição, a págs. 369 e seguintes:

I) Em idêntico sentido, também se pronunciou Eduardo Sousa Paiva e Isabel Cabrita, Manual do Processo de Inventário – 1.ª Edição, a págs. 195, nos seguintes termos: “Caso entenda que a mesma não se encontra correctamente efectuada, parece-nos que o juiz deverá proferir despacho nesse sentido, apontando os lapsos de que a partilha enferma e determinando a respetiva correcção. Entendimento diverso, ou seja, que o juiz não poderia sindicar tais falhas, corresponderia a concluir que o juiz estaria vincular a homologar uma partilha erradamente efectuada, esvaziando completamente de sentido a intervenção judicial nesta fase do processo.”

J) Veja-se, ainda, a este propósito a recente tomada de posição por parte de Abílio Neto, em Direito das Sucessões e Processo de Inventário – Anotado, Outubro/2017 a págs. 999, ao enunciar: “Concluímos, pois, que a decisão homologatória da partilha configura-se como verdadeiro acto jurisdicional constitutivo e de validação de todos os actos praticados até aí no processo, repensando a solução a que aderimos, embora dubitativamente, na 1.ª edição deste livro.”

K) Sendo que, no plano jurisprudencial, e dentro desta mesma linha de raciocínio também recentemente se pronunciou o Venerando Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 27.06.2018, disponível em www.dgsi.pt, que decidiu pela anulação da sentença homologatória da partilha e de todos os actos subsequente, tendo, na sua fundamentação deixado expressa a opção clara por um entendimento mais amplo relativamente ao papel do juiz na verificação da conformidade dos actos praticados por parte do notário, bem como da apreciação da legalidade e regularidade do processo.

L) Na deliberação tomada em sede de Conferência de Interessados só aparentemente é que se poderá considerar ter sido alcançada uma maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança.

M) Se no caso da interessada (…) dos de cujos a mesma se trata de uma herdeira legitimária directa quer por óbito de seu pai quer por óbito de sua mãe, sendo por conseguinte titular directa ou primitiva dos direitos naquelas heranças, o mesmo já não acontece no que respeita aos interessados H (…) e J (…), netos dos inventariados.

N) Estes interessados apenas foram chamados à sucessão em virtude do falecimento de sua mãe Z (…), pelo que os seus direitos nestas heranças é justamente aquele que competiria à primitiva ou herdeira originária.

O) Ora, nesta situação a mencionada maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança só pode ser interpretada no sentido de que essa maioria é aferida pela proporção e participação dos herdeiros primitivos na herança, considerando-se para o efeito a unidade do quinhão provindo do direito de representação sucessória.

P) Neste exacto sentido, nos esclarece o ilustre Advogado, Dr. Augusto Lopes Cardoso nos seguintes termos:

“Porque surgiram ainda outras dúvidas, esclareça-se também que, falando a lei de «maioria de dois terços do direito à herança», esta expressão não poderá ter outra interpretação senão a de que a maioria é aferida pela proporção de participação dos herdeiros primitivos na herança, aí considerada a unidade de quinhão provindo do direito de representação sucessória (CCiv. Art.s 2039.º sgs.), vale dizer que nada tem ou pode ter a ver com capitação. Por isso que, também, o facto de, no decurso do inventário falecer algum interessado, com a consequente habilitação dos seus herdeiros, não aumenta os votantes.” – Vide, Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Litigiosas – Volume II, págs. 374-375, Almedina 2018.

Q) Como consequência deste entendimento, e com óbvias repercussões no caso sub judice, atente-se ainda nas seguintes palavras:

Na verdade, será impensável que se formasse uma maioria à custa da divisão entre as pessoas integradoras dum quinhão hereditário; pelo contrário, elas estão “condenadas” a votar no mesmo sentido para que o voto tenha expressão e aí nem sequer por maioria mas por unanimidade. Só assim se pode compreender o regime e a tal cumulação de expressões”. – Obra e loc. citado.

R) Por conseguinte, a deliberação tomada pelas identificadas interessadas na Conferência Preparatória do dia 17 de Julho de 2018 não foi validamente formada, quer por não ter logrado alcançar a exigida maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, quer por nem sequer ser admissível que a interessada H (…) pudesse concorrer para a formação dessa maioria contra a vontade do interessado J (…), aqui Recorrente.

S) Daí que essa deliberação não tenha obedecido aos requisitos exigidos pelo artigo 48.º do RJPI o que acarreta a sua nulidade, não vinculando o Recorrente à forma como os quinhões foram compostos ou se se quiser à adjudicação dos bens da herança em função da existência de um pretenso acordo, quando, na realidade o mesmo foi imposto pela vontade das identificadas interessadas.

T) Se porventura se viesse a entender que essa deliberação não se encontra feridade de nulidade, sempre se teria de concluir pela sua invalidade ou ineficácia por falta de observância dos requisitos legais e por não ter colhido a aprovação de um dos interessados na partilha.

U) No que concerne ao aspecto substancial daquela deliberação é irrefutável que a mesma foi tomada pelas identificadas interessadas em seu próprio e exclusivo benefício e em manifesto prejuízo do aqui Recorrente.

V) Por via dessa deliberação, aquelas interessadas chamaram a si os melhores bens das heranças, nomeadamente a quase totalidade dos prédios urbanos, deixando para o Recorrente apenas uma casa de habitação, em péssimas condições e com uma localização muitíssimo pior do que a maioria dos demais prédios urbanos.

W) Dos 15 (quinze) prédios urbanos devidamente identificados na Relação de Bens, a interessada A (…) escolheu para si 9 (nove), concretamente as verbas n.ºs 55, 56, 57, 71, 73, 82, 84, 88 e 90.

X) A interessada H (…) escolheu para si 5 (cinco), concretamente as verbas n.ºs 83, 85, 86, 87 e 89 da Relação de Bens.

Y) No que respeita ao interessado J (…), aqui Recorrente, aquelas interessadas escolheram para si apenas 1 (um), concretamente a verba 68 da Relação de Bens.

Z) Dada a desproporção e a iniquidade como aquela escolha e adjudicação foi feita pelas identificadas interessadas é por demais evidente e notório que o interessado J (…) aqui Recorrente foi colocado numa posição de total desigualdade perante aquelas.

AA) O caso sub judice é bem elucidativo como uma aplicação cega da mencionada regra da composição dos quinhões poder ser tomada por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, não é minimamente aceitável por ofender clamorosamente os mais elementares princípios de justiça e equidade, bem como, por também contrariar normas e princípios consagrados na lei substantiva.

BB) De entre as várias vozes criticas daremos aqui conta da que nos é dada a conhecer por Fernando Neto Ferreirinha no Processo de Inventário- Reflexões Sobre O Novo Regime Jurídico, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, que adverte desde logo para as dúvidas e problemas que a regra da maioria de dois terços dos titulares do direito à herança levanta.

CC) Nessa obra vem revelada a posição do ilustre Juiz de Direito Joel Timóteo Ramos Pereira que põe em evidencia a possibilidade da aplicação daquela norma violar o princípio da intangibilidade qualitativa da legítima.

DD) Efectivamente, e no que se refere à sucessão legitimária é tomada posição de não ser possível aos co-herdeiros que representem dois terços da herança que possam impor ao “herdeiro minoritário” os bens que devessem compor o seu quinhão, por tal se encontrar vedado ao autor da sucessão, ou seja, a possibilidade de designar os bens que devem preencher a legítima contra a vontade do herdeiro legitimário, de acordo com o preceituado no artigo 2163.º do Código Civil.

EE) Igual entendimento nos é transmitido no Regime Jurídico do Processo de Inventário, anotado por Carla Câmara, Carlos Castelo Branco, João Correia e Sérgio Castanheira, nos seguintes termos:

 “Note-se, todavia, que esta solução legal, no que respeita à sucessão legitimária, não pode implicar a violação do princípio da intangibilidade qualitativa da legítima, pois não poderá ser possível a co-herdeiros que representem dois terços da herança designarem os bens que integram a respectiva legítima (sob pena de se violar, por via da lei processual, o expressamente proibido na lei substantiva: O artigo 2163.º do Código Civil proíbe ao autor da sucessão designar os bens que devem preencher a legítima contra a vontade do herdeiro legitimário)”.

FF) Na mesma esteira o Dr. Augusto Lopes Cardoso defende, inclusivamente, a inconstitucionalidade da regra da deliberação tomada por uma maioria de dois terços dos titulares do direito à herança, por violação dos princípios da igualdade e do direito a um processo equitativo e justo plasmados no artigo 13.º e no n.º 4 do artigo 20.º da CRP. – Cfr. Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Litigiosas, I Volume, pág. e II Volume, pág. 374.

GG) Sendo, ainda de realçar o entendimento manifestado a este propósito pela Dra. Andreia Sofia Morteira Lopes na sua Dissertação de Mestrado na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, que salienta não apenas a inconstitucionalidade da norma por via da violação do princípio da intangibilidade da legítima, como também pela violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP.

DD) A nível jurisprudencial, numa situação análoga à ocorrida no presente processo de inventário – se bem que no caso sub judice o procedimento adoptado tenha sido muito mais grave e penalizante dos direitos do aqui Recorrente – foi tomada posição no douto Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de 21.11.2017, disponível em www.dgsi.pt e amplamente divulgado que de forma totalmente clara e explícita considerou que no âmbito da sucessão legitimária a deliberação tomada por dois terços dos titulares do direito à herança contra a vontade do co-herdeiro minoritário, não era lícita com fundamento na violação do princípio da intangibilidade da legítima, e ainda, por não ser legalmente admissível que a lei adjectiva pudesse sobrepor-se ou postergar a substantiva.

EE) Limitamo-nos nesta sede a dar conta da parte final do sumário desse Acórdão onde se firmou o seguinte entendimento:

“No caso de, como o ora em apreço, se tratar de sucessão legitimária, os co-herdeiros que representem dois terços da herança não podem designar os bens que integram a legítima do herdeiro legitimário, contra a sua vontade, por implicar a violação do princípio da intangibilidade da legítima, sob pena de se violar, por via da lei processual, o expressamente proibido na lei substantiva”.

FF) No caso sub judice em que também nos encontramos no âmbito da sucessão legitimária, o acordo ou melhor dizendo a escolha feita pelas duas interessadas na composição dos quinhões, violou de uma assentada o princípio da intangibilidade da legítima, e atendendo à enorme desproporção e desequilíbrio nas escolhas feitas em manifesto prejuízo do “interessado minoritário”, o aqui Recorrente, também violou o direito a uma justa e equitativa partilha dos bens em flagrante violação do direito à igualdade e ao de ter um processo equitativo, nos termos consagrados nos artigos 13.º e 20.º, n.º 4 da CRP.

GG) Donde, em face de tudo quanto antecede, resulta com toda a clareza que o Tribunal a quo não poderia ter proferido uma sentença judicial que tivesse homologado a partilha nos termos em que a mesma foi realizada, por manifesta violação do disposto no n.º 1, alínea a) do artigo 48.º do RJPI, do preceituado no artigo 2163.º do CC, e ainda dos artigos 13.º e 20.º, n.º 4 da CRP.

Nestes termos e nos melhores de Direito, contando-se sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso, e por via disso, ser considerado que não houve acordo dos interessados na Conferência Preparatória para a composição dos quinhões, por a deliberação ali tomada não ter sido validamente formada por uma maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança, com a consequente afectação do mapa de partilha e da adjudicação aos interessados dos quinhões nos termos que lhes foram atribuídos.

Quando, assim se não entenda, deverá ser considerado que a deliberação tomada, não mereceu a concordância do aqui Recorrente, pelo que aquele pretenso acordo não pode prevalecer, por violar de forma ostensiva o disposto no artigo 2163.º do Código Civil, que proíbe que contra a vontade do Recorrente (herdeiro legitimário), este seja compelido a herdar os bens que lhe foram destinados pelos co-herdeiros.

Em qualquer das situações, deverá, ser anulada a conferência preparatória com a inerente afectação do mapa de partilha e da adjudicação dos bens, e revogada a consequente sentença homologatória, com as inerentes consequências legais

A cabeça de casal A (…) veio apresentar contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A) - Ao homologar a partilha, o Juiz não pode decidir sobre questões cuja solução nos autos já tenha transitado em julgado;

B) – Há um modo próprio para impugnar o despacho sobre a forma da partilha, previsto no nº. 4 do artigo 57º do R.J.P.I.;

C) - A impugnação aí prevista sob nos próprios autos e com efeito suspensivo;

D) – Assim, quando se homologa a partilha o despacho sob a forma da mesma já transitou em julgado por um de duas razões: ou porque não foi impugnado ou porque tal impugnação, por via da subida nos próprios autos e do efeito suspensivo, já está definitivamente decidida;

E) – Dado o trânsito em julgado do despacho sobre a forma da partilha, nenhuma das pretensões do recorrente poderá proceder;

F) – Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se encara, o recorrente não tem razão em qualquer dos problemas levantados;

G) – A maioria de dois terços dos titulares do direito à herança existiu nos presentes autos;

H) - O recorrente não foi prejudicado na partilha efectuada, pois recebeu tudo aquilo a que tinha direito, sendo certo que lhe ficou a pertencer o terceiro imóvel mais valioso do acervo hereditário;

I) – Não foram violados tanto o princípio da intangibilidade da legítima como o direito a uma justa e equitativa partilha dos bens;

J) - Não foram violados os artigos 13º e 20º nº. 4 da Constituição.

Nestes termos e nos mais de direito e pelo muito que como sempre não deixará de ser proficientemente suprido, deverá o presente recurso ser indeferido, com todas as consequências legais.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se o acordo obtido na conferência preparatória reuniu (ou não) a maioria de 2/3 que é exigida por lei;

• Saber se esse acordo – referente às adjudicações de bens – determina uma situação de manifesta desigualdade de tratamento e de desproporção na atribuição dos bens entre os herdeiros e se configura violação do princípio da intangibilidade da legítima, violação do direito da igualdade e violação do direito a um processo equitativo;

• Saber se, por força dessas questões, a decisão recorrida deveria ter recusado a homologação da partilha.

• Previamente à resolução dessas questões, importa analisar a questão – suscitada pela Apelada nas suas contra-alegações – de saber se as questões suscitadas no recurso podem (ou não) ser invocadas em sede de recurso da sentença homologatória da partilha para o efeito de obter a revogação desta sentença.


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III.

O Apelante vem interpor recurso da sentença que homologou a partilha com base em duas questões que, na sua perspectiva, deveriam ter impedido tal homologação: o facto de a partilha ter assentado no errado pressuposto de que a deliberação tomada em sede de Conferência Preparatória tinha sido validamente formada por uma maioria de 2/3 dos titulares do direito à herança, nos termos estabelecidos no artigo 48.º, n.º 1 do RJPI (sustentando o Apelante que tal maioria não se verificava) e o facto de essa partilha determinar uma situação de manifesta desigualdade de tratamento e de desproporção na atribuição dos bens entre os herdeiros, em violação ostensiva de normas de direito substantivo (designadamente o princípio da intangibilidade da legítima), como também em ofensa de direitos constitucionalmente consagrados (direito da igualdade e direito a um processo equitativo estabelecidos nos artigos 13º e 20º, nº 4, da CRP).

Todavia, antes de apreciar o objecto do recurso, importa analisar uma questão prévia que é suscitada pela Apelada nas suas contra-alegações e que consiste em saber se as questões suscitadas no recurso podem (ou não) ser invocadas em sede de recurso da sentença homologatória da partilha. A Apelada sustenta que não, dizendo, em resumo: que essas questões foram objecto do despacho sobre a forma de partilha; que esse despacho transitou em julgado porque dele não foi interposto recurso e que, como tal, o juiz, ao homologar a partilha, não poderia apreciar essas questões.

Analisemos então essa questão.

O Apelante, ao longo das suas alegações, sustenta – com invocação de diversa doutrina e jurisprudência – que, ao ser chamado a proferir a decisão homologatória da partilha, o juiz exerce um verdadeiro controlo jurisdicional sobre a legalidade e a substância dos actos praticados pelo notário, podendo – e devendo – determinar a alteração da partilha sempre que entenda que a mesma não se encontra correctamente efectuada.

Conforme resulta do regime jurídico do processo de inventário – aprovado pela Lei nº 23/2013 de 05/03 – o processamento dos actos e termos do processo compete aos cartórios notariais; ao juiz caberá apreciar as impugnações deduzidas relativamente às decisões do notário e praticar os actos que a lei determina serem da sua competência.

Refira-se que, ao contrário do que sucedia no regime anterior (aprovado pela Lei nº 29/2009 de 29/06) – onde se previa um controlo geral do processo por parte do juiz que, a todo o tempo, poderia decidir e praticar os actos que entendesse deverem ser decididos ou praticados pelo tribunal (cfr. artigo 4º) – o regime actualmente vigente não prevê esse controlo e, além das competências em sede de impugnação judicial das decisões do notário, o único acto que está expressamente previsto na lei como sendo da competência do juiz corresponde à sentença homologatória da partilha.

Coloca-se, assim, a questão de saber qual o âmbito e quais os limites da intervenção do juiz quando o processo lhe é apresentado para homologação da partilha.

Temos como certo que essa intervenção judicial não pode ser vista como mera formalidade pela qual o juiz apõe a sua “chancela” à globalidade dos actos praticados e à partilha efectuada sem a possibilidade de exercer um efectivo controlo sobre a regularidade e legalidade desses actos e sem a possibilidade de recusar a homologação da partilha que lhe é apresentada. Na verdade, independentemente de outras considerações que pudessem ser efectuadas a esse propósito, nenhum sentido faria que o legislador tivesse atribuído ao notário a competência para tramitar o processo e para decidir as questões que nele são suscitadas, reservando para o juiz a prática de um acto – a homologação da partilha – que não incluía qualquer poder de decisão e que correspondia ao cumprimento de uma mera formalidade; se a homologação da partilha tivesse essa natureza, nenhuma razão existiria para que ela não fosse proferida pelo notário – à semelhança do que acontece com os demais actos e decisões proferidas no processo de inventário – e tivesse sido reservada ao juiz. Se o legislador entendeu reservar para o juiz a competência para proferir a decisão de homologação da partilha, tal não poderá deixar de significar que se pretendeu atribuir ao juiz o poder de exercer algum controlo sobre a legalidade e regularidade dos actos e de, em função disso, poder recusar aquela homologação.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 843/2017, de 13/12/2017[1], “…a decisão homologatória da partilha é uma decisão da competência própria do juiz, que consubstancia o ato constitutivo em que culmina toda a atividade desenvolvida no âmbito do processo que, até esse momento, correu termos perante o notário, através do qual se atribui aos interessados a titularidade exclusiva dos direitos sobre os bens incluídos no acervo, hereditário ou conjugal, que passaram a caber-lhes, conformando, dessa forma, a respetiva esfera jurídica”, traduzindo também “…o momento em que o juiz verifica a conformidade dos atos praticados durante a fase notarial, bem como a legalidade e a regularidade do processo…”.

Temos, portanto, como certo que, no momento processual em que o processo lhe é apresentado para efeitos de homologação da partilha, o juiz tem o poder – e o dever – de controlar a legalidade e regularidade dos actos praticados e de recusar a homologação da partilha quando tal se justifique.

Mas esse poder/dever tem limites.

Temos como discutível que o juiz possa, nesse momento, reapreciar questões que já foram expressamente decididas pelo notário, como parece ser admitido por Carla Câmara/ Carlos Castelo Branco/ João Correia/ Sérgio Castanheira[2] quando afirmam que “…não está vedado ao juiz (…) que supra as irregularidades que aquele detecte, inclusive em questões incidentais e decisões interlocutórias até então proferidas, que se tenham reflectido nas operações de partilha”. Na verdade, à primeira vista, diríamos que a reapreciação dessas questões haverá de ser feita no âmbito de recurso ou impugnação judicial da decisão do notário que as apreciou e, nessa medida, elas não poderiam ser reapreciadas – oficiosamente – na sentença homologatória da partilha para o efeito de recusar tal homologação (a ser de outro modo, parece que nenhuma utilidade teria a interposição de recurso relativamente às decisões interlocutórias proferidas pelo notário, porque, bem vistas as coisas, elas não teriam qualquer valor sem que fossem confirmadas pela sentença homologatória da partilha). O Acórdão do Tribunal Constitucional supra citado parece também apontar nesse sentido quando refere que não se encontra expressamente prevista a possibilidade de, no âmbito da decisão homologatória da partilha, serem sindicadas pelo tribunal, tanto no plano fáctico como no plano do direito aplicável, as decisões com que o notário pôs termo aos incidentes suscitados perante si, tudo apontando, ao invés, para que se considere tal faculdade excluída do tipo de controlo judicial naquele momento exercitável sobre os actos pretéritos do processo.

Mas, se ainda podemos ter como discutível que o juiz possa, no momento e para efeitos de homologação (ou não) da partilha, reapreciar questões que já foram expressamente decididas pelo notário e que ainda podem vir a ser impugnadas judicialmente nos termos previstos no artigo 76º, nº 2, do RJPI, já não nos parece defensável que, nesse momento, o juiz possa recusar a homologação da partilha com fundamento em questões que já foram objecto de decisões proferidas nos autos e que já se tornaram definitivas, seja porque já foram judicialmente impugnadas e objecto de decisão judicial, seja porque não foram judicialmente impugnadas no prazo previsto na lei.

Analisemos em particular o caso do despacho sobre a forma da partilha já que é a esse despacho que se reporta a questão suscitada pela Apelada.

Nos termos do disposto no artigo 57º, nº 4, do RJPI, do despacho determinativo da forma da partilha é admissível impugnação para o tribunal da 1.ª instância competente, no prazo de 30 dias, a qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (tendo em conta o efeito atribuído ao recurso, parece dever entender-se que o processo deverá aguardar o prazo para a impugnação judicial e apenas será apresentado ao juiz para efeitos de homologação da partilha quando tiver decorrido o prazo para a impugnação sem que esta tenha sido deduzida ou quando já foi proferida decisão no âmbito da impugnação judicial[3]). Isso significa que, no momento da homologação da partilha, a decisão que determina a forma da partilha já se tornou definitiva – em conformidade com o disposto no artigo 17º, nº 1, do citado regime – seja porque já foi impugnada e já foi objecto de decisão judicial, seja porque já decorreu o prazo legal sem que tivesse sido judicialmente impugnada. Ora, nos mesmos termos em que a sentença homologatória da partilha não poderia reapreciar questões que já haviam sido decididas pela decisão judicial proferida no âmbito da impugnação daquele despacho (a tal obstaria o caso julgado formal formado por essa decisão), pensamos que tal sentença também não poderá reapreciar questões que tenham sido decididas pelo despacho determinativo da forma da partilha que não tenha sido judicialmente impugnado no prazo legal uma vez que esta decisão também já se tornou definitiva.

Atente-se, a este propósito, na diferente redacção da lei actualmente vigente relativamente ao regime que estava previsto na Lei nº 29/2009 de 29/06.

A Lei nº 29/2009 (que não previa a possibilidade de recurso autónomo e imediato do despacho determinativo da forma da partilha) dispunha – no seu artigo 60º, nº 2 – que a decisão de não homologação da partilha (da competência do juiz) deveria ser fundamentada e propor a forma da realização da nova partilha pelo conservador ou notário. Previa-se, portanto, de modo expresso, que o juiz apreciasse os termos e as operações da partilha e que determinasse as alterações que entendesse convenientes. O regime actualmente vigente eliminou qualquer referência à possibilidade de o juiz propor a forma de realização da nova partilha e, na nossa perspectiva, essa alteração de redacção baseou-se na circunstância de agora se prever – ao contrário do que sucedia no regime anterior – a impugnação judicial, autónoma e imediata, do despacho determinativo da forma da partilha, uma vez que tal possibilidade implica que, no momento em que é proferida a sentença homologatória da partilha, as questões relacionadas com a forma de proceder à partilha já estão definitivamente decididas (ou já foram judicialmente apreciadas no âmbito da impugnação que tenha sido deduzida relativamente àquele despacho ou a decisão do notário já se tornou definitiva porque dela não foi interposto recurso em tempo oportuno). Isso mesmo é referido por Filipe César Vilarinho Marques no seguinte excerto[4]: “…não existe no art.º 66.º a possibilidade que na Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho figurava no n.º 2 do art.º 60.º - poder o juiz não homologar a partilha com base na discordância com a forma dada à mesma, propondo a forma de realização desta que entenda correcta. A supressão desta possibilidade compreende-se porque uma de duas situações verificar-se-á: ou houve recurso e o juiz já decidiu sobre a correcção ou incorrecção da forma da partilha, não podendo agora proferir nova decisão; ou não houve recurso e aquele despacho do notário tornou-se definitivo nos termos do disposto no art.º 17.º. Com efeito, não se compreenderia que dispondo esta última norma que se consideram definitivamente resolvidas as questões decididas no confronto de todos os interessados e não tendo nenhum deles interposto no devido tempo o recurso expressamente previsto no art.º 57.º, n.º 4, pudesse o juiz oficiosamente violar o carácter definitivo da decisão, revogando-a ou alterando-a”.

Não desconhecemos que esta posição não é incontroversa pois há quem entenda que o juiz pode recusar a homologação da partilha com fundamento nessas questões e determinar a alteração do despacho determinativo da forma da partilha. É essa a posição de Eduardo Sousa Paiva/Helena Cabrita[5] quando afirmam: “Caso entenda que a mesma não se encontra correctamente efectuada, parece-nos que o juiz deverá proferir despacho nesse sentido, apontando os lapsos de que a partilha enferma e determinando a respectiva correcção. Entendimento diverso, ou seja, que o juiz não poderia sindicar tais falhas, corresponderia a concluir que o juiz estaria vinculado a homologar uma partilha erradamente efectuada, esvaziando completamente de sentido a intervenção judicial nesta fase do processo”. É essa também a posição assumida por Carla Câmara/ Carlos Castelo Branco/ João Correia/ Sérgio Castanheira quando afirmam[6] que “A possibilidade de não homologação pelo juiz não se encontra, de modo algum, afectada ou precludida por qualquer inércia dos interessados. De facto, ainda que, por exemplo, algum dos interessados não tenha impugnado o despacho determinativo da forma à partilha, isso não obsta a que o juiz decida em sentido diverso e não homologue a partilha nos termos determinados pelo Notário”.

Mas, salvo o devido respeito, não podemos concordar.

Parece-nos evidente que, ao proferir a decisão de homologação (ou não homologação) da partilha, o juiz não pode reapreciar questões que já tenham sido apreciadas por decisão judicial proferida no âmbito de impugnação judicial que tenha sido deduzida relativamente a decisão do notário (designadamente a decisão que determinou a forma da partilha), sob pena de violação do caso julgado formal formado com essa decisão. E também não encontramos razões válidas para admitir que o juiz possa reapreciar questões que foram apreciadas e decididas pelo notário no despacho determinativo da forma da partilha se este despacho não foi judicialmente impugnado no prazo previsto na lei. Na verdade, ainda que não esteja em causa uma decisão judicial, a decisão do notário não deixa, apesar disso, de se tornar definitiva se não foi judicialmente impugnada, adquirindo também uma autoridade semelhante ao caso julgado formal. Além do mais, a admitir-se que estas decisões do notário ainda poderiam ser reapreciadas pelo juiz na sentença de homologação (ou não homologação) da partilha, não se perceberiam sequer as razões pelas quais o legislador teria determinado que o despacho determinativo da forma da partilha era susceptível de impugnação judicial a deduzir no prazo de 30 dias. Na verdade, a ser assim, a não dedução de impugnação não teria qualquer efeito prático, já que as questões ali apreciadas poderiam ser sempre reapreciadas pelo juiz e, ainda que não o fossem, os interessados sempre poderiam interpor recurso da sentença homologatória da partilha com fundamento nessas questões (ou na omissão da sua apreciação pela sentença) apesar de não terem impugnado oportunamente a decisão do notário que as havia apreciado. A possibilidade de imediata impugnação judicial do despacho determinativo da partilha – legalmente consagrada – não teria, portanto, qualquer interesse prático, uma vez que o acto determinante (que podia confirmar ou alterar os termos em que aquelas questões haviam sido decididas) seria sempre a decisão a proferir pelo juiz e, portanto, o único recurso relevante seria o recurso a interpor desta decisão judicial.

Concluímos, portanto, em face do exposto, que, não obstante se deva reconhecer que o juiz, no momento em que profere decisão de homologação (ou não homologação) da partilha, tem o poder/dever de controlar a regularidade e legalidade do processo e dos actos processuais nele praticados, recusando, quando for o caso, a respectiva homologação, tal poder/dever não pode ir ao ponto de reapreciar questões que já tenham sido objecto de decisão proferida e que já se tenha tornado definitiva, seja porque já foi judicialmente impugnada e objecto de decisão judicial, seja porque não foi judicialmente impugnada no prazo previsto na lei.

Assim, determinando a lei que o despacho determinativo da forma da partilha é susceptível de impugnação para o tribunal da 1.ª instância competente, a deduzir no prazo de 30 dias, as questões que aí tenham sido apreciadas e decididas não poderão ser reapreciadas na sentença que homologa (ou não homologa) a partilha, uma vez que a decisão dessas questões já se tornou definitiva, seja porque já foi judicialmente apreciada (e esta decisão adquire força de caso julgado formal), seja porque dela não foi interposto recurso em tempo oportuno.  

Revertendo para o caso dos autos, pensamos ser de concluir, à luz das considerações supra efectuadas, que o recurso não está em condições de proceder, uma vez que as questões em que se fundamenta já não podem ser apreciadas para o efeito de recusar a homologação da partilha.

Na verdade, a questão suscitada no recurso prende-se com a adjudicação dos bens, sustentando o Apelante que tal adjudicação não pode ser efectuada nos termos em que foi, uma vez que o acordo efectuado na conferência preparatória não era válido (por não se ter verificado a maioria de 2/3 exigida por lei) e uma vez que essa adjudicação determina uma situação de manifesta desigualdade de tratamento e de desproporção na atribuição dos bens entre os herdeiros, violando o princípio da intangibilidade da legítima e violando direitos constitucionalmente consagrados (direito da igualdade e direito a um processo equitativo estabelecidos nos artigos 13º e 20º, nº 4, da CRP).

Sucede que tal adjudicação foi decidida no despacho determinativo da forma da partilha onde se determinou que as adjudicações seriam efectuadas em conformidade com o acordo obtido na conferência preparatória.

Assim e sendo certo, conforme referimos, que esse despacho era susceptível de impugnação judicial a deduzir no prazo de trinta dias, era por via da impugnação desse despacho que o Apelante poderia reagir contra os termos da adjudicação dos bens que aí se havia determinado. Importa notar que o Apelante até apresentou impugnação judicial relativamente àquele despacho invocando as questões que agora vem invocar no presente recurso, sucedendo, no entanto, que tal impugnação não foi admitida por ser intempestiva (a não admissão da impugnação foi, aliás, confirmada por despacho judicial na sequência de reclamação deduzida relativamente ao despacho do notário que não a havia admitido).

Não tendo sido judicialmente impugnado – em tempo oportuno – aquele despacho, essa questão (os termos em que deveriam ser efectuadas as adjudicações) ficou definitivamente resolvida e já não poderia ser reapreciada e contrariada pela sentença que homologou a partilha, ficando vedado aos interessados a possibilidade de invocar, em sede de recurso interposto da decisão homologatória da partilha, as questões relacionadas com os termos daquelas adjudicações e com a invalidade ou ilegalidade do acordo obtido na conferência de preparatória nos termos do qual as adjudicações foram efectuadas.

Tais questões não poderão, portanto, servir de fundamento para obter a revogação daquela sentença em sede de recurso que dela foi interposto e, nessas circunstâncias, impõe-se julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Não obstante se deva reconhecer que o juiz, no momento em que profere decisão de homologação (ou não homologação) da partilha, tem o poder/dever de controlar a regularidade e legalidade do processo e dos actos processuais nele praticados, recusando, quando for o caso, a respectiva homologação, tal poder/dever não pode ir ao ponto de reapreciar questões que já tenham sido objecto de decisão proferida e que já se tenha tornado definitiva, seja porque já foi judicialmente impugnada e objecto de decisão judicial, seja porque não foi judicialmente impugnada no prazo previsto na lei.

II – Assim, não tendo sido judicialmente impugnado, em momento oportuno, o despacho determinativo da forma da partilha onde se determinou que as adjudicações seriam efectuadas em conformidade com o acordo obtido na conferência preparatória, essa questão – os termos em que seriam efectuadas as adjudicações – ficou definitivamente resolvida, não podendo ser contrariada pela decisão que homologa a partilha.

III – Nessas circunstâncias, fica vedado aos interessados a possibilidade de invocar, em sede de recurso interposto da decisão homologatória da partilha, as questões relacionadas com os termos daquelas adjudicações e com a invalidade ou ilegalidade do acordo obtido na conferência de preparatória nos termos do qual as adjudicações foram efectuadas. 


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

 Coimbra, 10/12/2019

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.    
[2] Regime Jurídico do Processo de Inventário, 2017, 3ª edição, 367.
[3] Neste sentido, Carla Câmara/ Carlos Castelo Branco/ João Correia/ Sérgio Castanheira, ob. cit., pág. 281 e Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Litigiosas, Vol. II, Almedina, 2018, pág. 658.
[4] Guia Prático – Novo Processo de Inventário e-book, Centro de Estudos Judiciários, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_guia_pratico_do_novo_processo_de_inventario_2_edicao.pdf?id=9&username=guest , pág. 61.
[5] Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, Coimbra Editora, 2013, pág. 195.
[6] Ob. cit., pág. 369.