Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
386/08.9TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
DANO
PRIVAÇÃO DO USO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 06/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.428, 473, 483, 566, 1220 CC
Sumário: I - A excepção de não cumprimento, para além de ter de ser provada pelo excepcionante, apenas, por via de regra, pode ser invocada perante uma situação de incumprimento não definitivo, imputável ou não ao devedor, e como modo de obrigar a outra parte ao cumprimento que lhe compete.

II – A indemnização por mera privação do uso constitui dano autónomo de natureza patrimonial, indemnizável nos termos dos artigos 483º e 566º do CC ou nos termos do artº 473º, sendo que, neste caso, pode ocorrer, mesmo que, inexistindo dano patrimonial do dono, o agente obtenha uma vantagem patrimonial.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

D (…) e mulher R (…) intentaram contra S (…) & F(…), Lda acção declarativa, de condenação, com processo comum, na forma ordinária.

Peticionando que:

a) se condene a Ré a pagar aos AA. a quantia global de €25.494,77, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento;

b) se condene a Ré a pagar aos AA. uma sanção pecuniária compulsória de €100,00 por cada dia de atraso no cumprimento das quantias a que for condenado a pagar.

Alegaram:

 Que a ré se obrigou a ceder aos AA. até 3.04.2002, mediante contrato de permuta, uma moradia a construir por aquela.

Que, apesar da insistência dos AA., a Ré jamais concluiu a referida moradia, tendo entretanto acordado com esta que os demandantes procederiam à conclusão da mesma a expensas da Ré, o que ascendeu ao total de €7.794,77, montante nunca pago, apesar de reclamado, e cujo pagamento ora exigem a titulo de sub-rogação ou, subsidiariamente, por via do enriquecimento sem causa.

Acresce que em consequência daquele incumprimento, os AA. apenas obtiveram a licença de habitação da moradia em 20.03.2007, ficando assim privados da sua utilização desde 3.04.2002 (altura em que deveria ter sido entregue) e consequente rentabilidade que arbitram em €300,00/mês, no total de €17.700 (€300,00 x 59 meses).

 Contestou a Ré.

 Invocando que os AA. jamais  lhe  entregaram, como acordado, todos os projectos de construção das moradias a edificar nos lotes permutados, o que a impede de prosseguir a sua actividade e retirar os resultados da construção e venda das moradias, num prejuízo a liquidar em execução de sentença e cujo pagamento reclama a titulo de reconvenção.

Pede:

A improcedência da acção.

Em reconvenção, a condenação dos AA. a pagar-lhe a titulo de indemnização a quantia a liquidar em execução de sentença, nunca inferior a €30.001, acrescida de juros desde a citação até integral pagamento.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos tendo a final, sido proferida sentença que:

I) Julgou o pedido dos autores parcialmente procedente, por provado, e em consequência :

a) condenou a Ré a pagar aos AA. a quantia de €24.894,77 (€7.794,77 + €17.100), acrescida de juros moratórios, à taxa legal em vigor em cada momento, desde a citação até integral pagamento;

b) absolveu a Ré do mais contra si peticionado;

II) julgou a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência absolveu os AA. do pedido de indemnização contra si deduzido.

3.

Inconformada recorreu a ré.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso abrange quer a matéria de direito, quer a matéria de facto que esteve na base da decisão recorrida.

2. Na sentença recorrida ocorreu deficiente apreciação das provas, porquanto apreciadas estas, em particular o depoimento das testemunhas (…) de cuja globalidade decorre tal evidência, outra, bem diversa deveria ter sido a resposta aos quesitos 37, 38, 39, 42, e 48 da Base Instrutória, devendo, pois, todos estes obter resposta positiva.

3. Assim sendo, por força do disposto no art. 798º do CC haverá de ser a Recorrente que terá direito a ser ressarcida de todos os prejuízos sofridos, visto que foram os Autores e Recorridos que não cumpriram o contrato celebrado.

4. Ainda que assim se não entendesse, sempre o montante da condenação por privação de uso da moradia devida aos Recorridos terá de ser diminuído o montante de 3.900,00 euros porquanto sempre só a partir de 9/05/2003 ela se teria constituído em mora na entrega da moradia que aos Recorridos seria devida.

Termos em que alterando-se a sentença recorrida, absolvendo-se a Recorrente e condenando-se os Recorridos a indemnizar aquela no valor que vier a liquidar-se em execução de sentença, se faria inteira e sã justiça.

Contra-alegaram os autores pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-Aº do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Improcedência, total ou parcial, do pedido dos autores e procedência do pedido reconvencional.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

(…)

Em suma: importa concluir que inexistem elementos bastantes que permitam alicerçar uma decisão censória deste tribunal ad quem no sentido de alterar a posição do Sr. Juiz a quo.

5.1.6.

Decorrentemente os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

A) A Ré é uma sociedade comercial por quotas que tem como objecto comercial a construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, conforme certidão comercial junta sob documento n.° 1 ao apenso A), cujo teor, por brevidade de exposição, aqui se dá por integralmente reproduzido.

B) Os AA., no dia 3 de Abril de 2001 no 2.° Cartório Notarial de Viseu, outorgaram conjuntamente com a Ré uma escritura de permuta.

C) Os AA. eram proprietários de 12 lotes melhor identificados na escritura supra junta.

D) Conforme se extrai da aludida escritura os AA. cederam à Ré os lotes 1 a 11.

E) Por sua vez a Ré obrigou-se a ceder aos AA. uma moraria unifamiliar a ser construída no prédio urbano destinado a construção sito ao lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 335 m2, designado por lote n.° 12, a confrontar de norte com estrada, do Sul com (…), do nascente com lote n.° 11 e poente com estrada.

F) A licença de habitação do Lote nº12 foi emitida a 20 de Março de 2007.

G) No dia 2 de Maio de 2007, os autores lograram conseguir celebrar escritura de compra e venda de uma habitação a (…) e a (…).

H) AA. e Ré acordaram que a moradia unifamiliar (L12) referida em E) deveria ser construída e entregue pela Ré aos AA. no prazo máximo de 12 meses após a celebração da referida escritura de permuta.

I) Após o termo do dito prazo os AA. solicitaram à Ré a conclusão da obra e a entrega da sua moradia unifamiliar (L12), tendo esta protelado a sua entrega.

J) Por carta de 15.09.2004 enviada à Ré, o Autor, através do então seu advogado, solicitou-lhe que terminasse a obra e procedesse à entrega da sua moradia (L12) no prazo de 15 dias úteis.

K) A Ré não respondeu a esta carta.

L) Em virtude do silêncio da Ré, por carta de 7.12.2004 o Autor, através do então seu advogado, insistiu junto daquela para que procedesse à entrega da sua moradia (L12) no prazo de 5 dias úteis, sob pena de recorrer aos meios judiciais ao seu dispor, sendo que esta carta foi recebida a 9.12.2004.

M) Como os AA. tivessem insistido junto da Ré pelo cumprimento do acordado, em reunião havida com os sócios-gerentes desta, (…), em data não apurada mas situada entre os meses Julho e Agosto de 2006, estes prometeram aos AA., através do seu procurador (…), que iriam terminar os trabalhos que faltava executar e proceder à entrega da habitação prometida.

N) Em 3.04.2006 o Autor, através do seu actual advogado, remeteu nova carta à Ré solicitando-lhe que retomasse os trabalhos no prazo de 10 dias e cumprir com o acordado na escritura, sendo que esta carta foi recebida a 13.04.2006.

O) A Ré não respondeu a esta carta.

P) Em virtude de não poderem assumir perante os interessados na compra um prazo certo para a entrega da moradia concluída, os AA. não procederam à sua venda antes da data referida em G).

Q) Como em Janeiro de 2007 os compradores referidos em G), (…) tivessem manifestado interesse na compra da moradia dos AA. (L12), estes insistiram junta da Ré pela finalização da mesma.

R) Em consequência desta última insistência, o sócio-gerente da Ré, (…), comunicou aos AA., através do seu procurador (…), não ter aquela possibilidade de executar e suportar os trabalhos em falta na sua moradia (L12), mas que os autorizava concluir a obra, pagando posteriormente a Ré as facturas, que deveriam ser emitidas em seu nome, correspondentes aos trabalhos e materiais necessários para o efeito.

S) Para conclusão da obra dos AA., a sociedade “(…), Lda” forneceu os materiais descritos na factura nº119, datada de 12.04.2007, no valor de €1.654,55, Iva incluído, conforme doc. de fls.41-2 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

T) Para a moradia dos AA., a sociedade “(…) forneceu os materiais descritos na factura nº225, datada de 21.03.2007, no valor de €3.570,22, Iva incluído, conforme doc. de fls.43-4 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

U) Na moradia dos AA., (…) executou serviços de assentamento de duas casas de banho e canalização descritos na factura nº535, datada de 22.03.2007, no valor de €220, Iva incluído, conforme doc. de fls.44 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

V) Na moradia dos AA., (…) executou serviços de pintura descrito na factura nº302, datada de 12.04.2007, no valor de €400, conforme doc. de fls.45 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

W) Na moradia dos AA., (…) executou muro rebocado e pintado e assentou mosaico e peças de rodapé conforme descrito na factura nº19, datada de 26.04.2007, no valor de €1.708, Iva incluído, conforme doc. de fls.46 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

X) Na moradia dos AA., a sociedade “(…) Lda” executou serviço de limpeza descrito na factura nº716, datada de 31.05.2007, no valor de €242, Iva incluído, conforme doc. de fls.47 do arresto apenso que aqui se dá por inteiramente reproduzido.

Y) Todos os materiais e trabalhos referidos nas al.s S) a X) foram necessários para a conclusão da obra dos AA. (L12).

Z) Apresentadas à Ré para pagamento todas as facturas referidas nas al.s S) a X), os sócios gerentes desta, (…), transmitiram aos AA. que a Ré não as pagaria designadamente por não ter dinheiro para tanto.

AA) Os AA. pagaram directamente às empresas e empresários referidas nas al.s S) a X) os trabalhos e materiais ali mencionados.

BB) Por contacto pessoal e através de carta enviada pelo seu advogado, esta datada de 2.01.2008, que a ré recebeu em 3.01.2008, os AA. transmitiram à Ré que haviam pago directamente as facturas referidas nas al.s S) a X), solicitando-lhe o respectivo reembolso.

CC) Depois de realizadas as obras da moradia dos AA. (L12) foram estes que junto do Eng. (…), director técnico e autor dos projectos, diligenciaram na Câmara Municipal de ...pela emissão do alvará de utilização referido em F).

DD) A licença de utilização e a escritura de compra e venda mencionadas em F) e G) têm por objecto a moradia unifamiliar referida em E).

EE) Uma habitação com as características da moradia unifamiliar referida em E) valeria, se arrendada fosse, uma renda mensal de €300,00.

FF) À data da celebração da escritura de permuta não existia qualquer projecto aprovado pela Câmara Municipal de ...para a construção de qualquer das moradias do referido loteamento.

GG) Aquando da negociação da dita permuta, AA. e Ré mais acordaram que aqueles também cederiam à Ré e pagariam todos os projectos de arquitectura e de especialidades ao tempo necessários para a atribuição da licença de construção das moradias unifamiliares de cada um dos 12 lotes.

HH) O alvará de licença de construção relativo à moradia unifamiliar (L12) permutada com os AA. foi concedido em 9.05.2002.

II) O projecto da moradia do L4 foi entregue pelo Eng. (…), seu autor, depois da dita escritura de permuta.

JJ) O comprador da moradia no L4 adquiriu-a ainda em tosco, sem acabamentos.

KK) O Eng. (…) elaborou o projecto de construção da moradia correspondente ao L4 e diligenciou pela sua entrada e aprovação na Câmara Municipal de ....

LL) As moradias já começadas a edificar nos L5 e L6 ainda hoje não têm projecto de construção aprovado.

MM) Na posse das chaves da sua moradia (L12), os AA. não mais as devolveram à Ré.

NN) Ressalvados os projectos das moradias dos L10, L11, L12 e L4, jamais foram entregues à Ré os projectos de construção e especialidades das moradias dos restantes lotes.

OO) Os projectos de construção e especialidades da moradia relativa ao L4 apenas foram entregues no 2º semestre de 2005.

PP) A não entrega dos restantes projectos de construção e de especialidades impede a Ré de prosseguir com a construção das moradias nos demais lotes.

QQ) A Ré começou, sem projecto nem licenciamento, a construção das moradias nos lotes 5 e 6.

RR) Para obviar à caducidade da licença de construção, a Ré acordou com o Eng. (...), autor dos projectos de arquitectura e especialidades, que estes seriam elaborados e apresentados para licenciamento na Câmara Municipal de ...à medida que a Ré desse instruções nesse sentido.

SS) Os projectos de arquitectura e especialidades das moradias dos L10 e L11 entraram na Câmara Municipal de ...após indicação da Ré para o efeito.

TT) Após a celebração da escritura de permuta, o Eng. (…) foi encarregue pela Ré de apresentar os projectos em falta de arquitectura e de especialidades ao tempo necessários para obtenção da licença de construção das moradias.

(sublinhado nosso)

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

A recorrente pugna pelo indeferimento, in totum, da pretensão dos autores e pela procedência do seu pedido reconvencional, por virtude e com base na alteração da decisão da matéria de facto, nos termos por ela propugnados.

Efectivamente alegou que: «Obtendo tais quesitos resposta positiva, outra e bem diversa não pode deixar de ser a decisão em matéria de direito… não se cumprindo o que para a Recorrida foi tido como condição essencial do negócio, ocorreu incumprimento, imputável aos Recorridos, do contrato celebrado. Incumprimento que gerou seguramente os prejuízos reclamados pela Recorrente, a ter-se por boa a avaliação do valor locativo de cada uma das moradias, ou seja, de 300,00 euros».

Ou seja, a recorrente não se insurge contra a decisão de direito na sua vertente de subsunção dos factos apurados às normas legais pertinentes e à interpretação que das mesmas tem por melhor.

Ora tendo os factos apurados na 1ª instancia sido mantidos na íntegra e não tendo a decisão de direito sido, perante o acervo factual provado –mas apenas perante outro que não logrou ficar assente – posta em causa, a mesma tem de ser mantida.

Isto porque, não apenas numa perspectiva  jurídico-formal estrita, ela transitou em julgado; como, numa óptica mais abrangente e na consideração do disposto no artº  664º, 1ª parte do CPC, que estatui não estar o juiz sujeito ás alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, ela não merece censura.

 Na verdade o Sr. Juiz decidiu a procedência da acção com base na figura do enriquecimento sem causa.

Quanto a tal subsunção algumas dúvidas se podem suscitar, já que, perante os factos apurados, é defensável considerar-se que o contrato em causa é um contrato misto, de permuta e, na parte atinente ao lote 12, de empreitada, já que se estabeleceu a entrega da moradia da ré aos autores, a construir por esta, logo sob a sua responsabilidade e com autonomia, por um certo preço  - 9.600.000$00 - e num certo prazo – 12 meses.

Sendo assim de aplicar as regras dos artºs 1220º e e segs do CC, rectius o artº 1223º e não a figura do enriquecimento sem causa pois que ela apenas pode ser invocável como ultima ratio.

Não obstante os efeitos práticos indemnizatórios sempre seriam tendencialmente os mesmos – cfr- artº 473º nº2  e 763º nº1 do CC, pelo que inexiste necessidade de, enveredando por mais vastas e profundas indagações jurídico-formais,  e efectivamente censurar  e alterar tal subsunção. 

Já quanto à improcedência da reconvenção a mesma assentou na seguinte argumentação jurídica:

«… ainda que tivessem sido os AA. a diligenciar pela licença de habitação que obtiveram em 20.03.2007 (al.F, CC e DD), não resulta do texto da permuta nem documentado na matéria provada qualquer obrigação da Ré quanto à obtenção dessa licença.

A Ré pretende justificar o não cumprimento da entrega da obra, cuja culpa presumida a onera (art.799º, nº1, do C. Civil), com a falta dos projectos de construção das moradias a edificar nos lotes permutados, o que – diz - a impede de prosseguir a sua actividade e retirar os resultados da construção e venda das moradias, circunstância que, na sua opinião, serve de fundamento à reconvenção.

Ora, à data da celebração da escritura de permuta não existia qualquer projecto aprovado pela Câmara Municipal para construção de qualquer das moradias (al.FF), tendo AA. e Ré acordado que aqueles cederiam a esta e pagariam todos os projectos de arquitectura e de especialidades ao tempo necessários para a atribuição da licença de construção de cada um dos 12 lotes (al.GG).

É também sabido que a falta desses projectos, dado o seu necessário licenciamento, impedia legalmente a Ré de construir as moradias Circunstância, que na prática não ocorria, posto que a Ré começou algumas das construções sem projecto nem licenciamento – al.LL e QQ).

Contudo, provado ficou que após a celebração da escritura de permuta, a Ré encarregou o Eng. (…) (autor dos projectos) de apresentar os projectos em falta (al.TT), acordando com este, de modo a obviar à caducidade da licença de construção, que os ditos projectos apenas deveriam ser elaborados e apresentados para licenciamento à medida que a Ré lhe desse instruções nesse sentido (al.RR)  O que, aliás, aconteceu com os projectos de arquitectura e especialidades das moradias dos L10 e L11 (al.SS).

Ademais, ainda que não tivesse sido entregue a maioria dos projectos (al.NN), a Ré não demonstrou, como lhe competia, qualquer prazo estabelecido com os AA. para o efeito nem sequer que alguma vez os tivesse efectivamente solicitado, seja aos demandantes, seja ao próprio autor dos projectos.

Daí que não se possa sequer reconhecer qualquer atraso no cumprimento dessa obrigação por parte dos Autores, cuja falta também não lhes seria imputável após à Ré ter acordado com o autor dos projectos que os mesmos apenas deveriam ser elaborados e apresentados para licenciamento à medida que ela lhe desse instruções nesse sentido (al.RR).

E não havendo mora nem incumprimento definitivo culposo dos AA. quanto à entrega desses projectos não lhes pode ser assacada qualquer responsabilidade pela falta destes e consequente impossibilidade legal da Ré prosseguir a sua actividade construtiva, o que implica a improcedência do pedido de indemnização reconvencional baseado nesse facto.

… o art.428º, nº1, do C.Civil, confere ao devedor a faculdade de recusar legitimamente o cumprimento da prestação a que se encontra adstrito, enquanto o outro contraente não cumprir ou não oferecer o cumprimento simultâneo da prestação que lhe incumbe.

Contudo, a exceptio não funciona como sanção, antes visa salvaguardar, até ao fim, um sinalagma funcional, com o único escopo de garantir o sentido inicial imprimido, ao contrato, pelas partes.

A excepção de não cumprimento apenas pode ser invocada perante uma situação de incumprimento, imputável ou não ao devedor, mas que não seja definitivo nem imputável ao credor.

Ora, constatamos que a exceptio não vem e nunca antes foi invocada pela Ré como modo de obrigar a Autora à apresentação dos projectos em falta.

E compreende-se que assim seja, pois, a própria Ré, sem capacidade financeira nem construtiva, sempre quis obviar à caducidade das licenças de construção, donde o acordo referido em RR).

Mas, se a Ré não exige a contraprestação (entrega dos projectos), a exceptio não pode satisfazer os objectivos para que foi criada (levar a outra parte a cumprir).

De resto, a demandada construtora nunca invocou suspender a conclusão da obra dos AA., enquanto a contraprestação destes não fosse efectuada, razão pela qual não pode agora invocar a exceptio.

E sendo assim o que a Ré procura, a pretexto da exceptio, é simplesmente desonerar-se do seu incumprimento na conclusão da moradia dos AA., posto que nunca antes a condicionou nem hoje condiciona, como era suposto, à entrega de qualquer projecto.

Por conseguinte, improcedendo a excepção, mantém-se a presunção de culpa que recai sobre a Ré quanto ao incumprimento da obrigação de entrega da moradia aos AA.  (art.799º, nº1), obrigação que decorre do disposto no art.879º, al.b), aqui aplicável ao contrato de permuta por força do art.939º, do C. Civil.»

Mostra-se este entendimento, perante os factos apurados, perfeitamente  curial, não merecendo, de todo, qualquer censura ou correcção.

Pois que a ré não logrou provar que a não conclusão da obra do lote 12 se tenha ficado a dever à falta de entrega do projecto de construção por parte do autor o que tinha sido consensualizado pelos outorgantes como condição essencial do contrato.

5.2.2.

Pugna ainda a recorrente:« Seja como for e sem prescindir é evidente que o valor da privação de uso do imóvel se acha incorrectamente calculado. De facto está provado que a licença de habitação ( quereriam dizer construção) da moradia que os Recorridos haveriam de receber em permuta foi apenas emitida em 9/05/2002 (Facto Provado H H da Sentença). Tal licença da responsabilidade dos Recorridos estabelecia necessariamente o prazo a partir do qual a Recorrente teria que realizar a obra, ou seja, 12 meses. Assim, ainda que se considerasse haver mora da Recorrente, a mesma não pode fixar-se em data anterior a 9/05/2003, pelo que ao valor estabelecido haver-se-á que deduzir o montante de 3.900,00 euros (três mil e novecentos euros), relativos ao valor de 300,00 euros entre 3/04/2002 e 9/05/2003. Por força do disposto nos arts. 804º e 798º do CC só após tal constituição em mora a Recorrente seria responsável pelos danos causados.»

Vejamos.

5.2.2.1.

Constituem doutrina e jurisprudência mais ou menos pacíficas que a mera privação do uso constitui dano autónomo de natureza patrimonial, indemnizável nos termos dos artigos 483º e 566º do Código Civil ou nos termos do artº 473º do mesmo diploma.

Efectivamente a ilícita privação do uso e fruição de um prédio pode ser causa de responsabilidade civil, nos termos dos dois primeiros preceitos, se impede o respectivo proprietário do exercício dos seus poderes e de tal facto advêm prejuízos para ele.

 Ou pode constituir fonte de obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473º e seguintes, caso não haja lugar a responsabilidade civil por inexistência de dano.

 Na verdade:

«, a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa postula, na tipificação delineada no artigo 473º do Código Civil, a cumulação de três requisitos: o enriquecimento de alguém, sujeito passivo da restituição; sem causa justificativa; à custa de outrem, titular do direito à restituição;

O «enriquecimento» consiste na obtenção de uma vantagem, em princípio de carácter patrimonial, qualquer que seja a forma que a mesma apresente: aumento do activo do património; diminuição do passivo; uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio;

Embora constituam campo privilegiado do enriquecimento sem causa as denominadas atribuições patrimoniais, em que a vantagem obtida por uma das partes procede de acto praticado pela outra, a vocação de aplicabilidade do instituto transcende em muito esse domínio para se estender a todos os casos em que a vantagem provém de acto de terceiro, ou do próprio enriquecido - como nas múltiplas situações de intromissão nos direitos ou bens jurídicos de outrem -, falando-se a propósito, não já restritamente de atribuições, mas de deslocações patrimoniais, enquanto actos por virtude dos quais o património de alguém aumenta à custa de outrem, seja qual for a forma por que o aumento se opere;

Conquanto seja essa muitas vezes a fisionomia do enriquecimento - a vantagem patrimonial de um dos sujeitos em correlação de locupletamento deriva de correspondente sacrifício económico suportado pelo outro -, o certo é que o artigo 473º não exige que a deslocação patrimonial tenha causalmente resultado de uma correlativa diminuição do património do «empobrecido», mas que tenha sido auferida à custa deste, tal como, designadamente, nas situações de intervenção ou intromissão nos direitos ou bens jurídicos alheios, em que semelhante correspectividade está ausente;

…predomina na doutrina, e na mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal, a denominada «teoria da afectação ou destinação» - a Zuweisungslehre da dogmática alemã -, radicando na matriz nuclear de justiça conforme a qual, se a ordem jurídica afecta determinado bem e a sua fruição em exclusivo a um sujeito, isso significa que reserva também a este a decisão acerca da utilização e exploração do bem por parte de terceiros, de modo que, se alguém se intromete no uso do bem sem consentimento do titular, deve consequentemente restituir-lhe ou recompensar-lhe o enriquecimento assim obtido». -Ac. do STJ de 24.06.04 dgsi.pt. p.03B3105:

«No enriquecimento por intervenção, em que alguém enriquece através da ingerência em bens alheios, usando-os ou fruindo-os, sem consentimento do seu titular, o "elemento central" do instituto é a obtenção do enriquecimento a custa de outrem, podendo este ocorrer sem que exista dano patrimonial do lesado.

A "deslocação patrimonial" não resulta, então, da diminuição do património do "empobrecido" mas é auferida à sua "custa" - art. 479.º, 1 do CC.

Quando a intromissão em bens alheios não envolve responsabilidade civil ou falta algum dos elementos desta, havendo enriquecimento sem causa, "o carácter subsidiário da obrigação de restituir nele fundada não impede" a sua aplicabilidade» - Ac. do STJ de 24.02.2005 dgsi.pt p.04B4601

Ao contrário do fim do instituto da responsabilidade civil - onde o que está em causa é a perda ou a diminuição verificada no património do lesado -, o enriquecimento sem causa visa remover o enriquecimento - o que está em causa é o enriquecimento injustificado do interventor.

Daí que o que se pretende é que este fique colocado na mesma situação que estaria se não fosse a deslocação patrimonial que o enriqueceu.

Razão pela qual a indemnização respectiva há-de corresponder à situação hipotética do património do enriquecido, não estando em causa qualquer diferença no património do credor.

Porém nem mesmo nos casos em que o titular da coisa não tivesse qualquer ideia de fazer uso dela, não se pode duvidar que a vantagem patrimonial do beneficiado foi obtida à custa do dono.

Mandando reverter para o titular do direito ou dono da coisa o lucro proveniente de actos que eles não realizariam, a lei consagra a doutrina da destinação ou afectação dos direitos absolutos, segundo a qual, os direitos reais, bem como os direitos de propriedade intelectual, não constituem simples direitos de exclusão, mas reservam também para o seu titular o aproveitamento económico dos bens correspondentes, expresso nas vantagens provenientes do seu uso, fruição, consumo ou alienação – cfr., entre outros, Acs. do STJ de 31.01.06, dgsi.pt p.05A3395; de 25.03.2004, p.04A364; de 22.05.2003 p.03B1426; de 05.06.01, p.01A1618 e de 12.10.1999, p.99A692.

5.2.2.2.

In casu provou-se que aquando a escritura de permuta não existia qualquer projecto aprovado pela Câmara Municipal de ...para a construção de qualquer das moradias do referido loteamento -FF)

Aquando da negociação da dita permuta, AA. e Ré mais acordaram que aqueles também cederiam à Ré e pagariam todos os projectos de arquitectura e de especialidades ao tempo necessários para a atribuição da licença de construção das moradias unifamiliares de cada um dos 12 lotes - GG)

O alvará de licença de construção relativo à moradia unifamiliar (L12) permutada com os AA. foi concedido em 9.05.2002 - HH)

Não obstante outrossim se apurou que as partes estabeleceram o prazo de 12 meses para a entrega da moradia;

e que

Após a celebração da escritura de permuta, o Eng. (…) foi encarregue pela Ré de apresentar os projectos em falta de arquitectura e de especialidades ao tempo necessários para obtenção da licença de construção das moradias - TT)

Ou seja, e sagazmente interpretados estes factos, temos que, e não obstante os autores assumirem o pagamento da emissão da licença de construção, quem ficou de diligenciar pela sua obtenção foi a ré.

O que, nos próprios dizeres da testemunha Eng. (…), bem se compreende, pois que na altura quem já era o dono dos lotes era a recorrente, pelo que, assim, e pelo menos ab initio e numa primeira abordagem, tudo o que a procedimentos legais respeitasse,  por ela passaria.

Tanto assim que tal testemunha expendeu que mesmo que fossem os réus a interpelá-lo para qualquer efeito ou diligência legal, ele não lhe daria continuidade sem auscultar a recorrente.

Ou seja, e perante os factos apurados, temos de concluir que a recorrente se comprometeu a entregar a moradia no prazo de 12 meses com terminus em 3.04.2002 e que, para o efeito e para que tal acontecesse, diligenciaria material e administrativamente.

Nesta conformidade se podendo concluir, versus o defendido pela recorrente, que a obtenção da licença de construção era da sua responsabilidade e não dos autores.

Não tendo ela demonstrado, como era seus ónus – artº 342º nº2 do CC - que assim não tenha ficado anuído, ou, no mínimo, mesmo que tal dever lhe tivesse sido cometido, o não pudesse cabalmente cumprir por motivos alheios à sua vontade ou por actuação -, vg. falta de colaboração -, imputável aos autores.

Antes, pelo contrario, se tendo apurado factos que claramente indiciam e até convencem em sentido oposto pois que se apurou que Decorrido esse prazo – 03.04.2002 - os AA. solicitaram à Ré a conclusão da obra e a entrega da sua moradia, tendo esta protelado a sua entrega (al.I), insistindo novamente, sem êxito, por carta de 15.09.2004 (al.J), outra de 7.12.2004 (al.L) e uma terceira de 3.04.2006 (al.N).

E que: como a Ré não cumprisse o acordado, em reunião havida entre Julho e Agosto de 2006 a Ré prometeu aos AA. terminar os trabalhos em falta e entregar-lhes a moradia (al.M).

Contudo, em Janeiro de 2007 a obra continuava por concluir, razão pela qual os AA. insistiram mais uma vez pela sua finalização (al.Q), em consequência do que a Ré autorizou aqueles terminarem a obra, pagando ela posteriormente os trabalhos e materiais necessários (al.R).

Resta dizer que o montante com que a ré se locupletou indevidamente e que deve restituir pode ser aferido vg. pelo valor que os Autores poderiam receber se pudessem dispor, atempadamente e conforme o anuído,  da vivenda, e pudessem  fruir das suas utilidades, vg. habitando-a ou dando-a de arrendamento .

O valor de uso em causa é estimável em montante equivalente ao valor locativo do mesmo.

Pelo que o tribunal deve condenar no pagamento da quantia mensal correspondente ao valor locativo da fracção, desde a data em que deveria ser entregue e até à efectiva restituição aos seus proprietários -  Cfr. Acs.do STJ de 29.06.2004, dgsi.pt p.04A2105 e de 01.06.1999, p.99A379.

Em conclusão final: improcede o recurso.

6.

Sumariando:

I -Considerando os princípios da imediação e da oralidade que permitem uma valoração ética dos depoimentos das testemunhas que falha ao tribunal ad quem, a decisão sobre a matéria de facto, se impugnada somente ou essencialmente com base em tais depoimentos, apenas pode ser censurada perante a constatação de erro crasso e evidente ou se outros elementos probatórios inequivocamente o impuserem.

II - A excepção de não cumprimento, para além de ter de ser provada pelo excepcionante, apenas, por via de regra, pode ser invocada perante uma situação de incumprimento não definitivo, imputável ou não ao devedor, e como modo de obrigar a outra parte ao cumprimento que lhe compete.

III – A indemnização por mera privação do uso constitui dano autónomo de natureza patrimonial, indemnizável nos termos dos artigos 483º e 566º do CC ou nos termos do artº 473º, sendo que, neste caso, pode ocorrer, mesmo que, inexistindo dano patrimonial do dono, o agente obtenha uma vantagem patrimonial.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Alberto Ruço