Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
462/00.6PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
REGIME DE PROVA
Data do Acordão: 01/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGO 53º NºS 2 E 3 CP
Sumário: 1.- O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.

2.- O que caracteriza o regime de prova é a existência de um plano de readaptação social e a submissão do arguido a uma vigilância e controlo de assistência social especializada, ou seja, a representação do Estado na vida do arguido, após a sua condenação, como forma de o responsabilizar pelos seus actos.

3.- A fixação de um regime de prova, possibilitando ao arguido a sua ausência para o estrangeiro, esvazia de sentido tal regime uma vez que, deixa de haver qualquer controlo sobre o arguido, nomeadamente, sobre o cumprimento ou não do plano de readaptação.

Decisão Texto Integral:

No processo comum e com intervenção do tribunal colectivo, supra identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento, nos termos do art 371-A do CPP, foi proferido acórdão que:
- suspendeu a execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão que nestes autos foi aplicada ao arguido A... pelo período de 4 (quatro) anos, suspensão esta que, nos termos do artº 53º nº 3 do CPenal é acompanhado de regime de prova, o qual, deverá ser elaborado levando em consideração a possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro.
- que nos termos do artº 53º nº 3 do CPenal e do artº 494 nº 3 do CPP, se solicite à DGRS a elaboração do plano de readaptação social do arguido.

Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, sendo que na respectiva motivação conclui:
1. O tribunal Colectivo ao suspender a execução da pena de prisão, com sujeição a regime de prova, com a possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro, violou o disposto no art. 53º, nº 2 e 3, do Código Penal.
2. A possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro, esvazia de sentido o regime de prova, que está dependente da elaboração de um plano de reinserção social e da vigilância do seu cumprimento.
3. Pelo que, deve o douto acórdão ser substituído por outro que, suspenda a execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, acompanhada de regime de prova, mas obviamente sem a menção à possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro.
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto apenas apôs o visto.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.

O recurso abrange matéria de direito sem prejuízo do conhecimento dos vícios constantes do artº 412 nº 2 do CPP.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:
1. Pelas 10.30 horas do dia 10 de Janeiro do presente ano, o arguido A... . encontrou-se com a arguida B... no parque de estacionamento do "Intermarché” do Cacém, conforme combinado através do seu telemóvel de marca "Siernens", apreendido nos autos, para que esta lhe cedesse haxixe;
2. Assim, em contacto breve, o arguido recebeu da B... um saco castanho, que aquela retirou do interior de uma mochila, e, em contrapartida, entregou-lhe dinheiro;
3. Abordados, de imediato, por agentes da Polícia Judiciária, que procediam à sua vigilância e sujeitos a revista foi encontrado na posse do A... . 6 (seis) grandes pedaços de um produto compacto de cor castanha. um telemóvel de marca "Siemens" e diversos documentos;
4. Por sua vez, em poder da arguida B... estava a quantia de esc. 405.000$00 em notas do Banco de Portugal e ainda um telemóvel de marca "Ericksson";
5. Realizado teste rápido F ao produto apreendido ao arguido A... apurou-se tratar-se de haxixe e tinha o peso líquido de 1.588,715 gramas;
6. Tinha-o acabado de adquirir à arguida B... pelo preço de esc. 405.000$00 (67.500$00, cada pacote), destinando parte não determinada ao seu consumo e a restante a cedência a terceiros;
7. Já dois meses antes havia adquirido 15 gramas de haxixe por esc. 5.000$00 à arguida B...:
8. Realizada no mesmo dia busca à residência das arguidas B... e C…, com a mesma morada, foram apreendidos 50 pastilhas ecstasy, sem logótipo, 11 pastilhas de ecstasy, com o logótipo de uma “tulipa", de cor verde, uma pastilha de ecstasy de cor amarela, sem logótipo, 2,93 gramas de haxixe, composto por dois
Bocados, 145 “selos" de LSD, com o logótipo "e", 20 "selos" de "LSD"com o logótipo "tomate soup", 11 "selos” de LSD, com o logótipo de uma bicicleta e 222 "selos" de "LSD" com o logótipo “flores" e ainda a quantia de esc: 129.000$00 em notas do Banco de Portugal.
9. Os estupefacientes tinham como destino a sua comercialização e a importância em dinheiro constituía produto daquele tipo de substâncias.
10.Na mesma ocasião foi efectuada revista à arguida C..., tendo-lhe sido apreendidos 25"selos" de LSD, encontrados na sua carteira e ainda um telemóvel da marca "Motorola".
11. As arguidas B... e C... dedicavam-se, em proveito conjunto, à
venda de haxixe, LSD c ecstasy desde, pelo menos Outubro de 2000.
12. O arguido A... tem o 11º ano de escolaridade. Tem um filho com 6 anos de idade que vive com a mãe. À data da prática dos factos consumia 1 grama de haxixe por dia; Exerceu a actividade de operador de meios audiovisuais, encontrando-se, desde 23 de Fevereiro de 2000, na situação de licença sem vencimento de longa duração e requereu em 23 de Fevereiro de 2001 o seu regresso ao serviço, aguardando despacho superior;
13. Era considerado um profissional zeloso e competente.
14. Conforme decorre do seu certificado de registo criminal que se encontra junto a folhas 668 é delinquente primário:
15. Todos os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
16. Conheciam, também, perfeitamente as características dos produtos que detinham e comercializavam.
17. O arguido nasceu no Porto;
18. O pai do arguido foi guarda prisional e a mãe era doméstica.
19. O pai do arguido foi transferido para Ponta Delgada e mais tarde para Angra do Heroísmo, onde passou a exercer funções administrativas na cadeia local:
20. A infância do arguido. a sua vivência escolar e familiar foi passada na Região Autónoma dos Açores.
21. O arguido vive com a mãe;
22. O arguido exerceu as funções de auxiliar administrativo na Escola Superior de Enfermagem de Angra do Heroísmo;
23. O arguido casou e é pai de um criança de seis anos;
24. No ano 2000, o arguido requereu uma licença sem vencimento de longa duração (no mínimo de 1 ano). para poder abrir um restaurante:
25. De acordo com o contrato promessa de cessão de quotas, o sócio do arguido pagar-lhe-ia, até Dezembro de 2000, a quantia de esc. 1.500.000$00 e as restantes prestações nos moldes definidos naquele contrato-promessa;
26. O arguido é funcionário público na Escola Superior de Enfermagem de Angra do Heroísmo;
27. Em notação datada de 17 de Fevereiro de 1997, junto desta instituição, o
arguido obteve a classificação de "muito bom";
28. Durante o período de 01/ 01/96 a 31/12/96, o arguido deu apoio técnico às actividades pedagógicas na área do audiovisual, foi o responsável pelo auditório da Escola, dando apoio às acções e congressos ai realizados;
29. Deu apoio às XIX jornadas nacionais de pediatria, entre outras actividades realizadas;
30. Em notação datado de 26 de Fevereiro de 1998, junto da Escola Superior de Enfermagem de Angra do Heroísmo, o arguido voltou a obter a classificação de "muito bom";
31. Em notação datada de 24 de Maio de 1999. o arguido teve novamente a
classificação de "muito bom";
32. O arguido no período a que se refere a notação, deu apoio a vários congressos e fez um levantamento do património da Escola Superior de Enfermagem, considerando-se na apreciação geral que revelava muito bons conhecimentos profissionais adquiridos com a formação e a experiência;
33. O arguido é considerado pelos seus superiores hierárquicos e colegas como um bom profissional e um bom companheiro:
34. Em 23 de Fevereiro de 2001 (1 mês depois do seu 1º interrogatório judicial), o arguido requereu o seu regresso ao serviço, estando a aguardar despacho superior;
35. O tempo total de serviço do arguido na função pública foi até 31 de Dezembro de 1999, de 10 anos, 6 meses e 25 dias:
36. O arguido assim que voltar ao serviço irá auferir um vencimento mensal de esc.131.100$00:
37. O arguido é uma pessoa bem inserida na sua comunidade;
38. E socialmente respeitado e estimado pelos amigos;
39. O arguido é um habitual praticante de actividades desportivas:
40. O arguido praticou e ainda pratica diversas modalidades desportivas amadoras, como ciclismo, basquetebol e atletismo:
41. O arguido tem amigos;
42. O arguido tem perfeita consciência das características do haxixe como estupefaciente e admite que o mesmo causa dependência física e psíquica;
43. O arguido consome habitualmente haxixe há cerca de 14 anos;
44. O consumo médio individual do arguido era, à data da sua detenção, de 1
grama de haxixe por dia;
45. O peso bruto do haxixe apreendido ao arguido era de 1.607 quilogramas;
46. O arguido em Outubro de 2000 já havia adquirido algumas quantidades de haxixe, a uma das arguidas;
47. O arguido em Janeiro de 2001 contactou novamente uma das arguidas, para lhe adquirir mais haxixe;
48. Desta feita, deveriam ser 6 "sabonetes" de haxixe;
49. Após a compra do haxixe pelo arguido, este foi detido conjuntamente com a arguida que lhe vendeu esse produto":
50. O arguido sabia e sabe que consumir, ceder, comprar ou transportar haxixe constituem actos ilícitos;
51. O arguido frequenta, neste momento, por sua livre iniciativa, um tratamento psiquiátrico, para se curar da dependência do haxixe:
52. O arguido encontra-se melhorado, necessitando ainda de continuar o seu
programa de tratamento;
53. A quantidade de haxixe apreendida ao arguido não era toda destinada ao seu consumo próprio.
54. Outros Factos Provados:
( ... )A nível afectivo, A... . casou em 1994, casamento do qual viria a nascer um filho, actualmente com 18 anos de idade. ( .... )Mesmo separado, sempre manteve com o ex-cônjuge e filho um relacionamento muito próximo. que aqueles continuam a manter até hoje tom relação à progenitora e irmãs do arguido.
( .... ) O arguido condenado a 4 anos de prisão, incapaz de assumir perante a família e amigos a situação, a qual poria em causa a imagem social que constituíra ao longo dos anos, interpôs recurso da sentença e partiu para o Brasil, pais onde viveu até à data da actual prisão e onde viria a constituir uma nova família.
À data da actual prisão A... . encontrava-se a residir no Brasil, na zona de Ilhéus. Após um período inicial estável ao nível económico, durante o qual assegurou a sua manutenção através de actividades exercidas na casa dos Açores, ao ter conhecimento da confirmação da sua pena, abandonou o local de trabalho e passou a exercer actividades diferenciadas.
Com dificuldades em encontrar um posto de trabalho e numa situação económica deficitária, sem que os familiares tivessem conhecimento da sua situação de contumácia, naquele pais viria a confrontar-se com uma situação grave de doença, situação que levaria os familiares, mãe e irmã ao Brasil, só então confrontadas com a sua situação de incumprimento judicial.
Durante os ultimas anos no Brasil, A... . viria a iniciar uma união de facto com a actual companheira, uma cidadã brasileira, funcionaria da prefeitura local, ligação afectiva que refere como gratificante e da qual nasceu uma filha, actualmente com três anos de idade.
Confrontado com as presenças dos familiares e nomeadamente com a revolta do filho, a quem o ligava uma profunda afectividade, e que não lhe perdoou a sua fuga, equacionou desde então, com o apoio dos familiares, a possibilidade de vir para Portugal.
Descrevendo-se como uma pessoa sociável, com facilidade em estabelecer relacionamentos interpessoais e de amizade, facto que, lhe permitiu ter vários amigos, com os quais passava os tempos livres, refere não ter conseguido lidar com a destruição da imagem positiva que tinham de si, tal como com as consequências da mesma no seio da família, facto que terá transformado a sua vivência no Brasil num período de sofrimento.
Em termos pessoais. os dados colhidos apontam para que A... . seja detentor de algumas competências pessoais, materializadas na preocupação em assumir as suas responsabilidades familiares e nos hábitos de trabalho. Às suas práticas quotidianas estaria no entanto associada alguma permeabilidade e um elevado grau de exposição às influências e oportunidades desviantes, em contexto dos seus relacionamentos profissionais e sociais informais. Tais características, surgem como determinantes nos seus comportamentos desajustados bem como no aparente défice de capacidade para a resolução de problemas que revelou, face à situação judicial que tinha em curso.
O arguido mostra preocupação com a sua situação jurídica e com o seu desfecho, evidenciando uma postura de ansiedade mas também de alivio perante a mesma, revelando consciência do desvalor dos seus comportamentos desajustados e das consequências dos mesmos, quer para eventuais vitimas, quer para a sociedade em geral.
Mais do que pela intimidação do seu confinamento ao espaço prisional, ressalta a marca da sua actual situação jurídico-penal ao nível do sofrimento que a mesma lhe provocou, principalmente pelas suas consequências no seio da família.
No estabelecimento prisional de Lisboa o arguido tem mantido um comportamento institucionalmente adequado, colaborante e que denota intimidação pelo tempo de reclusão já sofrido, principalmente pelo afastamento dos filhos e restantes familiares. todos eles com dificuldades em visitá-lo.
( ... ) A sua institucionalização tem-se constituído como factor positivo na interiorização do desvalor dos seus comportamentos passados, aparentando hoje ter adquirido maiores capacidade, de avaliação e resolução de problemas e de raciocínios críticos, face às consequências das atitudes que pautaram o seu estio de vida.
55.Do certificado de registo criminal do arguido consta apenas a condenação proferida nos presentes autos.
56. O arguido mostrou arrependimento e determinação em não voltar reincidir.

Os factos relacionados nos pontos 54 e 56 resultam do relatório social junto a fls 2333 a 2338 conjugado com as declarações prestadas pelo arguido em audiência sendo que, pela forma com as prestou, concluiu-se que foram prestadas com sinceridade.
*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
- Se é de manter ou não a suspensão da execução da pena de prisão acompanhada de regime de prova a qual deverá ter em consideração a possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro;

O arguido, A..., foi julgado e condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º, nº 1 do DL nº 15/93 de 22/01, na pena de quatro anos de prisão.
Na sequência desta condenação o arguido ausentou-se do país para paradeiro desconhecido, eximindo-se ao cumprimento da pena de prisão em que foi condenado. Assim, por decisão de 11/03/2003 veio a ser declarado contumaz.
Por requerimento entrado em 4/05/2011, veio o arguido requerer a reabertura da audiência para que fosse efectuada a aplicação retroactiva da lei penal mais favorável, no âmbito do artº 371º A do CPP, com vista à suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado.
O arguido que se encontrava no Brasil, regressou a Portugal em 19/05/2001 e foi detido.
A sua situação de contumácia foi declarada cessada em 27/05/2011.
A audiência requerida ao abrigo do disposto no artº 371º A, do CPP, foi reaberta no dia 27/06/2011.
Por acórdão foi decidido:
- suspender a execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão que nestes autos foi aplicada ao arguido A... pelo período de 4 (quatro) anos, suspensão esta que, nos termos do artº 53º nº 3 do CPenal é acompanhado de regime de prova, o qual, deverá ser elaborado levando em consideração a possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro;
- que nos termos do artº 53º nº 3 do CPenal e do artº 494 nº 3 do CPP, se solicite à DGRS a elaboração do plano de readaptação social do arguido.
O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
O que caracteriza o regime de prova é a existência de um plano de readaptação social e a submissão do arguido a uma vigilância e controlo de assistência social especializada, ou seja, a representação do Estado na vida do arguido, após a sua condenação, como forma de o responsabilizar pelos seus actos.
Ora, elaborar um plano de readaptação individual que permita o arguido deslocar-se para o estrangeiro é condenar o arguido numa pena de prisão suspensa, apenas, na sua execução uma vez que, deixa de haver qualquer controlo sobre o arguido, nomeadamente, sobre o cumprimento ou não do plano de readaptação.
Efectivamente elaborar um plano de readaptação levando em consideração a possibilidade de o arguido se ausentar para o estrangeiro é esvaziar de sentido o regime de prova.

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso, e em consequência decide-se:
- suspender a execução da pena de 4 (quatro) anos de prisão que nestes autos foi aplicada ao arguido A... pelo período de 4 (quatro) anos, suspensão esta que, nos termos do artº 53º nº 3 do CPenal é acompanhado de regime de prova, o qual, deverá ser elaborado pelos serviços competentes.
- No mais mantêm-se o decidido.

Sem custas.



Alice Santos (Relatora)
Belmiro Andrade