Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3221/10.4T2AGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 342º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: i. Fundamentando a autora a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, a ausência de causa terá de ser não só alegada, como provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no art.º 342.º, por aquele que pede a restituição.

ii. Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer ainda o Tribunal da falta de causa, mesmo que demonstrada a deslocação patrimonial.

iii. Tendo a autora alegado em acção prévia que os serviços prestados à ré o haviam sido no âmbito da celebração de um contrato, que não logrou provar, daqui não se segue que a eventual vantagem que daí decorra para a demandada fique sem causa, a legitimar o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.

Decisão Texto Integral: I. Relatório

A..., sociedade de Revisores Oficiais de Contas, com sede (...) Águeda e filial na (...), em Bragança, instaurou a presente acção declarativa de condenação, então a seguir a forma sumária do processo comum, contra B... CIPRL, Cooperativa de Interesse Público de Responsabilidade Limitada, pessoa colectiva nº (...), matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, 4.ª Secção sob o nº (...), com sede na Rua (...) em Lisboa, pedindo a final a condenação da demandada a:
“i. reconhecer que, a seu pedido, a A. prestou serviços de revisão de contas/auditoria/validação no âmbito do Plano Operacional da Economia (POE), relativamente aos trabalhos e verificações elencados no art.º 16.º da p.i. e no que diz respeito aos projectos elencados no art.º 17 da mesma peça;
ii. pagar à A. o valor de tais serviços prestados, sob pena de enriquecimento injustificado à custa desta, em montante a determinar no decorrer dos presentes autos e/ ou em execução de sentença.
iii. pagar à A. juros de mora vincendos sobre tal quantia, liquidados desde a data da citação e até integral e efectivo pagamento”.
Correspondendo a convite ao aperfeiçoamento e em fundamento das pretensões deduzidas, alegou, em síntese útil, dedicar-se à revisão legal das contas, auditoria às contas, consultoria em matérias que integram o programa de exame de admissão à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC) e quaisquer outras funções de interesse público que a lei atribua aos ROC ou que por lei exijam a intervenção própria e autónoma de ROC.
Mais alegou ter instaurado contra a ré acção declarativa de condenação, a qual correu termos no mesmo Tribunal sob o nº 1357/05.2TBBGC, na qual pediu a condenação da demandada na quantia de € 39 270,00 e juros, correspondente a serviços da sua especialidade que lhe prestou no âmbito de contrato celebrado. Tal acção veio a ser julgada improcedente por sentença proferida em 6-10-2008, confirmada pelos Tribunais da Relação de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento no facto da autora não ter logrado provar a celebração do invocado contrato de prestação de serviços.
Todavia, tal como resultou demonstrado na aludida acção, factos de que pretende agora prevalecer-se nos termos do art.º 522.º do CPC, a demandante, através do seu sócio P..., prestou à ré, entre 27/3/2002 e 23/1/2004, os serviços da sua especialidade que discrimina, não englobados nos que lhe prestava como seu revisor oficial de contas. Tais serviços, prestados a solicitação da ré, que deles beneficiou, conferem à demandante o direito a receber o respectivo valor, não com fundamento na antes invocada -e não demonstrada- relação contratual, mas ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, que expressamente convoca.
*
Regularmente citada, a ré apresentou contestação e nela arguiu a excepção dilatória da ilegitimidade da autora, com fundamento no facto dos serviços em causa, “rectius”, de alguns dos serviços em causa, terem sido prestados por P..., que seria assim o titular da relação controvertida, e ainda a excepção, desta feita peremptória, da prescrição, por ter sido ultrapassado o prazo de 3 anos prescrito no art.º 482.º do Código Civil.
Aceitando os factos dados como assentes no âmbito da identificada acção que correu termos sob o n.º 1357/05.2TBBGC, invoca não ter a autora especificado convenientemente os serviços prestados, nem tão pouco alegado factos que substanciem o enriquecimento sem causa por banda da contestante, a medida desse enriquecimento ou sequer os critérios que permitam determiná-lo. Em reforço, refere que a falta de pagamento invocada se encontra justificada porquanto, não obstante as verificações em causa estarem fora do âmbito dos serviços que o sócio da autora prestava à contestante na sua qualidade de ROC, sempre a Direcção considerou que as mesmas não seriam objecto de retribuição adicional, assim o tendo feito crer o dito ROC P..., que nunca mencionou a necessidade de pagar tais serviços. Ilustrativa da confiança assim criada é a circunstância de tais honorários não terem sido incluídos em nenhum dos mencionados projectos, sendo certo que se trata de despesa elegível e, nessa medida, comparticipada, elegibilidade que era do inteiro conhecimento do identificado sócio da autora. Assinala ainda que a inexistência de uma retribuição autónoma por tais serviços não é descabida, dado que o sócio da Autora fazia parte do Conselho fiscal da Ré e aí prestava serviços de revisão de contas, pelos quais era mensalmente remunerado. A tudo acresce o facto dos serviços em causa não terem sido facturados, nem tão pouco reclamado o seu pagamento à Direcção em funções à data dos Projectos apresentados pela Ré no decurso dos anos de 2002 e primeiro trimestre de 2003, vindo a sê-lo apenas em 9 de Março de 2004, perante a nova Direcção. Não tendo sido facturados em devido tempo, não foi a despesa correspondente integrada nas respectivas candidaturas, o que impede a Ré de vir a obter o devido reembolso, pelo que, caso tenha que liquidar à Autora os valores reclamados, tal implica um prejuízo considerável.
Com fundamento nos factos alegados, entende que a conduta da autora, contrariando a confiança criada, consubstancia um abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, o que sempre imporia a improcedência da acção, ainda que com este diverso fundamento.
      *
A Autora respondeu, defendendo a improcedência das excepções. Mais esclareceu que, sendo actos da autoria e responsabilidade da ré a elaboração e apresentação das candidaturas, à mesma se deve a omissão da rubrica de honorários em cada uma delas, sendo certo que o sócio da demandante, Dr. P..., sempre advertiu que tal despesa era elegível e comparticipada a 75% pelo fundo comunitário FEDER e a 25% pelo PIDDAC, o que fazia, designadamente, aquando da verificação de cada uma das candidaturas.
Impugna a restante factualidade, afirmando que a contestante tem exacto conhecimento do valor que corresponde aos trabalhos realizados pela respondente e que, conforme acordado com a respectiva Direcção ao tempo, ascendia ao montante de 1.500,00 € + IVA por cada projecto objecto de verificação.
                                                    *
Tendo em vista sanar eventual ilegitimidade activa, pretendeu P... intervir espontaneamente nos autos para se associar à Autora, nos termos do disposto no art.º 320.º, al. a) e ss do C.P.C., alegando ter um interesse igual ao da demandante, incidente contudo não admitido.
Após incidente de verificação do valor da causa passaram os autos a seguir a tramitação da forma ordinária do processo comum.
Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções da ilegitimidade activa e da prescrição invocadas pela ré, prosseguindo os autos com selecção dos factos assentes e organização da base instrutória. Tais peças mereceram reclamação por banda da autora, sem êxito embora (cf. despacho de fls. 991).
Teve lugar audiência de julgamento, após o que o Tribunal proferiu decisão sobre a matéria de facto sujeita a instrução nos termos constantes de fls. 1112 a 1116, respostas não reclamadas.
Foi de seguida proferida sentença que, tendo julgado improcedente a acção, absolveu a ré dos pedidos formulados.
Inconformada, interpôs a autora o presente recurso e, tendo apresentado alegações, rematou-as com as seguintes necessária conclusões:
“1.ª Por não se conformar com a douta sentença proferida com data de 17-06-2013, que julgou totalmente improcedente a acção e, consequentemente, absolveu a Ré do pedido, a Autora interpôs o presente recurso, que tem por objecto a sua discordância quanto às respostas dadas à matéria de fato / quesitos 1º, 2º, 3º e 8º da douta Base Instrutória e, ainda, quanto à aplicação das normas jurídicas vigentes e pertinentes.
2.ª Compulsadas as atas de audiência de discussão e julgamento de 22-05-2013 e 30-05-2013, verifica-se que das mesmas não resulta qualquer mínima alusão à gravação dos depoimentos produzidos, o que impede a recorrente de identificar, de forma precisa, separada e com referência àquelas atas, as passagens da gravação em que se funda o recurso da matéria de fato.
3ª. Por ser assim e ao abrigo da parte final da al. a), do nº 2, do artº 640º, NCPC, a recorrente mandou proceder, por sua iniciativa, à respectiva transcrição dos depoimentos – cfr. artº 640º, nº 2, al. a), parte final, NCPC -, que aqui se dão desde já por integralmente reproduzidos e integrados, conforme DOCUMENTO 1 QUE JUNTA.
4ª. Como se disse e salvo sempre o muito devido respeito, a recorrente considera que foram indevidamente julgados os fatos correspondentes aos quesitos 1º (facto dado como provado sob o nº 18, na douta sentença), 2º, 3º (fato nº 19, na douta sentença) e 8º da douta Base Instrutória, cujas respectivas respostas pretende ver alteradas – cfr. Ata de 12-06-2013.
5ª. Quanto ao quesito 1º da Base Instrutória (fato dado como provado sob o nº 18, douta sentença):
Perguntava-se neste quesito se “ 1.º Os serviços referidos em L) e M) foram prestados pela Autora, através do seu sócio, Dr. P...?”, ao que foi respondido “1º Provado que a partir de 09/09/2002, os serviços referidos em L) e M) foram prestados pela Autora, através do seu sócio, D. P....”
A recorrente entende que, tendo em conta a totalidade da prova constante dos autos, a resposta dada peca por insuficiência: É que, para além do que resulta dos depoimentos prestados sobre esta matéria pelas testemunhas a ela indicadas e que constam referenciadas nas Atas de Audiência de julgamento de 22-05-2013 e 30-05-2013, ou seja, C....(cfr. doc. 1, que se junta, fls 5 a 30, designadamente o constante de fls. 14 a 17); D.... (Doc. 1, fls. 31 a 49, designadamente fls. fls 36 e 39) e E.... (Doc. 1, fls. 71 a 90, designadamente fls. 73 a 76),
Esta matéria foi objecto de pronúncia, clara e expressa, no relatório pericial junto aos autos em 7-05-2012 (completado com o documento entrado em 1-10-2012, que esclareceu a incidência de IVA sobre o valor apurado), nas respectivas respostas dadas pelos Senhores Peritos aos quesitos formulados pela Autora sob os nºs. 1, 2 e 3, que se dão por reproduzidos e integrados, das quais resulta inequivocamente que a Autora, recorrente, relativamente aos serviços referenciados em L), M) e J) da Matéria Assente, procedeu à verificação de 20 projectos – cfr. fls. 2 a 4, Relatório Pericial.
(…)
6ª. Quanto ao quesito 2º da Base Instrutória
Perguntava-se neste quesito se “ 2ª. Tendo sido verificados 22 projectos, à razão de € 1.500,00 por cada um, acrescido de IVA?”, ao que foi respondido:
“2º. Provado apenas o que consta de M), N) e O)”.
A recorrente considera que, tendo em conta a totalidade dos meios probatórios produzidos nos autos, este ponto de fato também foi incorrectamente julgado:
Para além do que resulta dos depoimentos prestados sobre esta matéria pelas testemunhas, D.... (Doc. 1, fls. 31 a 49, designadamente fls. 40 e 41) e E.... (Doc. 1, fls. 71 a 90, designadamente fls. 76 e 77 – cfr. Atas de Audiência de julgamento de 22-05-2013 e 30-05-2013 –
Esta matéria foi também objecto de pronúncia, clara e expressa, no RELATÓRIO PERICIAL junto aos autos em 7-05-2012, nas respectivas respostas dadas pelos Senhores Peritos aos quesitos formulados pela Autora sob os nºs. 2, 3 e 4, que se dão por reproduzidos e integrados – cfr. Relatório Pericial fls. 3 a 6.
Das quais resulta inequivocamente que o valor dos serviços prestados pela Autora, recorrente, relativamente aos serviços referenciados em L), M) e J) da Matéria Assente e à verificação de 20 projectos, teve o valor de 26.000,00 €, acrescido de IVA – cfr. documento complementar da autoria dos Senhores Peritos e entrado em 1-10-2012, que esclareceu a incidência de IVA sobre aquele valor apurado.
(…)
7ª. Quanto ao quesito 3º da Base Instrutória (Ponto 19 da matéria dada como assente na douta sentença)
A resposta dada a esta matéria é totalmente desprovida de fundamento, tendo em conta a AUSÊNCIA TOTAL de qualquer meio probatório que a justifique.
Perguntava-se neste quesito se “ O sócio da Autora, Dr. P..., em face da postura adoptada, sempre fez crer à Ré que os serviços prestados não seriam objecto de retribuição adicional?, que mereceu resposta de “PROVADO”.
Ocorre que tal resposta não decorre minimamente de qualquer dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Ré e inquiridas, F.... (cfr. doc. 1, fls. 50 a 70); H....(doc. 1, fls. 91 a 117) e G.... (cfr. doc. 1, fls. 118 a 129), como não decorre de qualquer outro elemento probatório.
Inexiste nos autos qualquer indício ou prova que permita retratar a pretensa postura adoptada pelo Dr. P...; de que forma fez crer à Ré que os serviços não seriam objecto de retribuição e, ainda, como se pode concluir que a Ré estava crente que tais serviços não seriam objecto de retribuição adicional.
(…) Por ser assim, e na inexistência total de qualquer prova que permita dar como provada a matéria constante do quesito 3º da BI, este não poderá senão ser agora dado como NÃO PROVADO, sublinhando-se ainda que, mesmo considerando (hipoteticamente) a existência de qualquer dúvida relativamente a esta matéria, a resposta ao quesito 3º deveria ser sempre negativa, de não provado, por, nos termos do artº 516º, CPC, dever ser resolvido contra a parte a quem o fato aproveitava, ou seja, contra a Ré.
8ª. Quando ao quesito 8º da douta base instrutória
Perguntava-se aqui se “8.º O Dr. P... sempre advertiu a Ré que a despesa de honorários com os serviços prestados era elegível e comparticipada a 75% pelo fundo comunitário FEDER e a 25% pelo PIDACC, o que fazia aquando da verificação de cada uma das candidaturas? “, que mereceu como resposta “ Não provado”.
Mesmo considerando a matéria dada como provada na resposta ao quesito 7º da BI, donde resulta que a elaboração e apresentação das candidaturas eram atos da autoria e responsabilidade da Ré (o que implicará que a resposta ao art.º 8º da BI nunca influirá na decisão da causa), em prol da verdade dos fatos e da prova produzida, não pode deixar de se impugnar a resposta dada ao quesito 8.º, tendo em conta o depoimento, sobre essa matéria, das testemunhas, C....(cfr. doc. 1, fls 5 a 30, designadamente fls. 13, 18, 19, 20, 21); D.... (Doc. 1, fls. 31 a 49, designadamente fls.43 e 44 ) e E.... (Doc. 1, fls. 71 a 90, designadamente fls. 78, 79, 82 a 89) - Atas de Audiência de julgamento de 22-05-2013 e 30-05-2013.
Considerando-se, por isso, que o quesito 8º deveria ter sido julgado como provado.
9ª. Desta forma e em conclusão, considera-se que (i) a Mma. Juiz do Tribunal a quo não fez a ponderação conjunta, conjugada e adequada daqueles meios probatórios e valorou-os de forma indevida, e que (ii) dos documentos juntos aos autos, incluindo Relatório Pericial e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, resulta à saciedade a existência de erro no julgamento quanto às respostas dadas aos quesitos 1.º, 2.º, 3.º e 8.º da matéria de fato constante na douta base Instrutória.
10ª. Foram violados, nesta parte, os art.ºs. 655º (livre apreciação da prova), 515º (não foi tido em conta, designadamente, o Relatório Pericial), 516º (eventual repartição do ónus da prova contra a parte a quem aproveita) e 653º, nº 2 (inexistência de fatos para fundamentação das respostas dadas), do CPC vigente à data da prolação das doutas resposta à matéria de fato e sentença.
Por ser assim:
11ª. Na petição inicial a Autora, ora recorrente, invocou que, por via dos serviços por si prestados, a Ré beneficiou em seu favor de um enriquecimento à sua custa, que lhe permitiu locupletar-se no respectivo valor daqueles serviços sem qualquer justificação; que tais serviços prestados consubstanciam atos que a Autora tinha como atividade profissional e que, por isso, tem direito a receber tal valor por parte da Ré, por via da aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, nos termos dos art.ºs 473 e sgts.
12ª. Tendo peticionado a final a condenação da Ré a pagar-lhe o valor de tais serviços prestados, acrescido de IVA e juros de mora, sob pena de enriquecimento injustificado à sua custa.
13ª. Conforme resulta dos autos e da impugnação supra deduzida, quer na matéria assente, quer da quesitada, os autos demonstram quais foram aqueles serviços prestados em causa e qual o respectivo valor, de 26.000,00 €, acrescido de IVA.
14ª. Outro tanto não considerou a douta sentença recorrida, que, com os fundamentos que constam a fls 13 e 14 e se dão por reproduzidos, entendeu não se verificar a circunstância de ausência de causa justificativa e que também não se provou o empobrecimento da Autora, com o que não estariam preenchidos os requisitos do art.º 473.º, Código Civil.
15ª. Tendo em conta a impugnação supra deduzida quanto ao quesito 3.º da BI, por não existir minimamente nos autos algo que permita que a postura do Dr. P... sempre fez crer à Ré que os serviços em causa não seriam objecto de retribuição adicional, não deverá proceder o primeiro dos argumentos invocados, de não se verificar a circunstância de ausência de causa justificativa prevista no nº 1, primeira parte, do artº 473º, CC.
16ª. Quando ao segundo dos argumentos doutamente invocados – de que também não se provou o empobrecimento da Autora - é evidente que, na procedência, ou mesmo na improcedência, da impugnação da resposta dada aos quesitos 1.º e, principalmente, 2.º, na necessária relevação do Relatório Pericial junto aos autos, conjugado com os depoimentos supra assinalados, não pode deixar de se considerar que, de fato, a Ré beneficiou, à custa da Autora, de serviços no valor de 26.000,00 €, acrescido de IVA.
17ª. Assim, não se tendo provado e não se vislumbrando nos autos como justificar que a Autora (com o escopo e capacidade jurídica inerentes), sem qualquer motivo apurado, prestou a favor da Ré, de forma gratuita, altruísta e benemérita, serviços de verificação de 20 projectos, no valor de 26.000,00 € + IVA, 18.
18.ª. Não pode senão concluir-se pelo locupletamento injustificado desta, à custa daquela, nos termos do artº 473º, CC, que resultou violado, e, em consequência, pela condenação da Ré no pagamento daquele valor à Autora”.
Com tais fundamentos pretende a modificação das respostas dadas aos artigos 1º, 2º, 3º e 8º da BI no sentido indicado, com a consequente revogação da sentença proferida e sua substituição por outra que dê procedência aos pedidos formulados pela autora.
A apelada contra alegou, pugnando naturalmente pela manutenção do julgado.
*
Assente que pelas conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso (art.º 635.º, n.º 4 do NCPC), são as seguintes as questões a decidir:
i. do erro de julgamento: da alteração das respostas aos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 8.º da base instrutória;
ii. da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.                                                                                                *
i. do erro de julgamento: da alteração das respostas aos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 8.º.
Insurge-se a apelante contra as respostas dadas aos identificados artigos porquanto, em seu entender, não foram devidamente valorados pela Mm.ª juíza “a quo” os depoimentos prestados pelas testemunhas D...., E.... e C....e, bem assim, o teor do relatório pericial junto aos autos, elementos probatórios que imporiam respostas diferentes das que mereceram os artigos 1.º e 2.º e 8.º. De outro lado, alega, atenta a completa ausência de prova, o perguntado em 3.º não podia deixar de ter sido respondido negativamente.
Perguntava-se nos artigos em causa quanto segue, tendo sido respondidos do seguinte modo:
“1.º- Os serviços referidos em L)[1] e M)[2] foram prestados pela Autora, através do seu sócio, Dr. P...?
Provado que a partir de 09/09/2002, os serviços referidos em L) e M) foram prestados pela Autora, através do seu sócio, Dr. P....
2.º- Tendo sido verificados 22 projectos, à razão de €1.500,00 por cada um, acrescido de IVA?
Provado apenas o que consta de M), N) e O)[3].
3.º- O sócio da Autora, Dr. P..., em face da postura adoptada, sempre fez crer à Ré que os serviços prestados não seriam objecto de retribuição adicional?
Provado.
8.º- Dr. P... sempre advertiu a Ré que a despesa de honorários com os serviços prestados era elegível e comparticipada a 75% pelo fundo comunitário FEDER e a 25% pelo PIDACC, o que fazia aquando da verificação de cada uma das candidaturas?
Não Provado.”
Em sede de fundamentação, justificou a Sr.ª juíza as respostas dadas aos artigos em causa pelo seguinte modo:
 “A resposta restritiva ao facto 1.º resulta da conjugação dos depoimentos testemunhais prestados com o facto já assente em P).
Nenhuma das testemunhas inquiridas, nomeadamente a testemunha C...., colaboradora da Ré entre 1998 e finais de 2004, e responsável pela instrução das candidaturas da Ré no âmbito do POE (Plano Operacional da Economia) do III Quadro Comunitário de Apoio, soube especificar se o Dr. P... fazia os trabalhos de verificação a título individual ou em representação da sociedade Autora. Porém, tendo em conta que o mesmo passou a ser sócio da Autora em 02/10/2001 (cfr. facto assente em C) da matéria assente) e que a partir de 09/09/2002 passou a emitir as suas declarações em papel com cabeçalho da Autora, assumindo-se como representante desta a partir de 27/12/2002, como decorre do facto provado em P), é legítimo concluir que a partir daquela data de 09/09/2002 tenha passado a efectuar os serviços em causa em representação da Autora.
Quanto ao facto referido em 2.º, que foram verificados 22 projectos resulta do facto assente em O), tendo sido referido pela testemunha C.... (responsável pelas candidaturas) que foram apresentados pela Ré 26 projectos e que o Dr. P... verificou pelo menos 20 projectos; a testemunha D...., funcionária da Autora até Dezembro de 2012, confirmou que foram verificados 22 projectos no âmbito do POE, conhecendo tal facto em face da documentação que o Dr. P... guardava no seu escritório em Bragança, local de trabalho da testemunha.
Porém, não se provou o valor de cada projecto, quer porque já resulta do facto assente em I) que os projectos não tinham todos o mesmo valor, quer porque resulta do facto assente em M) que o Dr. P... apenas prestou alguns dos serviços elencados em J).
Além disso, resulta do depoimento das testemunhas C...., D.... e G...., adjunta do Director Financeiro da Ré desde 2000, que as deslocações do Dr. P... à B.... para validar as despesas dos projectos em causa eram esporádicas, e que esta última testemunha concretizou em 5 a 6 vezes por ano, conhecendo tal facto porque pagava as despesas de deslocação (estadia e número de Km) ao Dr. P....
Estes factos, conjugados com o facto de o Dr. P... ser vogal do Conselho Fiscal da Ré desde 1/11/2000 (facto provado em G) e seu ROC também desde essa data), e ainda com o facto de os serviços em causa apenas terem sido facturados em 29/02/2004 e 12/01/2005, como resulta das facturas que constam da certidão dos autos n.º 1357/05.2TBBGC, a fls. 429 e 430, e também com o facto de as despesas com ROC serem elegíveis nas candidaturas apresentadas, com pagamento, em caso de aprovação, a fundo perdido, como resulta de todos os depoimentos prestados e ainda dos art.ºs 6.º, al. j) e 15.º, n.º 1, al. a) do Regulamento do POE, junto a fls. 164 e ss., levaram a que o tribunal formasse a convicção que, apesar dos serviços prestados no âmbito destas candidaturas não estarem englobados nos serviços de ROC já prestados pelo Dr. P..., não seriam objecto de retribuição adicional.
De outra forma não se compreenderia, por um lado, que só em 2004 e 2005 viessem a ser facturados e, por outro lado, que não fossem incluídos nas candidaturas dos projectos, a fim de serem reembolsados, não colhendo a explicação dada pela testemunha Dr. E...., ex-presidente da Ré (entre 1999 e Junho de 2002), no sentido de tal valor ter sido acordado consigo e de tais despesas não terem sido incluídas nas candidaturas, apesar de todos saberem que eram elegíveis, porque já excediam o valor limite que tinham para as candidaturas.
Aliás, esta última explicação (terem atingido o valor limite das candidaturas) até reforça a ideia que tais serviços (que até se assumiam de pouca monta e esporádicos – veja-se que não foram prestados todos os serviços referidos em J) e que o Dr. P... apenas se deslocava 5 ou 6 vezes por ano à sede da Ré, eventualmente, também, para tratar de serviços de ROC) não seriam objecto de retribuição.
Por outro lado, o valor referido (€1.500,00 + IVA) também parece contrariar os valores de referência que constam da Circular n.º32/03 da Ordem de Revisores Oficiais de Contas (que faz parte integrante da certidão dos autos n.º 1357/05.2TBBGC, a fls. 475 destes autos), embora se desconheça em concreto quais os valores de cada uma das candidaturas verificadas, e qual o número de horas despendido na validação dos documentos referentes a cada candidatura, apenas se sabendo que Dr. P... se deslocava à sede da Ré 5 a 6 vezes por ano, presumindo-se, assim, que o valor apresentado foi “arbitrado” a posteriori pelo próprio Dr. P..., o que também parece decorrer do conteúdo da carta que o mesmo remeteu à Ré, que faz parte integrante da certidão dos autos n.º 1357/05.2TBBGC, a fls. 469 destes autos.
O facto provado em 3.º resulta da motivação já dada ao facto 2.º para onde se remete. Relembre-se que o Dr. P... era ainda vogal do Conselho Fiscal da Ré, seu ROC e apenas se deslocava à sede da Ré 5 ou 6 vezes por ano, não tendo realizado todos os trabalhos referidos em J) (que seriam realizados pelos próprios serviços administrativos da Ré). O tribunal ficou com a convicção que, apesar dos serviços prestados no âmbito destas candidaturas não estarem englobados nos serviços de ROC já prestados pelo Dr. P..., não seriam objecto de retribuição adicional.
(…) Não foi feita qualquer prova sobre o facto referido em 8.º.”
Como se vê da motivação da decisão proferida, a Mm.ª juíza deu boa conta do seu processo de convicção, apontando com clareza e precisão os depoimentos que julgou relevantes, a razão de ciência das testemunhas cujas declarações valorou, fazendo ainda apelo a regras da experiência ou presunções judiciárias que ao juiz é permitido recorrer (artigos 349.º e 351.º do Código Civil). E se a racionalidade da decisão e consistência da motivação não são, por si só, suficientes para fundamentar um juízo de confirmação, não pode olvidar-se que o Tribunal de primeira instância tem a seu favor a imediação, a impor ao Tribunal de recurso a adopção das maiores cautelas quando se trata de reapreciar a prova produzida.
Todavia, há que ter presente a jurisprudência reiterada por banda do STJ no sentido de que o Tribunal da Relação, “ao apreciar os invocados erros de julgamento sobre os pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente, está efectivamente vinculado a realizar uma reapreciação substancial da matéria do recurso de apelação, sindicando adequadamente, através de audição do registo ou gravação da audiência que necessariamente acompanha o recurso, a convicção formada pelo tribunal de 1ª instância e formando sobre tais pontos de facto impugnados a sua própria convicção, que pode ou não ser coincidente com a do juiz a quo.
Será, pois, manifestamente inconciliável com a efectividade do duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, vigente no nosso sistema jurídico desde 1994, (…) uma análise das provas realizada em plano puramente abstracto, com mero apelo a critérios de desrazoabilidade ostensiva ou de flagrante desconformidade com os elementos probatórios documentados nos autos, desfocada de uma apreciação crítica, feita perante a especificidade do caso concreto e com decisivo apelo ao conteúdo casuístico dos vários meios de prova efectivamente produzidos em audiência.
(…) Tal não significa obviamente que deva ter lugar na Relação uma repetição ou renovação dos meios probatórios produzidos na 1ª instância, através de um novo julgamento do caso quanto aos pontos da matéria de facto questionados: o nosso sistema de recursos continua a assentar decisivamente na reponderação da decisão recorrida, não sendo, em princípio, destinados a criar matéria nova ou a realizar novas diligências probatórias (…) mas tão somente a verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria litigiosa, face aos elementos a que teve efectivamente acesso e de que podia e devia conhecer”. [4]
Por outro lado, reconhecendo-se embora, conforme se deixou já referido, que a apreciação das provas constantes de depoimentos gravados apresenta dificuldades em confronto com a apreciação de primeiro grau no tribunal da 1.ª instância, onde funciona plenamente o princípio da imediação, tendo o juiz ao seu dispor toda uma panóplia de elementos que, estando subtraídos ao colectivo de juízes deste Tribunal, auxiliam à valoração dos testemunhos -vg. reacções ou gestos espontâneos da testemunha, de inestimável valia na sua creditação- tal não autoriza a Relação a abster-se de formular um juízo probatório sobre os factos cuja reapreciação lhe é pedida, sob pena de se pôr em causa o referido segundo grau de jurisdição. “A efectiva reapreciação da prova implica [pois] a sua análise crítica sem limitações de ordem formal, ou seja, independentemente daquela que foi feita no tribunal recorrido, envolvendo a criteriosa e equilibrada apreciação, com apelo à racionalidade geral e particular do colectivo de juízes e às regras da lógica e da experiência”.
Tal é o entendimento que aqui se sufraga e em obediência a ele se ouviram na totalidade todos os depoimentos. E, desde já se adianta, a apreciação dos testemunhos em causa, criticamente analisados e confrontados com os documentos referenciados e com o teor do relatório pericial junto aos autos -elemento, também ele, sujeito ao princípio da livre apreciação conforme expressa o art.º 389.º do Código Civil- se não aponta para a confirmação integral das respostas dadas, também não apoia, no essencial, desde já se adianta, a pretensão da apelante. Vejamos porquê.
No que respeita ao artigo 1.º da base instrutória, sendo certo que nenhuma das testemunhas inquiridas pôde precisar o momento a partir do qual o sócio da autora P... deixou de prestar serviços em seu nome próprio para passar a fazê-lo em nome da sociedade, tal como referenciou a Mm.ª juíza “a quo”, a verdade é que os Srs. peritos, que por unanimidade subscreveram o relatório junto aos autos, tendo compulsado a documentação atinente às candidaturas e respectiva certificação, indicaram com precisão que das vinte e duas identificadas na al. I), no âmbito das quais tiveram lugar as tarefas e verificações discriminadas em J), a autora assegurou a certificação de 20. Ora, considerando que os serviços a que se reportam as als. L) e M), este último pela remissão feita para a al. J), respeitam inequivocamente às aludidas candidaturas, afigura-se mais esclarecedora, e ainda contida no quesito, a seguinte resposta: “Provado que os serviços referidos em L) e M) foram prestados pela autora através do seu sócio Dr. P..., relativamente a 20 das candidaturas identificadas em I)”.
Quanto ao artigo 2.º da base instrutória, a que o Tribunal respondeu restritivamente, remetendo para as als. M), N) e O), o que corresponde na prática, reconhece-se, a uma resposta de não provado, pretende a apelante que seja dado como assente que “A Autora procedeu à verificação de 20 projectos, tendo os serviços prestados o valor total de 26.000,00 €, acrescido de IVA.”, aqui fazendo apelo essencialmente à prova pericial.
Pois bem, a este respeito, sendo inequívoco que os Srs. peritos avaliaram as tarefas, cuja realização atribuíram à autora e que discriminaram, no montante de € 26 000,00 acrescido de IVA, a verdade é que da prova produzida não extraiu o Tribunal a convicção de que as mesmas tenham sido cabalmente desempenhadas por aquela, antes se convencendo que a demandante, através do seu referido sócio, mesmo admitindo que alguma verificação terá feito, sem o que, cremos, não teria certificado as despesas, procedeu essencialmente a uma certificação formal. E isto se afirma por uma razão fundamental: deflui dos depoimentos, a este título concordantes, de C...., que foi colaboradora da ré entre 1998 e finais de 2004, primeiro e até 2000 como técnica superior, depois como directora adjunta do departamento administrativo e financeiro, competindo-lhe, nesta última qualidade, toda a organização dos processos de candidaturas no âmbito do POE III do Quadro Comunitário de Apoio, âmbito em que contactou e colaborou com o Dr. P...; de D...., assistente de auditoria, que nessas funções trabalhou para a autora até 2012; e ainda de G...., adjunta do director financeiro da ré com funções administrativas desde 2000/2001, que aquele sócio da autora se deslocou a Lisboa não mais de 5/6 vezes por ano (esta última testemunha tinha bem presente o facto, por lhe competir efectuar os reembolsos das deslocações -despesas dos Km, segundo o estabelecido no DR, e estadia, quando era o caso, conforme esclareceu). Ora, tendo presente que aquele exercia simultaneamente na ré funções de ROC por nomeação da Tutela, sendo, por inerência, membro do Conselho Fiscal -recebendo por tal uma avença no valor de € 1000 e tal euros mensais, conforme esclareceu a mesma testemunha G....- e que tais deslocações serviam também esta função, mesmo que algumas se destinassem apenas à certificação, conforme também referiram as já aludidas C.... e D...., demorando-se “uma manhã ou uma tarde, raramente ficando para o dia seguinte”, não se vê que, em bom rigor, em tão curto espaço de tempo pudesse realizar a verificação de toda a documentação das despesas, conforme pressuposto no relatório pericial junto aos autos.
Por outro lado, resultou do testemunho prestado pela mesma D.... que o processo de certificação destas candidaturas em concreto se processou à margem do escritório da autora, o que poderá ser explicado pelo facto de se encontrar instalada em Bragança. A este respeito a testemunha foi peremptória ao afirmar que não teve intervenção no processo -sendo certo que não nomeou qualquer outro colaborador da autora, para além do Dr. P..., que tivesse tido- ficando a convicção de que, efectivamente, a intervenção daquele tinha lugar apenas por ocasião das suas deslocações às instalações da ré, nos moldes que se deixaram consignados.
Ainda a este propósito, parece pertinente referir que, por acaso ou não, conforme referido pelo actual director financeiro da ré, a testemunha H...., funções que exerce desde o ano de 2004, período em que todos os processos de candidatura, com excepção de um único, foram encerrados, o desvio entre as despesas apresentadas e as aprovadas foi de 2 milhões e 200 000 euros o que, mesmo considerando um investimento global da ordem dos 36 milhões de euros, não deixa de ser um desvio importante, conforme reconheceu.
Pelo exposto, não se aceita o valor a que chegaram os Srs. peritos, por não confirmados os respectivos pressupostos, dando-se apenas como provado que “A autora prestou os serviços a que se reporta a resposta ao art.º 1.º, tendo valor não concretamente apurado”.
Quanto ao artigo 3.º da base instrutória, fazendo apelo essencialmente ao depoimento prestado pela testemunha E...., presidente da direcção da ré entre Novembro de 1999 e Junho de 2002, o qual teria confirmado a contratação dos serviços extra aqui em causa, ao preço de € 1500,00 por projecto verificado, pretende a autora que o mesmo seja respondido negativamente.
Pois bem, não há dúvida -isso mesmo constava já dos factos assentes -cf. als. K), L) e M)- que os serviços que aqui se discutem extravasavam daqueles que se encontravam compreendidos nas funções de ROC e vogal do conselho fiscal exercidas pelo Dr. P... na ré B..... Também não há dúvida de que tais serviços são habitualmente pela autora cobrados. Tal como esclarecedoramente declarou a testemunha D.... “essa revisão de contas é um assunto à parte. O Dr. P... costuma ...nós, a sociedade, costumamos facturar a revisão, é feita uma proposta, existe um contrato, existe um valor”.
Ora, pegando nesta afirmação da testemunha, são justamente os elementos que referenciou aqueles que estão em falta neste caso: não existe proposta, não existe contrato, nem existe um valor. E por isso mesmo a prévia acção instaurada, tendo como causa de pedir a existência do contrato, mereceu um juízo de improcedência.
É certo que o referido E.... declarou que a direcção acordou verbalmente com o Dr. P... (a testemunha estava convencido de que este actuava em seu nome pessoal) uma remuneração por cada processo de candidatura, confirmando mesmo o valor de € 1500,00 (aqui ultrapassando a hesitação sobre a medida dos honorários que afectou o seu testemunho na acção prévia, o que também não se compreende muito bem, uma vez que o decorrer do tempo mais facilmente contribui para o esquecimento do que para o avivamento da memória). Primeiro reparo que nos merece o testemunho prestado: ao ser-lhe directamente perguntado quem tinha tido intervenção na celebração de tal acordo, declarou ter sido a “direcção”, ente que carece naturalmente de ser pessoalizado, e quando o Il. Advogado da autora tornou “Portanto, seria o Sr. Doutor, mais…?”, apressou-se a declarar “mais os outros dois membros da direcção”, declaração que nos merece as maiores reservas por não haver o mínimo elemento que confirme a existência desta conversa “a quatro”, sendo certo ainda que a contratação verbal, contrariando frontalmente as regras estatutárias e regulamentares, implicaria que todos os elementos da direcção evidenciassem o mesmo desprezo pelo cumprimento das formalidades legais.
Por outro lado, a verdade é que, conforme sem excepção todas as testemunhas confirmaram, a remuneração do ROC -cuja intervenção era indispensável no processo de candidaturas- era uma despesa elegível, sendo integralmente reembolsada pelo FEDER e PIDDAC, e tanto assim que a testemunha C...., responsável pela organização dos processos, se encontrava convencida que a remuneração do trabalho a este título prestado pelo Dr. P... havia sido incluído, o que todavia não ocorreu. A este propósito, explicou -mas não convenceu- a testemunha E.... que a não inclusão desta despesa correspondia a uma opção, uma vez que se mostrava ultrapassado o valor de referência que tinham para cada candidatura, dando até como exemplo de outra despesa que não era incluída o dispêndio com marketing (que não sabemos se a ré suportou ou não). Mais à frente, porém, a instâncias da Il. Mandatária da ré, fez já menção à existência de “um “plafond” limite para todas as candidaturas” e à necessidade de “encaixar o valor de todas as candidaturas dentro do valor que a medida tinha” para justificar a referida opção. Mas também quanto a este aspecto o depoimento em causa nos suscita as maiores dúvidas. Assim, e antes de mais, olhando para o montante global em causa em cada uma das candidaturas, afigura-se que a remuneração do ROC pouco pesava, ao contrário do que ocorre com o valor total a este título reclamado pela autora, já com relevante repercussão na tesouraria da ré, a deixar sem suporte a justificação apresentada. Depois, a verdade é que a testemunha declarou que não haveria dificuldade em proceder ao pagamento mesmo sem a existência de contrato, bastando uma deliberação da direcção que autorizasse o pagamento da factura aquando da sua apresentação, o que nos parece francamente inverosímil. Com efeito, mal andaríamos se todos os três membros da direcção pactuassem com tal irregularidade, procedendo ao pagamento de quaisquer facturas que lhes fossem apresentadas sem que a contratação do prestador de serviços tivesse obedecido aos legais formalismos, conforme impunham os estatutos da ré.
Acresce que, tendo sido perguntado à testemunha por que motivo não tinha a direcção a que presidiu regularizado a situação, declarou que os serviços não tinham então sido facturados, aguardando concerteza a autora pela conclusão das candidaturas para o fazer. Todavia, nem está demonstrado que a data da emissão das facturas -Março de 2004 e Janeiro de 2005- coincida com o encerramento de quaisquer processos de candidatura, nem essa foi a justificação apresentada pelo Dr. P... à  nova direcção da ré, mais precisamente à testemunha F...., que a integrou, quando reclamou o pagamento das quantias (só então) facturadas, limitando-se a declarar que o não tinha feito antes porque a B.... não tinha dinheiro. Ora, sendo esta a justificação, mais dúvidas se suscitam quanto aos verdadeiros motivos da não inclusão da despesa com os honorários do ROC em cada uma das candidaturas, conforme é normal, corrente e inquestionavelmente, parece-nos, deveria ter sido feito.
No assinalado contexto afigura-se, pois, como justificada a convicção, expressada pela testemunha F...., de que “nós [Direcção], na fase inicial, nem sequer sabíamos que esses trabalhos eram feitos… tinham que ser tributados em separado, porquanto, o Dr. P... tinha uma avença com a Cooperativa B....”, estando portanto convencidos de que tais serviços se encontravam englobados na avença, entendimento que só foi contrariado aquando da apresentação das facturas, tendo a testemunha reiterando “Foi só nessa altura. Porque antes, nós julgávamos que, tendo uma avença, que fazia parte dessa mesma avença a apresentação desse trabalho”.
Na verdade, sendo as despesas elegíveis e não tendo sido incluídas em cada candidatura, continuando o Dr. P... a acompanhar os processos sem reclamar retribuição adicional, e vindo a apresentar a primeira factura apenas dois anos depois de ter cessado funções o presidente da direcção com quem a autora alega ter celebrado o dito acordo -providencialmente verbal- não custa aceitar, afigurando-se, pelo contrário, perfeitamente plausível, que a direcção da ré à data se encontrasse convencida de que não tinha lugar qualquer retribuição adicional. E não é despiciendo assinalar que, bem vistas as coisas, não resulta da prova produzida que a certificação das candidaturas -sendo indiscutível, repete-se, que não estava incluída nas funções remuneradas de ROC que desempenhava na ré- importassem para o Dr. P... um acréscimo significativo do trabalho que para esta desenvolvia, o que reforça a razoabilidade do convencimento dos elementos da nova direcção.
Deste modo, afigura-se que a resposta a dar ao art.º 3.º, em conformidade com a prova produzida e a que se fez referência, é a que se segue: Provado apenas que o sócio da autora P... reclamou o pagamento de alguns dos aludidos serviços apenas em Maio de 2004, estando os membros da direcção da ré, à data, convencidos até então de que os mesmos se encontravam incluídos na avença com aquele contratada.
No que se reporta ao art.º 8.º, não resultou efectivamente da prova produzida que o Dr. P... tivesse feito tal advertência; pelo contrário, a testemunha C...., quando directamente inquirida, declarou mesmo que o Dr. P... nunca falou em tal coisa. De resto, a elegibilidade da despesa em causa, conforme a mesma testemunha reforçou, era naturalmente do seu conhecimento, já que tinha a seu cargo a elaboração do processo de candidatura, e igualmente conhecida do presidente da direcção à data, o já mencionado E...., pessoa conhecedora neste domínio, conforme asseverou, donde até a desnecessidade de consultar o ROC a este respeito o qual, ficou este Colectivo convencido, não fez tal advertência.
Todavia, já resultou provado pelos depoimentos produzidos, nomeadamente pela testemunha C...., que a despesa em causa, tal como a autora alegou e consta do quesito formulado, para além da comparticipação de 75% a cargo do FEDER, beneficiava ainda da participação do PIDDAC, estando assim coberta a 100%. Deste modo, altera-se a resposta ao artigo em causa, passando a constar como provado que “A despesa de honorários com os serviços prestados era elegível e comparticipada a 75% pelo fundo comunitário FEDER e a 25% pelo PIDACC”.
*
II. Fundamentação
De facto
1. A Autora dedica-se a revisão legal das contas, a auditoria às contas, a consultoria em matérias que integram o programa de exame de admissão à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC) e quaisquer outras funções de interesse público que a lei atribua aos ROC ou que por lei exijam a intervenção própria e autónoma de ROC (al. A).
2. Pela Ap. 01/960801 (cota nº 3), na matrícula nº 1526/910325 da Conservatória do Registo Comercial de Águeda, foi registada alteração do contrato da sociedade Autora, constando da mesma "...a administração da sociedade será exercida por todos os sócios, que ficam desde já nomeados administradores..." (al. B).
3. Pela Ap. 01/20011002 (cota nº 5), na matrícula nº. 1526/910325 da CRC de Águeda, foi registada alteração do contrato da sociedade autora, constando da mesma "...entrada como novos sócios de P... ..." (al. C).
4. P... é responsável pela filial/sucursal da sociedade autora em Bragança, aí exercendo a sua actividade (al. D).
5. São membros da Ré, o Instituto Português da Juventude e a Associação de Utentes das Pousadas de Juventude (AUPJ) (al. E).
6. Em 1/11/2000 P... passou a integrar o conselho fiscal da Ré, como vogal, em representação da AUPJ, circunstância publicitada pelo despacho conjunto n.º 1149/2000 dos Ministérios do Trabalho e da Solidariedade e da Juventude e do Desporto com data de 7/11/2000 e publicado no DR n.º 286, II série, de 13/12/2000 (al. F).
7. A partir de 1/11/2000 P... passou a exercer tal função de vogal do Conselho Fiscal da ré e a prestar os serviços normais e ordinários de revisão das contas da ré, mediante o pagamento da respectiva remuneração mensal (al. G).
8. No âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio foi aprovado o Plano Operacional da Economia (POE) que compreendia um vasto número de sistemas e medidas de incentivos e apoios, enquadrados pelo Dec. Lei nº 70-B/2000, de 5/5, e especificamente regulamentado por diversas Portarias (al. H).
9. A Ré apresentou e candidatou, no âmbito do programa referido em 8., projectos relativos às Pousadas da Juventude de Porto, Areia Branca, Catalazete, Évora, Alcoutim, Vilarinho das Fumas, Alijó, S. Pedro do Sul, Projecto Integrado da Região do Centro (várias pousadas contempladas), Ovar, Porto de Mós, Lousã, Penhas da Saúde, Projecto Integrado da Região de Lisboa e Vale do Tejo (várias pousadas), Lisboa, Sintra, São Martinho do Porto, Projecto Integrado da Região do Alentejo (inclui várias pousadas), Portimão, Faro, Projecto Integrado da Região do Algarve, e Aljezur (al. I).
10. Nos projectos referidos em 9. foram realizados os seguintes trabalhos e verificações:
1. No domínio da contabilidade do promotor foram analisados os elementos que permitiram concluir sobre o sistema contabilístico utilizado pelo promotor.
1.1. Nomeadamente se existia o dossier do projecto no promotor devidamente organizado com todos os documentos susceptíveis de comprovar as declarações prestadas na candidatura e actualizadas ao longo da execução do projecto, de acordo com o estabelecido pelos organismos responsáveis.
1.2. Se a escrituração dos registos contabilísticos cumpria os prazos legais.
1.3. Se todas as despesas associadas ao projecto estava suportadas documentalmente.
1.4. Se tinha sido efectuada a adequada relevação contabilística das despesas associadas ao projecto, apresentadas no pedido de pagamento, estando todos os documentos escriturados de acordo com o POC e as demais normas contabilísticas nacionais.
1.4.1. Nomeadamente, entre outros, se os incentivos não reembolsáveis recebidos tinham sido contabilizados a crédito da conta de Proveitos diferidos - Subsídios ao investimento.
1.4.2. Se o promotor tinha procedido ao reconhecimento de proveitos extraordinários, em função das amortizações praticadas e relativas ao investimento comparticipado.
1.4.3. Se o promotor tinha registado os incentivos reembolsáveis já recebidos na conta de outros empréstimo obtidos.
2. Neste âmbito foram ainda recomendados ajustamentos ao plano de contas para que as contas tivessem uma desagregação específica para o projecto, para mais fácil identificação dos movimentos associados.
3. Foi apreciada a conformidade das operações e dos respectivos documentos face à legislação em vigor.
3.1. Verificando nomeadamente a forma legal dos documentos de despesa, quanto à denominação social, morada e número de contribuinte do fornecedor/prestador de serviços e do adquirente, tendo em atenção as especificidades dos documentos.
3.2. O conteúdo dos documentos apresentados.
3.2.1. Quanto à discriminação e descrição com objectividade dos bens e serviços adquiridos.
3.2.2. Menção ao IVA.
3.2.3. As escrituras e registos sempre que a aquisição dos bens exija tal formalidade (bens imóveis, viaturas, algumas participações financeiras).
3.2.4. A conformidade dos contratos de prestações de serviços, sempre que os documentos de despesa os referiam.
4. Em documentos que serviram de base a mais de uma projecto foram verificadas as percentagens de afectação a cada um deles confirmando a conformidade com a relevação feita em cada mapa de despesas.
5. A fim de impedir que um documento afecto a um projecto fosse indevidamente apresentado noutro projecto, foi aposto no documento original de despesa um carimbo com a referência do Programa (POE), número da candidatura e percentagem de imputação da despesa face ao total do documento.
6. Foram analisados os pagamentos das despesas apresentadas pelo promotor ( B....) relativas ao projecto, que, em regra, eram feitos através de contas bancárias (cheque ou transferência).
6.1. De entre os procedimentos executados salienta-se a identificação das contas bancárias utilizadas pelo promotor para pagamento das despesas apresentadas.
6.2. Confirmação que o promotor era titular das contas bancárias utilizadas no pagamento das despesas.
6.3. Confirmação dos pagamentos efectuados pelo promotor verificando os débitos em conta através de análise dos extractos de conta bancária e outros documentos bancários existentes.
6.4. Foi ainda confirmado o valor dos pagamentos efectuados com os correspondentes montantes inscritos nos documentos de despesa, quantificando eventuais descontos de pronto pagamento não deduzidos pelo promotor ao valor do investimento.
7.1. Quanto à elegibilidade das despesas foram auditadas as despesas incorridas assinalando as que não estavam devidamente suportadas.
7.2. Foi confirmada a data de realização das despesas, verificando a sua elegibilidade temporal, na medida em que a realização das despesas tem de ser posterior à candidatura.
7.3. Verificação do cumprimento formal e substancial na aquisição dos bens e serviços previstos na candidatura nomeadamente quanto a possível alteração de marca ou modelo dentro da mesma tipologia de bem.
7.4. Verificação do valor e da natureza das despesas e da sua conformidade com a candidatura, comparando os bens ou serviços adquiridos com os constantes da candidatura aprovada e de eventuais alterações aprovadas.
7.5. Verificação da eventual existência de despesas não previstas na candidatura ou nas alterações aprovadas.
7.6. Verificação da possível existência de reduções às despesas apresentadas, através de anulações, de notas de crédito emitidas pelos fornecedores/prestadores de serviços envolvidos ou de abates de imobilizados relativos a retomas consideradas no pagamento do investimento.
8.1. Quanto ao pedido de pagamento final foi verificado o cumprimento do projecto relativamente às datas contratualizadas na fase de aprovação da candidatura.
8.2. Verificação das fontes de financiamento do projecto e dos procedimentos previstos no Mapa de Despesas final.
9. Quanto à verificação das fontes de financiamento do projecto foram verificados os suportes documentais e contabilísticos ou/e comprovativos da adequada evidenciação nas Demonstrações Financeiras do promotor das fontes de financiamento do projecto consideradas.
9.1. Para tal efeito foi examinado o Mapa de Financiamento do Projecto, efectuando, entre outros, comparticipações nacionais (PIDDAC) para o financiamento de cada projecto e financiamentos bancários.
9.2. Em todas as operações de financiamento foi efectuada a verificação dos fluxos monetários decorridos entre o início e o fim do projecto, aos níveis de auto-financiamento e verificação do cálculo dos fundos gerados internamente (al. J).
11. Cada um de tais projectos apresentados exigia revisão de contas/auditoria/validação por um ROC (al. K).
12. O sócio da Autora, Dr. P..., prestou à Ré serviços que não estavam englobados nos que lhe prestava como seu revisor oficial de contas, praticados no âmbito do Plano Operacional da Economia (POE) (al. L).
13. Tais serviços prestados foram parte dos referidos em 10 (al. M).
14. Os projectos referidos em 9. não tinham todos o mesmo valor (al. N).
15. Os serviços prestados pelo sócio da autora tiveram por base pedidos de pagamento e respectivos documentos de despesas apresentados pela ré nos 22 projectos candidatos (al. O).
16. A partir de 9/9/2002 as declarações emitidas pelo sócio da autora são feitas em papel com cabeçalho da autora e a partir de 27/12/2002 são assinadas por ele, como representante da autora (al. P).
17. Os serviços decorreram de 27/03/2002 a 23/01/2004 (al. Q).
18. Os serviços referidos em L) e M) foram prestados pela autora através do seu sócio Dr. P..., relativamente a 20 das candidaturas identificadas em I) (resposta ao art.º 1.º).
19. A autora prestou os serviços a que se reporta 18., tendo valor não concretamente apurado” (resposta ao art.º 2.º).
20. O sócio da autora P... reclamou o pagamento de alguns dos aludidos serviços apenas em Maio de 2004, estando os membros da direcção da ré, à data, convencidos até então de que os mesmos se encontravam incluídos na avença com aquele contratada (resposta ao art.º 3.º).
21. Os honorários pelos serviços prestados, se documentados como custos, seriam elegíveis pela Ré como despesa comparticipada a 75% pelo FEDER e 25% pelo PIDAC (respostas aos art.ºs 4.º e 8.º).
22. Elegibilidade que era do conhecimento do sócio da Autora, Dr. P... (resposta ao art.º 5.º).
23. Estando neste momento a Ré impedida de obter o respectivo reembolso (resposta ao art.º 6.º).
24. A elaboração e apresentação das candidaturas eram actos da autoria e responsabilidade da Ré (resposta ao art.º 7.º).
25. Correu termos no mesmo Tribunal sob o n.º 1357/05.2 TBBGC, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo comum, entre as mesmas partes, pedindo a autora a condenação da ré no pagamento da quantia de € 39 270,00, acrescida de IVA e juros vincendos, com fundamento na celebração com a ré de acordo, nos termos do qual esta lhe solicitou a prestação de serviços adicionais de revisão de contas, os quais foram prestados até 2004, abrangendo 22 projectos relativos a pousadas da juventude apresentados ao POE, tendo-se a ré obrigado a remunerar tais serviços com a quantia de € 1500,00 por projecto (facto aditado nos termos do art.º 659.º, n.º 2 e 713.º, n.º 2 do CPC, encontrando-se certificado nos autos).
26. A acção identificada em 25. foi julgada improcedente, sentença confirmada por acórdão desta Relação de 17/11/2009 e pelo STJ (idem).
*
De Direito
ii. Dos pressupostos do enriquecimento sem causa
Tal como sintetiza nas suas alegações, a autora invocou como causa de pedir que suporta a pretensão deduzida o facto de, por via dos serviços por si prestados, a ré, que deles beneficiou, se ter locupletado com o valor correspondente sem qualquer justificação; tais serviços consubstanciam actos que a demandante executa no âmbito da sua actividade profissional, tendo por isso direito ao recebimento do seu valor, sob pena de ocorrer enriquecimento da ré à sua custa.
Em causa está pois saber, tal como equacionado na decisão recorrida, se se verificam os requisitos do enriquecimento sem causa, no qual alicerçou a autora a sua pretensão.
Nos termos do art.º 473.º do Código Civil[5] “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Resulta da transcrita disposição legal que são pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
Todavia, como adverte Menezes Leitão[6], os enunciados requisitos são de tal modo genéricos que seria possível efectuar uma aplicação indiscriminada desta cláusula geral, colocando em causa a aplicação de uma série de outras regras de direito positivo. Para obviar a tal efeito, o art.º 474.º consagra expressamente a subsidiariedade do enriquecimento sem causa, o qual só poderá ser convocado quando ao empobrecido não seja facultado outro recurso.
A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa exige em primeiro lugar, como vimos, um enriquecimento, que há-de consistir na obtenção de uma vantagem patrimonial, seja qual for a forma que revista (aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de coisa alheia ou exercício de direito alheio, ou ainda poupança de despesas); depois, a ausência de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido; finalmente, impõe que o enriquecimento haja sido obtido à custa daquele que requer a restituição.[7]
Conforme vem sendo entendimento doutrinário e jurisprudencial constante, a falta de causa terá de ser não só alegada, como provada, de harmonia com o critério geral estabelecido no art.º 342.º, por aquele que pede a restituição. Não bastará, para esse efeito, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer ainda o Tribunal da falta de causa.
Abandonado o tratamento dogmático unitário do instituto do enriquecimento sem causa, dado o carácter amplo e genérico da cláusula contida no art.º 473.º,[8] das categorias possíveis de integrar importará aqui o denominado enriquecimento por prestação, o qual respeita a situações em que alguém efectua uma prestação a outrem, mas se verifica uma ausência de causa jurídica para que possa ocorrer por parte deste a recepção dessa prestação. “Nesta categoria, o requisito fundamental do enriquecimento sem causa é a realização de uma prestação, que se deve entender como uma atribuição finalisticamente orientada, sendo por isso, referida a uma determinada causa jurídica (…)”[9]. Está assim em causa um incremento consciente e finalisticamente orientado do património do terceiro, sendo a frustração (não realização) do fim visado com essa prestação que determina a obrigação de restituir.
A não realização do fim visado com a prestação pode ocorrer, consoante vem tipificado no n.º 2 do art.º 473.º: quando alguém realiza uma prestação com intenção de extinguir uma obrigação mas se verifica a inexistência da dívida que o prestante visava solver, o que fundamenta e legitima o pedido de restituição; quando o prestante realiza a prestação em vista de um determinado efeito futuro que se não verifica, não verificação que lhe permite igualmente exigir a restituição do que prestou; e, finalmente, quando a causa jurídica da prestação desaparece depois da sua realização[10].
Verifica-se assim, no que respeita à aqui denominada modalidade do enriquecimento por prestação, que a ausência de causa justificativa foi concretizada pelo legislador no citado n.º 2 do art.º 473.º, sendo a obrigação de restituir desencadeada pela verificação de alguma das situações aqui tipificadas.
De volta ao caso dos autos, temos como assente que a autora, através de um seu sócio, que já desempenhava na ré funções de ROC por nomeação da tutela, pertencendo, por inerência, ao Conselho Fiscal como vogal -funções pelas quais era remunerado em regime de avença[11]- prestou à ré, entre 2002 e Janeiro de 2004, serviços de verificação e certificação das candidaturas por esta apresentadas no âmbito do denominado POE (Plano Operacional da Economia), aprovado no contexto do III Quadro Comunitário de Apoio. Está igualmente apurado que tais serviços não estavam englobados nos que lhe prestava como seu revisor oficial de contas, correspondendo ainda à prática de actos que a autora usa praticar profissionalmente.
Face a tal quadro factual, e tendo em consideração quanto se deixou exposto, verifica-se que, tendo embora provado que efectuou uma prestação, já não logrou a autora fazer prova -cujo ónus sobre ela recaía, atento o disposto no art.º 342.º, n.º 1- de que tal prestação não tem causa justificativa, não sendo possível integrá-la em nenhuma das assinaladas categorias.
Acresce que a autora tornou agora com pretensão que antes havia deduzido com fundamento na existência de contrato, que não lograra igualmente provar. Ora, a ausência de prova da causa invocada, ainda que demonstrada a deslocação patrimonial, não equivale à falta de causa. E repare-se que a situação dos autos não é muito diversa daquela que enfrentaríamos caso a autora tivesse, na acção prévia, invocado a título subsidiário, para fundamentar a sua pretensão, o instituto do enriquecimento sem causa, sendo aqui igualmente de recusar a sua aplicação, por “não traduzir uma regra “residual” de decisão, ou sequer uma regra de decisão que seja desencadeada, no que à obrigação de restituir respeita, pela indemonstração da causa de uma deslocação patrimonial cuja invocação se dirigia a outro efeito”[12]. A falta de prova da causa alegada convoca a regra do art.º 342.º, tal como foi decidido na acção que esta precedeu, não autorizando o recurso ao enriquecimento sem causa, por não ser este o sentido a atribuir à natureza subsidiária da obrigação nele fundada (que interviria na falência de prova da causa alegada).
Acresce que sempre faleceria, a nosso ver, o requisito do enriquecimento. Com a acção fundada neste instituto visa-se remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido. Conquanto não seja o fundamento da obrigação de restituir, o locupletamento do devedor funciona como um dos dois limites que aquela obrigação comporta. Aceitando a lei, a nosso ver, o conceito patrimonial de enriquecimento[13], correspondente à diferença entre a situação real e a situação hipotética do património do enriquecido, haverá que apurar qual a diferença para mais que nele se verifica, tendo por referência um dos dois momentos a que alude o art.º 480.º, ex vi do disposto no art.º 479.º, pois é essa a medida do enriquecimento do devedor e também limite da obrigação de restituir. Neste contexto, ganha relevância a causa virtual (aquela que teria produzido o mesmo enriquecimento).
Ora, conforme resulta da matéria de facto apurada, a remuneração ao revisor que efectuasse a verificação e certificação no âmbito de cada candidatura constituía uma despesa elegível, sendo o seu reembolso integral assegurado pelo FEDER e pelo PIDDAC, nas apuradas proporções. Deste modo, os serviços prestados pela autora não consubstanciaram, em rigor, uma vantagem patrimonial para a ré -no caso, por se ter poupado a uma despesa- porquanto, em última análise, a mesma não seria por si em definitivo suportada. Pelo contrário, impor-lhe que suportasse tais honorários, pela autora facturados e reclamados a destempo, isso sim, representaria uma despesa que noutras condições não suportaria. Daí que não possa falar-se em enriquecimento à custa da autora.
Finalmente, questiona a apelante: a que propósito prestaria tais serviços à ré com carácter gratuito, conforme esta pretende? A interrogação pode ser pertinente mas esquece a demandante que a ré não está onerada com a demonstração da gratuitidade da prestação, antes competindo à autora fazer prova de que não há justificação para que se mantenha a situação existente. Mas deste ónus, como se referiu, não se desincumbiu. É certo não se ter logrado apurar o exacto contexto em que o sócio da autora P... prestou estes serviços suplementares, se alguma coisa acordou com a ré e o quê. Todavia, esse non liquet não equivale à falta de causa de que a autora haveria de ter convencido o Tribunal. E não convenceu.
Deste modo, improcedendo todas as conclusões recursivas, e sem prejuízo das modificações introduzidas na matéria de facto, sem virtualidade para inverter o sentido da decisão recorrida, é a mesma de manter.
    *
III Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.
Custas a cargo da apelante.

Maria Domingas Simões (Relatora)
Nunes Ribeiro
Helder Almeida


[1] A al. L) tinha o seguinte teor: “O sócio da Autora, Dr. P..., prestou à Ré serviços que não estavam englobados nos que lhe prestava como seu revisor oficial de contas, praticados no âmbito do Plano Operacional da Economia (POE)”.
[2] Era o seguinte o teor da al. M “Tais serviços prestados foram parte dos referidos em J)”.
[3] Com o seguinte conteúdo:
N) Os projectos referidos em I) não tinham todos o mesmo valor.
O) Os serviços prestados pelo sócio da autora tiveram por base pedidos de pagamento e respectivos documentos de despesas apresentados pela ré nos 22 projectos candidatos.
[4] Aresto do STJ 24 de Maio de 2012, Ex.mº Sr. Cons.º Lopes do Rego, proc. 850/07.7 TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Diploma legal a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[6] Direito das Obrigações, vol I, 9ª edição, 2010, Almedina, pág. 428.
[7] Pires de Lima, A. Varela, CC anotado, vol. I, comentário ao art.º 473.º.
[8] Menezes Leirão, ob. cit., págs. 439/440, renunciando ao tratamento dogmático unitário do instituto, nele distingue quatro situações distintas: o enriquecimento por prestação; o enriquecimento por intervenção; o enriquecimento por despesas realizadas em benefício doutrem; o enriquecimento por desconsideração de um património intermédio.
Admitindo que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte, distinguindo entre os casos em que provem de uma prestação daqueles em que resulte de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios ou ainda de actos de outra natureza, porventura puramente materiais, para concluir que a directriz a seguir para saber se o enriquecimento assenta ou não numa causa justificativa, consiste em determinar se o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema, caso em que pode asseverar-se que tem causa justificativa, ou, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, caso em que carecerá de causa vd. Pires de Lima/A. Varela, ob. e loc. citados.
[9] Menezes Leitão, ob. e loc. citados.
[10] Idem, págs. 442/443 e 479..
[11] Com reembolso das despesas, conforme resultou do testemunho prestado por G....
[12] Do acórdão desta relação de 17/9/2012, processo 64/09.1 TBTMR.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Assim Pereira Coelho, “O enriquecimento e o dano”, Almedina, 2.ª reimpressão, págs. 36/37.