Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1208/08.6TDLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE CRIMES FISCAIS
Data do Acordão: 01/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 103.º N.º1 DO RGIT E 68º,Nº1 DO CPP
Sumário: 1.O assistente assume no processo penal português uma relevância jurídica estruturalmente relevante, na perspectiva dogmática e também em temos de política criminal, na medida em que estamos na presença de um colaborador do Ministério Público, com direitos e deveres próprios, mas a cuja actividade se subordina na intervenção processual que aquele, como titular da acção penal, executa.
2.A figura do assistente, embora sustentada de alguma forma no conceito de ofendido, não pode ser com este confundido. Daí que para além das pessoas a quem a leis especiais conferirem esse direito, podem constituir-se assistentes no processo penal, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos .

3.O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito consagrado no CP para aferir da legitimidade para apresentar queixa.

4.Tem-se verificado um alargamento jurisprudencial do entendimento da legitimidade para a constituição de assistente, para além da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação dos vários tipos de crime, reconhecendo-se que, em determinados tipos de crime público que protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, abuso de poder, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular.

5.No caso em apreciação, como resulta do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e também é referido pelo despacho sub judice, a factualidade dos autos é susceptível de, em termos meramente abstractos, reconduzir-se à previsão do artigo 103°, n°1, alinea a), do Regime Geral da Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n°15/2001, de 05 de Junho), que respeita ao crime de fraude fiscal.

6.O crime de fraude fiscal é um crime de perigo que é dirigido a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado. O bem jurídico especialmente protegido com tal crime é a ofensa ao património ou erário público. São os interesses do Estado, na sua vertente vulgarmente denominada por Fisco ou Fazenda Nacional, entendido como sistema dinâmico de obtenção de receitas e realização de despesas. Nestes crimes não são visíveis quaisquer bens jurídicos de natureza particular.

7.Não assiste, assim, razão aos recorrentes quando pretendem intervir nos autos como assistentes, por virtude de os interesses protegidos pela infracção em apreciação no inquérito assumirem uma dimensão pública cujo interesse jurídico-penal não foi pelo legislador excepcionado em termos de ser admitida a intervenção de outros que não o próprio Estado.

Decisão Texto Integral: 18

I. RELATÓRIO.

No processo de inquérito n.º 1208/08.6TDLSB.C1 foi proferido despacho que indeferiu o requerimento efectuado por AF e AF para se constituírem como assistentes

Não se conformando com a decisão, vieram interpor recurso da mesma para este Tribunal, concluindo na sua motivação nos seguintes termos:

1ª Os presentes autos iniciaram-se com base numa certidão extraída dos autos de inquérito com o n°. 1/08.7TDLSB, os quais correram termos no DIAP-Lisboa, nele se dando conta da eventual prática de crime de fraude fiscal p.p. pelo disposto no artigo 103 n°. 1 alínea a) do RGIT, por factos denunciados por MF e AF contra LL.

2ª Tal certidão foi remetida aos Serviços do M.P. do Tribunal Judicial de Alcanena em 04..2008, tendo sido delegadas competências na Direcção de Finanças de ….

3ª Afirma-se em tal despacho que na referida denúncia consta eventual sonegação de bens à herança aberta por óbito de AAA falecido em 3/--/2002, e bem assim ocultação de factos e valores relativos a rendimentos obtidos por delapidação do património familiar da família M…, os quais deveriam ter sido declarados à Administração Fiscal.

4ª Do documento de fis. 119 a 112 foram identificados como sujeitos passivos do imposto devido pela transmissão, dos bens de AAA:

a) — O cônjuge sobrevivo, MF

b) — AF (descendente)

c) - AF (descendente)

d) — LL (descendente e denunciado)

5ª Constataram os Serviços da Administrativos Fiscais que no mês do falecimento de AAA, bem como no mês imediatamente anterior (Maio e Junho de 2002) aquele era titular de créditos junto do BCP que ascendiam a 747.640,07 €, sendo que esta verba deveria ter sido objecto de liquidação e da correspondente inclusão na relação de bens, sendo que tal omissão acarretou uma vantagem ilegítima de cerca de 53.059,86 €, factuai.idade essa subsumível no artigo 103 n°. 1 alínea a) do RGIT.

6ª Tal procedimento criminal por crimes fiscais encontra-se prescrito decorridos que sejam 5 anos, o que nos termos do artigo 21 do RGIT se verifica nos presentes autos reportados a 23/12/2002.

7ª Pela Exma. Procuradora foi determinado arquivamento dos autos por tal motivo de prescrição, mas não todos os efeitos daí recorrentes.

8ª Na parte final destes seu despacho a Exma. Procuradora mandou dar cumprimento do artigo 277 no. 3 e 4 do C.P.P. e ainda que se extraísse certidão de fis. 146 a 151 dos autos e deste despacho devendo a mesmo ser remetida ao Serviço de Finanças de … a fim de ser liquidado imposto adicional em causa.

9ª Sendo certo não ter havido qualquer sonegação de bens e valores à relação de bens apresentada pela cabeça de casal, que não intervieram em qualquer fase processual.

10ª Foram os 3 participantes, AZ., MF e AF do douto despacho emitido pela Exma. Procuradora nos termos do art°. 277 do C.P.P. e para, querendo, requererem a abertura da instrução, nos termos do artigo 287 no. 1 alínea b) do mesmo diploma, tendo para o efeito se se constituir Assistente.

11ª. Apenas os participantes, MF e o AF se constituíram Assistente e requereram a abertura da instrução.

l2ª Viria o MM°. Juiz “a quo” a considerar-se que se estava perante um eventual ilícito fiscal previsto no art°. 103 n°. 1 alínea a) do RGIT, sendo que o interesse, na concreta determinação dos factos fiscalmente relatados, é, nesta perspectiva, o erário público, não podendo os participantes ser considerados como ofendidos.

13ª Em qualquer dos enquadramentos processuais sobressai a aplicação do artigo 103 n°. i alínea a) do RGIT à eventual prática do crime de fraude fiscal.

14ª Nenhum dos participantes e nem se quer o denunciado LL foram constituídos arguidos, sem embargo de todos os herdeiros de AAA onde estes se incluem, serem sujeitos passivos no campo de eventual ilicitude criminal fiscal, que, aliás, não se verifica.

15ª O denunciado LL foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 277 no. 1, bem como para o disposto no artigo 68 n°. 4 ambos do C.P.P.

16ª Os participantes deveriam ter sido qualificados como sujeitos passivos do eventual ilícito criminal, o que não aconteceu na fase do inquérito, para, à semelhança o do denunciado LL também sujeito passivo, ser-lhes concedido o direito de requerer a abertura da instrução quanto à parte do despacho que não foi arquivado, para fazerem prova de que o imposto adicional, não era devido.

17ª Aos recorrentes, igualmente, participantes, deveria ter sido garantido direito de defesa previsto no artigo 61, 68 no. 4, 277 n°. 1, 287 n°. 1 e o artigo 119 c) todos do C.P.P., os artigos 13 e 32 da Constituição da República Portuguesa artigo 103 n°. alínea a) do RGIT, que se mostram violados.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, e, em consequência, deverá ser proferido douto Acórdão, que:

a) — Declare a nulidade da parte final do douto despacho da Exma. Procuradora Adjunta, a fim de os Recorrentes serem requalificados como sujeitos passivos do ilícito criminal fiscal, cujo procedimento foi declarado prescrito, para que possam defender-se, como Assistentes, ainda dentro do processo penal, através da abertura da instrução, com referência à determinação da remessa da certidão para o Serviço de Finanças de , para ser cobra do o imposto adicional.

b) — Revogue, totalmente, o douto despacho do MM°. Juiz “a quo” que indeferiu aos Recorrentes a sua constituição como Assistentes.

O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento do recurso, devendo, na sua opinião manter-se a decisão.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

No presente recurso importa apreciar a questão da legitimidade dos recorrentes para intervirem como assistentes nos autos.

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O despacho impugnado é o seguinte:

Notificados do despacho de arquivamento dos autos, proferido pelo Ministério Público no dia 25 de Fevereiro de 2009, ao abrigo do disposto no artigo 277°, n°1, do Código de Processo Penal (cfr. referência n°582907, do p. e., e fls.206 a 209), vieram os denunciantes MF e AF requerer a sua constituição como assistentes (cfr. referência n°151909, do p. e., e fis.236, do p. p.).

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O Ministério Público opôs-se à admissão da constituição como assistentes dos aludidos MF e AF sustentando, no essencial, que no ilícito criminal em causa nos autos, previsto no artigo 103°, n°1, alinea a), do Regime Geral da Infracções Tributárias (RGIT — aprovado pela Lei n°15/2001, de 05 de Junho), não revestem a qualidade de ofendidos.

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Por despacho profendo no dia 30 de Março de 2009 (cfr. referência n°596292, do p. e., e fis.246, do p. p.), ordenou-se que fosse dado cumprimento ao disposto no artigo 68°, n°4, do Código de Processo Penal, quanto ao arguido, não obstante inexistir arguido constituído nos autos, apenas figurando como denunciado LL.

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Apreciando.

De acordo com o disposto no artigo 68°, n°1, alinea a), do Código de Processo Penal, podem constituir-se como assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação (...). Resulta do citado preceito legal que o legislador consagrou, para efeitos de constituição como assistente, um conceito de “ofendido” entendido em sentido restrito. Não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime (vide Acórdão do STJ, de 20 de Janeiro de 1998, Colectânea de Jurisrudência, Ano VI, Tomo 1. Assim, o assistente, do ponto de vista processual, distingue-se do ofendido e do lesado.

Este último, que também sofre prejuízos com o facto criminoso, nunca pode constituir-se assistente, mas tão só parte civil (para efeitos de dedução de pedido de indemnização civil).

Por sua vez, o ofendido não é sujeito processual enquanto se não constituir assistente; sendo que, de acordo com o acima aludido normativo, só pode assumir tal qualidade se for titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger. Isto é, sendo a qualidade de ofendido a condição necessária para a constituição de assistente, poderá todavia não ser condição suficiente visto que, para este fim específico, a lei só considera ofendido, como vimos, quem for titular dos interesses especialmente protegidos pela incriminação. Estão, portanto, arredados todos os outros que apenas hajam sofrido danos com o crime.

Em suma, não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos do candidato a assistente; da própria expressão legal deriva que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa candidatar à categoria de assistente; a legitimação do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa.

No caso vertente, como resulta do despacho de arquivamento, a factualidade dos autos é susceptível de, em termos meramente abstractos, reconduzir-se à previsão do artigo 103°, n°1, alinea a), do Regime Geral da Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n°15/2001, de 05 de Junho), que respeita ao crime de fraude (fiscal). Indaga-se quem para efeitos deste tipo legal de crime poderá ser considerado titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. O crime de fraude fiscal é um crime de perigo que é dirigido a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado. O bem jurídico especialmente protegido com tal crime é a ofensa ao património ou erário público. Deparando-nos, pois, com um crime eminentemente público, deve considerar-se que o verdadeiro ofendido neste crime é o Estado.

É verdade que a circunstância de ser protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente (vide Acórdão do STJ para Fixação de Jurisprudência n°1/2 publicado no Diário da República n°49, 1 Série — A, de 27 de Fevereiro de 2003). Todavia, para esse efeito, impõe-se interpretar o tipo incriminador em ordem a aferir se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com a incriminação. De facto, a consideração de que o crime ofende prirnacialmente interesses da comunidade não determina, por si só, que não possa ofender interesses de um concreto particular.

Não é, contudo, o que sucede com o ilícito criminal indiciado nestes autos.

A fraude fiscal é configurada como um crime de perigo concreto singular, no sentido de que pela mesma não é colocada em perigo uma diversidade não determinável de bens jurídicos, mas sim e apenas um determinado interesse jurídico-penal, ainda que multifacetado, mas cujo núcleo se pode reconduzir às receitas tributárias. Os valores públicos em confronto na fraude fiscal podem enquadrar-se numa dicotomia em que se veja, por um lado, o bem jurídico tutelado como a pretensão do Estado na determinação exacta dos factos fiscalmente relevantes ou, diferentemente, se identifique o valor protegido com a pretensão do Estado em obter integralmente as receitas fiscais que por lei lhe são devidas. A primeira perspectiva associa o valor tutelado pelas normas penais a outras condutas fiscalmente relevantes dos cidadãos perante o Estado; o segundo entendimento acentua o interesse do Estado na obtenção de certos resultados (a percepção das receitas tributárias) e as condutas criminalmente valoradas deverão ser ponderadas em função das suas consequências. Em termos mais sintéticos, o valor tutelado na incriminação legal da fraude fiscal é, na primeira perspectiva, a ordem fiscal (em sentido amplo interesse na concreta determinação dos factos fiscalmente relevantes) e, na segunda, o erário público. É do debate sobre a tensão entre estes dois valores que se pode determinar com rigor o bem jurídico tutelado pela incriminação da fraude fiscal. A primeira das vias apontadas é de rejeitar. Um bem jurídico dessa natureza sempre será, por um lado, demasiado difuso, não resistindo, noutro plano, aos diversos elementos argumentativos que se podem carrear para o debate. Em termos históricos, resulta da autorização legislativa que suportou o Decreto-Lei n°20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), uma evidente preocupação em construir o crime por referência a um resultado lesivo no erário publico (cfr. artigo 2°, n°2, alínea a), da Lei n°88/89, de 11 de Setembro), não se bastando com meras condutas em abstracto perigosas por parte dos contribuintes ou com a omissão de deveres de colaboração para com as autoridades fiscais. Preocupação essa igual e expressamente referida doutrinariamente nos anteprojectos que deram origem ao diploma em causa. Salienta-se, ainda, que a identificação do bem jurídico tutelado pela incriminação de fraude fiscal com a “ordem fiscal”, em sentido amplo, é contrariado por diversos elementos de carácter sistemático. Desde logo pela construção do crime como de perigo concreto, pois se o legislador quisesse tutelar a ordem fiscal lato sensu deveria ter construído a incriminação como infracção de perigo abstracto.

Além do mais, a dicotomia infraccional “crimes/contra-ordenações” perderia sentido, pois se o propósito do legislador fosse o de tutelar a “ordem fiscal” não se justificaria que sancionasse como meras contra-ordenações os factos previstos nos artigos 28° a 40°, do RJIFNA, estes sim ilícitos destinados a zelar por certos aspectos da ordem fiscal em sentido amplo. Finalmente, é de reter a importa dada pelo legislador às condutas reparadoras que permitem o arquivamento do processo e a isenção da pena prevista no artigo 26°, do RJIFNA: o funcionamento do preceito depende de ser reparada a lesão no erário público. Ora, se os valores tutelados pela incriminação da fraude fiscal fossem genericamente aspectos da regularidade da ordem fiscal, não se poderia aceitar que o agente fiscal visse arquivado o processo ou ficasse isento de pena por, apesar de ter violado esses valores, reparar o “erário publico”. Refira-se, também, que não é qualquer conduta de simulação, ocultação ou alteração dos factos fiscalmente relevantes que integra o tipo, mas apenas aquelas que sejam dirigidas a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado. Ou seja, exige-se um plus em relação à conduta ilícita. Igual ideia é corroborada pelo facto de existir uma agravante em função da vantagem patrimonial indevida, em princípio o reverso do prejuízo causado. As referências da alínea a), do n°2 e do n°4, do artigo 23°, do RJIFNA, e da alínea a), do n°3 e do n°5, do artigo 23°, do mesmo diploma, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n°394/ de 24 de Novembro, a um determinado quantitativo de vantagem patrimonial indevida é considerado por determinado sector doutrinal em Espanha (MUi CONDE, BACIGALUPO, BUSTOS) como a previsão de condições objectivas de punibilidade por parte do legislador. Já Outro sector doutrinal (MARTINEZ PEREZ, BAJO) entende que tais quantias têm a natureza de resultado do delito. Não cremos que se possa falar de condição objectiva de punibilidade, dado que não se trata de qualquer facto futuro e incerto, nem a quantia com que se defrauda a Fazenda Pública se encontra causalmente desvinculada da conduta delitiva, devendo estar compreendida no dolo a vontade de defraudar efectivamente nesse montante (neste sentido, as Sentencias del Tribunal Supremo de 2 de Marzo de 1988 y de las Audiencias Provinciales de Madrid de 27 de Marzo de 1989 y de Las Palmas de 14 de Diciembre de 1987). Repare-se, ainda, que o crime de fraude fiscal foi configurado como crime de intenção, prescindindo-se do prejuízo efectivo, não porque o legislador português tivesse aderido à chamada “Escola de Bona”, para a qual o que é relevante, em termos jurídico penais, em sede de comportamento típico, é o desvalor de acção sendo o resultado (o desvalor de resultado) uma mera condição objectiva de punibilidade. O resultado é totalmente irrelevante para a determinação do conteúdo do ilícito típico.

Para esta escola tanto monta estarmos perante um resultado danoso como perante um resultado perigoso: ambos serão ou desempenharão uma função de condição objectiva de punibilidade. O valor que em última linha parece orientar o legislador é efectivamente a protecção patrimonial do “erário público”. Em relação à tutela do erário público a “verdade fiscal” tem uma natureza instrumental. Não se nega que seja também um valor tutelado, mas sê-lo-á em termos instrumen tais e não finais, tal como acontece com a relação perigo/dano. Em termos imediatos, a reposição da verdade fiscal é a forma idónea de impedir ou neutralizar o perigo que consuma o tipo de ilícito. Já a reposição das quantias devidas traduz-se no impedimento do dano efectivo. O bem jurídico teleologicamente protegido pela norma é, pois, o erário público nos termos descritos, importando agora salientar que o mesmo deve ser visto no RJIFNA, hoje o RGIT, na sua dimensão funcional: encontra-se funcionalmente vinculado a fins de interesse geral, à consecução de objectivos de política económica, apoiados constitucionalmente. Numa ordem jurídica democrática, a possível discrepância do cidadão a respeito das diversas funções assinaladas à Administração é elemento inerente à mesma, de sorte que a mera desobediência, o incumprimento de obrigação formais, não pode erigir-se em conteúdo do injusto penal. Nem tão pouco as consequências materiais que daí derivem, quando não se afecta outro bem. Por outro lado, a teoria da função do imposto, como exclusivo objecto de protecção, suporia uma não pouca insegurança jurídica pelo inabarcável dos seus limites e, portanto, ante a impossibilidade de conformar taxativamente o injusto típico. Só existindo fraude fiscal a ocorrência do resultado (não entrega do imposto devido ou recebimento de reembolso indevido) deve relevar como medida de avaliação do perigo causado. Nessa medida, a produção do resultado deve ser valorada em sede de medida concreta da pena a título de agravante geral. O verdadeiro critério a utilizar terá de ser aquele que procura no tipo legal de crime a verdadeira intenção do legislador, tipo esse que deve ser visto na sua máxima significância, ou seja, não só em si mas também no contexto em que foi gerado e em que se insere. No fundo, valem também aqui as regras gerais de interpretação, que nos dizem que é necessário atender ao elemento literal da norma, ao elemento histórico, ao elemento racional e ao elemento sistemático. Pode mesmo dizer-se que a tarefa de aplicação de uma norma penal passa em primeira linha pela tarefa da sua interpretação. E o que o intérprete do direito penal deve desde logo procurar, sobretudo quando se depara perante um crime de perigo, é o bem jurídico protegido pela norma penal. Mesmo em sede de crimes de perigo abstracto, estes só se podem verdadeiramente justificar quando, se bem que unicamente através de um cuidado-de-perigo, se quer ainda proteger um bem jurídico com dignidade penal — o critério não é, pois, o da probabilidade do pôr-em-perigo: uma acção não é perigosa porque carrega em si mesma o modo-de-ser perigoso. Vale nesta sede o princípio da ofensidade, que liga o momento relacional de cuidado-de-perigo fundante dos crimes de perigo abstracto com a mediação de um concreto bem jurídico. Podem, na verdade, descortinar-se tipologias de “agressão” ao bem jurídico: para GRASs0 a distinção far-se-ia entre: dano; perigo: directo — crimes de perigo concreto; indirecto — crimes de perigo abstracto. Para FARIA COSTA a distinção faz-se por apelo a um princípio de ofensidade: dano/ violação; concreto/par-em-perigo (crimes de perigo concreto); cuidado-de-perigo (crimes de perigo abstracto). Este autor critica a sub-distinção entre perigo directo e indirecto, porque no fundo o perigo tem de ser sempre efectivo, mas não no sentido da acção ilícita se ter de materializar num qualquer prejuízo, antes sim no sentido de o perigo para o bem jurídico ter de ser efectivo. Já a idoneidade que transparece do juízo que assenta na capacidade de pôr-em-perigo baseia-se na aceitação de constantes que enformam e conformam o quotidiano analitico-compreensivo no seio da normatividade. O concreto pôr-em-perigo que se vislumbra nos crimes de perigo concreto invoca, em primeira linha, a defesa de bens jurídicos individuais. Na verdade, a especial natureza do bem jurídico que se quer proteger determina o modus da sua protecção. No caso das receitas tributárias é a referência ínsita na Constituição da República Portuguesa às mesmas que impõe uma sua tutela antecipada através de um crime de perigo concreto. A verdade fiscal não é fundamento autónomo da tipicidade nem razão da antecipação da tutela penal. A razão de tal antecipação da tutela penal reside, antes, na necessidade inelutável de o Estado cobrar impostos, isto é, numa ideia de prevenção. Em termos de pura prevenção a tipificação de condutas de pôr-em-perigo em nada se diferencia de uma qualquer outra tipificação. A legitimidade do alargamento da punibilidade resultante da criminalização de condutas desencadeadoras de situações de pôr-em-perigo não pode vir da valoração político-criminal que quer cumprir a fmalidade da diminuição da criminalidade. É por atenção ao valor do bem jurídico tutelado e por uma razão de prevenção que se antecipa a tutela penal. Atendendo ao valor que as receitas tributárias representam para o Estado, a antecipação da tutela protectora, prescindindo-se de elementos do tipo de resultado, designadamente do artifício fraudulento e do próprio benefício/prejuízo, nada tem a ver com o efeito intimidativo da pena ao nível do desvalor do resultado. Tal antecipação está sim relacionada com o juízo político-criminal que se baseia no facto singelo de que é insustentável, logo ético-socialmente ilegítima, a fuga ao fisco, porque a mesma tem inerente um ataque aos valores da justiça, da igualdade, da solidariedade e do progresso social. No fundo e de outra maneira, a criação de um tipo legal de crime de fraude fiscal corresponde a uma forma de suprimento da tutela “lacunosa” do tipo legal de crime de burla, onde se perfilam como condições necessárias o artifício fraudulento e o benefício/prejuízo, as quais podem estar ausentes no primeiro. A fraude fiscal foi configurada como um crime de perigo porque, no fundo, o Estado reconhece a sua incapacidade de controlo dos sujeitos passivos de impostos.

Nestes termos, considerado o ilícito-típico em causa nestes autos, conclui-se não ser de admitir a requerida constituição de assistente dos requerentes MF e AF , por não serem os titulares do interesse que a lei quis proteger com a incriminação (vide, a este propósito, PAULO José RODRIGUES ANTUNES, Infracço Fiscais e seu Processo, Regime Geral Anotado, a edição, Almedina, 2004, p.7l, anotação ao artigo 500). Face ao exposto, indefere-se o requerido.

Custas pelos requerentes fixando-se a taxa de justiça de justiça em 2 UC’s (cfr. artigo 520°, alínea b), do Código de Processo Penal, e artigo 84°, este do Código da Custas Judiciais).

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O assistente assume no processo penal português uma relevância jurídica estruturalmente relevante, na perspectiva dogmática e também em temos de política criminal, na medida em que estamos na presença de um colaborador do Ministério Público, com direitos e deveres próprios, mas a cuja actividade se subordina na intervenção processual que aquele, como titular da acção penal, executa.

A figura do assistente, embora sustentada de alguma forma no conceito de ofendido, não pode ser com este confundido.

Daí que para além das pessoas a quem a leis especiais conferirem esse direito, podem constituir-se assistentes no processo penal, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos - cf. artigo 68º nº 1 alíne a) do CPP.

O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito consagrado no CP para aferir da legitimidade para apresentar queixa. Ofendido é, como se diz no art. 113º nº.1 do CP, "o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação".

Este conceito de ofendido remonta ao CPP /29 (art. 11º) e ao DL 35.007, de 13.10.1945.
"Diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo" (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal I, Coimbra Editora, 1974, 504).
Tem ocorrido algum alargamento normativo relativo à possibilidade de intervenção processual da figura do assistente, sustentado em razões de política criminal perfeitamente justificáveis.
No que respeita ao conceito de ofendido é no interesse jurídico-penal que sustenta o tipo criminal em investigação que se identifica a razão de ser onde se deve sustentar a ratio da legitimidade para o assistente intervir.
Tem-se verificado, também, algum alargamento jurisprudencial do entendimento da legitimidade para a constituição de assistente, para além da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação dos vários tipos de crime, reconhecendo-se que, em determinados tipos de crime público que protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, abuso de poder, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular: cf. neste sentido, os AC. R.Lisboa de 25.02.2009 e 22.10.2008 in www. pgdlisboa.pt.
No caso em apreciação, como resulta do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público e também é referido pelo despacho sub judice, a factualidade dos autos é susceptível de, em termos meramente abstractos, reconduzir-se à previsão do artigo 103°, n°1, alinea a), do Regime Geral da Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n°15/2001, de 05 de Junho), que respeita ao crime de fraude fiscal.

Ou seja, o que esteve em causa no inquérito é matéria tributária, de natureza criminal, respeitante a um eventual crime de fraude fiscal.

O crime de fraude fiscal é um crime de perigo que é dirigido a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado. O bem jurídico especialmente protegido com tal crime é a ofensa ao património ou erário público. São os interesses do Estado, na sua vertente vulgarmente denominada por Fisco ou Fazenda Nacional, entendido como sistema dinâmico de obtenção de receitas e realização de despesas (ver, neste sentido o Ac RP 3.6.1998 in CJ T III, 1998).

Nestes crimes não são visíveis quaisquer bens jurídicos de natureza particular.

Numa outra dimensão, e ao contrário de outros crimes onde estão em causa interesses e bens jurídicos também eles com uma dimensão pública inequívoca e onde é possível a intervenção de qualquer pessoa como assistente (crimes contra a paz e a humanidade, crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação em negócio, abuso de poder e fraude na obtenção de subsídio), nos crimes fiscais o legislador não atribuiu a qualquer cidadão essa possibilidade de intervenção, embora se possibilite uma intervenção processual à administração tributária, não sobreponível, no entanto ao conceito de assistente, conforme decorre do artigo 50º do RGIT.

Questionável ou não a razão de política criminal onde se sustentou a opção legislativa, é essa a dimensão legal existente.

Não assiste, assim, razão aos recorrentes quando pretendem intervir nos autos como assistentes, por virtude de os interesses protegidos pela infracção em apreciação no inquérito assumirem uma dimensão pública cujo interesse jurídico-penal não foi pelo legislador excepcionado em termos de ser admitida a intervenção de outros que não o próprio Estado.

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III. DECISÂO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em 6 Ucs (Artº 87º nº 1 b) e 3 CCJ).
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artigo 94º nº 2 CPP).

Coimbra, 28 de Janeiro de 2010

Mouraz Lopes


Félix de Almeida