Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
59/04.1TAOBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
VIOLAÇÃO GROSSEIRA DOS DEVERES
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - OLIVEIRA DO BAIRRO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 58º, 59º, Nº 1 B) CP
Sumário: 1. Quer a prestação de trabalho a favor da comunidade, quer a sanção de dias de trabalho, encontram a sua justificação político-criminal no movimento que surgiu e se vem acentuando, a partir das últimas décadas do século passado, contra as curtas penas de prisão.
2. Embora a lei não defina o que deva entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do julgador a fixação dos seus contornos, nem por isso se poderão esquecer os ensinamentos sobre o que constitui negligência grosseira: a culpa temerária, o esquecimento dos deveres gerais de observância, a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

No âmbito do Processo Comum (tribunal singular) n.º 59/04.1TAOBR que corre termos na Comarca do Baixo Vouga, Oliveira do Bairro, Juízo de Instância Criminal, por sentença datada de 5 de Março de 2008 e transitada em 7 de Abril de 2008, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, o arguido F... foi condenado na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade em instituição e horário a designar pelo IRS, tendo em conta o disposto no artigo 58.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Código Penal.
Em 12/9/2009, o Tribunal, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, decidiu revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, ordenou o cumprimento da pena de 10 meses de prisão determinada na sentença.
****
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, em 12/1/2010, defendendo que deve a mesma ser revogada, elaborando-se novo plano de trabalho, se possível, com a participação do arguido, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:
1. O julgador da 1ª instância sustenta a decisão de que se recorre, essencialmente, no Relatório de Anomalias elaborado pela DGRS.
2. Todavia, não menos verdade é que o arguido sempre foi justificando as suas faltas, quer junto da DGRS, quer da instituição onde prestava serviço a favor da comunidade.
3. O arguido nunca se opôs ou recusou a prestação de trabalho a que estava condenado.
4. Muito menos o fez sem justa causa, tendo explicado por diversas vezes a sua situação de vida pessoal que o impedia de se apresentar quer num quer noutro local.
5. O arguido tem a sua mãe de 70 anos de idade, com graves problemas de saúde.
6. É o arguido que a acompanha regularmente nas várias deslocações médicas ou internamentos a que esta tem sido sujeita.
7. Tal facto, conjugado com a sua obrigação e necessidade de cumprir com o seu horário laboral, foi dificultando a conjugação com a sua obrigação de cumprir o plano de caracterização de trabalho que lhe havia sido aplicado.
8. O horário de funcionamento da instituição onde prestava o trabalho também não facilitou o cumprimento, pois colide com as horas produtivas e normais do dia.
9. O arguido ficou desempregado entre 12/5/2009 e 2/6/2009, altura em que outorgou novo contrato de trabalho a termo certo com a sua actual entidade patronal.
10. Tal situação destabilizou quer a vida particular quer profissional do arguido.
11. O arguido vive maritalmente com outra pessoa, em casa arrendada, sendo avultados os encargos da vida corrente.
12. Em face da sua situação de desemprego, empregou todo o seu tempo e esforços à procura de novo emprego, tarefa que não se avizinhava fácil.
13. Trabalha, actualmente, na empresa G…, S.A., onde é reconhecido, tendo o seu contrato de trabalho sido renovado por duas vezes, passando a definitivo, em Março de 2010.
14. O arguido é pessoa perfeitamente inserida no seio familiar, social e profissional onde este se move.
15. O arguido tem respeito pelo poder judicial e reconhece a oportunidade que lhe foi dada em substituir-lhe a pena de prisão em que foi condenado na prestação de trabalho a favor da comunidade.
16. Será injusto obrigar o arguido a cumprir de forma efectiva a pena de prisão em que foi condenado, quando o arguido nunca se recusou a cumprir a pena de substituição que lhe foi ordenada.
17. Dos autos, não resultam provas inequívocas que o arguido tenha infringido grosseiramente os deveres da pena em que foi condenado.
18. O arguido passou por uma fase bastante conturbada da sua vida, mas não merece ficar privado da sua liberdade, pelo menos com os fundamentos que constam dos autos.
19. A manter-se tal decisão, a mesma iria provocar danos irreversíveis no futuro do arguido, seja a nível social, familiar e, acima de tudo, profissional.
20. O arguido não necessita da prisão efectiva para sentir a punição e a repressão pretendidas com a sentença proferida.
21. O arguido necessita, e merece, manter-se activo, social e profissionalmente integrado, sendo esta a justiça que se espera.
22. o arguido não é um criminoso que mereça a privação da liberdade, reconhecendo as suas falhas, mas necessita de uma oportunidade para ultrapassar esta fase da vida.
23. Tem 36 anos de idade e, ainda, uma vida para construir.
****
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, em 27/1/2010, defendendo, em primeiro lugar, que o recurso deve ser rejeitado, por ser extemporâneo, e, em segundo lugar, caso assim se não entenda, a improcedência do mesmo, apresentando as seguintes conclusões:
1. A decisão ora recorrida foi pessoalmente notificada ao arguido, em 9/12/2009, tendo transitado em julgado, no dia 21/12/2009, e o recurso apresentado deu entrada nos presentes autos, no dia 12/1/2010, pelo que deve ser rejeitado, por extemporâneo.
2. Dispõe o artigo 399.º, do CPP, que “é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”, sendo aplicável in casu o prazo de dez dias previsto nos artigos 153.º, n.º 1 e 685.º, n.º 1, ambos do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º, do CPP.
3. Todavia, e ainda que assim não se entenda, por mera precaução, sempre se dirá que resulta dos autos que o arguido participou na elaboração do plano de trabalho a favor da comunidade e não colocou qualquer obstáculo à implementação do mesmo, nos termos que lhe foram propostos.
4. O arguido iniciou a prestação de trabalho a favor da comunidade, em 23/1/2009, e deixou de comparecer na entidade beneficiária, em 19/2/2009, apenas tendo cumprido com 6 (seis) horas de trabalho a favor da comunidade, sendo que, durante esse período, a sua frequência foi irregular e não justificou a sua ausência.
5. O arguido não evidenciou empenho no cumprimento da pena, tentando protelar a sua execução.
6. O arguido esteve desempregado, entre Fevereiro e Maio/Junho de 2009, e, nessa altura, não se disponibilizou a comparecer na entidade beneficiária do trabalho, nem às solicitações do instituto de reinserção social, tendo ocorrido o último contacto, por iniciativa daquela entidade, em 25/3/2009.
7. O facto do arguido se encontrar actualmente inserido profissionalmente não invalida o cumprimento da pena de prisão em que havia sido condenado.
8. Nos termos do artigo 59.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, “O tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:
b) se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado;”.
9. Desse modo, conclui o Tribunal, e bem, que os pressupostos que estiveram na base da substituição da prestação de trabalho a favor da comunidade não foram alcançados e, portanto, conclui que o único meio possível para que o arguido interiorize tal ilicitude terá de passar pelo cumprimento da pena de prisão.
10. Os factos apurados pelo Tribunal levam à conclusão que o arguido revela uma postura de total indiferença pela condenação que sofreu nestes autos, constatando-se que a condenação sofrida neste processo não foi suficiente para o advertir e fazer cumprir com as suas obrigações.
11. Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, o tribunal, e bem, revogou a substituição da prestação de trabalho a favor da comunidade e ordenou o cumprimento efectivo da pena de 10 (dez) meses de prisão aplicada nestes autos.
****
O recurso foi, em 3/2/2010, admitido.
Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, em 3/3/2010, no sentido de que o recurso merece provimento, devendo ser revogada a decisão proferida, a fim de o arguido ver suspensa a execução da respectiva pena de prisão, nos termos do artigo 59.º, n.º 6, al. b), do Código penal, salientando que “(…) o comportamento do condenado, a falta de comparência numa situação social e de trabalho que é de instabilidade e preocupante, pois o recorrente perdeu o seu emprego, tentou a sua sorte no estrangeiro, sem sucesso, não pode ser taxada de infracção grosseira dos deveres decorrentes da pena em que foi condenado.”, e que “(…) em face daquele incumprimento, não se desencadeia, de modo automático e necessário, a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade.”, e, ainda, que “(…) entendemos que o legislador quer lutar contra a pena de prisão, pelo que, no desenvolvimento desse desiderato, deve entender-se que a revogação desta pena, consubstanciando-se na aplicação de uma pena de prisão, só deve ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências que o artigo 59.º, do Código Penal, contempla.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
****
II. Decisão Recorrida:
Nos presentes autos, o arguido F... foi condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho a favor da comunidade, por sentença já transitada em julgado.
A fls. 659-661, foi elaborado relatório de caracterização de trabalho a favor da comunidade, tendo sido proferido despacho, em 7.11.2008, a determinar o cumprimento de tal pena de prestação de trabalho, conforme consta no relatório.
A fls. 707-709, veio a DGRS juntar ao processo relatório de anomalias, invocando, em conclusão, o “fraco empenho e responsabilização do arguido na prestação de trabalho, as faltas de comparência na entidade beneficiária e nos serviços de reinserção para esclarecer eventuais constrangimentos ou proposta de alteração do plano de trabalho levam-nos a concluir que o arguido tem dificuldades em aderir ao cumprimento da medida, tentando protelar a sua execução.
A instituição, face à irregularidade registada na assiduidade e por sentir que o mesmo não revela o empenho necessário para dar cumprimento ao trabalho a favor da comunidade, mostra-se indisponível para continuar como entidade beneficiária de trabalho”.
A fls. 746, o arguido foi ouvido em declarações, assim como a Técnica da DGRS que acompanhou a medida de trabalho a favor da comunidade.
O Ministério Público teve vista no processo, promovendo a revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do artigo 59.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, “o tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado”.
Das declarações prestadas pelo arguido (fls. 746), resulta que o mesmo esteve desempregado, pelo menos, no período de Fevereiro a Maio/Junho de 2009 – ora, poderia ter aproveitado este período para cumprir a prestação de trabalho a favor da comunidade, mas, pelo contrário, deixou de o fazer.
Por outro lado, ao arguido foi dada a oportunidade de participar na elaboração do plano de trabalho, tendo inclusivamente tido uma reunião com a entidade beneficiária do trabalho, não tendo colocado qualquer obstáculo à implementação do plano de trabalho, tal como foi feito.
Mesmo depois de começar a não cumprir com o trabalho, foi contactado pela DGRS, via telemóvel, para resolver a situação, mas nunca compareceu às entrevistas marcadas.
Também consta do relatório de anomalias que o arguido teve um fraco empenho e responsabilização no cumprimento da pena, faltando com frequência à instituição e às entrevistas marcadas pela DGRS.
A conduta do arguido demonstra que a sua culpa é intensa, evidenciando uma personalidade indiferente à reacção criminal, pelo que é forçoso concluir que os pressupostos que estiveram na base da substituição da pena de prisão pela prestação de trabalho a favor da comunidade não foram alcançados e, portanto, que o único meio possível para que o arguido interiorize tal ilicitude terá de passar pelo cumprimento da pena de prisão.
Não apresentou o arguido qualquer justificação plausível para o não cumprimento da pena de prestação a favor da comunidade.
Pelo exposto, e nos termos do artigo 59.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, o tribunal decide revogar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, ordena-se o cumprimento da pena de 10 meses de prisão determinada na sentença.
Nos termos do n.º 4, do artigo 59.º, do Código Penal, há que descontar no tempo de prisão a cumprir os dias de trabalho já prestados, ou seja, de acordo com o relatório de fls. 707-709, o arguido cumpriu já 6 (seis) horas de trabalho a favor da comunidade.
Pelo exposto, o arguido terá a cumprir 9 (nove) meses e 24 (vinte e quatro) dias de prisão, nos termos conjugados dos artigos 59.º, n.º4 e 58.º, n.º 3, ambos do Código Penal.
Notifique e, após trânsito, passe os competentes mandados de detenção para cumprimento de pena de prisão.
Boletim à DSICCOC.”
****
III. Apreciação do Recurso:
O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P. e Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro.
A questão a conhecer é a seguinte:
- Saber se há elementos nos autos que justifiquem, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, a revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e, em consequência, o cumprimento da pena de 10 meses determinada na sentença
****
A) Questão prévia – da não admissibilidade do recurso:
O Ministério Público junto da 1ª instância entende que o recurso deve ser rejeitado, por extemporâneo, sendo de notar, porém, que a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, aquando da elaboração do douto parecer de fls. 809/814, considera que o recurso foi tempestivamente interposto.
Considera, para tanto, que, por estarmos face a uma decisão de revogação da prestação de trabalho a favor da comunidade, a decisão recorrida é passível de recurso no prazo de 10 dias, de acordo com os artigos 153.º, n.º 1 e 685.º, n.º 1, ambos do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP.
Salvo o devido respeito, não se vislumbra qual a necessidade de fazer apelo aos mencionados artigos do CPC, na medida em que não estamos perante um qualquer caso omisso.
O artigo 411.º, do CPP, contempla os prazos de impugnação das decisões judiciais penais.
Ora, o n.º 1, al. a), da citada norma, é bem claro ao referir que o prazo de interposição do recurso é de 20 dias a partir da notificação da decisão.
Por conseguinte, não pode ser afirmado que a decisão recorrida transitou em julgado no dia 21/12/2009, como o faz o Ministério Público junto da 1ª instância.
O recurso foi, pois, interposto em tempo.
É o que se declara.
****
B) Da revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade:
A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade surgiu no Código Penal de 1982, que, no seu artigo 60.º, n.º 1, dispunha que, “se o agente for considerado culpado pela prática de crime a que, concretamente, corresponda a pena de prisão, com ou sem multa, não superior a 3 meses, ou só pena de multa até ao mesmo limite, pode o tribunal condená-lo à prestação de trabalho a favor da comunidade”. Com a reforma operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, com o nítido propósito de largar o campo de aplicação desta pena, passou a mesma a estar prevista no artigo 58.º, do Código Penal, que passou a dispor, que “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão em medida não superior a 1 ano, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Por sua vez, com a alteração ao Código Penal, operada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, que entrou em vigor no dia 15 seguinte – continuando a alargar-se o âmbito de aplicação desta pena - alterou-se o limite da pena até ao qual pode ser aplicada, que passou a ser, de pena não superior a 2 anos. Instituto diverso, teoricamente distinto e autónomo, do da pena de substituição que constitui a prestação de trabalho a favor da comunidade, (PTFC) surge-nos a sanção de dias de trabalho, como sucedâneo da multa, não paga, voluntária ou coercivamente – que da mesma forma visa afastar, até ao limite possível, a aplicação de uma pena de prisão, em lugar da multa não paga ou não cobrada. Quer a PTFC, quer a sanção de dias de trabalho, encontram a sua justificação político-criminal no movimento que surgiu e se vem acentuando, a partir das últimas décadas do século passado, contra as curtas penas de prisão. A razão de ser deste movimento, prende-se com as nefastas consequências, que as mesmas proporcionam, derivadas da estigmatização do agente, pelo contacto com o meio prisional.
Considerada como uma das mais importante medidas de político-criminal dos últimos decénios no domínio sancionatório [ver Maia Gonçalves, Código Penal Português – 11ª ed., em anotação ao art. 58.º] e recomendada pelas mais altas instâncias [v.g. as recomendações e resoluções do Conselho da Europa e Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio) adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 45/110, de 14 de Dezembro de 1990 – com menção expressa à imposição de prestação de serviços à comunidade no ponto 8.2.i)], a prestação de trabalho a favor da comunidade concita elevadas expectativas na progressiva afirmação das medidas não institucionais como fórmulas punitivas indispensáveis à eficácia do sistema penal.
É importante reter estas noções, na medida em que elas devem servir de base à ponderação a efectuar no presente caso.
****
Dispõe o artigo 59.º, do Código Penal o seguinte:
1 – A prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser provisoriamente suspensa por motivo grave de ordem médica, familiar, profissional, social ou outra, não podendo, no entanto, o tempo de execução da pena ultrapassar 30 meses.
2 – O tribunal revoga a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade e ordena o cumprimento da pena de prisão determinada na sentença se o agente, após a condenação:
a) Se colocar intencionalmente em condições de não poder trabalhar;
b) Se recusar, sem justa causa, a prestar trabalho, ou infringir grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado; ou
c) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
3 – É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 57.º.
4 – Se, nos casos previstos no n.º 2, o condenado tiver de cumprie pena de prisão, mas houver já prestado trabalho a favor da comunidade, o tribunal desconta no tempo de prisão a cumprir os dias de trabalho já prestados, de acordo com o n.º 3 do artigo anterior.
5 – Se a prestação de trabalho a favor da comunidade for considerada satisfatória, pode o tribunal declarar extinta a pena não inferior a setenta e duas horas, uma vez cumpridos dois terços da pena.
6 – Se o agente não puder prestar o trabalho a que foi condenado por causa que lhe não seja imputável, o tribunal, conforme o que se revelar mais adequado à realização das finalidades da punição:
a) Substitui a pena de prisão fixada na sentença por multa até 240 dias, aplicando-se correspondentemente o disposto no n.º 2 do artigo 43.º; ou
b) Suspende a execução da pena de prisão determinada na sentença, por um período que fixa entre um ano e três anos, subordinando-a, nos termos dos artigos 51.º e 52.º, ao cumprimento de deveres ou regras de conduta adequados.
****
Revertendo ao caso dos autos, o Tribunal, por decisão de fls. 754/756, revogou a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 1, al. b), do CPP, sendo certo que aí não concretiza se o fez em virtude do condenado se ter recusado, sem justa causa, a prestar trabalho, ou, na sequência de violação grosseira dos respectivos deveres, muito embora se possa depreender que tenha fundamentado a revogação da PTFC na parte final do citado artigo, uma vez que não houve uma recusa por parte de F..., a partir do momento em que este chegou a cumprir seis horas de trabalho a favor da comunidade.
Pois bem, a lei penal não define o que deve entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do seu aplicador a fixação dos seus contornos (artigos 56.º, n ° 1 – a), a propósito da revogação da suspensão da execução da pena, e 59.º. n ° 2 – b), sobre a revogação da PTFC, ambos do C.Penal. Em consequência, a hermenêutica jurídica impõe que façamos uso do conceito de negligência grosseira, correspondendo este à figura da culpa temerária ou esquecimento de deveres. Assim, ao lado do elemento objectivo da violação do dever, a lei penal toma dependente a concorrência de um elemento subjectivo, traduzido na culpa, enquanto infracção grosseira ou repetida dos deveres impostos na decisão condenatória. Isto é, optou-se por um regime mais exigente que só determina a revogação da pena quando se conclui que as finalidades subjacentes à aplicação daquela não podem, por meio dela, ser atingidas. Embora a lei não defina o que deva entender-se por violação grosseira dos deveres, deixando ao critério do julgador a fixação dos seus contornos, nem por isso se poderão esquecer os ensinamentos sobre o que constitui negligência grosseira: a culpa temerária, o esquecimento dos deveres gerais de observância, a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos. A violação grosseira de que se fala há-de ser uma indesculpável actuação, em que o comum dos cidadãos não incorre, não merecendo ser tolerada. Escreveu-se no Acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Março de 1985, CJ, Ano X, Tomo 11, pág. 72, que a apreciação desta " violação grosseira " deve ser feita de forma criteriosa e cuidadosa. A jurisprudência tem entendido que, a infracção dos deveres impostos não opera automaticamente como causa da revogação da pena, como medida extrema que é, não devendo o tribunal atender ao aspecto meramente formal daquela violação, mas, prevalentemente, ao desejo firme e incontroverso de cumprimento das obrigações. No caso dos autos, devemos atender ao seguinte: 1. Com data de 23/10/2008, a DGRS juntou aos autos Relatório de Caracterização Trabalho a Favor da Comunidade” (fls. 659/661), do qual consta a seguinte conclusão/proposta:
“O arguido trabalha por turnos, de 2ª a 6ª feira e, ao sábado, efectua serviços de manutenção das máquinas da empresa, vive com a mãe, a qual é referida como tendo necessidade de apoio do arguido. No entanto, dispôs-se a efectuar o trabalho a favor da comunidade, 1 hora por dia, de 2ª a 6ª feira, de acordo com o turno de trabalho. Assim, quando trabalhar das 7.00 às 15:30, disponibiliza-se a prestar trabalho das 16:30 às 17.30 e, quando trabalhar das 15:30 ás 24:00, disponibiliza-se a prestar trabalho das 14:00 ás 15.00; poderá, também, futuramente, realizar mais horas, de acordo com a sua situação laboral e disponibilidade da instituição que o receber.
O Centro Social e Paroquial de R… indicou disponibilidade para beneficiar do trabalho a prestar pelo arguido. Assim, o arguido poderá efectuar serviços gerais de apoio à instituição, conforme referido.
A remuneração para o tipo de tarefas indicadas é baseada no ordenado mínimo nacional.”
2. Em 7/11/2008, foi proferido, a fls. 666, o seguinte despacho:
“Determina-se que o arguido F... cumpra a pena de trabalho a favor da comunidade a que foi condenado, nos termos mencionados a fls. 661, no Centro Social e Paroquial de R…, aí desempenhando serviços gerais de apoio à Instituição. Notifique.”
3. Em 26/5/2009, o Tribunal solicitou, à DGRS – Equipa do Baixo Vouga, informação sobre o estado do cumprimento da pena de PTFC.
4. Em 1/6/2009, aquela instituição juntou aos autos, a fls. 707/709, “Informação sobre Anomalias”, do qual consta o seguinte:
“(…)
Em 23/1/2009, iniciou prestação de trabalho a favor da comunidade, que ocorreria de 2ª a 6ª feira, uma semana das 8 às 9 horas, e outra das 17:30 às 18:30, executando nesses horários serviços de apoio à instituição, nomeadamente, o apoio nos serviços de transportes ao domicílio dos utentes da instituição.
No entanto, o arguido demonstrou dificuldade no cumprimento da assiduidade. Por várias vezes, foi alertado para o necessário cumprimento da medida, sem sucesso. Foi convocado, por escrito, para comparecer nos Serviços, no dia 26/2/2009, não tendo comparecido, nem efectuado qualquer contacto com os serviços. Posteriormente, foi contactado para o seu telemóvel, em 25/3/2009, referindo encontrar-se desempregado, desde finais de Fevereiro, e a efectuar diligências para conseguir nova colocação laboral, referindo ter tentado, sem sucesso, encontrar trabalho no Luxemburgo, onde se deslocou por duas semanas. Após ter regressado, afirmou ter continuado as diligências para obter trabalho, na região de Águeda, aguardando respostas. Neste contacto, o arguido comprometeu-se a comparecer nos Serviços para melhor esclarecer a sua situação e disponibilidade para a prestação de trabalho a favor da comunidade, contudo não compareceu e também não contactou mais os serviços.
PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO:
O fraco empenho e responsabilização do arguido na prestação de trabalho, as faltas de comparência na entidade beneficiária e nos serviços de reinserção para esclarecer eventuais constrangimentos ou proposta de alteração do plano de trabalho, levam-nos a concluir que o arguido tem dificuldades em aderir ao cumprimento da medida, tentando protelar a sua execução.
A instituição, face à irregularidade registada na assiduidade, e por sentir que o mesmo não revela o empenho necessário para dar cumprimento ao trabalho a favor da comunidade, mostra-se indisponível para continuar como entidade beneficiária de trabalho.
Atento ao exposto, aguardamos de V. Ex.ª o que achar por conveniente mandar informar-nos.”
5. Em 24/6/2009, a fls. 715, foi proferido o seguinte despacho.
“Face ao relatório da DGRS, de fls. 707-709, notifique o arguido para, no prazo de 10 dias, alegar/requerer o que tiver por conveniente, uma vez que pode vir a cumprir a pena de prisão de 10 meses de prisão que lhe foi substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.”
6. Em 28/9/2009, e sem que resulte dos autos ter o condenado sido notificado para os efeitos do despacho de 24/6/2009 (ver fls. 716-722), foi designada data para audição de F... e do técnico de reinserção social que elaborou o relatório de fls. 707-709.
7. Em 19/10/2009, teve lugar tal audição, cujo resultado consta do auto de fls. 746 e 747, no qual pode ser lido:
“De seguida, o tribunal passou a ouvir o arguido, já devidamente identificado nos presentes autos, que declarou o seguinte:
«Em Fevereiro de 2009, foi despedido, encontrando-se a trabalhar na G…, em Águeda, desde Junho de 2009, tendo elaborado um contrato de trabalho por 3 meses renovável por igual período de tempo.
Justificou o facto de não ter cumprido a prestação de trabalho a favor da comunidade com o facto de ter muito trabalho e ter de o fazer por turnos.
Vive com a namorada que é empregada fabril.
Paga de renda de casa € 300,00.
Aufere mensalmente € 700,00-
Não tem encargos além dos normais.
Não voltou a contactar a DGRS.»
E mais não disse.
De seguida, o tribunal passou a ouvir a Técnica da DGRS presente, a Dra. M…, que, inquirida, disse que:
«O arguido ainda chegou a prestar alguns dias de trabalho a favor da comunidade, mas muito poucos.
Deixou de comparecer no trabalho a favor da comunidade, a 19/2/2009, e, até aí, compareceu com alguma irregularidade.
O arguido foi contactado, via telemóvel, para resolver a situação, mas nunca compareceu.
O arguido teve intervenção no plano de trabalho a favor da comunidade, tendo inclusivamente ido a uma reunião com a entidade beneficiária do trabalho.
A partir da elaboração do relatório de anomalias, não voltou a ter contacto com o arguido.»
E mais não disse.”
8. Em 12/11/2009, e na sequência do exposto, foi proferida a decisão recorrida.
****
Infringiu o recorrente grosseiramente os deveres decorrentes da pena a que foi condenado?
Em primeiro lugar, o arguido nunca se opôs ou recusou expressamente a prestação de trabalho, tendo até colaborado na elaboração do mesmo.
Em segundo lugar, o arguido juntou aos autos documento comprovativo de que teve de acompanhar sua mãe, após o seu horário laboral, a várias consultas médicas por mês nos HUC, assim como a intervenções cirúrgicas, - ver fls. 783 e 784.
Em terceiro lugar, o arguido ficou desempregado, em determinada altura, o que constitui uma alteração de circunstâncias a ter em conta, com tudo o que isso representa de alteração na vida de uma pessoa.
Em quarto lugar, no relatório de fls. 707 a 709, consta que foram feitas advertências ao arguido, no que respeita à sua falta de assiduidade, sendo certo que não é especificado o número de vezes, tendo aquele, avançado motivos para tanto, numa conversa através de telemóvel, em 25/3/2009, altura em que afirmou que iria a entrar em contacto com a DGRS, a fim de melhor esclarecer o que se passava, sendo certo que tal não veio a acontecer, o que levou aquela instituição a concluir que F... apresentava “dificuldades em aderir ao cumprimento da medida”.
Em quinto lugar, o condenado, ao ser ouvido em tribunal, deu uma justificação para o sucedido e admitiu que não voltou a contactar a DGRS.
Em sexto lugar, o elemento da DGRS que foi ouvido em tribunal referiu que não voltou a contactar com o condenado, depois da elaboração do relatório de anomalias.
Com este panorama, em que ressalta, desde logo, um problema de comunicação entre o arguido e a DGRS, não pode ser considerado que o arguido violou grosseiramente os deveres decorrentes da pena.
Desde logo, não se esqueça que o direito ao trabalho está garantido na CRP, no seu artigo 58.º, n.º 1, sendo de equacionar, até, em tese geral, se uma sociedade deve exigir de um cidadão que preste trabalho a favor da comunidade, enquanto pena, ao mesmo tempo que não lhe assegura o referido direito ao trabalho…
Acresce que o arguido não fugiu às explicações quanto ao seu comportamento, nomeadamente quando foi convocado pelo tribunal para ser ouvido.
É certo que não agiu bem, ao deixar de comparecer no local a que estava obrigado e ao não comparecer nas instalações da DGRS, para melhor explicar a sua conduta. No entanto, note-se que a referida instituição não chegou à conclusão de que era impossível a PTFC, antes acentuou as dificuldades de a mesma ser colocada em prática, ficando a aguardar pelo que o tribunal entendesse por bem (ver parte final do relatório de fls. 707 a 709).
Não estamos, pois, perante uma indesculpável actuação, não merecendo ser tolerada.
Verificamos, sem dúvida, o elemento objectivo da violação – o condenado deixou de prestar trabalho.
Simplesmente, o arguido veio trazer aos autos explicações (instabilidade no trabalho, decorrente do seu desemprego e apoio à mãe) para a sua conduta que, no mínimo, devem ser ponderadas com muito cuidado e rigor, as quais, de modo algum, indiciam que estejamos perante alguém que desrespeita a ordem jurídica de modo grosseiro.
Aliás, estamos perante uma pessoa integrada socialmente, sendo certo que estão em causa factos que ocorreram durante um julgamento realizado em Fevereiro de 2004.
Tal conduz-nos de regresso às considerações acima feitas a proposto do objectivo do legislador de evitar as curtas penas de prisão.
Logo, tudo deve ser feito para não chegar a uma pena de prisão de 10 meses, sempre que esteja em questão uma PTFC.
Uma pena tem sempre que ser adequada, razoável e proporcional.
O arguido não deixou de estar disponível para prestar trabalho a favor da comunidade, sendo verdade que, nas condições actuais, tem uma entidade patronal diferente da que tinha, aquando do início da PTFC, o que permite adaptar a medida à nova situação, desde que isso sirva a entidade beneficiária, explicado que seja a esta o que verdadeiramente aconteceu.
Por isso, não pode o tribunal considerar que houve a violação grosseira aludida na decisão recorrida.
Eventualmente, a conduta pode, até, ser enquadrada na situação prevista no n.º 6, do artigo 59.º, do Código Penal, em que o condenado não pode prestar o trabalho por causa alheia à sua vontade.
****
IV. Decisão:
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, por ter sido violado o disposto no artigo 52.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, determinando-se que seja proferida nova decisão que adapte o plano de trabalho dos autos à nova situação laboral do condenado ou que pondere a aplicação a este do disposto nas alíneas a) ou b), do n.º 6, do artigo 59.º, do Código Penal.
Sem custas.
****
(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)
****
Coimbra, 21 de Abril de 2010
___________________________

(José Eduardo Martins)



___________________________

(Isabel Valongo)