Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
274/07.6TBCVL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
SERVIDÃO PREDIAL
CONSTITUIÇÃO
USUCAPIÃO
PRÉDIO ENCRAVADO
PRÉDIO
VIA PÚBLICA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ALÍNEA C) DO N.º 1 DO ARTIGO 615.º DO CPC, ARTIGOS 334º, 1293º AL.A), 1543º E 1548º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - A “decisão” cuja falta de fundamentação é tida em vista pela alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC é a “decisão final”; fora do alcance da norma está a decisão relativa à matéria de facto.
II – A constituição de servidões prediais por usucapião tanto pode dar-se em proveito de prédios encravados como em benefício de prédios com comunicação com a via pública.

III – A regra de que, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício das servidões, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e com o menor prejuízo para o prédio serviente, aplica-se quando o título for insuficiente para regular a extensão e o exercício da servidão.

IV- Apesar de ser questão de conhecimento oficioso, a afirmação do abuso de direito pressupõe a prova de factos que mostrem que o titular do direito excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., residente na Quinta do Pereiro, Belmonte, e B...., residente na rua (...) Belmonte, propuseram na qualidade de herdeiras da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C..., contra D..., residente na (...) , e E... e marido F... , residentes em (...) , França, a presente acção declarativa com processo sumário, pedindo:

1. Se reconhecesse que a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... , representada por A... e B... , como suas herdeiras, era proprietária dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 472º e 475º, identificados nos artigos 1º e 2º da petição;

2. Se reconhecesse que sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 474º, identificado no artigo 3º da petição, estava constituída uma servidão de passagem, a favor dos prédios rústicos da herança aberta por óbito de C... , desde a estrada a todo o comprimento do prédio inscrito na matriz sob o artigo 474º, onde confinava com os prédios da autora, artigos 472º e 475º, com 3 metros de largura, como referido no artigo 10º da petição;

3. A condenação das rés a retirarem os portões da estrada ou a darem livre acesso pelos mesmo às representantes da autora, a retirarem os pilares, a rede e o muro que colocaram no limite da propriedade da autora e das rés e que impedem a utilização da servidão de passagem e o acesso para entrada e saída da autora e seus representantes para os prédios atrás referidos, sempre que necessitem, como o vêm fazendo há mais de 30 anos;

4. A condenação dos réus no pagamento à autora e suas representantes do prejuízo que lhe causaram, que consistiu no não cultivo dos dois prédios rústicos, em não proceder às vindimas e retirar as uvas e outros produtos da terra que são susceptíveis de produzir, como abóboras, batatas, legumes, frutas, só contabilizáveis após a cessação do impedimento da utilização da servidão de passagem e a liquidar em execução de sentença;

5. A condenação dos réus numa sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso, no cumprimento, à razão de 100 €/dia, nos termos do disposto no artigo 829º-A, do CPC, revertendo metade para o Estado, conforme o n.º 3 da mesma disposição legal.

Os fundamentos da acção foram, em resumo, os seguintes:

1. Que fazem parte da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... , uma terra de cultura de regadio, sita no lugar de Pimenta, limite da freguesia de Belmonte, a confrontar do norte com V(..) , nascente com G... , do sul com N... do vale e do poente com O... , inscrito na matriz predial sob o artigo 472º, e um prédio rústico, no mesmo lugar e limite, terra de cultura, olival, cultura arvense, pomar de pessegueiros, vinha e instalações agrícolas, a confrontar do norte com G... e outros, a nascente com a linha de caminho-de-ferro, a sul e a poente com N... , inscrito na matriz sob o artigo 475;

2. Que os réus são donos e legítimos proprietários de um prédio rústico sito no lugar de Pimenta, limite da freguesia de Belmonte, composto de pomar de macieiras, cultura arvense de regadio, vinha, videiras em cordão e instalações agrícolas, inscrito na matriz predial sob o artigo 474º;

3. Que a separar os prédios rústicos da autora do prédio dos réus, do lado, sul e em toda a sua extensão, com início na estrada que dá acesso à freguesia de Bendada, existe uma servidão de passagem, no prédio dos réus com cerca de 3 metros de largura, bem demarcada no solo, que nunca foi cultivada, por onde sempre passaram os representantes da autora e antepossuidores, para os dois referidos prédios, a pé, de tractor e sempre que precisavam de efectuar lavragens, sementeiras, colocar e retirar os produtos que a terra é suscpettível de produzir, por aí conduzindo a água canalizada de um poço para os referidos prédios e acompanhando-a sempre que precisam de regar, ininterruptamente, à vista de toda a gente, convictos de exercerem um direito próprio, sem oposição de ninguém, desde 1975, data das partilhas, pelo que, na falta de outro título, existe, constituída, por usucapião, uma servidão de passagem pelo prédio dos réus a favor do prédio dos autores por usucapião;

4. Que em Agosto de 2006, os réus colocaram pilares em cimento, com rede de 1,50 metros de altura a todo o comprimento da passagem, no limite sul da propriedade da autora, e um muro em pedra onde a autora e sias legais representantes tinham acesso à vinha, artigo matricial 475;

5. Que após a colocação dos pilares, da rede e do muro, colocaram, no acesso da estrada, para a servidão de passagem, uns portões em ferro, fechados à chave.

6. Que as representantes da autora estão impedidas de procederem às vindimas, por não poderem retirar as uvas, e estão impedidos de retirarem outros produtos da terra, com o que estão a sofrer um prejuízo elevado, que só poderá ser calculado depois de as representantes da autora poderem utilizar a passagem.

As rés contestaram a acção. Na defesa sustentaram que os prédios da herança tinham comunicação com a via pública e que a autora B... e o marido nunca passaram pelo prédio das rés e que não se achava constituída sobre este nenhuma servidão de passagem a favor dos prédios da herança. No final pediram a condenação das autoras como litigantes de má-fé, em indemnização a favor das rés a liquidar em execução de sentença.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

1. Reconhecer que a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... , representada por A... e B... , como suas herdeiras, era proprietária dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos 472º e 475º;

2. Reconhecer que sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 474º, identificado na alínea b) dos factos considerados provados, estava constituída uma servidão de passagem, a favor dos prédios rústicos da herança aberta por óbito de C... , desde a estrada a todo o comprimento do prédio inscrito na matriz sob o artigo 474º, onde confinava com os prédios da autora, artigos 472º e 475º, com 3 metros de largura;

3. Condenar as rés a retirarem os portões da estrada ou a darem livre acesso pelos mesmo às representantes da autora, a retirarem os pilares, a rede e o muro que colocaram no limite da propriedade da autora e das rés e que impedem a utilização da servidão de passagem e o acesso para entrada e saída da autora e seus representantes para os prédios atrás referidos;

4. Fixar em 20 euros/dia a sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na reposição da servidão.

As rés não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação, pedindo:

1. Se declarasse nula a sentença, ou, se assim se não entendesse,

2. Se revogasse a sentença, declarando-se que não estavam preenchidos os pressupostos para o reconhecimento da servidão de passagem no modo como o foi ou declarar-se que a mesma é no seu todo inexequível, por ausência do local concreto de acesso ao prédio da autora – artigo 475º e que o prédio 472º da mesma não confronta com o prédio dos réus, excluindo-se qualquer decisão no que respeita à servidão quanto a este;

3. Se fixasse valor à acção;

4. Se absolvessem os réus da condenação que constava da sentença.

Esta Relação, por acórdão proferido em 14 de Outubro de 2014, anulou a decisão proferida sobre os artigos 10.º e 16.º da petição e sobre os artigos 21.º, 23.º e 26.º da contestação e determinou a repetição do julgamento quanto a estas questões de facto, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições.

Procedeu-se à repetição do julgamento.

Na audiência final, as autoras reduziram o pedido, nos seguintes termos: 

1. Reconhecerem os réus que as autoras são proprietárias do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 475.º, identificado no artigo segundo da petição;

2. Manutenção do pedido formulado na alínea b) da petição inicial, apenas relativamente ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 475.º, identificado no artigo segundo da petição;

3. Manutenção pedido formulado sob a alínea c) da petição inicial, apenas relativamente ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 475.º, identificado em segundo da petição.

A redução foi admitida.

Após a audiência final foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

1. Condenar os réus a reconhecerem que o prédio rústico, sito no Lugar de Pimenta, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 475º da freguesia de Belmonte, que confronta do lado norte com a estrada, do lado sul com a linha férrea da Beira Baixa, do lado nascente com a autora B... e do lado poente com o prédio dos réus, identificado em 2) da matéria de facto provada, é pertença da autora;

2. Condenar os réus a reconhecerem que o prédio rústico identificado em 2) da matéria de facto provada se encontra onerado com uma servidão de passagem, a pé e de tractor, do seu lado nascente, com 3 metros de largura, desde a estrada, a todo o comprimento do prédio, a favor do prédio da autora identificado em 1) da matéria de facto provada, condenando-se os réus a tal reconhecerem;

3. Condenar os réus a retirarem o portão referido em 12) da matéria de facto provada ou permitirem o livre acesso pelo mesmo às representantes da autora;

4. Condenar os réus a retirarem os pilares em cimento e a rede, colocando o muro no estado em que o mesmo se encontrava anteriormente;

5. Absolver os réus do demais peticionado nestes autos;

6. Absolver a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Os réus voltaram a não conformar-se com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo, no final da alegação:

1. Se declarasse nula a sentença por extemporânea e inadmissível; Se assim se não entendesse,

2. A revogação da sentença, declarando-se que não estavam preenchidos os pressupostos para o reconhecimento da servidão de passagem no modo como o foi ou declarando-se que a mesma era, no seu todo, inexequível, por ausência de identificação do local concreto de acesso ao prédio da autora, artigo 475.º; declarando-se que o prédio do artigo 472.º da mesma autora não confrontava com o prédio dos réus, excluindo-se qualquer decisão, no que respeita à servidão, quanto a este, absolvendo os réus da condenação que consta da sentença.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram, em resumo, no seguinte:

1. Na alegação de que a sentença era nula;

2. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto;

3. Na alegação de que não estavam preenchidos os pressupostos para o reconhecimento da servidão de passagem no modo como o foi e que foram violados os artigos 1287.º, 1549.º, 1550.º, 1553.º e 1565.º, todos do Código Civil.

Não houve resposta ao recurso.

Questões suscitadas pelo recurso

Como se vê pela exposição efectuada, as principais questões suscitadas pelo recurso são fundamentalmente as seguintes:

1. Saber se a sentença é nula;

2. Saber se o tribunal errou no julgamento da matéria de facto;

3. Saber se não estavam preenchidos os pressupostos para o reconhecimento da servidão de passagem e se o reconhecimento da servidão importou a violação das disposições acima indicadas.


*

Impugnação da decisão relativa à matéria de facto:

Considerando que o recurso suscita questões de facto e de direito e que a resolução daquelas tem precedência lógica sobre a resolução destas, iremos começar o julgamento do recurso pelo conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Os recorrentes pedem se julgue não provada a matéria descrita na fundamentação da sentença sob os números 4, 5, 6 e 13.

A matéria em causa é a seguinte:

1. O prédio referido em 2) tem uma passagem, do seu lado nascente, com cerca de 3 metros de largura, bem delimitada e demarcada no solo, com início na estrada (via pública), situada a norte dos prédios referidos em 1) e 2).

2. Os prédios referidos em 1) e 2) eram um único prédio, á data referida em 3), sendo que a passagem referida em 4) já existia nessa atura e permitia a passagem da estrada para o resto da propriedade e manteve a existência aquando da divisão do imóvel;

3. As representantes da autora utilizavam a passagem referida em 4), a pé e de tractor para aceder ao prédio referido em 1), desde a data referida em 3), o que já faziam os seus ante possuidores, à vista de toda a gente, convictos de que exerciam um direito próprio, sem oposição de ninguém, até á data referida em 11).

4. Os factos referidos em 11) e 12) impedem a autora de aceder ao prédio referido em 1) pela passagem referida em 4).

O tribunal a quo julgou provada esta matéria com base nos seguintes meios de prova:

1. Nos depoimentos das testemunhas (matéria descrita sob o n.º 4);

2. Na inspecção ao local (matéria descrita sob o n.º 5);

3. Nos depoimentos das testemunhas de G... (irmão de A... ), H... ; I... ; M... (matéria descrita sob o n.º 6);

4. No acordo das partes e no depoimento de L... (matéria descrita sob o n.º 13). 

Os recorrentes pedem se julguem não provados estes factos, invocando, para tanto, excertos dos depoimentos da ré, D... , e das testemunhas H... , I... , M... e L... .

Ouvidos todos os depoimentos e reapreciados os documentos, a convicção deste tribunal não difere da do tribunal a quo.

Comecemos pela pretensão no sentido de se julgar não provado que “o prédio referido em 2 – prédio dos réus - tem uma passagem, do seu lado nascente, com cerca de 3 metros de largura, bem delimitada e demarcada no solo, com início na estrada (via pública) situada a norte dos prédios referidos em 1) e 2)”.

Esta pretensão não tem apoio na prova invocada pelos recorrentes. O que tem apoio na prova produzida é a decisão do tribunal a quo.

Em primeiro lugar, a decisão tem apoio na inspecção judicial (fls. 234 a 236) e nas fotografias de fls. 237 e na de fls. 253. Com efeito, no auto foi assinalada a existência de uma passagem, no lado nascente do prédio dos réus, com 3 metros de largura, bem delimitada e marcada no solo, com início na estrada situada a norte dos prédios referidos em 1 e 2.

Não se ignora que a inspecção atesta a existência da passagem, no momento que o tribunal procedeu a tal diligência, mas o que é relevante para a decisão é a existência dela no tempo alegado pelas autoras. Sucede que a existência da passagem desde os tempos de P... (pai da autora A... e de N... , marido, já falecido da ré D... ) também tem apoio no depoimento da ré e nos das testemunhas.

As divergências entre os depoimentos respeitam apenas aos beneficiários de tal passagem. Enquanto a ré e o seu companheiro, a testemunha L... , disseram que tal passagem era usada apenas para acesso à casa que foi anteriormente de P... , e que é, agora, da ré; as restantes testemunhas afirmaram que a passagem era usada para aceder, primeiro, à casa de P... e à quinta envolvente, e, depois da partilha dos bens efectuada após a morte de P... , para aceder ao prédio que coube em sorte à autora (inscrito na matriz sob o artigo 475.) A existência da passagem resulta, no entanto, de todos os depoimentos. 

Mantém-se, pois, a decisão de julgar provada a matéria do ponto n.º 4.

Em segundo lugar, as recorrentes pretendem se julgue não provado que os prédios referidos em 1) e 2) eram um único prédio, à data referida em 3) – isto é, em 1975 - sendo que a passagem referida em 4) já existia nessa atura e permitia a passagem da estrada para o resto da propriedade e manteve a existência aquando da divisão do imóvel;

Esta afirmação compreende vários factos, a saber:

1. Que os prédios referidos em 1) e 2) – os prédios que hoje pertencem às autoras e às rés, inscritos na matriz sob os artigos, respectivamente, 475.º e 474.º - eram um único prédio, à data referida em 3);

2. Que a passagem referida em 4) já existia nessa altura [em 1975];

3. Que a passagem permitia a passagem da estrada para o resto da propriedade;

4. Que a passagem manteve a sua existência aquando da divisão do imóvel.

A decisão do tribunal a quo tem apoio na prova produzida.

Em primeiro lugar, há indícios credíveis colhidos em vários meios de prova de que os prédios referidos em 1) e 2) eram um único prédio à data referida em 3), ou seja, em 1975.

Tais indícios colhem-se, desde logo, nos documentos que os réus juntaram com a contestação sob o n.º 1 (fls. 94 e 95). Esses documentos compreendem declarações relativas à divisão de bens, por morte de P... , estando as partes de acordo que os prédios referidos em 1 e 2 são fruto da divisão mencionada em tais documentos.

Tais indícios colhem-se ainda no depoimento de G... , filho de P... (irmão da autora e do marido da 1.ª ré), que interveio na divisão dos bens. Resulta do seu depoimento que os prédios pertenciam a P... e faziam parte da quinta da Pimenta.

Em segundo lugar, resulta também dos depoimentos que a passagem referida já existia em 1975. Este facto foi, de resto, confirmado pela ré.

Em terceiro lugar, também se colhe no depoimento da ré e nos depoimentos das testemunhas que a passagem – no tempo em que os prédios pertenciam a P... e à mulher (chamada por algumas testemunhas como D. K... ) - permitia o acesso a toda a quinta. Aliás, não foi indicado qualquer outro caminho que permitisse o acesso a outros lugares da quinta.

Por último, que a passagem manteve a sua existência depois da divisão dos prédios, em 1975, é facto que não é sequer impugnado na contestação. Mas além de não ser impugnado, colhe-se também no depoimento da ré. Com efeito, reconheceu que a 1.ª autora passava a pé pela faixa de terreno em questão para ir visitar a mãe dela, autora, (falecida em 1987) e noutro passo do seu depoimento reconheceu como natural que a sua cunhada (a 1.ª autora) passasse pelo local pois, disse, a autora olhava pelos terrenos da ré, quando esta vivia em Lisboa (o que aconteceu segundo foi declarado pela 2.ª ré até 1982).

Em síntese: mantém-se a decisão de julgar provada a matéria descrita sob o n.º 5.

Em terceiro lugar, as recorrentes pretendem se julgue não provado que “as representantes da autora utilizavam a passagem referida em 4), a pé e de tractor para aceder ao prédio referido em 1), desde a data referida em 3), o que já faziam os seus ante possuidores, à vista de toda a gente, convictos de que exerciam um direito próprio, sem oposição de ninguém, até à data referida em 11)”.

Invocaram, para tanto, como se escreveu acima, o depoimento da ré e os depoimentos das testemunhas H... , I... , M... e L... .

Ouvidos os depoimentos, a conclusão a que se chega é a de que o único depoimento que contrariou a alegação das autoras, segundo a qual utilizavam a passagem, desde 1975, para acederem ao seu prédio, foi o da ré.

Com efeito, instada a dizer se a 1.ª autora e o marido (já falecido) passavam pela faixa de terreno em questão para acederem ao seu prédio, respondeu que não, acrescentando que eles tinham “o caminho deles”, que dava acesso a tudo, e que o caminho que ia para a casa (casa de habitação da ré) era só da casa e que sempre “foi assim toda a vida”. Noutro passo do seu depoimento voltou a dizer que a 1.ª autora e o marido não utilizavam a passagem, acrescentando que o marido dela (da ré) não deixava.

Quanto aos restantes, o sentido deles foi o seguinte.

L... , companheiro da ré, disse que nunca viu passar, pelo local em questão, as autoras, que “nunca deu conta” de que elas passassem pelo local, apesar de o conhecer há cerca de 40 anos.

Como se vê, a testemunha não nega a passagem. Diz que nunca deu conta de as autoras passarem pelo local em questão.

Os depoimentos de H... , I... , M..., bem como o de G... , já apontam em sentido diferente. As testemunhas foram convergentes na afirmação de que, depois da divisão dos prédios, a 1.ª autora e o marido continuaram a usar a faixa de terreno em litígio para acederem, a pé, de tractor e com camioneta, ao seu prédio sem oposição da ré e do seu marido ( N... ) e que só deixaram de o fazer depois de a ré D... ter colocado o portão e a rede.

Há boas razões para dar crédito a estes depoimentos.

Em primeiro lugar, todas elas disseram que viram a 1.ª autora e o marido a passar pelo local em questão e algumas delas afirmaram que passaram elas próprios, pelo local, ao serviço da 1.ª autora e do marido ( C... ).

H... (afilhado da 1.ª autora) contou que ia todos os anos à vindima [vindima de uma vinha plantada no prédio das autoras] e que o tractor ou a camioneta que carregava as uvas ia “lá acima” [à vinha], passando pela faixa de terreno em questão nos autos. Contou que, num ano, o falecido marido da ré, N... , autorizou que as camionetas encostassem a um muro para facilitar o carregamento das uvas.

I... contou que transportou por duas vezes, em anos diferentes, as uvas colhidas na vinha do prédio das autoras e que acedeu à vinha através da passagem em causa. Contou que, num dos anos, o falecido marido da ré até lhe permitiu encostar a camionete a um muro para ser mais fácil o descarregamento das uvas nas que as transportavam. Contou ainda que pastoreou os terrenos da autora – bem como os das rés - e que apercebia-se da passagem da autora com um tractor pelo local em questão para aceder ao seu terreno.

M... disse que os seus pais trabalharam na quinta, no tempo em que ela ainda não tinha sido dividida (isto é, no tempo dos pais da autora A... e do falecido marido da ré D... ), que foi criada perto da quinta, que saiu de lá com 16 ou 17 anos, e que já nessa altura a passagem para os “batoréis” [batoréus ou botaréus] que hoje ficam no prédio das autoras se fazia pelo local em litígio. Mais disse que, depois da divisão, a 1.ª autora continuou a passar pelo local em litígio para levar estrume e para lavrar o seu prédio.

Por fim, G... , irmão da autora e do marido da ré ( N... ) – interveniente no acordo de divisão dos prédios como o atesta o documento junto fls. 94 e 95 - disse que, quando procederam à divisão, logo ficou acordado que a faixa de terreno em questão servia para aceder ao prédio da 1.ª autora e do marido e ao prédio dos réus. Disse ainda que a passagem fez-se sem qualquer oposição, desde 1975, até à morte de N... em 2000.

Apesar de algumas das testemunhas terem uma relação próxima com as autoras - casos de G... (irmão da autora A... e tio de B... ), de H... e M... - e de G... ter manifestado hostilidade em relação à ré, D... , este tribunal não encontrou razões para pôr em causa a veracidade dos seus depoimentos, na parte em que deram conta de actos de passagem das autoras pelo local em questão para acederem ao seu prédio.

De resto, mesmo que desconsiderássemos estes depoimentos pelas razões apontadas, ainda assim a nossa convicção não se alteraria. E não se alteraria porque o testemunho de I... confirmou a veracidade da alegação das autoras sobre a questão da passagem pelo local em litígio. Tratou-se de um testemunho, que pela forma como foi prestado e pela razão de ciência que invocou, nos mereceu inteiro crédito.

Quanto ao depoimento da ré – que está sujeito à livre apreciação do julgador – não lhe atribuímos qualquer valor, dado o seu interesse na causa. Mas não só por esta razão. A “tese” da ré de que as autoras não passavam pela faixa de terreno em questão porque “tinham o caminho do lado deles que dava acesso a tudo”, não nos convenceu.

É um facto – observado pelo tribunal a quo aquando da inspecção ao local - que o prédio das autoras tem, do seu lado norte, uma entrada própria com 4,95 de largura, que permite o acesso ao prédio a partir da estrada - e é um facto – também ele observado aquando da inspecção ao local – que existe, no lado nascente do prédio das autoras, um caminho que percorre o prédio em toda a sua extensão e que permite o acesso aos vários socalcos que o compõem (algumas testemunhas e os Em.ºs advogados refiram-se aos socalcos também como “batoréis” e “arretos”).

Sucede que a realidade verificada pela inspecção judicial não existia aquando das partilhas, em 1975. A entrada e o caminho foram abertos depois das partilhas. É o que resulta do depoimento de G... , não tendo este tribunal quaisquer razões para pôr em causa a veracidade do que disse a testemunha a este propósito.

Assim, se nem a entrada nem o caminho existiam quando das partilhas, por algum local haviam de passar a 1.ª autora e o seu falecido marido para acederem ao prédio que lhes coube, a partir da estrada pública. Se além do local que está em discussão, mais nenhum foi referido [e mais nenhum foi referido quer pelas rés na contestação, quer por quem prestou depoimento na audiência], merece crédito o depoimento de G... quando disse que, aquando das partilhas, ficou combinada que a 1.ª autora e o marido passariam, para aceder ao seu prédio, pelo local em litígio, e que tal combinação foi posta em prática.

Como merece crédito o depoimento da mesma testemunha – e os depoimentos de H... , I... e M... - quando disseram que a passagem se fez sem qualquer oposição enquanto foi vivo o marido da 1.ª ré.

Pense-se no seguinte: as acções de passagem relatadas pelas testemunhas – passagem de tractores e camionetas com uvas, passagens de tractor co estrume – não são do género de serem praticadas às ocultas, ou pela calada da noite. Foram praticadas à luz do dia e, com toda a probabilidade, do conhecimento da 1.ª ré e do seu falecido marido. Ora, nem a ré, nem o seu companheiro, a testemunha L... , trouxeram ao conhecimento do tribunal um único episódio ocorrido em vida do marido da 1.ª ré ( N... ) em que este se tivesse oposto à passagem da irmã (1.ª autora) e do cunhado ( C... ) pelo local em questão. O que há é o relato de um episódio que aponta em sentido oposto: o falecido marido da 1.ª ré autorizou que a camionete que transportava as tinas para recolher as uvas cortadas encostasse a um muro (presume-se que a um muro a ele pertencente) para facilitar a tarefa de carregamento das uvas. Daí que não tenha merecido crédito ao tribunal a afirmação da ré de que as autoras não utilizavam a passagem para o terreno delas porque o marido dela (ré) não deixava.

Pelo exposto, mantém-se a decisão de julgar provada a matéria descrita no ponto n.º 6.

Por último, as recorrentes pretendem que se julgue não provado que os factos referidos em 11) e 12) – estes factos consistem no seguinte: na colocação de pilares em cimento, com rede e colocação de um portão em ferro - impedem a autora de aceder ao prédio referido em 1) pela passagem referida em 4).

A pretensão das recorrentes não tem qualquer apoio na prova produzida.

Colhe-se nos depoimentos de G... , de H... , de I... e de M... e no auto de inspecção [designadamente na parte em que procede à descrição da passagem, e na parte que menciona que o prédios das autoras e o dos réus estão separados por um muro em pedra e pilares em cimento com rede de 1,50 metros de altura, a todo o comprimento da passagem] que, com a colocação do muro e da rede de vedação, as autoras deixaram de poder aceder ao seu prédio através da mencionada passagem.

De resto, a convicção deste tribunal é a de que o objectivo da ré D... , com a colocação do portão e da rede, foi o de impedir a utilização a passagem pelas autoras. Com efeito, apesar de L... (companheiro da 1.ª ré) – que disse ter sido dele a ideia de fazer a vedação – ter justificado a colocação do portão e da rede com a alegação de haver “tanta malandragem”, esta não foi a verdadeira razão. Se tivesse sido, a 1.ª ré teria permitido que as autoras continuassem a aceder ao seu prédio, pela passagem, como o faziam anteriormente, o que não sucedeu. 

Mantém-se, pois, a decisão de julgar provada a matéria do ponto n.º 13.


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na sentença:

1. O prédio rústico sito no Lugar de Pimenta, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 475º da freguesia de Belmonte, encontra-se inscrito a favor da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C... , aqui representada pelas suas herdeiras, A... e B... e confronta do lado norte com a estrada; do lado sul com a linha férrea da Beira Baixa; do lado nascente com a autora B... e do lado poente com o prédio dos réus identificado em 2), mais precisamente com a passagem referida em 4).

2. O prédio rústico sito no Lugar de Pimenta, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 474º da freguesia de Belmonte, encontra-se inscrito a favor dos réus D... e E... e confronta do lado norte com a estrada, do lado sul com a linha férrea da Beira Baixa, do lado nascente com o prédio referido em 1) e do lado poente com herdeiros de P... .

3. Os prédios referidos em 1) e 2) integravam a herança aberta por óbito de P... , tendo sido efectuada partilha dos mesmos em 1975.

4. O prédio referido em 2) tem uma passagem, do seu lado nascente, com cerca de três metros de largura, bem delimitada e demarcada no solo, com início na estrada (via pública) situada a norte dos prédios referidos em 1) e 2).

5. Os prédios referidos em 1) e 2) eram um único prédio, à data referida em 3), sendo que a passagem referida em 4) já existia nessa altura e permitia a passagem da estrada para o resto da propriedade e manteve existência aquando da divisão do imóvel.

6. As representantes da autora utilizavam a passagem referida em 4), a pé e de tractor, para aceder ao prédio referido em 1), desde a data referida em 3), o que já faziam os seus ante possuidores, à vista de toda a gente, convictos de que exerciam um direito próprio, sem oposição de ninguém, até à data referida em 11).

7. A água de um poço é conduzida para os prédios referidos em 1) e 2) por uma conduta que atravessa o prédio referido em 2), na passagem referida em 4) numa extensão de 16,90m e, após, desvia para o prédio referido em 1), por onde continua, junto ao muro referido em 9) existindo ao longo de toda a conduta ramificações para ambos os prédios.

8. O prédio referido em 1) é constituído parcialmente por socalcos de cerca de 1,5 m a 2m de altura e tem uma presa e uma mina.

9. O prédio referido em 1) é separado do prédio referido em 2), do lado poente daquele e nascente deste, por um muro em pedra.

10.Os prédios referidos em 1) e 2) encontram-se vedados com muro de pedra, do seu lado norte, que os separa da estrada (via pública).

11.Em Agosto de 2006 os réus colocaram pilares em cimento, com rede de 1,50m de altura, a todo o comprimento da passagem referida em 4).

12.Os réus colocaram um portão em ferro no acesso da estrada situada a norte do prédio referido em 2) para a passagem referida em 4).

13.Os factos referidos em 11) e 12) impedem a autora de aceder ao prédio referido em 1), pela passagem referida em 4).

14.O prédio referido em 1), do seu lado norte, tem acesso directo à via pública através de uma entrada com 4,95m de largura e do seu lado nascente tem um caminho no interior do prédio que percorre o prédio em toda a sua extensão e que permite o acesso aos socalcos.


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Descritos os factos, passemos à apreciação das restantes questões suscitadas pelo recurso.

Estaria naturalmente indicado começar pela questão da nulidade da sentença.

Importa, no entanto, dizer desde já, que duas das pretensões formuladas pelos recorrentes não são admissíveis, nem têm razão de ser. Referimo-nos à pretensão no sentido de se declarar que o prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º não confronta com o prédio dos réus é inadmissível e à pretensão no sentido de se excluir qualquer decisão no que respeita à servidão quanto a tal prédio também não tem razão de ser.

Vejamos.

Os réus, ora recorrentes, além de pedirem a improcedência da acção, requereram a condenação das autoras como litigantes de má-fé. Até ao encerramento da discussão em 1.ª instância não deduziram qualquer outro pedido.

Deste modo, o pedido, em sede de recurso, no sentido de ser declarado que o prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º não confrontava com o prédio inscrito na matriz sob o artigo 474.º [pedido típico de uma acção de simples apreciação negativa – artigo 10.º, n.º 2, e n.º 3, alínea a), 2.ª parte, do CPC], configura um pedido novo, deduzido pela 1.ª vez em sede de apelação.

Resulta, no entanto, do artigo 264.º do CPC, que, em 2.ª instância, a formulação de novo pedido é admissível se houver acordo das partes, condição que não está verificada no caso.

Mas além de inadmissível, o pedido não tem razão de ser depois de as autoras terem desistido quer do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz sob o artigo 472, quer do pedido de reconhecimento a favor deste prédio da servidão de passagem.  

Assim, não se conhece da mencionada pretensão.

Quanto à pretensão dos recorrentes no sentido de o prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º ser excluído da decisão quanto à servidão, trata-se de pretensão que também não tem razão de ser.

Ao deduzirem-na, os recorrentes agem como se a decisão recorrida tivesse reconhecido que o prédio dos réus (inscrito na matriz sob o artigo 474.º) estava onerado com servidão de passagem em proveito do prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º.

Laboram, no entanto, em pressuposto errado. Com efeito:

1. Os autores desistiram do pedido no sentido de ser reconhecida a servidão a favor do prédio inscrito na matriz sob o n.º 472;

2. A desistência do pedido foi admitida;

3. A sentença não se pronunciou sobre a servidão em proveito do prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º.

Resulta do exposto que os recorrentes pedem se exclua da sentença uma decisão que dela não consta. Daí que este pedido não tenha razão de ser.


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Nulidade da sentença

Os recorrentes acusam a sentença, em vários passos da sua alegação, de ser nula. Assim:

1. Acusam-na de ser nula com a alegação de que é “extemporânea e inadmissível, atenta a decisão do tribunal da Relação”;

2. Acusam-na de ser nula com a alegação de que ela não se pronunciar sobre a totalidade do pedido, concretamente no que diz respeito ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 472.º;

3. Acusam a sentença de ser nula – nos termos da alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – com a alegação de que ela não analisou criticamente as provas para declarar quais os factos que julgava provados e não provados, concretamente não considerou os documentos constantes do processo, designadamente os números 1 e 2 juntos pelos réus, em sintonia e harmonia com os depoimentos prestados e transcritos pela ré e pelas testemunhas.   

Comecemos por apreciar a alegação de que a sentença é nula “por extemporânea e inadmissível, atenta a decisão do tribunal da Relação”.

Segundo os recorrentes, não cabia ao tribunal a quo proferir nova sentença, uma vez que a anterior não foi declarada nula pelo acórdão do tribunal da Relação, nem determinou a repetição da totalidade do julgamento. Cabia-lhe apenas pronunciar-se sobre a matéria de facto indicada pela Relação para, com base nela, se aquilatar da legalidade da decisão proferida em 5 de Março de 2014. Ainda segundo os recorrentes, o tribunal a quo não se pronunciou sobre as questões de facto indicadas pela Relação.

Sobre este fundamento do recurso cabe dizer o seguinte.

É exacto que o acórdão da Relação proferido em 14 de Outubro de 2014 não determinou a repetição integral do julgamento. A Relação anulou a decisão proferida sobre os artigos 10.º e 16.º da petição e sobre os artigos 21.º, 23.º e 26.º da contestação e determinou a repetição do julgamento quanto a estas questões de facto, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto com o fim de evitar contradições.

Já não é exacto que o tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre as mencionadas questões.

Tais questões diziam respeito à localização do caminho por onde se exercia o direito de servidão, às confrontações dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 474.º e 472.º e à localização do prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º.

O tribunal a quo pronunciou-se sobre elas, com clareza e sem contradições. Vejamos.

Sobre a localização da passagem, julgou provado sob o n.º 4: “o prédio referido em 2) – prédio dos réus inscrito na matriz sob o artigo 474.º - tem uma passagem, do seu lado nascente, com cerca de 3 metros de largura, bem delimitada e demarcada no solo, com início na estrada (via pública), situada a norte dos prédios referidos em 1) e 2)”.

Sobre as confrontações dos prédios, julgou provado que o prédio dos autores (inscrito na matriz sob o artigo 475.º - o único que conta) - confronta do lado norte com estrada, do lado sul com via-férrea, do lado nascente com a autora e do lado poente com o prédio dos réus, mais precisamente com a passagem referida no ponto n.º 4.

Sobre as confrontações do prédio dos réus (inscrito na matriz sob o artigo 474.º) julgou provado que confrontava do lado norte com a estrada, do lado sul com a linha férrea da Beira Baixa, do lado nascente com o prédio das autoras inscrito na matriz sob o artigo 475.º e do lado poente com herdeiros de P... .

Só não se pronunciou sobre as confrontações e localização do prédio inscrito na matriz sob o artigo 472.º, em virtude de as autoras terem desistido dos pedidos na parte em que respeitavam a tal prédio.

O tribunal a quo pronunciou-se, assim, sobre todas as questões de facto que motivaram a anulação da decisão proferida em 5 de Março de 2014.

Além disso, dentro do que lhe era consentido pela alínea b), do n.º 3 do artigo 662.º do CPC, introduziu alterações na matéria de facto para evitar contradições, designadamente naquela matéria onde estavam em causa as confrontações dos prédios e a localização da faixa de terreno por onde se exerce a passagem.

É exacto que o tribunal a quo pronunciou-se também sobre matéria em relação à qual não fora suscitada nenhuma questão e, ao discriminar os factos julgados provados, não incluiu neles alguns dos que tinham sido considerados assentes pela decisão anulada.

Esta nova organização da matéria de facto - norteada pela preocupação de incluir os factos essenciais para a decisão da causa - não trouxe, no entanto, qualquer prejuízo para aos réus, ora recorrentes. Os mesmos não estavam impedidos de invocar, neste recurso, os factos já julgados provados pela anterior decisão (decisão anulada), em relação aos quais não se justificava qualquer alteração.

Ainda sobre o fundamento de recurso ora em apreciação, cabe dizer que não é exacto que o acórdão da Relação não tenha anulado a decisão proferida em 1.ª instância, nem é exacto que fosse dever do tribunal a quo pronunciar-se sobre as questões de facto e remeter tal pronúncia ao tribunal da Relação para este se pronunciar sobre a decisão proferida em 5 de Março de 2014.

A sentença proferida em 5 de Março de 2014 foi anulada pelo tribunal da Relação ao abrigo do disposto na alínea c), do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, na parte em que permite “anular a decisão proferida em 1.ª instância … quando repute obscura ou contraditória a decisão proferida sobre a matéria de facto”.

O procedimento a seguir à anulação da decisão é o seguinte por aplicação combinada da alínea b), do n.º 3 do artigo 662.º, do n.º 2 do artigo 195.º; da alínea e), do n.º 3 do artigo 604.º; e do n.º 1 do artigo 607.º, todos do CPC:

1. Repetição da prova na parte em que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

2. Alegações orais;

3. Nova sentença.

Salvo o devido respeito, não tem o mais leve amparo na alínea c), do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, nem na alínea b), do n.º 3 do mesmo preceito, o entendimento das recorrentes de que o cumprimento do acórdão da Relação passaria apenas pela repetição da prova; por nova decisão sobre os pontos de facto contraditórios ou obscuros e pela remessa ao tribunal da Relação de tal nova decisão de facto para, com base nela, ser aferida a legalidade da decisão proferida em 5 de Março de 2014.

Apreciemos, de seguida, a acusação de que a sentença não se pronunciou sobre a totalidade do pedido, concretamente sobre os pedidos em relação ao prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 472.º.

É exacto que o tribunal a quo não se pronunciou sobre estes pedidos. Porém, esta omissão não fez incorrer a sentença na nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. É que resulta deste preceito que a omissão de pronúncia só constitui causa de nulidade da sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. A nulidade em causa sanciona o incumprimento do dever prescrito pela 1.ª parte do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.

Sucede que, no caso, a Meritíssima juíza do tribunal a quo não tinha o dever de apreciar tais pedidos. E não tinha porque as autoras haviam desistido deles na audiência final e tal desistência, tendo sido considerada válida pelo tribunal a quo, prejudicou a apreciação dos citados pedidos.

Apreciemos, por fim, a acusação de que a sentença é nula, nos termos da alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

Esta acusação assenta na alegação de que a sentença violou o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, na parte em que ele impõe ao juiz o dever de analisar criticamente as provar para declarar quais os factos que julga provados e os que julga não provados. E violou tal preceito – segundo os recorrentes - porquanto o tribunal a quo não considerou os documentos constantes do processo, principalmente os n.ºs 1 e 2 juntos pelos réus, em sintonia e harmonia crítica com os depoimentos prestados e transcritos pela ré e testemunhas.

Esta alegação não procede contra a sentença.

A sentença é nula, nos termos do preceito acima indicado quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

A “decisão” cuja falta de fundamentação é tida em vista é a “decisão final” a que se refere a parte final do n.º 3 do artigo 607.º do CPC, ou a decisão contida na parte dispositiva da sentença, a que se refere o n.º 2 do artigo 635.º do CPC.

Fora do alcance da norma está a decisão relativa à matéria de facto, prevista no n.º 4 do artigo 607.º do CPC. Os vícios de tal decisão, quando consistirem na falta de fundamentação ou na fundamentação indevida (de que é exemplo a falta de exame crítico das provas, prescrito pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC), estão previstos na alínea d), do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.

O remédio processual que a lei prescreve para tais vícios é o seguinte: se a falta de fundamentação ou fundamentação indevida disser respeito a algum facto essencial para o julgamento da causa, a Relação pode determinar, oficiosamente ou mediante requerimento da parte, a fundamentação da decisão, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

Assim, sem necessidade de entrar na questão de saber se o tribunal a quo procedeu à análise crítica das provas indicadas pelos recorrentes, pode afirmar-se que tal falta de análise não causa a nulidade de que é acusada a sentença. 


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Apreciemos, por último, a questão de saber se não estão preenchidos os pressupostos para o reconhecimento de uma servidão de passagem e se a decisão recorrida, ao reconhecê-la, violou os artigos 1287.º, 1549.º, 1550.º, 1553.º e 1565.º, todos do Código Civil.

Considerando que o que constitui objecto de recurso é a decisão recorrida e não a questão por ela resolvida [n.º 1 do artigo 627.º do CPC], importa recordar que a sentença impugnada reconheceu que o prédio dos réus [inscrito na matriz sob o artigo 474.º] estava onerado com uma servidão de passagem em proveito do prédio inscrito na matriz sob o artigo 475.º, pertencente às autoras. Servidão que, segundo a sentença, se constitui por destinação do pai de família ou, se assim se não entendesse, por usucapião. Servidão – ainda segundo a sentença – que onerava o prédio dos réus, do seu lado nascente, com 3 metros de largura, desde a estrada a norte e a todo o comprimento do prédio dos réus.

Os recorrentes desferem várias críticas à decisão, tanto ao segmento que julgou reconhecida a servidão como ao que definiu o seu modo de exercício ou a extensão.

Comecemos pelas críticas à decisão de julgar reconhecida a existência da servidão.

Segundo os recorrentes não foi constituída nenhuma servidão por acordo, aquando da partilha, como o comprovavam os documentos 1 e 2 juntos pelos réus com a contestação (fls. 94 a 101), nem foi constituída por usucapião ou destinação do pai de família, como o comprovavam as declarações de ré D... , os depoimentos de H... , I... e L... e o que constava do auto de inspecção, designadamente na parte em que se consignou que os prédios das autoras e dos réus eram separados por muro de pedra, sem qualquer referência ou indicação a um único acesso para o prédio das autoras pelo prédio dos réus.

Ao alegarem neste sentido, as recorrentes argumentam como se a decisão sob recurso tivesse reconhecido que a servidão de passagem havia sido constituída por acordo entre os interessados (os proprietários do prédio dominante e os proprietários do prédio serviente).

Sucede que tal argumento não é pertinente, pois, conforme escrevemos acima, a sentença entendeu que a servidão de passagem constituiu-se por destinação de pai de família ou, se assim se não entendesse, por usucapião.

Contra a sentença também não vale a alegação de que as declarações de ré D... , os depoimentos de H... , I... e L... e o auto de inspecção provavam que a servidão de passagem não havia sido constituída nem por destinação do pai de família, nem por usucapião.

Vejamos.

A questão de saber se um prédio está onerado com uma servidão de passagem é questão cuja resolução envolve pressupostos de facto e de direito. A ré e as testemunhas são inquiridas sobre factos (n.º 1 do artigo 466.º do CPC e n.º 1 do artigo 516.º do mesmo diploma); o auto de inspecção pode conter o registo de elementos úteis para o exame e decisão da causa (artigo 493.º do Código de Processo Civil). Assim sendo, as declarações da ré, os depoimentos das testemunhas e a inspecção ao local, enquanto meios de prova, concorrem para a definição dos pressupostos de facto. Não lhes cabe, no entanto, dizer se a servidão existe. Socorrendo-nos das palavras de Michel Taruffo (Narrativas processuais, Julgar, Janeiro – Abril de 2011, páginas 120 e 121), “os enunciados relativos aos aspectos jurídicos da controvérsia podem ser objecto de escolha, de interpretação, de argumentação e de justificação, mas não podem ser provados”. Era, pois, ao tribunal que cabia dizer, aplicando a lei aos factos provados, se a servidão de passagem existia e qual ou quais os factos constitutivos da mesma [n.º 3 do artigo 607.º do CPC].

Ainda contra o segmento da decisão que julgou reconhecida a existência da servidão, alegaram os recorrentes, invocando o disposto nos artigos 1550.º e 1553.º do Código Civil, que só para os prédios encravados se podia exigir a constituição de servidão de passagem, a qual não sendo constituída por via judicial, contrato ou destinação do pai de família, podia sê-lo por usucapião. Porém, ainda segundo os recorrentes, no caso não era aplicável o instituto da usucapião porque o prédio das autoras tinha acesso à via pública. 

Esta alegação seria pertinente, como fundamento do recurso, se a presente acção tivesse por fim a constituição de uma servidão de passagem, sobre o prédio dos réus, com fundamento no disposto no artigo 1550.º do CC (servidão em benefício de prédio encravado).

Sucede que esta condição não está verificada: a presente acção não teve por fim a constituição de servidão de passagem com tal fundamento; teve por fim o reconhecimento da existência de servidão de passagem, constituída por usucapião e por destinação do pai de família.

Considerando as espécies de acções, consoante o seu fim [artigo 10.º, n.º 2 e n.º 3], a presente acção é uma acção de condenação e não uma acção constitutiva, como seria a acção se tivesse por fim a constituição de servidão em benefício de prédio encravado.

Ainda contra o segmento da decisão que julgou reconhecida a existência da servidão, agora na parte em que a julgou constituída por usucapião, alegaram os recorrentes que era impossível haver convicção, para invocar a usucapião, quando os prédios tinham acesso à via pública e quando não havia local definido para acesso ao prédio das autoras, pois seria esse local que criaria a existência do direito; que a convicção do exercício do direito de passagem sobre prédio de terceiro exigia que o prédio dominante fosse encravado, o que não era o caso do prédio das autoras, que tinham acesso à via pública; que a eventual passagem pelo prédio dos réus para as vindimas foi por gentileza de N... , conforme resultava dos depoimentos de I... , M... e L... .

Esta alegação crítica compreende argumentos de facto e de direito.

Nenhum deles procede contra a sentença.

Em primeiro lugar, não procede o argumento – que é de facto - de que a eventual passagem das autoras pelo prédio dos réus foi por gentileza de N... (marido, já falecido, da 1.ª ré). Não procede porque não está provado tal facto. Observe-se que, ao alegarem neste sentido, os recorrentes entram em contradição com o que afirmaram na contestação. Nesta peça processual, negaram que as autoras tenham passado, alguma vez, com ou sem gentiliza, pelo prédio delas, rés. A sua posição na defesa foi a seguinte: “nunca passaram pelo prédio do interessado N... (artigo 43.º da contestação).

Em segundo lugar, não tem amparo na lei a alegação de que era impossível haver “animus”, convicção de exercer um direito de passagem, por banda de proprietários, cujos prédios tivessem acesso à via pública. Vejamos.

Ao alegarem neste sentido, os recorrentes argumentam como se a lei não admitisse a aquisição, por usucapião, de servidões prediais em benefício de prédios que tenham comunicação com a via pública.

Este argumento não tem amparo nem na noção de servidão predial (artigo 1543.º do Código Civil), nem nos princípios gerais relativos à constituição das servidões (artigo 1547.º do Código Civil), nem na norma do artigo 1548.º do Código Civil, relativa à constituição das servidões por usucapião, nem na noção de usucapião (artigo 1287.º do Código Civil) nem nas disposições sobre direitos que não podem ser adquiridos por usucapião (artigo 1293.º do Código Civil).

Resulta destas normas que as servidões prediais podem ser constituídas por usucapião, tanto em proveito de prédios encravados como em benefício de prédios com comunicação com a via pública. Apenas estão excluídas da aquisição por usucapião as servidões não aparentes. É o que afirmam a alínea a) do artigo 1293.º e o n.º 1 do artigo 1548.º, ambos do Código Civil).

Em terceiro lugar, a questão de saber se a passagem por um prédio alheio (caminho) foi exercida com a intenção, com o animus, de exercer um direito real de servidão de passagem é uma questão de facto. E, socorrendo-nos das palavras de Orlando de Carvalho [Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 122, página 105], “… a intenção de domínio em sentido amplo não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização (lato sensu)”.

No caso, os recorrentes impugnaram a decisão de julgar provado que as representantes da autora utilizavam a passagem “convictos de que exerciam um direito próprio”, mas tal impugnação foi julgada improcedente.     

Passemos, agora, à apreciação das críticas que visam o segmento da sentença que definiu o modo de exercício e a extensão da servidão.

Os recorrentes contestam este segmento com a alegação de que a servidão reconhecida não ficou definida quanto ao local de acesso ao prédio das autoras e que tal acesso tinha de ser definido; que a servidão não podia ser reconhecida em toda a extensão da confrontação do prédio; que a servidão de passagem, a ser reconhecida, teria de ter um único acesso e deveria sê-lo no local contíguo à via pública por forma a causar um menor prejuízo para o prédio dos réus.

Pelas razões a seguir expostas, este fundamento do recurso também é de julgar improcedente.

A servidão predial é definida no artigo 1543.º do Código Civil como o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.  

Socorrendo-nos das palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 1543.º do Código Civil [Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, página 615] “a servidão incide em princípio sobre o prédio considerado como um todo (…), havendo muitas vezes que distinguir entre o objecto da servidão, que é o prédio, e o local do exercício dela, que pode ser uma parte limitada do prédio. Sempre que se verifique esta última hipótese (vide, por exemplo, o art. 1546.º e o n.º 4 do art. 1567.), tudo se passa como se a servidão incidisse apenas sobre a parte do prédio sujeita ao seu exercício”.

No caso, a servidão onera o prédio dos réus, mas incide apenas sobre uma parte dele: a parte constituída pela faixa de terreno, situada do seu lado nascente, com cerca de 3 metros de largura, bem delimitada e marcada no solo, com início na estrada situada a norte dos prédios em causa nos autos.

A faixa de terreno em questão (a “passagem”) tem a seguinte particularidade: confronta, em toda a sua extensão, com o prédio das autoras.  

Visto que a sentença reconheceu que o prédio dos réus se encontrava onerado com a servidão de passagem, do seu lado nascente, com 3 metros de largura, desde a estrada a todo o comprimento do prédio, em benefício do prédio das autoras, tal significa que “toda a passagem”, na parte em que confronta com o prédio das autoras, está sujeita à servidão e que estas podem aceder ao seu prédio a partir de qualquer ponto de tal passagem.  

Não vale, assim, contra a sentença a alegação de que o acesso não está definido. Ele está definido: segundo os termos da sentença, qualquer ponto da passagem é ponto de entrada no prédio das autoras.

Objectam as recorrentes: a servidão não podia ser reconhecida em toda a extensão da confrontação do prédio; a servidão de passagem, a ser reconhecida, teria de ter num único acesso e deveria sê-lo no local contíguo à via pública por forma a causar um menor prejuízo para o prédio dos réus.

Salvo o devido respeito, não lhes assiste razão.

Segundo o artigo 1564.º do Código Civil, as servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título; na insuficiência do título observar-se-á o que disposto nos artigos seguintes.

Uma vez que a sentença reconheceu que a servidão havia sido constituída por destinação do pai de família ou, se assim, se não entendessem, por usucapião, cabe indagar se a decisão recorrida, na parte em que reconheceu a servidão de passagem sobre a faixa de terreno em questão, desde a estrada a todo o comprimento do prédio, tem amparo em tais títulos.

A resposta é afirmativa, pois provou-se:

1. Que o prédio das autoras e o dos réus eram um único prédio, à data em que foi dividido, e que “a passagem” já existia na altura em que o prédio pertencia a um só proprietário e permitia a passagem da estrada para o resto da propriedade e que a passagem manteve-se aquando da divisão do imóvel;

2. Que as autoras utilizavam a passagem a pé e de tractor para acederem ao seu prédio, desde a divisão, à vista de toda a gente, convictos de que exerciam um direito próprio, sem oposição de ninguém, até Agosto de 2006.

Desta matéria, que suportou o reconhecimento da servidão de passagem, não resulta qualquer restrição ao uso da passagem, pelas autoras, para acederem ao seu prédio.

Sobre a alegação dos recorrentes de que a ser reconhecida a servidão, devia sê-lo por forma a causar um menor prejuízo para o prédio dos réus, cabe dizer o seguinte.

É certo que, segundo o n.º 2 do artigo 1565.º do Código Civil, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício das servidões, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e com o menor prejuízo para o prédio serviente.

Os réus não estão, no entanto, em condições de se prevalecer desta norma, pois ela é aplicável, como resulta da sua conjugação com o artigo 1564.º, quando o título for insuficiente para regular a extensão e o exercício da servidão, o que não sucede no caso.

Por outro lado, ao caso também não é aplicável a norma do artigo 1553.º do Código Civil, cujos termos são os seguintes: “a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram o menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados”.

É que esta norma regula a constituição de servidão em benefício de prédio encravado, o que não é o caso dos autos.

Questão diferente – e que os recorrentes também suscitam na crítica que apreciaremos de seguida - é a de saber se o exercício da servidão por qualquer ponto da passagem não configura abuso de direito.

Vejamos.

Os recorrentes contestam também a decisão na parte em que ela os condenou a retirarem os pilares em cimento e a rede, com a seguinte alegação:

1. Que não havia fundamento para tal condenação porque a rede não prejudica os autores e os réus têm o direito de vedarem o seu prédio para sua protecção e segurança, sendo certo que, no prédio tem casa de residência;

2. Que a remoção da rede apenas deveria ser feita no local que seja reconhecido como local de acesso ao prédio dominante, o que não foi indicado;

3. Que a remoção do muro de pedra e da rede em toda a extensão viola o artigo 1356.º do Código Civil;

4. Que não sendo definido o local de acesso era manifesto o abuso de direito obrigar a retirar a rede de vedação/protecção em toda a extensão, que em nada prejudicava o eventual exercício do direito.

Pese embora o respeito que nos merece, esta alegação não procede contra a sentença.

Em primeiro lugar, não procede o argumento que a vedação não prejudica as autoras. Visto que está provado que a vedação impede as autoras de acederem ao seu prédio através da passagem, a conclusão a retirar deste facto é da que a vedação é prejudicial porque impede o exercício da servidão de passagem.

Em segundo lugar, não procede contra a sentença a alegação de que os réus têm o direito de vedarem o seu prédio para sua protecção e segurança, uma vez que têm, no prédio, a casa de residência.

É exacto que o artigo 1356.º do Código Civil reconhece ao proprietário direito de vedar o seu prédio. Mas também é exacto que o exercício deste direito, como o exercício dos restantes direitos que a lei reconhece ao proprietário, deve fazer-se dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas [artigo 1305.º do Código Civil]. Ora, se a lei reconhece que um prédio pode estar onerado com uma servidão de passagem em proveito de outro prédio, é dever do proprietário do prédio serviente respeitar o exercício de tal direito. A pretensão dos recorrentes de manterem a vedação, de forma a impedirem o exercício da servidão de passagem pelas autoras, não tem amparo no artigo 1356.º do Código Civil.

Por último, não procede contra a sentença a alegação de que a remoção da rede apenas deveria ser feita no local que seja reconhecido como local de acesso ao prédio dominante e que era manifesto o abuso de direito obrigar a retirar a rede de vedação/protecção em toda a extensão, que em nada prejudicava o eventual exercício do direito.

Como já se escreveu, não é exacto que a vedação não prejudique em nada o exercício do direito de servidão.

Quanto à alegação de que a pretensão de remoção da totalidade da rede é abusiva, a mesma não tem amparo nos factos provados.

Vejamos.

No caso, não é de afastar a hipótese de não ser necessária a remoção da rede em toda a extensão da “passagem” para as autoras exercerem o direito de servidão. Por outras palavras, não se afasta a hipótese de a “ passagem” não ser necessária em toda a extensão ou em todos os seus pontos para as autoras acederem ao seu prédio, como não se afasta a hipótese de exceder os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do direito de servidão, a pretensão das autoras no sentido de manterem livre de vedação a passagem em toda a sua extensão.  

Sucede o seguinte. O tribunal não tem elementos de facto para concluir neste sentido. Apesar de o abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil) ser questão de conhecimento oficioso, a verdade é que a afirmação do abuso pressupõe sempre a prova dos factos que o traduzam, ou seja, dos factos que mostrem que o titular do direito excedeu manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito, pois resulta do n.º 3 do artigo 607.º do CPC – aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC – que a decisão de direito aplica-se apenas aos factos julgados provados.

Ora, os réus, interessados na procedência da excepção do abuso do direito, tiveram oportunidade de alegar factos de onde resultasse que o exercício da servidão, tal como era pretendido pelas autoras, era manifestamente excessivo. Não o fizeram. A sua defesa consistiu na negação pura e simples da existência da servidão.

Em resumo: ao reconhecer a servidão de passagem, a decisão recorrida não violou nenhuma das normas indicadas pelos recorrentes.

Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Condenam-se os recorrentes nas custas do recurso.

Relator:

Emidio Francisco Santos

Adjuntos:

1º - Catarina Gonçalves

2º - António Magalhães