Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
122/09.2TTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
LEI APLICÁVEL
Data do Acordão: 02/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE COIMBRA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ABSOLVIÇÃO DO PEDIDO
Legislação Nacional: ARTº 6º, NºS 1, 2 E 3 DO CÓDIGO DE TRABALHO DE 2003
Sumário: I – Dispõe o artº 6º/1 do CT/2003, que o contrato de trabalho se rege pela lei escolhida pelas partes (critério da vontade das partes); o seu nº 2 estatui que na falta de escolha de lei aplicável, o contrato de trabalho é regulado pela lei do Estado com o qual apresente uma conexão mais estreita (critério da conexão mais estreita).

II – Sendo a lei de Moçambique a aplicável ao contrato de trabalho há que levar em conta o disposto na Lei Moçambicana nº 23/2007, de 1/08.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. A..., Engenheiro Civil, com residência na ..., Penacova, intentou a presente acção com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra B..., LDA, com sede na ..., Batalha, e com escritório e estaleiro em ..., Condeixa-a-Velha, pedindo que:

a) Seja declarada a nulidade do seu despedimento, por ilícito, dada a ausência de um Processo Disciplinar, decretando-se que subsiste o vínculo laboral e condenando-se a Ré a reintegrá-lo, no seu posto e local de trabalho, com a categoria e retribuição que teria se não tivesse sido despedido, isto sem prejuízo de optar em sua substituição e até à data da sentença pela indemnização prevista no nº 1 alínea a) do artigo 436° e nº 2, alínea a) do art. 440 do Código do Trabalho, com o valor global de € 60 045,61, acrescida dos respectivos juros moratórios, até efectivo e integral pagamento;

b) Seja a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 3 000, 00, acrescida dos respectivos juros moratórios, até efectivo e integral pagamento, respeitante à retribuição em falta do mês de Junho de 2008, bem como a quantia de € 1 000, 00, respeitante aos proporcionais dos subsídio de férias e de Natal referentes ao trabalho prestado em 2008;

c) Seja a Ré condenada ao pagamento do montante de € 4 110, 48, como remuneração pelo trabalho suplementar não pago;

d) Seja a Ré condenada a pagar ao autor a mencionada indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, com o valor de € 60 045,61 (€ 35 045,61, a título de danos patrimoniais, e € 25 000, 00 a título de danos morais), aí se incluindo as prestações pecuniárias relativas às retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do termo do contrato, a liquidar, acrescidas de juros á taxa legal, até efectivo e integral pagamento.

Para o efeito invocou a relação laboral estabelecida entre as partes, a sua cessação através da vontade unilateral da ré (despedimento) que considera ilícita e, no mais, liquida os seus créditos.


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Frustrada a diligência conciliatória da audiência de partes e notificada a ré veio a mesma contestar defendendo que não houve qualquer despedimento ilícito invocando a seu favor a conversão do contrato de trabalho celebrado entre as partes em contrato sem termo e defendendo que o denunciou ainda no período experimental.

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O Autor respondeu mantendo a sua versão e invocando que a conduta da ré configura abuso de direito

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II - Prosseguiram os auto os seus trâmites sem fixação de base instrutória tendo, a final, sido proferida sentença na qual se decidiu julgar a acção parcialmente procedente com condenação da Ré a pagar ao A. a quantia de € 1.190,05 (mil cento e noventa euros e cinco cêntimos), acrescida de juros moratórios, à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde a citação até integral e efectivo pagamento, absolvendo-se a mesma do demais que contra si foi peticionado.

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III. Inconformado com o decidido veio a ré apelar, alegando e concluindo:

[…]

Deve ser dada provisão ao recurso, julgando-se provado e procedente e, consequentemente deverá a R. ser absolvida de instância, por verificada a excepção de caducidade de acção e prescrição de créditos emergentes do contrato de trabalho aqui em apreço.

Sem prescindir, sempre deverá ser julgado provado e procedente o presente recurso e consequentemente alterada a decisão sobre a matéria de facto aqui em crise, e consequentemente não provada a presente acção, absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados pelo A..


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O recorrido não contra alegou.

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Recebida a apelação a Exma PGA emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

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IV – Dos factos:

Da 1ª instância vem assente a seguinte matéria de facto:

[…]


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V - Do Direito:

Conforme decorre das conclusões da alegação dos recorrentes que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso (artºs 684 nº 3 e 685º-A nº 3, ambos do Código de Processo Civil), as questões a decidir podem equacionar-se do seguinte modo:

1. Saber qual a lei aplicável à relação laboral: Portuguesa ou Moçambicana?

2. Sendo esta última lei a aplicável saber:

a) Se ocorreu a prescrição de créditos;

b) Se ocorreu a caducidade da acção de impugnação do despedimento.

3. Se há lugar à alteração da matéria de facto

4. Se a denúncia efectuada pela ré do contrato ocorreu durante o período experimental.

1.Da lei aplicável:

Alega a recorrente que resulta à saciedade, até por acordo das partes, que o local onde o autor prestaria as suas funções laborais, conforme contrato de trabalho verbal, seria em Moçambique, nomeadamente em Gereji (Mepuzi, Chicuala-Cuala), a partir do estaleiro da Ré sito na ... Belo Horizonte-Boane.

Na verdade, resulta da matéria de facto provada (e não impugnada na apelação) que o local de trabalho ajustado verbalmente pelas partes para a prestação do trabalho se situa em território Moçambicano.

De acordo com a recorrente será a lei deste país a aplicável à relação laboral atento o disposto nos nº 2 e nº 3 do artº 6º do Código do Trabalho (Lei 99/2003), porquanto no cumprimento do contrato é em Moçambique que o autor presta habitualmente o seu trabalho (Locus laboris ou locus executionis).

Em primeiro lugar, a questão da repetidamente se tem vindo a afirmar os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.

Contudo, o modelo de recurso de reponderação não vale entre nós em toda a sua pureza, não podendo o tribunal superior deixar de conhecer de questões não levantadas no tribunal “a quo” desde que de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 348º do Cód. Civil “àquele que invocar direito (…) estrangeiro compete fazer prova da sua existência e conteúdo, mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento”.

No caso, entendemos ter a recorrente dado cumprimente ao disposto neste preceito ao indicar o diploma e respectivos artigos da Lei Moçambicana que diz ser aplicável à relação contratual.

Por isso mesmo deve este Tribunal da Relação indagar se é aplicável esta Lei considerando estar provado que o contrato devia ser executado no referido país de expressão oficial portuguesa.

Dispõe o art. 6º/1 do CT/2003 (aplicável atento a data em que os factos ocorreram) que o contrato de trabalho se rege pela lei escolhida pelas partes; o seu nº 2 estatui que na falta de escolha de lei aplicável, o contrato de trabalho é regulado pela lei do Estado com o qual apresente uma conexão mais estreita.

O primeiro critério para a determinação da lei aplicável é, assim, o da vontade das partes; se as partes escolheram determinada lei a aplicar na resolução dos litígios emergentes do contrato de trabalho é essa lei que deverá será aplicada.

O segundo critério, que actua na falta de escolha da lei pelas partes, é o critério da conexão mais estreita, sendo esta definida nos termos do nº 3 do mesmo art. 6º, nos seguintes termos: é aplicável a lei do local habitual da prestação do trabalho (nº 3, al. a); é aplicável a lei do Estado onde está localizado o estabelecimento onde o trabalhador foi contratado, se o trabalhador não trabalhar habitualmente noutro Estado (nº 3 al. b).

No nosso caso as partes não questionam a existência de um contrato de trabalho e encontra-se assente, na medida em que nesta parte a sentença não foi impugnada, que este é um contrato por tempo indeterminado[1].

Independentemente das divergências que opõem as partes, é inquestionável que estas não escolheram a lei aplicável.

Por isso há que lançar mão do critério supletivo da conexão.

Da materialidade provada e não impugnada na apelação, resulta ter ficado acordado que o Autor seria contratado pela Ré para desempenhar a partir de 12 de Maio de 2008, a função de Director Geral, controlando, gerindo e realizando a supervisão de todas as fases de construção e edificação, discussão técnica, orçamentação e elaboração de propostas para concurso de trabalhos relacionados com obras públicas e privadas da Ré, nomeadamente em Moçambique (ponto 6); que ficou acordado que a Ré pagaria ao Autor a retribuição mensal liquida de retenções fiscais e parafiscais de € 3 000,00 (três mil euros), com € 2000,00 a depositar em conta bancária do Autor em Portugal e com os remanescentes € 1000,00 a ser pagos em Meticais, moeda Moçambicana, e a ser recebidos no local de trabalho, em Moçambique (ponto7); que ficou acordado que a Ré atribuiria ao Autor telemóvel e viatura de serviço, e que lhe disponibilizaria casa mobilada e empregada doméstica, suportando a Ré todos os respectivos custos e encargos (ponto 8), tendo ficado convencionado que o local de trabalho seria, como de facto foi, em Moçambique, nas obras aí adjudicadas à Ré, nomeadamente em Gereji (Mepuzi, Chicuala - Cuala), e que o Autor desempenharia todo o trabalho de gestão das mesmas a partir do estaleiro da Ré em Moçambique, sito na ... Belo Horizonte – Boane.

Neste quadro não é difícil concluir que é com a lei de Moçambique que o contrato de trabalho mantém maiores afinidades ou, na terminologia legal, uma conexão mais estreita.

O trabalho era para ser prestado em Moçambique para onde o autor chegou a viajar na companhia da sua companheira no dia 3 de Maio de 2008 (ponto 14), parte da remuneração era paga na moeda do país onde o trabalho era prestado e a própria ré dispunha de estaleiro no país dos meticais.

Sendo a lei deste país a aplicável à relação laboral há que levar em conta, tal como refere a recorrente, o disposto na Lei Moçambicana nº 23/2007 de 1 de Agosto[2] que no nº 1 do seu artº 2º preceitua que: “A presente lei aplica-se às relações jurídicas de trabalho subordinado estabelecidas entre empregadores e trabalhadores, nacionais e estrangeiros, de todos os ramos de actividade, que exerçam a sua actividade no país”.

Por seu turno o artº 56º da mesma lei determina que: “1. Todo o direito resultante do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação prescreve no prazo de 6 meses, a partir do dia da sua cessação, salvo disposição legal em contrário.

2. O prazo de prescrição suspende-se, quando o trabalhador ou o empregador tenha proposto aos órgãos competentes uma acção judicial ou processo de arbitragem pelo incumprimento do contrato de trabalho.

3. O prazo de prescrição também se suspende, por um período de 15 dias, nos seguintes casos:

a) Quando o trabalhador tiver apresentado, por escrito, reclamação ou recurso hierárquico junto da entidade competente da empresa;

b) Quando o trabalhador ou o empregador tiver apresentado, por escrito, reclamação ou recurso junto do órgão da administração do trabalho.

4. Todos os prazos a que se refere a presente lei são contados em dias consecutivos de calendário

Por fim, o artigo 69º do mesmo diploma diz-nos que “1. A declaração da ilicitude do despedimento pode ser feita pelo tribunal do trabalho ou por um órgão de conciliação, mediação e arbitragem laboral, em acção proposta pelo trabalhador.

2. A acção de impugnação do despedimento deve ser apresentada no prazo de 6 meses a contar da data do despedimento.

3. Sendo o despedimento declarado ilícito, o trabalhador deve ser reintegrado no seu posto de trabalho e pagas as remunerações vencidas desde a data do despedimento até ao máximo de 6 meses, sem prejuízo da sua antiguidade.

4. Na pendência ou como acto preliminar da acção de impugnação de despedimento, pode ser requerida a providência cautelar de suspensão de despedimento, no prazo de 30 dias a contar da data cessação do contrato”.

A relação laboral terminou em 23 de Junho de 2008 através de denúncia (lícita ou ilícita não interessa para o caso) operada pela ré empregadora (ponto 20 e carta de fls. 20) e a presente acção deu entrada em tribunal do dia 30 de Janeiro de 2009 tendo a ré sido citada em 25.02.09 (fls90).

Ou seja, na data de entrada da acção tinham já decorridos os seis meses fixados pela lei aplicável (moçambicana) quer para a prescrição dos créditos emergentes do contrato de trabalho, quer para a caducidade do direito de impugnar o despedimento.

Só não será assim se estiverem verificadas as excepções de ordem pública previstas nos n.ºs 5 a 7 do mesmo art.º6 do CT.

Este preceito está em consonância e inspira-se na Convenção de Roma (Convenção Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 19.06.980).

Esta convenção contempla a possibilidade de se recorrer à excepção de ordem pública nas situações em que a lei aplicável, por força dos critérios de conexão, não seja a nacional mas uma lei estrangeira e a possibilidade de fazer prevalecer sobre a lei aplicável, determinada pelas conexões gerais, normas imperativas da lei do foro, (v. artigos 6º e 7º da Convenção).

Para que a excepção de ordem pública possa intervir, “será sempre necessário que o direito estrangeiro aplicável atropele grosseiramente a concepção de justiça de direito material tal como o Estado do foro a entende. Será sempre preciso que esse direito estrangeiro comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna, que ele seja de molde a “chocar a consciência e provocar uma exclamação”, para que se justifique um desvio da linha de justiça do DIP através da excepção da ordem publica”, conforme, João Baptista Machado, in Lições de Direito Internacional Privado pp. 263 e 264.

Ora, a redução para metade do prazo de prescrição operada pela lei Moçambicana em relação à lei Portuguesa (v. artigo 381º do Cód. do Trabalho/03) e a fixação de um prazo para a instauração da acção impugnação a contar da data do despedimento não atropela grosseiramente a concepção de justiça tal como esta vigora na ordem jurídica portuguesa. Todo se resume a opções legislativas e sem que a opção Moçambicana possa representar um caso em que deva intervir a excepção de ordem pública.

Aliás o STJ (Ac. de 25 de Janeiro de 2000 “in” CJ “on line”, refª 632/2000), aceitou não ofender a ordem pública portuguesa a lei Angolana, enquanto lei aplicável à relação laboral, na parte em que esta lei não exige a cessação contratual para que se inicie a contagem do prazo de prescrição de créditos pois, lê-se no citado aresto que “a um vincado propósito de acautelar os créditos dos trabalhadores, livrando-os da prescrição enquanto subsistir a relação laboral, que presidir à norma do artigo 38 da LCT, regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n. 49408, de 24 de Novembro de 1969, a lei angolana privilegiou antes a definição pronta dos conflitos de trabalho não aguardando pela cessação do contrato de trabalho e consequente possibilidade de discussão tardia de questões há muito desencadeadas.”

Por outro lado, não estão em causa normas que regulam a contratação a termo que segundo a Exmº PGA citando António Marques dos Santos “in” “Alguns Princípios de Direito Internacional Privado e de Direito Internacional Público do Trabalho”, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. III, Almedina, págª 24, poderão classificar-se com o normas de aplicação necessária e imediata, de forma a pode-se entender que têm tal intensidade valorativa que esta determina o seu âmbito de aplicação no espaço, independentemente das regras gerais de conflitos de leis do sistema a que pertencem.

Daí que não seja de aplicar a lei portuguesa com base no disposto os nºs 5 e 6 do artigo 6 do CT/03.

Concluindo-se pela verificação da excepção peremptória da prescrição fica prejudicada a apreciação das questões acima enumeradas em quarto e quinto lugar.


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VI - Termos em que se decide julgar a apelação totalmente procedente em função do que dando-se por verificada a excepção peremptória da prescrição se absolve a ré do pedido.

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Custas a cargo da apelante.

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Joaquim José Felizardo Paiva (Relator)

Manuela Bento Fialho

Luís Miguel Ferreira de Azevedo Mendes


[1] Lê-se na sentença que “temos pois indubitavelmente que entre as partes foi celebrado um contrato de trabalho sem termo que teve execução no período compreendido entre 12 de Maio de 2008 e 23 de Junho de 2008, ocasião em que a Ré o denunciou nos termos que constam do escrito que faz fls. 20 e 21”; e isso mesmo a recorrente aceita para afirmar que denunciou o contrato durante o período experimental (90 dias), o que não teve acolhimento em 1ª instância por se considerar ter a ré agido com abuso de direito
[2] Consultável em Boletim da República, 1ª série, nº 31 de 01708707.