Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1429/12.7TBLRA-S.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
CONTROLO JUDICIAL
VOTAÇÃO
ALTERAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
EFEITOS
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 192º A 222º DO CIRE.
Sumário: I – Uma vez aprovado pelos credores, o plano de insolvência é sujeito a um segundo controlo jurisdicional, necessitando de ser homologado por sentença judicial, para que seja plenamente eficaz (cfr. artigos 214º a 216º do CIRE). A sentença de homologação apresenta-se, porém, limitada ao controlo da legalidade e não do mérito do conteúdo do plano aprovado pelos credores, o qual é livremente fixado por estes.

II - A aprovação do plano de insolvência em processo de insolvência constitui um acto processual a praticar pela Assembleia de Credores, revestindo o modelo de acto colegial, através do qual se exprime uma declaração de vontade normativa, pautada pela maioria dos votos conformes exigida por lei.

III - Se a admissão, pela Juíza Presidente da Assembleia de Credo­res, de uma alteração do conteúdo do voto da Fazenda Nacional teve influência na apro­vação do plano de insolvência, a constituir tal admissão uma irregularidade a mesma não é do conhecimento oficioso – artº 202º do C. P. Civil –, pelo que a eventual nulidade daí decorrente tem que ser invocada pelo interessado na própria Assembleia de Credo­res e só perante discordância do despacho que sobre essa arguição incida é que pode ser apresentado recurso – artº 203º, nº 1 e 205º, nº 1, ambos do C. P. Civil.

IV - O art.º 211º, nº 2 do CIRE, relativamente aos votos apresen­tados por escrito exige que os mesmos devam conter a aprovação ou rejeição da proposta do plano de insolvência e prevenindo a hipótese desses votos conterem uma proposta de modificação do plano ou um condicionamento ao sentido do voto, impõe que os votos assim expressos sejam considerados como de rejeição da proposta.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

No processo de insolvência de M…, S. A., na Assembleia de Credores realizada em 18.12.2012, foi proferido o seguinte despacho:
“Em face ao determinado suspende-se a presente assembleia, não se designando por ora data para a respectiva continuação, por não ser previsível o prazo que demorará a avaliação dos referidos imóveis, caso a mesma tenha lugar.
Estando todos os presentes cientes do plano de insolvência em discussão, con­cede-se a todos os credores que não tiverem intenção de estarem presentes ou se fazerem representar na próxima assembleia de credores, a possibilidade de votarem por escrito, sendo que tal voto deverá constar no processo até à data em que esta vier a ser designada.
Extraia certidão da presente acta e remeta ao processo de Acção Executiva n.º … a correr termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Silves.”.
Aquela assembleia de Credores teve continuação em 11.4.2013, onde foi submetida à apreciação o plano de recuperação de empresa junto a fls. 998, tendo após a respectiva votação e conforme consta da respectiva acta ocorrido o seguinte:
Após a votação foi anunciado pela Mm.ª Juíza a interrupção dos trabalhos com vista a proceder à contagem; logo após (decorridos cerca de um minuto) foi pedida a palavra pela Digna Magistrada do Ministério Público e, retomados os trabalhos, pela mesma foi dito :
“A Fazenda Nacional pretende retirar o voto apresentado a folhas 1465 dos autos, o que faz nesta altura na sequência de instruções recebidas nesta data pelas 13:55 horas e cujo expediente, emitido pela Direcção de Serviços de Créditos Tributários em representação da Fazenda Nacional, só agora, pelas 13:42 horas, nos foi entregue; assim, a Fazenda Nacional, na sequência dos requerimentos posteriormente apresentados pela devedora, vem apresentar novo sentido de voto como “votação favorável”, na condição de que a insolvente faça constar do plano que, nos termos do número 5 e seguintes do artigo 199º do CPPT, reforçará a garantia (por lapso de escrita na acta consta “quantia”) prestada caso a mesma se venha a tornar insuficiente para a garantia do crédito reclamado e a reclamar no processo.
Mais requer a junção aos autos do expediente que lhe foi entregue no decorrer desta Assembleia.”
*
De seguida foi pedida a palavra pelo Dr. … e sendo-lhe a mesma concedida, o mesmo no seu uso disse:
“Entende-se que nesta fase processual não é possível um voto sob condição. Tal perturbaria as consequências da presente Assembleia colocando-as como incertas. O tempo que decorreu até à presente data, que incluiu prorrogação do prazo, teria de ser suficiente para criar certeza ao dia de hoje.
Entende-se também que nas regras processuais, os momentos formais são de supra importância, tal justifica o rigor dos prazos, como o rigor de certos momentos formais. Nesta Assembleia foram recolhidos todos os votos dos presentes de seguida e porque a Mm.ª Juíza confirmou que não haveria mais votantes a declarar, declarou estar encerrada a votação e empreendeu os trabalhos para que fosse feita a contagem dos votos.
Ora, entende-se, se não em mais em nome da certeza jurídica, que não seria mais possível alterar as votações até esse momento produzidas. Pelo que não deverá ser aceite a declaração de voto já depois efectuada pelo Ministério Público”.
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De seguida, a Mm.ª Juíza proferiu o seguinte despacho:
“Admite-se a junção aos autos das orientações da Fazenda Pública, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
Considerando que na anterior sessão foi concedido a todos os presentes a possi­bilidade de votar por escrito e que tal voto devia constar no processo até à data em que a presente fosse realizada e considerando-se ainda que não se pode furtar a qualquer credor a possibilidade de rever o seu sentido de voto, melhor ponderado o mesmo, aceita-se a retirada do voto escrito por parte da Fazenda Nacional.
A Fazenda Nacional acabou de votar presencialmente na presente Assembleia considerando-se tal voto perfeitamente válido e eficaz.
O voto do Ministério Público foi emitido na sequência de ter sido pedida a pala­vra por este após orientação que foi dada pela Autoridade Tributária e que, não obstante lhe ser dirigida em horário anterior ao início da presente Assembleia, o mesmo só teve acesso no momento em que pediu a palavra, o que aliás fez constar do seu requerimento; assim, e não obstante o decorrer dos trabalhos, negar a possibilidade de efectuar tal voto seria negar a um credor que sempre esteve presente um direito que a lei lhe confere.
A “condição” que vem mencionada no sentido de voto da Fazenda Nacional não equivale a condicionalismo nenhum, sendo antes aquilo que decorre da lei e que consta no número 5 do artigo 199º do CPPT; como tal, considera-se o voto favorável”.
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Pelas 16:24 horas, a Mm.ª Juíza declarou finda a votação.
Feita a contagem dos votos e respectivas percentagens, com a alteração do voto da Fazenda Nacional, foi o plano de insolvência aprovado com 72,25% de votos favoráveis e 27,72% dos votos desfavoráveis.
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Na sequência, foi pedida a palavra pelo Sr. Administrador de Insolvência e sendo-lhe a mesma concedida, o mesmo no seu uso disse:
“Atento o facto que a Fazenda Nacional subordinou o voto que apresenta a algo que considera um condicionamento, concretamente a alteração do plano nomeada­mente na vertente do momento de reforço das garantias do crédito da Fazenda Nacional, e atendendo a que a Fazenda Nacional não limitou temporalmente o prazo que considera necessário para apresentação dos bens que reforcem a garantia de crédito tributário, requer-se que o Tribunal notifique a Fazenda Nacional, na pessoa do Ministério Público, para no prazo de 15 dias vir informar, por isso, a condição a que subordinará a apresenta­ção do plano, se tais garantias foram facultadas e se foram aprovadas pela Fazenda Nacional.
Ademais, tendo em consideração que o documento que foi junto aos autos foi recebido pelo Ministério Público enquanto representante da Fazenda Nacional sem nenhuma menção a que tipo de garantia e quem as prestará mais se requer no mesmo prazo venha o Ministério Público informar se os bens garantes são propriedade da L…, S.A. ou de outra qualquer empresa.
Pede deferimento”
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Seguidamente foi pedida a palavra pelo Ilustre mandatário da insolvente e sendo-lhe a mesma concedida, o mesmo no seu uso disse:
“A M…, SA. entende que o ora requerido pelo Sr. Administrador de Insol­vência não deve obter deferimento porque tudo o que aí se explana consta do plano de insolvência apresentado pela devedora.”
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De seguida, a Mm.ª Juíza proferiu o seguinte despacho:
Quanto ao requerido, entende-se que o Sr. Administrador da Insolvência parte ab inicio de um equívoco, porquanto, como ficou referido, o voto da Fazenda Nacional não foi sob condição.
Acresce que, ao contrário do que refere o Sr. Administrador da Insolvência, no expediente recebido pelo Ministério Público não se fala em garantias a prestar, mas em garantias prestadas, e não tendo tal autoridade suscitado qualquer questão quanto ao respectivo prazo, também não se entende qual o motivo de ser tal questão suscitada pelo Sr. Administrador de Insolvência.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
Face ao sentido da votação, considera-se aprovado o plano de insolvência apre­sentado a folhas 998 e seguintes do pp. (artigo 212º, nº 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas).
Publicite (artigo 213º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas)”.
*
Por sentença proferida em 24.5.2013, foi homologado o plano insolvência apresentado, com as alterações introduzidas.
F… interpôs recurso da decisão tomada na Assembleia de Credores de 11.04.2013 quanto à alteração de voto da Fazenda Nacional, apresentando as seguintes conclusões:

A Insolvente e o Ministério Público apresentaram resposta, defendendo a improcedência do recurso.
R…, S.A. interpôs recurso da decisão que homologou o plano de insolvência, formulando as seguintes conclusões:
...
O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão.
1. Do recurso interposto por F…
1.1. Do objecto do recurso
Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, cumpre apreciar as seguintes questões:
a) A autorização da alteração de voto da Fazenda Nacional constitui uma irregularidade que determina a sua invalidade, devendo ser considerado o sentido de voto inicial?
b) Admitindo-se a alteração desse voto, deverá o mesmo ser considerado como desfavorável à aprovação do plano de insolvência, por se encontrar sujeito a condição?
1.2. Dos factos
Com interesse para a decisão do recurso interessa considerar todos os fac­tos que constam do relatório e ainda que o voto da Fazenda Nacional teve na votação a ponderação de 7,32%, sendo, inicialmente e por escrito em sentido desfavorável à aprovação do plano de insolvência.
1.3. O direito aplicável
1.3.1. Da alteração do sentido de voto da Fazenda Nacional
Vem o presente recurso interposto da decisão que admitiu a mudança de sentido de voto do Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, na Assembleia de Credores realizada em 11.4.2013, porquanto esta credora já tinha votado desfavoravelmente o plano de recuperação, em voto apresentado por escrito.
O Recorrente defende que a admissão da alteração do sentido de voto da Fazenda Nacional por decisão da Juíza que presidiu à Assembleia de Credores que teve lugar em 11.4.2013 constitui uma irregularidade, a qual, por ter influência na decisão da causa, constitui uma nulidade processual.
Da leitura do preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, resulta que o processo de insolvência, no regime instituído por este Código, tem em vista, como objectivo primordial, a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, sendo sempre a vontade destes a que comanda todo o processo” e sendo ainda “sempre das estimativas dos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação da garantia comum dos seus créditos.
É também esta orientação que se encontra expressa logo no artigo 1º do CIRE que, sob a epígrafe finalidade do processo de insolvência, dispõe que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finali­dade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
Assim, de acordo com o regime instituído pelo CIRE, os credores dispõem de duas soluções para satisfação dos seus interesses através do aproveitamento do acervo patrimonial do devedor: ou procedem à pura e simples liquidação dos bens que integram a massa insolvente e à repartição do resultado de tal liquidação, nos termos da lei; ou optam por um plano de insolvência, em que regulam, dentro dos limites legais, o modo como serão satisfeitos os seus interesses.
O processamento desta última alternativa encontra-se regulado nos artigos 192º a 222º do CIRE, dispondo-se no nº 1 do primeiro destes preceitos que “o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a respon­sabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência, podem ser regula­dos num plano de insolvência”. [1]
Apresentado o plano de insolvência, nos termos dos artigos 193º e segs., este é sujeito a dois controlos jurisdicionais.
Há, desde logo, um controlo inicial – art.º 207º do CIRE – em que a pro­posta de plano de insolvência é submetida à apreciação do juiz, para que este proceda à verificação da sua admissibilidade ou inadmissibilidade.
No caso de admitir a proposta de plano de insolvência – art.º 207º, nº 2 do CIRE– o juiz notificará as entidades mencionadas no art.º 208º do CIRE para, querendo, emitirem parecer sobre ela e convocará a assembleia de credores para discutir e votar a proposta de plano – art.º 209º, nº 1 do CIRE.
Na assembleia de credores, presidida pelo juiz – art.º 74º do CIRE –, têm direito de participar os credores (com ou sem direito de voto), bem como outras pessoas – art.º 72º do CIRE –, sendo necessário, para se poder deliberar sobre o plano de insolvência, que estejam presentes ou representados credores cujos créditos constituam, pelo menos, um terço do total dos créditos com direito de voto – art.º 212º, nº 1, e 211º, nº 1, do CIRE. A proposta considerar-se-á aprovada se obtiver mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções – art.º 212º, nº 1 do CIRE.
Uma vez aprovado pelos credores, o plano de insolvência é sujeito, então, a um segundo controlo jurisdicional, necessitando de ser homologado por sentença judicial, para que seja plenamente eficaz (cfr. artigos 214º a 216º do CIRE). A sentença de homologação apresenta-se, porém, limitada ao controlo da legalidade e não do mérito do conteúdo do plano aprovado pelos credores, o qual é livremente fixado por estes.
Sobre o modo de votação da proposta do plano de insolvência o CIRE apenas dispõe no art.º 211º, nº 1 que “finda a discussão do plano de insolvência, o juiz pode determinar que a votação tenha lugar por escrito, em prazo não superior a 10 dias”.
Na situação em análise, após a apresentação e discussão do plano de insol­vência, o que ocorreu na sessão da Assembleia de Credores realizada em 18 de Dezembro de 2012, por despacho proferido nesse momento suspendeu-se a Assem­bleia e concedeu-se a todos os credores que não tiverem intenção de estarem presentes ou se fazerem representar na próxima assembleia de credores, a possibili­dade de votarem por escrito, sendo que tal voto deverá constar no processo até à data em que esta vier a ser designada”.
Instituiu-se assim, neste caso, por decisão legítima, por se encontrar no âmbito dos poderes discricionários da Presidente da Assembleia, um modo de votação misto alternativo, em que os credores podiam optar por comunicar, por escrito, o seu sentido de voto nos autos, até ao reinício da Assembleia, ou aí votarem presencialmente.
Reiniciada a Assembleia de Credores em 11.4.2013, foi submetida à apre­ciação o plano de insolvência, o qual mereceu a votação que consta a fls. 8 a 10 da respectiva acta, tendo sido contabilizados os votos presenciais e aqueles que foram apresentados por escrito, como sucedeu com a Fazenda Nacional que, por escrito, havia comunicado a sua decisão de votar desfavoravelmente o plano apresentado.
Terminada a votação a Juíza que presidia à Assembleia interrompeu os trabalhos com vista a proceder à contagem dos votos.
Quando decorria essa operação, a Magistrada do Ministério Público, que representava a Fazenda Nacional, apresentou um requerimento manifestando o desejo de retirar o voto desfavorável que havia formulado por escrito, substituindo-o por um voto em sentido contrário, alegando que só nesse momento lhe tinham chegado instruções da Fazenda Nacional com essa orientação.
Este requerimento foi deferido pela Juíza que presidia à Assembleia, o que alterou decisivamente a pronúncia da Assembleia de Credores relativamente à aprovação do plano de insolvência.
Na verdade, com a votação inicialmente realizada, em que o voto da Fazenda Nacional foi desfavorável, existiam 64,93% de votos favoráveis, isto é menos de 2/3 dos votos emitidos, enquanto após a alteração daquele voto passaram a existir 72,25% de votos favoráveis, isto é mais de 2/3 dos votos emitidos.
A aprovação do plano de insolvência em processo de insolvência constitui um acto processual a praticar pela Assembleia de Credores, revestindo o modelo de acto colegial, através do qual se exprime uma declaração de vontade normativa, pautada pela maioria dos votos conformes exigida por lei.
Cada um dos credores ao votar exprime a sua vontade sobre o sentido que a deliberação deve ter em função da proposta submetida a sufrágio, segundo os seus interesses. Se no mesmo sentido tiverem sido expressos os votos necessários a formar-se a maioria de votos exigida por lei é aprovada uma deliberação com esse sentido.
No processo formativo da deliberação distingue-se a fase de votação pro­priamente dita, em que os membros do colégio deliberativo exprimem o seu voto, da fase do escrutínio em que se apura o resultado dos votos já emitidos.
O Recorrente pretende que seja reconhecida a ineficácia da alteração do sentido de voto do credor Fazenda Nacional, através da declaração de nulidade do despacho que a admitiu.
Efectivamente, as irregularidades processuais com influência na decisão da causa produzem a nulidade do respectivo acto.
Se é certo que a admissão pela Juíza Presidente da Assembleia de Credo­res da alteração do conteúdo do voto da Fazenda Nacional teve influência na apro­vação do plano, a constituir tal admissão uma irregularidade a mesma não é do conhecimento oficioso – artº 202º do C. P. Civil –, pelo que a eventual nulidade daí decorrente tinha que ser invocada pelo interessado na própria Assembleia de Credo­res e só perante discordância do despacho que sobre essa arguição incidisse é que podia ser apresentado recurso – artº 203º, nº 1 e 205º, nº 1, ambos do C. P. Civil.
Se é verdade que o Recorrente, através do seu mandatário, naquela Assembleia, se opôs ao deferimento do requerimento apresentado pelo Ministério Público no sentido de lhe ser permitido alterar o voto já expresso da Fazenda Nacio­nal, após ter sido proferido o despacho que deferiu esse requerimento não arguiu a sua nulidade, só o tendo feito no momento em que apresentou as alegações deste recurso, motivo pelo qual, não o tendo feito tempesti­vamente e perante o tribunal competente, a nulidade, a existir, ter-se-á de considerar sanada.
Deste modo, a invocação daquele vício em alegações de recurso já não é meio idóneo ao seu conhecimento, pelo que o recurso deve ser julgado improce­dente nessa parte.
1.3.2. Do sentido de voto da Fazenda Nacional
Encontrando-se consolidado no processo a admissibilidade da alteração do voto da Fazenda Nacional, cumpre agora decidir sobre o seu sentido, perante as razões invocadas pelo Recorrente.
O Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, expressou o voto da sua representada, relativamente à apreciação do plano de insolvência, nos seguintes termos: a Fazenda Nacional, na sequência dos requerimentos posterior­mente apresentados pela devedora, vem apresentar novo sentido de voto como “votação favorável”, na condição de que a insolvente faça constar do plano que, nos termos do número 5 e seguintes do artigo 199º do CPPT, reforçará a garantia prestada caso a mesma se venha a tornar insuficiente para a garantia do crédito reclamado e a reclamar no processo.
Este voto foi contabilizado como voto favorável por decisão da Juíza Pre­sidente da Assembleia de Credores.
O Recorrente sustenta que o mesmo deverá ser contabilizado como desfa­vorável, atento o disposto no art.º 211º, nº 2 do CIRE, uma vez que a este voto foi aposta uma condição – a de constar do plano que, nos termos do número 5 e seguintes do artigo 199º do CPPT, a devedora reforçará a garantia prestada caso a mesma se venha a tornar insuficiente para a garantia do crédito reclamado e a reclamar no processo.
Na verdade, o art.º 211º, nº 2 do CIRE, relativamente aos votos apresen­tados por escrito exige que os mesmos devam conter a aprovação ou rejeição da proposta do plano de insolvência e prevenindo a hipótese desses votos conterem uma proposta de modificação do plano ou um condicionamento ao sentido do voto, impõe que os votos assim expressos sejam considerados como de rejeição da proposta.
Esta última previsão segue a doutrina da formação dos negócios jurídicos contida no art.º 233º do C. Civil, segundo a qual a aceitação duma proposta negocial com aditamentos, limitações ou outras modificações importa a rejeição da proposta. Na verdade, não é possível concluir pela existência de um consenso de vontades quanto a um determinado conteúdo, quando a aceitação de uma proposta está subordinada à introdução de alterações a esse conteúdo, podendo esse tipo de aceitação apenas valer como uma contraproposta.
Ora, é nessa situação que se encontra o segundo voto expresso em reque­rimento apresentado pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional. Aí se declarou que a Fazenda Nacional concordava com a proposta do plano de insolvência desde que constasse desse plano que, nos termos do número 5 e seguintes do artigo 199º do CPPT, a insolvente reforçaria a garantia prestada caso a mesma se venha a tornar insuficiente para a garantia do crédito reclamado e a reclamar no processo.
Estamos perante uma aceitação com uma proposta de modificação do plano – o aditamento da obrigação da insolvente reforçar as garantias que já constam do plano caso estas se revelem insuficientes.
A decisão recorrida entendeu que já resultando essa obrigação do disposto no art.º 199º, nº 5 do CPPT, a sua inclusão no plano era desnecessária, pelo que o voto favorável apresentado pela Fazenda Nacional acabava por não se encontrar dependente de qualquer modificação ao plano de insolvência em apreciação.
Na verdade, o nº 5 do art.º 199º do CPPT, incluído na secção que regula o pagamento em prestações dos créditos tributários exigíveis em processo executivo, após o nº 1 do mesmo artigo exigir a prestação de garantia idónea como condição da admissibilidade do pagamento em prestações, determina que no caso de a garantia apresentada se tornar insuficiente, a mesma deve ser reforçada.
Contudo, o pagamento em prestações do crédito da Fazenda Nacional não resulta aqui de qualquer pedido formulado nos termos dos art.ºs 196º e segs. do CPPT, mas sim do disposto em plano de insolvência a ser aprovado em Assembleia de Credores. Ora se as regras do CPPT para o pagamento em prestações são aplicáveis no domínio das relações entre a administração tributária e os contribuintes, tendo em atenção o cariz especial das disposições do CIRE é admissível que um plano insolvência preveja o pagamento de créditos tributários em prestações em condições diversas das previstas no CPPT, vigorando nessa situação as estipulações do plano aprovado por maioria qualificada e homologado por decisão judicial.
E o facto de, entretanto, o art.º 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, ter aditado um nº 3 ao art.º 30º da LGT, estabelecendo que o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, previsto no nº 2 deste artigo, prevalece sobre qualquer legislação especial, não obsta a esta conclusão uma vez que essa indisponibilidade apenas impede que se estabeleçam reduções ou extinções de créditos tributários que não respeitem o princípio da igualdade e da legalidade tributária – nº 2 do art.º 30º da LGT –, nada impedindo que um plano de insolvência contemple o pagamento do crédito tributário em condições diversas daquelas que estão previstas no CPPT para as relações directas e autocompositivas entre a Admi­nistração Tributária e os contribuintes.
Assim, sendo possível que um plano de insolvência seja aprovado e homologado por decisão judicial, contendo um pagamento em prestações dos créditos tributários sem previsão da obrigatoriedade de reforço das garantias prestadas, caso estas se revelem insuficientes, deve considerar-se que o condicionamento aposto ao voto expresso pelo Ministério Público na Assembleia de Credores realizada em 11.4.2013 é real, importando uma modificação do plano proposto, pelo que esse voto deve ser considerado como desfavorável à aprovação desse plano, nos termos do art.º 211º, nº 2 do CIRE.
E sendo esse voto desfavorável, os votos favoráveis (64,93%) não atingi­ram mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos, como exige o art.º 212º, nº 1 do CIRE, pelo que não é possível considerar aprovado o plano de insolvência proposto.
1.3.3. Conclusão:
Por esta razão e com este fundamento procede o recurso interposto por F…, devendo ser revogado o despacho que considerou como favorável à aprovação do plano de insolvência o voto apresentado pelo Ministé­rio Público, em representação da Fazenda Nacional, na Assembleia de Credores realizada em 11.4.2013 e, consequentemente, o despacho que considerou aprovado o plano de insolvência, anulando-se os actos praticados posteriormente que pressupuse­ram essa aprovação, designadamente a respectiva decisão homologatória.
2. O recurso interposto por R…, S.A.
Anulando-se a decisão que homologou o plano de insolvência fica prejudi­cado, por inutilidade superveniente, o conhecimento do recurso interposto por R…, S.A., o qual tinha por objecto precisamente essa decisão.
Decisão:
Pelo exposto decide-se:
a) Julgar procedente o recurso interposto por F… e, em consequência, revogar o despacho que considerou como favorável à aprovação do plano de insolvência o voto apresentado pelo Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, na Assembleia de Credores realizada em 11.4.2013 e, consequentemente, o despacho que considerou aprovado o plano de insolvência, anulando-se os actos praticados posteriormente que pressupuseram essa aprovação, designadamente a respectiva decisão homologatória.
b) Julgar prejudicada a apreciação do recurso interposto por R…, S.A.
c) Custas dos recursos pela Fazenda Nacional.
Coimbra, 12 de Novembro de 2013.

***

Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Sobre o plano de insolvência, Maria do Rosário Epifânio, in O plano de insolvência, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes, Vol. II, pág. 495 e ss., e  E. Santos Júnior, in O plano de insolvência. Algumas notas, in O Direito, Ano 138 (2006), III, págs. 571 e ss.).