Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2764/08.4TJCBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
PROVAS
Data do Acordão: 06/01/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA 5º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 519.ª DO CPC E N.º 1 DO ART.º 303.º, EX VI ART.º 1334.º, DO CPC
Sumário: Embora o n.º 1 do art.º 303.º, ex vi art.º 1334.º, do CPC, imponha que toda a prova deva constar no requerimento de reclamação à relação de bens, o reclamante não está impedido de o fazer ulteriormente, após resposta ao pedido prévio de informação ao cabeça-de-casal, adrede formulado ao abrigo do dever de cooperação (art.º 519.ª do CPC), quanto à actual e eventual localização de depósito bancário, antes sediado em instituição bancária que cessara a sua actividade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

            Nos autos de Inventário n.º 2764/08.4TJCBR que pendem no 5.º Juízo Cível de Coimbra em que é cabeça-de-casal A... e inventariados, em cumulação, B... e C... reclamaram da relação de bens por aquela apresentada os requerentes e interessados herdeiros D... e mulher e E... acusando a falta de relacionação da importância de “cerca de 83 000 000$00”, de cujos depósitos bancários, à ordem e a prazo, os inventariados eram titulares e que “a certa altura” esse dinheiro foi colocado numa conta em nome da cabeça-de-casal (conta n.º 2510216100900007 do “Banco F... , Agência de ...”), com encargo de prover à respectiva guarda e conservação, a final requerendo que a cabeça-de-casal procedesse à relacionação desses valores e indicar o Banco e conta onde “actualmente” se encontram depositados.

            Notificada, a cabeça-de-casal alegou não ter qualquer informação sobre a conta bancária identificada na reclamação e desconhecer a existência de que, à data do óbito, os inventariados fossem titulares daquela conta bancária, informando que a agência bancária identificada pelos reclamantes não existe desde há muitos anos, concluindo pelo indeferimento da reclamação.

            Reconhecendo que nos termos do n.º 2 do art.º 1344.º e também do n.º 1 do art.º 303.º, do CPC as provas devem ser oferecidas no requerimento de reclamação e que nenhuma diligência probatória foi solicitada na reclamação em causa, a Ex.ma Juíza, por despacho de 28.9.09, “ainda assim”, notificou os reclamantes, para em 5 dias, requererem o que tivessem por conveniente quanto às diligências de prova, caso se não conformassem com a resposta da cabeça-de-casal.

            Anuindo à notificação, os reclamantes apresentaram requerimento de prova, na sequência do que, em 8.1.10, a Ex.ma Juíza proferiu o seguinte despacho:

            “Apesar de os requerentes, aquando da sua reclamação contra a relação de bens não terem apresentado as provas devidas, os mesmos vieram fazê-lo após terem sido notificados do despacho de 28.9.09.

            Assim sendo, por ora e tal como foi requerido:

            - Notifique o Banco G..., SA, nos precisos termos requeridos no ponto 20 do requerimento apresentado, a fim de prestar os esclarecimentos aí referidos.

            - Admite-se a junção aos autos dos documentos apresentados com o mencionado requerimento;

            - Notifique os requerentes para, no prazo de 10 dias, juntarem aos autos os documentos que protestaram juntar aquando do seu requerimento.”

            Não concordando com esse despacho (e com o que em 2.12.09 notificou a cabeça-de-casal do despacho de 28.9.09 acima referido para, querendo, sobre ele se pronunciar, em 10 dias) dele recorreu a cabeça-de-casal, repetindo sob a veste de conclusões o mesmo texto do corpo das alegações, agora numerado e que, com relevância, podem resumir-se ao seguinte:

            a) – O despacho recorrido não se pronunciou quanto à admissibilidade da 2.ª reclamação ou oposição e pedido de declaração de nulidade deduzida pela recorrente, nem deu prazo de resposta nem oportunidade a esta de apresentar os seus próprios meios de prova;

            b) – No requerimento de reclamação à relação de bens os recorridos não indicaram meios de prova, pelo que o incidente de reclamação deveria ter sido julgado improcedente e não provado;

            c) – Notificados do despacho que a tanto os convidou, apresentaram não só os meios de prova, como formularam nova reclamação, invocando novos factos, novos números de conta, nova fundamentação de facto e de direito;

            d) – No ponto 20 desse requerimento requereram a notificação do Banco G..., SA, para prestar os seguintes esclarecimentos:

            A) – Data da abertura da conta n.º 25.051005.001.00.0.89, do Banco F..., Agência de ..., tipo de conta bancária e suas características; identificação dos titulares dessa conta (nomeadamente se constavam como titulares formais os nomes de H... e do requerente D...); listagem dos movimentos efectuados a débito e a crédito nessa conta desde a data de abertura até ao seu encerramento;

            B) – Data de abertura da conta n.º 25.102 161.009.000.07, do Banco F..., Agência de ..., tipo de conta bancária e suas características; identificação dos titulares dessa conta (nomeadamente se constava com única titular formal o nome de A...); listagem dos movimentos efectuados nessa conta desde a data de abertura até ao seu encerramento”;

            e) – O inventário destina-se a produzir a prova dos bens que existiam à data do óbito dos inventariados, não sendo admissível, no âmbito dos presentes autos, indagar quais os bens de terceiros ou como e em quê os inventariados dispuseram do dinheiro que tiveram enquanto vivos;

            f) – O património e a intimidade da vida da recorrente e de terceiros, não pode ser objecto de devassa, encontra-se protegido por sigilo bancário e não existe qualquer fundamento para que o mesmo seja levantado;

            g) – O despacho recorrido violou o disposto nos art.ºs 3.º. 3.º-A, 156.º, n.ºs 1 e 4, 158.º, 303.º, n.º 1, 1334.º e 1348.º do CPC (estando os demais preceitos invocados manifestamente deslocados do contexto), pelo que deverá ser julgada improcedente a reclamação oportunamente apresentada.

            Em resposta, os apelados pronunciaram-se pela manutenção do decidido.

            Cumpre apreciar, sendo que a principal questão a apreciar é a seguinte:

            - Legalidade do despacho que admitiu os meios de prova no incidente de reclamação, na sequência de convite formulado pelo próprio juiz.

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            2. Fundamentos

2.1. De facto

A factualidade relevante para apreciação da questão suscitada é a constante do antecedente relatório e que se dá por reproduzida.

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2.2. De direito

            Como é sabido, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o thema decidendum, não podendo ser apreciadas questões nelas não compreendidas, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.ºs 685.º-A, n.º 1 e 684.º, n.º 3, do CPC).

E, tal como acima enunciado, a questão que importa analisar tem a ver com a legalidade do despacho que admitiu os meios de prova no incidente de reclamação, por convite do juiz.

a) – Questão prévia

            Alguma prolixidade das alegações de recurso justifica comecemos por esclarecer que o despacho recorrido é o de fls. 23 dos presentes autos, despacho esse datado de 8.1.10 (ref. 2224178) e no qual foram admitidos meios de prova fora do requerimento de reclamação à relação de bens.

            É esse o despacho (e não o de mero expediente de fls. 22, de 2.12.09, ref. 2197092, ou seja, o despacho que reparou a falta de notificação à recorrente do despacho anterior), cujo recurso foi admitido e permitiu a subida em separado (art.º 691.º, n.º 2, alín. i) e n.º 2 do art.º 691.º-A, do CPC) no presente traslado e cuja certidão, de fls. 3, não deixa dúvidas.

            Depois, embora se não disponha, nos presentes autos de traslado, do requerimento dos recorridos da “nova” produção de prova, subsequente ao convite que lhes foi formulado e onde a recorrente configura uma 2.ª reclamação, apenas cumprirá deixar expresso que, ainda que assim seja, o n.º 6 do art.º 1348.º do CPC permite que, em qualquer altura, até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, possa acusar-se a falta de relacionação de bens.

            E quanto à omissão de pronúncia no despacho recorrido da nulidade arguida, subsequente à falta de notificação do despacho de 28.9.09 (fls. 17), a sua sanação desde logo ocorreu com a posterior notificação ordenada pelo despacho de 2.12.09 (fls. 22).

            Embora sem formulação expressa e inequívoca por parte da recorrente, de nenhuma nulidade, v. g., por omissão de pronúncia, enferma o despacho recorrido e cujo objecto, que o determina, no seu modo de subida imediato e em separado, não tem a ver, também e ainda, com qualquer questão de sigilo bancário (questão nova e que ipso facto desde logo não cumpriria apreciar), mas com a admissibilidade dos meios de prova no incidente de reclamação à relação de bens, o que passa a apreciar-se.

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            b) – A admissibilidade dos meios de prova

            Contrariamente ao que dispunha o n.º 3 do art.º 1342.º do CPC anterior à Reforma operada pelo DL n.º 227/94 de 8.9, em que o oferecimento da prova podia ser feito, na sequência de despacho judicial, após a resposta negatória da existência dos bens ou da obrigação do cabeça-de-casal os relacionar, da conjugação dos art.ºs 1334.º e 303.º, n.º 1, do CPC resulta hoje, claramente, que a prova do alegado na reclamação contra a relação de bens tem de constar obrigatoriamente do próprio requerimento de reclamação, sob pena de preclusão do respectivo direito.

            Nesse sentido e reafirmando o corte legislativo tem sido produzida (ainda) inúmera jurisprudência de que se salientam, a título de mero exemplo os acórdãos da Relação do Porto de 9.3.00 ou da Relação de Coimbra de 25.5.04, ambos no ITIJ.

            Mas, salvo o devido respeito, não é esta propriamente a situação em que deva enquadrar-se o caso concreto.

            Vejamos.

            O processo de inventário, enquanto processo especial, consiste essencialmente numa medida de protecção destinada a evitar prejuízos e a distribuir com fidelidade e equidade uma herança, sendo mister, com vista a esse desiderato, o apuramento da verdade de molde a que a partilha não gere desigualdade e injustiça, daí se explicando os poderes que a lei confere ao juiz, mormente em sede probatória e concretamente com vista à decisão do incidente de reclamação à relação de bens, onde pode oficiosamente determinar diligências de prova (art.º 1349.º, n.º 3 e 1334, n.º2, do CPC).[1]

            Por outro lado, é preciso convir que muitas vezes está fora do alcance do próprio reclamante e mais perto do cabeça-de-casal seja a identificação concreta dos bens em falta, seja o modo de comprovar a sua omissão, pelo que, qualquer rigorismo nesse sentido poderia simplesmente neutralizar o uso do direito de reclamação, em especial, pela natureza das coisas, quando em causa estão depósitos bancários.[2]

            Ora, nos termos em que os recorridos formularam a reclamação de acusação de falta da verba monetária quanto aos meios de prova conclui-se por um alegado conhecimento fluido de os inventariados terem sido titulares do depósito bancário invocado, cujo valor, “a certa altura”, foi colocado numa conta bancária da cabeça-de-casal com encargo de a prover às sua guarda e conservação, conta essa que indicaram, mas que fosse por que soubessem que o respectivo banco (“ F...”) cessara a sua actividade (cuja informação de falência se pode colher da Wikipédia, passando as suas agências a ser geridas pelo G...), fosse por qualquer outra razão, terminaram o seu requerimento com o pedido de informação à cabeça-de-casal da indicação do actual Banco e conta onde se encontra depositada a quantia reclamada.

            Quer dizer, embora omitissem o enquadramento legal, mormente do art.º 519.º do CPC, os reclamantes ora recorridos, solicitaram a colaboração da cabeça-de-casal com vista à localização do próprio bem, no caso o saldo de conta bancária, a relacionar e possibilidade de o comprovar.

            Tal requerimento, desse modo formulado, não fez precludir a apresentação dos respectivos meios de prova no requerimento inicial do incidente, antes suspendeu a necessidade/possibilidade da sua indicação, até que tal informação fosse prestada.

            E, embora negada a existência de qualquer conta bancária, por parte da cabeça-de-casal, após a resposta, sempre os recorridos poderiam instruir a reclamação, como lhes aprouvesse, com ou sem convite do juiz.

            Foi o que aconteceu.

            Em suma, os reclamantes da relação de bens não se alhearam da indicação obrigatória dos meios de prova no próprio requerimento de reclamação. Simplesmente, por dificuldades em o fazer, desencadearam previamente uma faculdade legal de o poderem conseguir, em apelo ao dever de cooperação das partes previsto no art.º 519.º do CPC, nada impedindo a sua indicação após resposta da cabeça-de-casal, ainda que na sequência de despacho judicial.

            Não merece, assim, censura o despacho recorrido e porque não foram violadas as normas invocadas nas conclusões recursivas, importa mantê-lo.

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            3. Resumindo e concluindo (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)

            - Embora o n.º 1 do art.º 303.º, ex vi art.º 1334.º, do CPC, imponha que toda a prova deva constar no requerimento de reclamação à relação de bens, o reclamante não está impedido de o fazer ulteriormente, após resposta ao pedido prévio de informação ao cabeça-de-casal, adrede formulado ao abrigo do dever de cooperação (art.º 519.ª do CPC), quanto à actual e eventual localização de depósito bancário, antes sediado em instituição bancária que cessara a sua actividade.

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            4. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em consequência manter a decisão recorrida.

            Custas pela apelante.


[1] V., neste sentido, Acs. STJ de 26.10.76, BMJ, 260.º-113 e RC de 27.9.05, Proc. 2183/05/ITIJ.
[2] V. Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, I, 1974, pág. 512 e Domingos de Sá, “Do Inventário”, 1996, pág. 111 e ss, transcrito por A. Neto, “Cód. Proc. Civil, Anot.”, 20.ª ed., pág. 1442.